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Biotecnologia na sociedade de risco: um estudo do caso da gripe suína

Resumo: O artigo consiste em um estudo do histórico da “gripe suína” – novo subtipo de vírus da gripe “A/H1N1” – tendo como marco teórico a teoria da sociedade de risco, do sociólogo Ulrich Beck. Abordou-se o desenvolvimento da Biotecnologia aplicada ao agronegócio, enfatizando a questão das incertezas quanto aos riscos e ameaças dessa atividade. Demonstrou-se que a revolução na criação de animais transformou fundamentalmente a ecologia da gripe e acelerou a evolução de novos recombinantes interespécies, evidenciando o elo entre os novos riscos e as decisões humanas.  


Palavras-chave: Biotecnologia – Sociedade de Risco – Gripe Suína – A/H1N1.


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Sumário: Introdução. 1. Vivendo em sociedade de risco. 2. Biotecnologia e novos métodos de produção da indústria de animais para consumo. 3. Da evolução da gripe ‘a’ no mundo ao surgimento da gripe suína: imprevisibilidades e incertezas da sociedade de risco. Conclusões articuladas. Referências.


Introdução


O presente artigo analisará os recentes incidentes da “gripe suína” – novo subtipo de vírus da gripe “A/H1N1” – tendo como marco teórico a teoria da sociedade de risco, do sociólogo Ulrich Beck.  


O estudo se desenvolverá a partir de uma breve apresentação das mudanças sociais que se seguiram ao período da revolução industrial, com base na teoria da sociedade de risco de Beck. A seguir, será estudado o desenvolvimento da Biotecnologia aplicada ao agronegócio, enfatizando a questão das incertezas quanto aos riscos e ameaças dessa atividade. Por último, se descreverá o histórico da gripe A no mundo, até o surgimento do novo subtipo do vírus A/H1N1.


Quanto à gripe suína, cujas futuras consequências ainda se desconhecem, há suspeitas de que manipulações genéticas estejam relacionadas ao surgimento do novo vírus, embora tais teorias ainda não tenham sido comprovadas ou divulgadas. Independentemente desse aspecto, se demonstrará que a revolução na criação de animais transformou fundamentalmente a ecologia da gripe e acelerou a evolução de novos recombinantes interespécies, evidenciando o elo entre os novos riscos e as decisões humanas.


Diante da confirmação do modelo sociológico proposto por Beck, surgem novos desafio no cenário jurídico e político, especiamente no que toca à democratização e regulação dos processos de tomada de decisão envolvendo as novas tecnologias.     


1. Vivendo em sociedade de risco.


O homem sempre esteve exposto a perigos, isso não é novidade. Nos tempos pré-industriais, as ameaças – pragas, fome, desastres naturais – eram consideradas fatalidades, golpes do destino, vontades dos deuses e demônios (BECK, 1992, p. 97-98).


A partir do século XVII, a Europa sofreu transformações impulsionadas pelo movimento do iluminismo, havendo a incorporação de novos valores pela sociedade, tais como a razão, a cientificidade e a liberdade, caracterizando o que se denominou de modernidade. Com o desenvolvimento da ciência, as ameaças naturais foram amenizadas, gerando benefícios como o aumento da estimativa de vida, a redução da mortalidade infantil e a possibilidade de prever alguns eventos naturais (BECK, 1992, p. 97-98).


O que não pudesse ser controlado pela ciência, como os perigos dos mares nas navegações[1], passou a ser calculado de forma estatística, desenvolvendo-se o sistema de seguros, que se expandiu para os mais variados setores da vida humana, desde a saúde, até os riscos econômicos e de desemprego (BECK, 1992, p. 99).


Nessa primeira fase do industrialismo, o consenso no progresso legitimou o desenvolvimento técnico-econômico (BECK, 1992, p. 100). A degradação da natureza foi considerada um mal necessário em face do novo modelo de consumo. Assim, além de outras transformações sociais que decorreram do modelo de produção industrialista, verificou-se uma apropriação descontrolada e ilimitada dos recursos naturais, legitimada pelo discurso desenvolvimentista e pela ideologia consumista.


Como se percebe, o desenvolvimento foi e ainda é aceito como única alternativa para a promoção do bem-estar social. Ocorre que a sociedade ainda não conseguiu alcançá-lo plenamente e, paradoxalmente, se verifica que a cada passo em direção ao “desenvolvimento”, mais o homem se aproxima da eliminação das condições de continuidade da sua própria espécie.


Como resultado do amadurecimento das instituições modernas, Giddens (1996, p. 12) aponta o surgimento de uma “incerteza artificial(manufactured uncertainty), na qual as fontes do “risco artificial”[2] (manufactured risk) não mais coincidem com as incertezas que a sociedade estava acostumada a vivenciar no período pré-industrial e mesmo durante a primeira modernidade, ou seja, eventos naturais de origem independente da ação humana.


O que mudou na segunda etapa da modernidade, período ao qual se referiá neste artigo como “sociedade de risco”, cujas características se intensificam a partir da segunda metade do século XX, é o fato de que as novas ameaças, ou “riscos”, têm sua origem no processo de tomada de decisões (BECK, 1992, p. 98).


Daí porque Beck (2006, p. 01) afirma que a narrativa do risco é uma narrativa da ironia. A grande ironia é que as instituições modernas se ocupam cada vez mais em debater, prevenir e gerenciar os riscos que elas mesmas produzem. Elas se eforçam em prever o imprevisível, resultando em outra ironia: “nós não sabemos, o que é que não sabemos – mas disso surge o perigo, que ameaça a humanidade” (BECK, 2006, p. 01)[3]


Além de pressupor decisões humanas, o risco apresenta três novos aspectos: i) As suas causas e consequências não são limitadas no tempo (podem ocorrer no futuro e afetar até mesmo futuras gerações), no espaço (os novos riscos não respeitam fronteiras) e tampouco a uma classe social (“democratização” do risco); ii) as suas consequências são em princípio incalculáveis, podendo atingir proporções catastróficas; iii) as consequências podem ser irreversíveis e não compensáveis, como no exemplo de situações de alterações genéticas irreversíveis (BECK, 2006, p. 05-06).


Estes riscos, imprevisíveis e incalculáveis, se acrescem às incertezas seguráveis da sociedade industrial. As ameaças produzidas na sociedade de risco são complexas e não-controláveis pela ciência, caracterizando a falência dos padrões de segurança idealizadas pelo projeto iluminista.


Conforme análise de Morin (2008a, p. 20), a atividade científica passa a ser controlada pelos poderes econômico e estatal, que também controlam a técnica, não se podendo mais assegurar a neutralidade do desenvolvimento científico na sociedade de risco.


Em face a essas transformações, Morin (2008b, p. 02) destaca a falta de regulação ética da tecno-ciência, o que a humanidade visualizou claramente no campo da física nuclear e, atualmente, se questiona principalmente no campo das manipulações genéticas, dentre elas as aplicadas na agroindústria, temática do presente artigo.


Além das questões éticas, o desenvolvimento de setores do conhecimento como a nanotecnologia, a biotecnologia e a tecnologia da informação, vem acarretando problemas jurídicos e políticos. As principais decisões políticas concernentes a essas são tomadas pelos peritos (experts), ao definirem os padrões de “segurança” a serem adotados (BECK, 1992, p. 107). Os instrumentos políticos clássicos, portanto, foram entregues nas mãos dos peritos, restando abafada qualquer manifestação do público leigo quanto à sua compreensão dos limites toleráveis. 


Nesse cenário, desenvolve-se o fenômeno da “irresponsabilidade organizada” (BECK, 1992, p. 105), que ocorre quando, para “maquiar” a inadequação das esferas política, científica e jurídica no enfrentamento e controle dos riscos atuais, estas instituições passam a atuar simbolicamente, deixando transparecer uma normalidade e segurança que não são efetivas.


A intenção política da legislação simbólica encontra-se oculta e não corresponde à intenção jurídica prescrita na norma. Embora os instrumentos não apresentem efetividade, têm o efeito de acalmar a sociedade e transmitir uma falsa sensação de segurança (FERREIRA, 2008, p. 61-62).  


No caso específico das novas tecnologias envolvendo a agroindústria e suas prováveis relações com o recente problema da “gripe aviária”, o presente artigo procederá a seguir a uma análise crítica dessas novas tecnologias, com base na teoria da sociedade de risco e da irresponsabilidade organizada.


 2. BIOTECNOLOGIA E NOVOS MÉTODOS DE PRODUÇÃO DA INDÚSTRIA DE ANIMAIS PARA CONSUMO


Por volta de oito mil anos antes de Cristo, na Síria e na Palestina, ocorreu a chamada primeira “revolução verde”, quando os seres humanos passaram a viver em pequenos vilarejos, onde dominaram o cultivo de cereais para sua alimentação (BLAINEY, 2007, p. 31). 


Os habitantes destes vilarejos não possuíam animais domésticos e toda a carne que consumiam era proveniente de animais selvagens. Somente após cerca de 500 anos, essas civilizações passaram a criar cabras e ovelhas, em pequenos rebanhos, como forma de provisão de alimentos (BLAINEY, 2007, p. 32). Iniciava-se a domesticação e produção de animais para o consumo. 


Lentamente, essa nova cultura foi disseminada ao longo do Mediterrâneo até espalhar-se por toda a Europa. Os vilarejos tornaram-se cidades, as quais teriam sido inviáveis sem a domesticação de animais e o desenvolvimento da lavoura.


A população do mundo, até então reduzida, aumentou drasticamente (BLAINEY, p. 36), o que leva a concluir que a dominação do homem sobre o mundo natural, por meio do desenvolvimento tecnológico, remonta aos primórdios de sua existência e foi a grande responsável por sua sobrevivência e multiplicação na Terra.


Na antiguidade, o desenvolvimento da técnica, como esforço humano, era um tributo criado pela necessidade de sobrevivência. Com o passar do tempo, aponta Jonas (2006, p. 43), “a techne transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento mais significativo”, em outras palavras, a tecnologia passou a ser encarada como a vocação da humanidade, seu fim intrínseco, legitimando, cada vez mais, o domínio do Homem sobre a natureza.


No que diz respeito às tecnologias desenvolvidas para a produção de animais para o consumo, foi com o advento da Revolução Industrial e os sistemas de produção em série, que se iniciou nova forma de produção (LEVAI, 2006, p. 173), processo este que mais tarde seria denominado de “Revolução da Criação de Animais”.


A partir de então, ciência e tecnologia passaram a ser de tal forma interligadas que, na prática tornou-se impossível estabelecer uma distinção entre elas. Essa relação de interdependência entre o “saber” (ciência) desenvolvido para o “fazer” (técnica) fez surgir o neologismo tecno-ciência, representando uma idealização da sociedade moderna que se torna realidade quando a diretriz neoliberal para as pesquisas é levada a seu limite (FERREIRA, 2008, p. 47/48).


Ferreira (2008, p. 85) explica que o termo “biotecnologia” foi utilizado pela primeira vez em 1919, para chamar atenção à relação entre biologia e tecnologia. À época, significou simplesmente a adoção de métodos de produção de bens de consumo que empregavam organismos vivos (FERREIRA, 2008, p. 85). Essa nova área do conhecimento,  cujo objetivo inicial era solucionar o problema da escassez de alimentos do pós-Primeira Guerra, modificou consideravelmente a lógica da criação de animais.


Em meados do século XX, após algumas reformulações da biotecnologia e com a descoberta da estrutura química do DNA (ácido desoxirribonucléico), realizaram-se as primeiras manipulações genéticas (FERREIRA, 2008, p. 87). 


Com esse importante passo, a biotecnologia passou a significar “uma complexa rede de saberes na qual a ciência e a tecnologia são aplicadas a agentes biológicos com a finalidade de produzir conhecimentos, bens e serviços” (FERREIRA, 2008, p. 92).


Embora as diversas promessas da “nova biotecnologia”, muitos cientistas chamaram atenção para a questão da imprevisibilidade dos efeitos da manipulação genética. Krimsky (1982, p. 88) alertou sobre a possibilidade de “criação de novos tipos de elementos de DNA infeccioso cujas propriedades biológicas não podem ser completamente previstas à partida”.


A este respeito, em 1973, um grupo de cientistas, após participar da Conferência de Gordon sobre ácidos nucléicos, escreveram uma carta direcionada ao Presidente da Academia Nacional de Ciências e ao Presidente do Instituto Nacional de Medicina, ambos dos EUA, alertando para os riscos da manipulação genética e propondo um embargo temporário nesse tipo de pesquisa. Foi a primeira vez na história da ciência que pesquisadores sugeriram que sua própria linha de investigação deveria ser suspensa (WADE, 1974).


Nesta carta, posteriormente publicada nas revistas Science e Nature, os cientistas afirmaram que a manipulação genética poderia ser usada para combinar DNA de vírus animais com DNA de bactérias, por exemplo, e a partir disso, novos tipos de vírus, com atividade biológica imprevisível, poderiam eventualmente ser criados, o que representava um alto risco aos pesquisadores e à população em geral (SINGER, SOLL, 1973).


Não obstante as incertezas científicas acerca destas inovações tecnológicas, as experimentações genéticas continuaram a acontecer indiscriminadamente em laboratórios financiados por grandes empreendedores (a ciência nas mãos do capital), o que levou à chamada “Revolução na Criação de Animais” que, segundo Davis (2006, p. 105), favoreceu apenas os produtores corporativos, em detrimento dos camponeses e pequenos criadores.


A revolução na criação de animais implementou novos métodos pelos quais os animais criados para consumo passaram a ser confinados e manipulados especificamente para o aumento de produção e redução dos custos através de genética, medicamentos e técnicas de manejo. De maneira cruel, os animais foram “coisificados” para suprir unicamente interesses econômicos.


A este respeito, tem-se o exemplo da indústria de frangos, cujo modelo moderno exige “‘densidade de produção’, a localização compacta de fazendas de criação em torno de uma fábrica de processamento” (DAVIS, 2006, p. 106), seguida também pela indústria de suínos. Em ambas, a supervalorização do lucro legou aos animais uma existência indigna e miserável e aos humanos, riscos imprevisíveis. 


A criação de suínos segue cada vez mais este modelo cruel de produção. Os métodos de ordem são: concentração de animais em espaços cada vez menores, reprodução provocada por doses maciças de hormônios, manipulação genética para aumento da lucratividade e ausência de investimentos no bem-estar dos animais.  


Os porcos são curiosos por natureza e normalmente passariam metade do tempo cavando a terra. A frustração do confinamento faz com que lutem e mordam suas caudas. A resposta da indústria é o corte das caudas e a castração dos porquinhos para torná-los menos agressivos, sem o uso de anestesia (ARCA BRASIL, 2009). Além disso, as patas desses animais, confinados sobre pisos de concreto, desenvolvem lesões dolorosas, ocasionando pressão sobre os músculos das pernas, joelhos e ombros, o que vem a causar artrite (ARCA BRASIL, 2009, p. 284).


Esta é a cruel perspectiva da indústria de animais utilizados para consumo na sociedade de risco. Os riscos decorrentes destes modos de criação já podem ser constatados em determinados acontecimentos, conforme se demonstrará a seguir.


Como referido anteriormente, a humanidade atingiu níveis de progresso social e, principalmente, avançou nos campos da ciência e da tecnologia. Entretanto, como adverte Jonas (2006, p. 269), “há um preço que se paga por esse progresso: com cada ganho também se perde algo valioso. Não é necessário lembrar que o custo humano e animal da civilização é alto e, com o progresso, tende a aumentar”. Trata-se da ironia do risco, demonstrada no início deste trabalho.


Feitas tais considerações, seguir-se-á ao próximo tópico, onde se analisará a gripe suína e as relações com os avanços biotecnológicos da indústria de produção de animais e os riscos assumidos pela sociedade de risco.


3 DA EVOLUÇÃO DA GRIPE ‘A’ NO MUNDO AO SURGIMENTO DA GRIPE SUÍNA: IMPREVISIBILIDADES E INCERTEZAS DA SOCIEDADE DE RISCO


Há basicamente três gêneros principais de gripes (influenza): A, B e C. As gripes B e C já foram domesticadas pela prolongada circulação em populações humanas, mas a gripe A é ainda selvagem e muito perigosa. (DAVIS, 2006, p. 19).


Embora o reservatório principal da gripe A continue a ser de patos e aves aquáticas, ela está em seus primeiros estágios de cruzamento para outras aves e espécies mamíferas, inclusive seres humanos (DAVIS, 2006, p. 19). De acordo com a OMS (WHO, 2009a), dois substipos de Gripe A são atualmente associados ao contágio e maioria das mortes humanas: A(H3N2) e A(H1N1).


Se demonstrará a seguir que, devido às interferências da ciência, a Gripe A vem se tornando uma grande ameaça à saúde humana, assumindo todas as características catastróficas dos novos riscos descritos por Beck (1992, p. 98).


A essência dessa ameaça, reside no fato de que a gripe A é uma espécie mutante, evoluída e de virulência terrível, atualmente “entrincheirada em nichos ecológicos recentemente criados pelo agrocapitalismo global – que está em busca de um novo gene, ou dois, que permitirão que viaje a velocidade pandêmica por uma humanidade densamente urbanizada e majoritariamente pobre.” (DAVIS, 2006, p. 15).


Nesse sentido, Davis (2006, p.15) acredita que a dominação do ambiente natural pelo homem, o turismo entre continentes, a poluição, a revolução na criação de animais e a urbanização dos países subdesenvolvidos, com o crescimento de megafavelas, são responsáveis pela extraordinária transformação da mutabilidade darwiniana da gripe em uma das forças biológicas mais perigosas de nosso planeta. A biotecnologia é a importante peça deste quebra-cabeça, o elemento possibilitador da evolução da Gripe A e da concretização do anunciado acontecimento catastrófico.


  O primeiro registro oficial de uma pandemia[4] provocada pela gripe A remete ao ano de 1918, sendo considerada pela Organização Mundial da Saúde (WHO, 2009a) como o evento patológico mais mortal da história da humanidade. As estimativas de mortalidade global desta pandemia, que ficou conhecida como “gripe espanhola”, são de 100 ou mais milhões de pessoas (500 milhões de infectados), tendo atingido países de quase todos os continentes, como Índia, China, Estados Unidos da América (EUA), Alemanha e Irã (DAVIS, 2006, p. 35-42).


Em 1957, surgiu no sudeste da China um novo foco pandêmico. O vírus se espalhou pelas rotas terrestres tradicionais, da Rússia para a Europa, e por mar para o Hemisfério Ocidental. Dois milhões de pessoas no mundo pereceram na pandemia (DAVIS, 2006, p. 47-49), que ficou conhecida como “gripe asiática”.


Onze anos depois, em 1968, uma terceira cepa foi isolada em Hong Kong. Tal cepa de vírus foi incrivelmente contagiosa (500 mil casos em Hong Kong no período de algumas semanas), mas inesperadamente branda, provavelmente porque apesar das mutações sofridas, continha características do vírus de 1957 e, portanto, grande parte da população já possuía imunidade. (DAVIS, 2006, p. 49).


Em 1976, logo após o alerta emitido por pesquisadores sobre uma possível pandemia, um soldado americano faleceu em decorrência de um misterioso vírus de gripe, com características do vírus de 1918, posteriormente identificado como “gripe suína”. A ameaça da gripe suína foi utilizada como ativo político, resultando em um programa imediato do Presidente Gerald Ford para vacinar mais de 100 milhões de americanos (DAVIS, 2006, p. 54).


Como nenhum outro caso surgiu na época, o fato motivou a desconfiança do público a respeito da campanha de vacinação e a gripe suína tornou-se sinônimo de fiasco político, uma lenda que militou contra iniciativas proativas de saúde pública nas décadas subseqüentes (DAVIS, 2006, p. 56-59).


  Em março de 1997, frangos começaram a morrer numa fazenda em Hong Kong, exibindo os sintomas violentos da “gripe aviária de alta patogenicidade” (GAAP). Em meados de maio, um menino de três anos de idade foi internado com os sintomas da gripe A. Realizados estudos da cepa encontrada no menino, confirmou-se que o vírus que o levou à morte era quase idêntico ao que tinha contagiado os frangos meses antes e que, conseqüentemente, tinha saltado a barreiras das espécies com a ajuda de uma variação genética (DAVIS, 2006, p. 62-66). Após o extermínio em massa de frangos e a ocorrência de algumas mortes humanas, nenhum novo caso foi registrado, evitando-se uma nova pandemia do vírus da gripe A (DAVIS, 2006, p. 72).


No mesmo ano, porcos de uma mega-fazenda da Carolina do Norte (EUA), pegaram uma gripe humana, que logo se rearranjou com os vírus aviário e com o clássico suíno, criando um subtipo perigoso com potencial para se ligar a receptores celulares humanos. A nova ameaça pandêmica de gripe suína surgiu aparentemente da escala crescente da produção de porcos. Davis (2006, p. 113-114) menciona artigo da revista Science onde se afirma que “o surto repentino de energia mutacional da gripe suína pode ter sido estimulado por mudanças paralelas no tamanho dos rebanhos, no transporte interestadual de porcos e na prática de vacinação”.


Davis (2006, p. 83) aponta para a intensificação da indústria do frango em operações comerciais de larga escala no leste da Ásia e em outros locais, como possível fator de aumento da área de superfície de contato entre gripes aviárias e não-aviárias, caracterizando a relação entre a tomada de deciões e os novos risco da sociedade de risco.  


Em maio de 2001, frangos começaram a morrer novamente nos mercados da cidade, e mais uma vez o governo ordenou o abate das aves antes que as novas cepas infectassem seres humanos ou se rearranjassem. A desconfiança dos cientistas era de que a variação antigênica estivesse sendo acelerada pelo uso ilegal de vacinas não registradas para aves em Guangdong, China. (DAVIS, 2006, p. 86).


Já no começo de fevereiro de 2003, uma menina de sete anos faleceu com doença respiratória aguda. Ela foi enterrada antes que a causa exata da morte pudesse ser determinada. Contudo, o sequenciamento genético extraído de pessoas contaminadas por meio da menina revelou que o vírus era um primo distante da cepa original de 1997, fato que levou a OMS a lançar o alerta de pandemia (DAVIS, 2006, p. 87).


O maior e mais poderoso conglomerado de agricultura de exportação da Ásia, a Caroen Popphand (CP), tem como principal fonte de lucro a criação de frangos e é exatamente esta gigante da criação de animais que “figura no centro da história do retorno da gripe A no inverno de 2003/2004 e na inédita epidemia de GAAP que ameaça se tornar um cataclisma humano e ecológico global”. (DAVIS, 2006, p. 121).


O fundador da CP implementou o processo industrial americano, de criação em massa de animais para consumo, na Tailândia e, em seguida, em toda Ásia, tornando-se um dos vinte executivos mais poderosos do continente, com fortes influências políticas. Na véspera do novo surto, a “Tailândia era governada por uma coalizão camarada dos setores de telecomunicações e criação de animais” (DAVIS, 2006, p. 122-126), coalizão que bem representa as novas relações entre política e ciência na sociedade de risco, descritas por Beck (1992, p. 105-107).


Em 2004, na Tailândia, “mentiras estavam sendo fabricadas com a mesma rapidez com que os frangos doentes eram abatidos e embarcados para mercados estrangeiros”. O governo havia se unido à CP e outras gigantes do frango para esconder a epidemia: “a tapeação oficial deu aos grandes exportadores vários meses para processar e vender o estoque doente” (DAVIS, 2006, p. 130-131), confirmando a lógica da irresponsabilidade organizada.


A revista New Scientist sugeriu que o surto foi resultado de uma campanha de vacinação clandestina e equivocada por parte de produtores de frangos do sul da China, depois da crise de 1997 em Hong Kong. Os criadores chineses teriam acelerado a evolução de uma supercepa da gripe A, que rapidamente se tornou endêmica e assintomática em patos domésticos. (DAVIS, 2006, p. 127).


O muro de silêncio oficial em toda a Ásia foi rompido em dezembro, quando os frangos começaram a morrer maciçamente em uma fazenda perto de Seul. Os tailandeses reconheceram publicamente o surto, seguido pelos demais paises da Ásia, que justificaram a ausência de informações prévias para evitar perdas “desnecessárias” com decisões “precipitadas” (DAVIS, 2006, p. 128-135).


Neste momento, a OMS e sua contraparte veterinária, a OIE, bem como a Organização para a Alimentação e a Agricultura da ONU (FAO), deparam-se com o fato de que os porta-vozes da burocracia e do agronegócio há meses vinham acobertando uma epidemia de abrangência continental (DAVIS, 2006, p. 129).


  O mesmo ocorreu na Califórnia, onde dezenas de milhões de aves foram infectadas com um vírus da gripe A no período de março a junho 2002. A emergência deste surto foi mantida em silêncio por executivos corporativos que temiam que a demanda do consumidor caísse se o público soubesse que estava comprando carnes e ovos infectados (DAVIS, 2006, p. 116).


Portanto, tanto na Ásia, como nos EUA, os governos acobertaram os surtos, inclusive perante organismos internacionais, ameaçando quem revelasse informações e possivelmente escondendo doenças e mortes. De acordo com a revista New Scientist, acobertamentos oficiais e práticas de criação questionáveis permitiram que a gripe se transformasse na epidemia que ora está em andamento (DAVIS, 2006, p. 127).


Percebe-se que desde de 2001, vários subtipos do vírus da Gripe A vêm circulando, principalmente na China continental, mantendo padrão sazonal, com pico de outubro a março, quando a temperatura média fica abaixo de 20º C. Alguns especialistas em gripe, inclusive, acreditam que todas as pandemias originam-se na criação mista de suínos e frangos do sul da China, mas que as precondições ambientais para a rápida evolução da gripe entre espécies são encontradas agora em toda a parte, e apontam especificamente para os impactos ecológicos da industrialização para exportação da produção de aves e porcos desde a década de 1980. (DAVIS, 2006, p. 103-145).


Em 26 de abril de 2009, o governo dos EUA reportou à OMS 20 casos de gripe suína (influenza A/H1N1) confirmados em laboriatório (WHO, 2009b). Nenhuma morte foi confirmada à época. Tratava-se de um novo subtipo de A/H1N1, jamais detectado anteriormente em suínos ou humanos, gerando suspeitas quanto à relação entre o vírus e recentes manipulações genéticas, teoria que não resta comprovada.


Na mesma data, o governo do México informou 18 casos confirmados da mesma gripe, com suspeitas em 19 dos 32 dos estados do país (WHO, 2009b).


A doença se expalhou rapidamente pelo globo, sendo que no início de maio (01/05), 13 países já haviam relatado oficialmente 367 casos de gripe suína (WHO, 2009c), confirmando que as mega-catástrofes da sociedade de risco não respeitam fronteiras ou classe econômica, como diagnosticado por Beck (2006, p. 06).  


Até 29 de maio, já foram confirmados oficialmente 15.510 casos de gripe suína, sendo que os países que registraram maior número de casos são: EUA (7927), México (4910), Canadá (1118), Japão (364), Reino Unido  (203), Chile (165), Austrália (147), Espanha (143) e Panamá (107) , conforme dados da OMS (WHO, 2009c).


O número de mortes relacionados à infecção está em 99[5] (WHO, 2009c), sendo que na maioria se trata de pessoas jovens e saudáveis, o que diferencia a doença das demais gripes sazonais, nas quais há predominância de morte em pessoas com 65 anos ou mais (WHO, 2009d).


Um grande fator de preocupação é a possibilidade do vírus se espalhar nos países do Sul, onde poderá produzir efeitos diferenciados e muito mais severos, considerando-se que se trata de populações mais vulneráveis, com grupos mais jovens que normalmente vivem em zonas urbanas superpovoadas (WHO, 2009d).


Diante das incertezas que surgiram com esse novo subtipo viral, a OMS (WHO, 2009d, p. 3) recentemente declarou que “a única certeza sobre o vírus da gripe é que nada é certo”[6]. A comunidade científica ainda não conseguiu definir dados sobre a nova gripe, tais como a velocidade com que o novo vírus se espalhará pelo planeta, se e quando se estabilizará a situação, ou se a virulência irá se modificar com o tempo (WHO, 2009d).


Tal estado de incerteza e a incapacidade da ciência de controlar os novos riscos são características da segunda fase da modernidade, o que conduz à necessidade de se revisar os processos de regulação e tomada de decisões no campo das atividades tecno-científicas. 


  Davis (2006, p. 190) defende que a urbanização dos países subdesenvolvidos e a revolução na criação de animais transformaram fundamentalmente a ecologia da gripe e aceleraram a evolução de novos recombinantes interespécies, restando evidenciada uma das principais distinções entre as ameaças anteriores à industrialização e aquelas vividas pela sociedade de risco, que são diretamente relacionadas aos processos de intervenção humana.


Pesquisadores vêm alertando para os riscos causados pela manipulação genética desenvolvida na biotecnologia da agroindústria, principalmente como vetor da mutação ou recombinação de vírus. Autoridades têm levantado considerações na avaliação da segurança alimentar de animais geneticamente modificados, particularmente no que concerne aos potenciais riscos emanados do uso da sequência de retrovirus, incluindo o risco de recombinação com virus selvagens (JONES, 1998).


Os desenvolvimentos específicos na esteira global da revolução na criação de animais, principalmente no que concerne às práticas biotecnológicas, deixaram os cientistas especialmente tensos. Isso porque, até então, todos os parasitas, incluindo-se os vírus, estavam limitados pela barreira das espécies – até então os vírus suínos infectavam suínos, mas não humanos (WAN HO, 2000, p. 04).


  Para superar a barreira natural entre as espécies e invadir genomas alheios, a engenharia genética desenvolveu uma enorme variedade de vetores artificiais, combinando partes de muitos vetores naturais, como o de vírus, de diferentes fontes. Estes vetores artificiais têm o poder de realizar recombinações genéticas com material genético de outros vírus para gerar novos vírus altamente contagiantes e que cruzam a barreira das espécies. Em muitos casos, o vírus originário desta recombinação possui uma virulência muito maior do que aqueles que lhe deram origem e não possui tratamento (WAN HO, 2000, p. 06 e 08), o que demonstra o grande risco assumido pela biotecnologia até então.


Pesquisas realizadas principalmente nos países europeus, vêm apontando diversos pontos de discordância da população com os rumos da biotecnologia, especialmente no que toca à questão dos OGMs e atitudes relacionadas aos animais[7].


CONCLUSÕES ARTICULADAS


A humanidade vive um momento de crise, em que as maiores ameaças à vida como hoje se apresenta estão diretamente relacionadas ao processo de tomada de decisões. Essas decisões não são feitas pela população, mas por um grupo de peritos e instituições ligadas à ciência, que atualmente definem os “padrões aceitáveis” de risco.


Com a revolução na criação de animais e o surgimento da biotecnologia, desenvolveu-se uma indústria de animais para consumo, que aplica técnicas cruéis e que representam riscos à saúde humana. Os riscos decorrentes destes modos de criação já podem ser constatados em determinados acontecimentos, tais como as transformações e mutações do vírus da gripe e a evolução acelerada de novos recombinantes interespécies, como no caso da gripe suína.


Os efeitos da gripe suína, por sua vez, não estão localizados no espaço (em menos de dois meses já atingiu 53 países), no tempo (imprevisões quanto ao controle/alastramento da doença ou a estabilizaçã/fim das contaminações), e tampouco restritos a determinada classe social (há previsão de que países do Sul e do Norte serão afetados). Ademais, as dimensões da doença são desconhecidas, inclusive quanto à possibilidade de mutação do vírus, sendo que já existem previsões catastróficas. Todas essas características confirmam a análise da sociedade de risco, formulada por Beck.


A assertiva de Beck: “nós não sabemos, o que é que não sabemos” resta plenamente aplicável ao caso da gripe suína, havendo inclusive declarações da OMS nesse sentido.


Diante dos erros e riscos provocados pela ciência, as populações dos diferentes Estados, com destaque para os países europeus, passam a questionar o processo de tomada de decisões, demandando mais informação e participação. Nesse contexto, o futuro da democraria dependerá de um repensar sobre a atuação das instituições na sociedade de risco e, principalmente, sobre qual o papel que a percepção cultural e o conhecimento leigo irão assumir nesse novo contexto social.     


 


Referências

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Notas:

[1] A importância econômica das navegações e os “riscos” do insucesso restam bem ilustrados no romance de Shakespeare (2005), intitulado O Mercador de Veneza.

[2] Para fins do presente artigo, se denominará “perigos” as ameaças naturais, características do período pré-industrial e primeira fase da industrialização. O termo “risco” servirá para designar as ameaças condicionadas diretamente à atividade humana.

[3] Redação no original: “We don’t know, what it is we don’t know – but from this dangers arise, which threaten mankind!”. 

[4] Davis (2006, p. 23) define “gripe pandêmica”, como “a emergência ou o reaparecimento de um subtipo de HA (Hemaglutinina) contra o qual a maioria das pessoas não tem imunidade prévia”. HA seria a proteína localizada na parte externa do vírus que tem a função de proporcionar a entrada no virus em células hospedeiras.

[5] Dados datados de 29 de maio de 2009 (WHO, 2009c).

[6] No original: “The only thing certain about influenza viruses is that nothing is certain”.

[7] Nesse sentido, ler: WYNNE, MACNAGTHEN e GROVE-WHITE, 2000; WYNNE, 2001; e MACNAGHTEN, 2004.

Informações Sobre os Autores

Elena de Lemos Pinto Aydos

Mestranda em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC. Bolsista do CNPQ. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco –GPDA, coordenado pelo Professor Dr. José Rubens Morato Leite. Especialista em Direito do Estado e Direito Tributário pela UFRGS

Kamila Guimarães de Moraes

Discente do curso de graduação em Direito pela UFSC. Bolsista da Fapesc. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco – GPDA, coordenado pelo Professor Dr. José Rubens Morato Leite


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