O presente texto tenciona evocar ao leitor as principais modificações introduzidas pela Lei nº11.340, de 07 de agosto de 2006, às atividades da Polícia Judiciária. Analisando a norma do início ao fim, o autor, Delegado de Polícia no RS, esclarece em quais pontos o novel texto legal exigiu comportamentos materiais e processuais distintos por parte da Polícia Judiciária para com aquelas hipóteses de violência contra a mulher.
Alguns juízes são absolutamente incorruptíveis. Impossível induzi-los a fazerem justiça!
(Bertolt Brecht)
INTRODUÇÃO
A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, apelidada de Lei Maria da Penha, criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, bem como nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
Dispôs, ainda, sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; bem como alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal, além de trazer à baila outras providências.
Neste escrito, não obstante, apenas serão estabelecidas, sucintamente, aquelas modificações que causaram impacto na atuação da Polícia Judiciária e, conseqüentemente, trouxeram reflexos contundentes à liberdade da pessoa humana.
ESPECIFICAÇÃO DOS SUJEITOS PASSIVOS DAS ILICITUDES ABARCADAS PELA LEI N º11.340/06
Já no art. 5º do novel texto legal, encontra-se bem especificado que o sujeito passivo geral dos crimes tratados pela legislação em epígrafe é a mulher, entendida esta como o ser humano detentor do sexo feminino.
Com efeito, é sobeja a expressão “contra a mulher” desenvolvida ao longo da norma, por inúmeros artigos seus.
Não obstante, o art. 44 do novato texto legal trouxe modificação ao art. 129 do Código Penal brasileiro, ocasião em que, exclusivamente nas hipóteses de lesões corporais, praticadas essas contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, a pena do tipo básico de lesão corporal será majorada para até três anos de detenção, independentemente, portanto, de ser a vítima homem ou mulher.
Assim, em todas as demais hipóteses de ilícitos penais praticados no contexto de “violência doméstica” abarcada pela Lei nº11.340/2006 a única vítima protegida pela referida norma é a mulher. Todavia, ocorrendo lesão corporal no mesmo contexto de “violência doméstica”, o homem também poderá ser sujeito passivo.
Por outro lado, e para referendar o sujeito passivo geral da norma em voga como sendo exclusivamente a mulher, é de bom alvitre mencionarmos que no art. 5º, parágrafo único, da Lei em análise, consta que as relações pessoais enunciadas no mencionado dispositivo independem de orientação sexual. E talvez aí esteja o único ponto de confusão exegética onde alguns ainda poderiam defender o homem também como sujeito passivo da norma como um todo, mesmo fora das novas hipóteses do art. 129 do Código Penal. Não obstante, percebendo-se o conjunto de dispositivos emanados do novo ordenamento relativo à proteção da mulher, restará singela e hialina a conclusão de que o preceito aludido tenciona proteger, também e tão-somente, a mulher mantenedora de relação conjugal homossexual.[1]
Interpretação contrária ao que se disse acima se opõe abruptamente com a norma como um todo, bem como, inclusive de forma curiosa, com determinados dispositivos do novo texto legal tais como o contido no art. 7º, III, onde consta que se consubstancia como espécie de violência sexual “contra a mulher” aquela que a force à gravidez ou ao aborto. De facto, o homem não poderia enquadrar-se, pelo menos na atual fase da biogenia,[2] na hipótese aventada.
TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER ABARCADOS PELA NORMA
É importante ressaltar que a Lei nº11.340/2006 abarcou para si quatro hipóteses de violência contra a mulher, quais sejam:
1. A VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA, entendida esta como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
2. A VIOLÊNCIA SEXUAL: entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
3. A VIOLÊNCIA PATRIMONIAL, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; e a
4. VIOLÊNCIA MORAL, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
DO ATENDIMENTO DA MULHER PELA AUTORIDADE POLICIAL
A partir do capítulo III da Lei em estudo, em seu art. 10, o legislador passou a delinear os seus comandos à autoridade policial.
Com efeito, cabe à autoridade policial, no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, entre outras providências:
1. GARANTIR PROTEÇÃO POLICIAL, QUANDO NECESSÁRIO, COMUNICANDO DE IMEDIATO AO MINISTÉRIO PÚBLICO E AO PODER JUDICIÁRIO: certamente, aqui, o exegeta depara-se com comando genérico. Não sendo específico o mando, acaba-se prejudicando o correto esclarecimento às vítimas de violência sexual no que consistiria o seu direito à proteção policial. Indubitavelmente, não diz respeito à proteção na forma de guarda, nas adjacências ou fora dos estabelecimentos policiais, porquanto não há a mínima estrutura perfectibilizada pelo Estado nos seus Órgãos para isso. Dessarte, percebe-se que se está referindo a norma à normal proteção que a autoridade policial deve conceder à mulher, quando do atendimento, e tão-somente durante o atendimento, das ocorrências policiais que lhe surgirem envolvendo violência contra a sua pessoa. A propósito corroborando-se o que se disse acima, o art. 35, II, estabelece que a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências, casas-abrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar, ou seja, além de ser uma faculdade, trata-se de uma possibilidade estabelecida somente para o futuro;
2. ENCAMINHAR A OFENDIDA AO HOSPITAL OU POSTO DE SAÚDE E AO INSTITUTO MÉDICO LEGAL: neste aspecto, já é costumeiro à Polícia Militar ou à Polícia Civil assim atuar, restando agora uma legalização que concede um direito subjetivo à mulher de exigir o que lhe já era concedido pela prática ordinária;
3. FORNECER TRANSPORTE PARA A OFENDIDA E SEUS DEPENDENTES PARA ABRIGO OU LOCAL SEGURO, QUANDO HOUVER RISCO DE VIDA: aqui surge problemática a ser sanada em tempo futuro, pois não se sabe a que abrigo a mulher-vítima seria encaminhada hodiernamente, enquanto não forem criados os estabelecimentos à luz do art. 35 da Lei em análise. Outrossim, no que tange ao transporte a ser garantido pela autoridade policial, também vale salientar que há referida carência na realidade hodierna da polícia brasileira, onde a viaturas oficiais servem, tão-somente, às diligências de costume, mormente nas circunscrições do interior onde há somente uma ou duas à disposição das polícias locais;
4. SE NECESSÁRIO, ACOMPANHAR A OFENDIDA PARA ASSEGURAR A RETIRADA DE SEUS PERTENCES DO LOCAL DA OCORRÊNCIA OU DO DOMICÍLIO FAMILIAR: quanto a este comando, a prática ordinária já levada a efeito pelas Polícias Civil e Militar não difere em nada, restando doravante, outrossim, apenas um direito subjetivo da vítima mulher concretizado pelo legislador, onde ela poderá exigir o que lhe já era concedido costumeiramente, sem qualquer exigência legal, pela prática policial; e
5. INFORMAR À OFENDIDA OS DIREITOS A ELA CONFERIDOS NA LEI E OS SERVIÇOS DISPONÍVEIS: neste tópico, parece que o legislador já estava, ao tempo de elaboração da Lei, ciente das várias carências materiais da polícia brasileira, ocasião em que determinou à autoridade que dê ciência à mulher dos direitos que lhe assistem, mas também que lhe dê ciência acerca de quais deles “encontram-se disponíveis”.
DO ATENDIMENTO À MULHER APÓS A LAVRATURA DO REGISTRO DE OCORRÊNCIA POLICIAL
Outrossim, em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, determinados procedimentos, sem prejuízo daqueles já previstos no Codex adjetivo penal brasileiro.
Dentre eles, o que chama mais a atenção por seu caráter de novidade é o fato de que a autoridade policial deverá remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência, entendidas estas como alguns direitos subjetivos postos pela norma à disposição da vítima mulher tais como, v.g., o afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida, bem como sua proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando-se o limite mínimo de distância entre estes e o agressor (art. 22 da Lei nº11.340/06).
A ELABORAÇÃO DE INQUÉRITOS POLICIAIS REFERENTES A FATOS ENVOLVENDO VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Consoante reza o art. 41 da Lei em comento, não se aplica os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.
Dessarte, o Delegado de Polícia não mais deverá constituir termos circunstanciados a respeito das infrações de menor potencial ofensivo praticadas contra a mulher, ainda seja uma simples ameaça, uma injúria, uma lesão leve ou uma simples contravenção de vias de fato a se apurar.
Com efeito, nesta esteira, deve a Polícia Judiciária elaborar inquérito policial a respeito, embora seja cediço que a constituição de termo circunstanciado seja procedimento policial mais célere. E pior que a possível morosidade que a nova sistemática processual poderá trazer ao sistema penal brasileiro é o fato de que, caso não haja bom senso nas atividades policiais por esse Brasil, haverá indiferentes prisões em flagrante pela prática dos mais variados soft crimes praticados contra pessoas do sexo feminino, ou seja, haverá sujeitos encarcerados por haverem desferido um simples tapa na esposa ou namorada, por haverem-nas ameaçado de agressão ou, ainda, por haverem-nas, tão-só, injuriado.
Como se sabe, o encarceramento da pessoa humana, ainda mais em um sistema prisional assoberbado de delinqüentes da mais alta periculosidade como o brasileiro, é medida extremada a ser levada a efeito apenas em última hipótese, nos delitos de inexorável gravidade, conjuntura em que a autoridade policial deverá estar sempre atenta ao fato em concreto.
Percebendo o Delegado de Polícia, pois, constituir-se uma desproporção o encaminhamento do agressor ao estabelecimento prisional, nas hipóteses de prisão em flagrante conjugada com a impossibilidade de pagamento de fiança por parte do autor, deverá fundamentar seu decisum pela opção de instauração de inquérito policial por portaria.
CONCLUSÃO
Dessarte, como se vê, o legislador procurou, com a mesma ênfase outrora outorgada à proteção do adolescente,[3] do idoso,[4] do consumidor,[5] etc., proteger agora, em especial, a mulher.
Não obstante, restaram alguns mecanismos materiais a serem implementados, com o escopo de ser concedido suporte aos mandamentos legais, servindo como exemplo disso as casas-abrigos a serem criadas pelo poder público.
Além disso, percebeu-se que, se houver interpretação literal da Lei, será perfeitamente possível à autoridade policial prender em flagrante e encaminhar ao cárcere autores de soft crimes, situação que precisará contar com o adequado bom senso da autoridade policial na aplicação correta da razão para julgar ou raciocinar em cada um daqueles casos particulares da vida cotidiana.
No tocante ao mais, compreende-se notadamente que o legislador andou bem, estabelecendo à mulher adequada e específica legislação que ao Poder Público já não mais era facultado permanecer em débito.
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)
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