Matheus Nunes Tajra. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela ESAPI/ICF. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Advogado. E-mail: matheusntajra@gmail.com.
Mateus Gonçalves da Rocha Lima. Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela ESAPI/ICF. Pós-graduando em Direito Tributário pela UCAM. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Advogado. E-mail: mateusgrl@gmail.com
Área do Direito: Direito Civil.
Resumo: O presente trabalho tem como escopo o estudo do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD) e o seu impacto no âmbito do Direito Civil, notadamente no instituto da curatela e na teoria das incapacidades, com o reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência. Para tanto, se entende pertinente o regresso às bases históricas da curatela, que remontam ao Direito Romano, de forma a demonstrar a evolução do instituto, que originalmente tinha como traço marcante o caráter patrimonialista. No contexto atual, face às alterações promovidas pelo EPD na legislação civil brasileira, a interdição passou a ser medida excepcional. Com isso, restou fortalecido o efetivo exercício dos direitos fundamentais pelas pessoas com deficiência, na medida em que lhes foi assegurada, em regra, a possibilidade de praticar pessoalmente os atos da vida civil quando se tratar de relações jurídicas existenciais, tema que será doravante aprofundado.
Palavras-chave: Curatela. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Evolução.
Abstract: The purpose of this study is to study the Statute of the Person with Disabilities (EPD) and its impact in civil law, especially in the institute of guardianship and disability theory, with the recognition of the legal capacity of the disabled person. To that end, it is considered relevant to return to the historical bases of guardianship, which go back to the Roman Law, in order to demonstrate the evolution of the institute, which originally had as special characteristic the patrimonialism. In the current context, in view of the changes promoted by the EPD in Brazilian civil law, the interdiction became an exceptional measure. As a result, the effective exercise of fundamental rights by persons with disabilities has been strengthened since, as a rule, have been given the possibility of personally practicing the acts of civil life when dealing with existential juridical relationships, a theme that will be further developed.
Keywords: Guardianship. Statute of the Person with Disabilities. Evolution.
Sumário: Introdução. 1 Evolução histórica do instituto da Curatela. 2 A Curatela após o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Considerações finais.
Introdução
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 –, mais conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), instrumentalizou no âmbito interno a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), assinada pelo Brasil em 2007, com importantes reflexos no âmbito do direito civil. A referida convenção internacional, vale ressaltar, foi incorporada ao ordenamento brasileiro com status de emenda constitucional, por versar sobre direitos humanos e ter sido aprovada pelo Congresso Nacional em observância ao procedimento de votação previsto no artigo 5º, §3º da Constituição Federal.
Como ressaltam Barboza e Almeida (2017, p. 47), a promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência desafia a cultura da invisibilidade ainda vigente no país, que consiste em manter as pessoas com algum tipo de deficiência à margem da proteção legalmente estabelecida e com seus direitos sistematicamente desrespeitados, inclusive pelo Poder Público. Nesse contexto, o advento de uma lei geral sobre os direitos da pessoa com deficiência desafia os intérpretes e operadores do direito a celebrar as diferenças e valorizar a diversidade humana, de forma a vencer a atual “cultura de indiferença”.
A intenção do legislador pode ser antevista no artigo 1º do EPD, que declara que a lei se destina “a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”. O Estatuto, portanto, está orientado para a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, na medida em que se busca garantir, na prática, a equiparação de oportunidades, autonomia e acessibilidade, por exemplo.
Com o advento da nova legislação, entende-se que deve ser garantindo a todas as pessoas, indistintamente, o pleno desenvolvimento de sua vida privada. Como regra, deve prevalecer o exercício pessoal dos direitos pelas pessoas com deficiência, somente sendo admitidas limitações à autonomia quando se tratar de deficiência grave ou o indivíduo não puder, sem prejuízo aos seus próprios interesses, tomar determinadas decisões sem o apoio de terceiros.
Essa mudança de perspectiva teve reflexo, em especial, no instituto da Curatela e na teoria das incapacidades, com o reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência e a não manutenção no ordenamento jurídico pátrio da figura da pessoa absolutamente incapaz maior de idade, temas que serão abordados de forma mais aprofundada na segunda seção deste trabalho.
Dessa forma, tendo em vista a incindibilidade entre a capacidade civil de gozo e a capacidade de exercício quanto às questões existenciais, o presente trabalho se propõe ao estudo do impacto do Estatuto da Pessoa com Deficiência no instituto da Curatela, a partir da noção de status consagrada pelo Direito Romano para limitar a titularidade, o gozo e o exercício dos direitos pelas pessoas.
1 Evolução histórica do instituto da Curatela
Inicialmente, importa conceituar a curatela como encargo, previsto em lei, a ser suportado por pessoa capaz para reger e administrar os bens dos maiores incapazes, em razão de uma enfermidade ou deficiência mental, ou que por causa transitória não podem exercer esta administração por si só. A doutrina tradicional aponta como finalidade do instituto a proteção do incapaz, no que toca aos seus interesses, bem como a preservação dos negócios jurídicos realizados por esses com relação a terceiros.
Nesse sentido, afirmam Stolze Gagliano e Pamplona Fiho (2011):
“A curatela, em sua figura básica, visa a proteger a pessoa maior, padecente de alguma incapacidade ou de certa circunstância que impeça a sua livre e consciente manifestação de vontade, resguardando-se, com isso, também o seu patrimônio, como se dá, na mesma linha, na curadoria (curatela) dos bens do ausente, disciplinada nos arts. 22/25. CC-02 (STOLZE, 2011, p. 718).”
Essa noção tem sua origem no direito romano, mais precisamente no período de Justiniano, quando tutela e curatela (de “cura” + o sufixo, do verbo “curare” = cuidar, olhar, velar), eram unificadas, haja vista serem ambas consideradas institutos jurídicos de interesse público com finalidade de proteção e assistência dos incapazes, quais sejam, as pessoas loucas, os pródigos e os menores de 25 anos de idade.
As pessoas loucas, na classificação romana subdividiam-se em dois grupos: os “furiosus”, aqueles furiosos com acessos de demência caracterizados por fúria, podendo ter ou não intervalos de lucidez, e os “mente captus”, que são aqueles indivíduos de inteligência pouco desenvolvida, que eram considerados permanentes, sem intervalos de lucidez. Importa destacar que apenas os “furiosus” eram protegidos pelo instituto da curatela, visto que eram considerados totalmente incapazes, sem condições de administrar o próprio patrimônio, constituindo assim uma ameaça para terceiros e sendo, portando, necessário um curador para cuidar não apenas dele, mas também de seu patrimônio, em benefício de possíveis herdeiros.
Os pródigos, por sua vez, eram aqueles considerados perdulários, esbanjadores, que dilapidavam, em prejuízo dos filhos, o patrimônio recebido por sucessão legítima dos parentes paternos. Para se configurar a tutela, portanto, eram necessários dois requisitos básicos: a existência de herdeiros e que os bens dilapidados tivessem a procedência de seus parentes paternos.
O sujeito menor de vinte e cinco anos, por não ter atingido a maioridade, em princípio, estava sujeito à tutela. Com a Lei Pletória, que estabelecia como delito ludibriar a boa-fé de um adolescente, assim considerados os homens menores de vinte e cinco anos, passou a ser cabível também a curatela. A repercussão positiva de tal medida foi pôde ser sentida a ponto de, segundo Cretella (2009), com base no cômico Plauto, temerem os usurários emprestarem dinheiro aos menores de idade, depois da promulgação dessa lei.
No Brasil, o instituto da curatela foi introduzido através das Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603 por Filipe I, rei de Portugal, e ficaram em vigência desde o período colonial até 1830. As ordenações tratavam da matéria cível no Livro Quarto, cujo título CIII dispunha sobre a curatela, definindo as circunstâncias que a ensejavam e as regras sobre a nomeação do curador.
Notava-se então que a preocupação do legislador estava voltada para a administração dos bens do curatelado, com a completa mitigação da personalidade da pessoa com deficiência, que, em termos práticos, perdia a capacidade de exercer direitos pessoalmente na ordem civil. Essas limitações eram condizentes com o caráter patrimonialista do direito brasileiro, alicerçado na ideia de propriedade, nos contratos e na família de ascendência romanística.
No Código Civil brasileiro de 1916, uma das marcas do instituto da curatela era o fato de o curador traduzir o seu próprio querer para as relações jurídicas patrimoniais e existenciais do curatelado, nem sempre considerando os interesses fundamentais deste. É inegável, também, dizer que as incapacidades dispostas no Código Civil de 1916 e o procedimento tendente à interdição possuíam como pilares a proteção do patrimônio privado e o preterimento do incapaz, adotando, para tanto, mecanismos de substituição de vontades. O código dispunha sobre a matéria a partir de seu artigo 446, incluindo entre os sujeitos à curatela: os “loucos de todo o gênero” (arts. 448, I, 450 e 457); os surdos-mudos, sem educação que os habilite a enunciar precisamente a sua vontade (arts. 451 e 456) e os pródigos (arts. 459 e 461).
Importa destacar também, que muito do que fora estabelecido no Código Civil de 1916 foi preservado para o Código Civil de 2002. Em especial, no tocante à curatela, os dispositivos das duas leis apresentam uma profunda semelhança. Porém, a despeito da fidelidade do novo Código à orientação do antigo, a proteção das pessoas com deficiência, incluindo-se os incapazes, se expandiu por força das conquistas históricas no plano dos direitos fundamentais e aos direitos humanos.
No atual código civil, de 2002, este instituto está disposto nos artigos 1.767 e seguintes. As pessoas que podem ser protegidas por esse instituto estão previstas nos artigos 3º e 4º do Código Civil, que estabelecem os absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, juntamente com os que são relativamente incapazes de exercer certos atos.
Antes das alterações advindas do Estatuto, os protegidos pelo instituto eram: aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; os excepcionais sem completo desenvolvimento mental; e os pródigos.
Por ocasião, podem-se destacar as seguintes características da Curatela, segundo Gonçalves:
“A curatela apresenta cinco características relevantes: a) os seus fins são assistenciais; b) tem caráter eminentemente publicista; c) tem, também, caráter supletivo da capacidade; d) é temporária, perdurando somente enquanto a causa da incapacidade se mantiver (cessada a causa, levanta-se a interdição); e) a sua decretação requer certeza absoluta da incapacidade. (GONÇALVES, 2013, p. 689-670)”
Destarte, sempre se entendeu que a curatela apresenta evidente fim assistencialista, haja vista sua definição como encargo atribuído a alguém para reger a pessoa e administrar os bens de maiores incapazes, que não possam fazê-lo por si mesmos, com exceção do nascituro e dos maiores de 16 e menores de 18 anos. Seu caráter publicista advém do fato de ser dever do Estado zelar pelos interesses dos incapazes. Tal dever, no entanto, é delegado a pessoas capazes e idôneas, que passam a exercer um múnus público, ao serem nomeadas curadoras.
O caráter supletivo da curatela, em terceiro lugar, advém do fato de o curador ter o encargo de representar ou assistir o seu curatelado, cabendo em todos os casos de incapacidade não suprida pela tutela, suprindo, portanto, a incapacidade do assistido. A temporariedade referida significa que a incapacidade e a representação legal pelo curador subsistirão enquanto perdurar a causa da interdição. A certeza da incapacidade, por fim, precisa ser comprovada por meio do processo judicial de interdição, disciplinado nos artigos 747 e seguintes do Código de Processo Civil de 2015.
2 A Curatela após o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência
Farias e Rosenvald (2015, p. 871) prelecionam que o ordenamento civil elegeu as pessoas naturais como potenciais titulares das relações jurídicas, dando-lhes aptidão genérica para a prática de atos da vida civil. A capacidade poderia ser entendida, portanto, como uma espécie de medida jurídica da personalidade, dizendo respeito à aptidão para adquirir direitos e de assumir obrigações nas relações jurídicas patrimoniais, pessoalmente, pelas pessoas capazes ou por intermédio de terceiros (o representante ou assistente) pelos incapazes.
Para esse efeito, a capacidade jurídica é dividida em capacidade de direito ou de gozo, reconhecida a todo titular de personalidade (pessoa natural ou jurídica) e capacidade de fato ou de exercício, ou seja, a aptidão para praticar, por si mesmo, os atos da vida civil.
“A teoria das incapacidades incide apenas sobre a capacidade de fato, ao estabelecer uma gradação de ausência da capacidade e impor, excepcionalmente, limitações em razão da idade ou do estado de saúde do sujeito. O direito civil estabelece, objetivamente, as hipóteses de restrição da capacidade plena, reconhecendo ao incapaz um tratamento diferenciado em razão de não possuir o mesmo quadro de compreensão da vida e dos atos cotidianos das pessoas capazes (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 872)”
Esse regime jurídico da capacidade civil tradicionalmente está relacionado com a lógica do direito patrimonial. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), entretanto, promoveu consideráveis modificações na teoria das incapacidades e no instituto da curatela. A partir de então, se passou a entender que, caso a pessoa possua alguma competência mental para decidir, deve ter a sua capacidade de exercício respeitada, a fim de não se reproduzir o tratamento discriminatório que lhe nega a personalidade jurídica e autoriza a substituição da sua vontade pela do representante legal. (MENEZES, 2014, p. 60-61)
Dessa forma, a lei 13.146/2015 modificou o rol de sujeitos considerados civilmente incapazes, com a exclusão da pessoa com deficiência, definida pelo seu artigo 2º como “aquela que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Em seu artigo 6º, o EPD dispõe que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para a prática de atos como: casamento e constituição de união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária e exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Assim, é assegurado à pessoa com deficiência o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas, conforme disposto no artigo 84.
Barboza e Almeida (2017, p. 48) ressaltam que o legislador teve a intenção de resguardar o direito da pessoa com deficiência de decidir sobre a sua pessoa e bens, na medida de sua autonomia. Contudo, prevê alternativas para os casos em que o exercício pessoal dos direitos não é cômodo ou exige sacrifício e/ou sofrimento evitável para a pessoa com deficiência ou ainda, quando esse exercício não é possível, em virtude de deficiência grave. Os autores acrescentam:
“No primeiro caso, é facultada à pessoa com deficiência a adoção de processo de “tomada de decisão apoiada”, no qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (…) Destaque-se, portanto, que a tomada de decisão apoiada já nasce vocacionada à preservação da autodeterminação da pessoa com deficiência, com fins de manutenção do seu pleno estado de capacidade de agir, sendo, inclusive, um remédio plasmado prioritariamente para apoio das situações existenciais, ainda que os apoiadores tenham como principal papel o auxílio às relações negociais travadas pela pessoa deficiente apoiada (BARBOZA; ALMEIDA, 2017, p. 48)”
Apenas quando não é viável o exercício pessoal dos direitos pela pessoa com deficiência, como nos casos de deficiências físicas e mentais graves, será possível se valer do instituto da curatela, que passa a ser considerada medida extraordinária. Nesse sentido, estabelece o Estatuto que devem constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado. Isso implica o reconhecimento da capacidade legal plena da pessoa com deficiência, no que se refere aos seus interesses existenciais.
Nesse contexto, Menezes (2014, p. 68) defende que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi instrumentalizada pelo EPD, adota a teoria da incindibilidade entre titularidade do direito e capacidade de exercício quando aborda as situações subjetivas existenciais. De acordo com a autora, com isso:
“Visa evitar que a lógica patrimonialista dotada de objetividade e operatividade seja transposta para as situações existenciais que se caracterizam pela subjetividade e especificidade. Defende a incidibilidade entre capacidade civil e capacidade de agir no plano das situações existenciais por entender que, nessas questões, o exercício do direito se confunde com a própria titularidade. (…) O Código Civil Suíço traduz essa incindibilidade no art. 12, quando dispõe que o titular dos direitos civis é também capaz de adquirir direitos e de contrair obrigações com atos próprios. Abandona critérios objetivos fundados na idade ou na saúde fisiopsíquica, em si, para observar a aptidão subjetiva do sujeito em decidir sobre a questão específica (MENEZES, 2014, p. 69)”
No sistema anterior ao Estatuto, o curador representava os absolutamente incapazes e assistia os relativamente incapazes. Atualmente, entretanto, não mais subsiste no ordenamento jurídico pátrio a figura da pessoa absolutamente incapaz maior de idade. A única hipótese de incapacidade absoluta prevista no Código Civil passa a ser a dos menores de 16 anos, com a revogação dos demais incisos do seu artigo 3º. O artigo 4º do Código Civil, por sua vez, mantém no rol dos relativamente incapazes os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os pródigos, e passa a incluir as pessoas que, “por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”.
Dessa forma, o Estatuto inova no ordenamento jurídico brasileiro, ao prever que o instituto da curatela pode ser aplicado para pessoas capazes. Vale dizer: a pessoa com deficiência é dotada de capacidade plena no que tange aos seus interesses existenciais, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida. A curatela, portanto, afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial do curatelado, como estabelece o caput do artigo 85, devendo constar da sentença que determina a curatela “as razões e motivações de sua definição”.
A partir da análise das modificações no instituto da curatela e na teoria das incapacidades introduzidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, depreende-se que a legislação brasileira caminha no sentido de limitar as diferenças entre capacidade de fato e de direito ao exercício de direitos patrimoniais. Dessa forma, parece acertado garantir às pessoas com deficiência, em regra, a possibilidade de praticar pessoalmente os atos da vida civil quando se tratar de relações jurídicas existenciais, como forma de reafirmar a sua dignidade, constitucionalmente reconhecida.
Stolze (2015, p. Online), entende que a verdadeira reconstrução valorativa na tradicional tessitura do sistema jurídico brasileiro da incapacidade civil somente acontecerá mediante mudança de mentalidade, numa perspectiva de respeito à dimensão existencial do outro. Para o autor, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, pela amplitude do alcance de suas normas, traduz uma verdadeira conquista social, consistindo em um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis:
“Considerando-se o sistema jurídico tradicional, vigente por décadas, no Brasil, que sempre tratou a incapacidade como um consectário quase inafastável da deficiência, pode parecer complicado, em uma leitura superficial, a compreensão da recente alteração legislativa. Mas uma reflexão mais detida é esclarecedora. Em verdade, o que o Estatuto pretendeu foi, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada” como incapaz, para ser considerada – em uma perspectiva constitucional isonômica – dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil (STOLZE, 2015, p. Online).”
Dessa forma, o Estatuto representa um grande avanço da legislação brasileira na direção da proteção jurídica da pessoa com deficiência, em deferência ao rol de direitos que lhe foram constitucionalmente assegurados. Os seus dispositivos têm como lastro a ideia de que essa proteção deve se concretizar por meio de direitos diferenciados, como forma de alcançar a igualdade substancial, e não por meio da retirada da plena capacidade, ou seja, da sua capacidade de agir pessoal e diretamente.
Na mesma toada, Farias e Rosenvald (2015, p. 874), citando Célia Barbosa Abreu, acreditam que a ratio contemporânea do regime jurídico das incapacidades perpassa por uma proteção jurídica mais abrangente do cidadão com deficiência, pelo enfrentamento das ideias de exclusão e inclusão por uma tutela que não se reduza a resguardar interesses de ordem patrimonial. Assim, seria possível o desenvolvimento das suas potencialidades, com a superação de obstáculos que no passado pareciam intransponíveis e hoje são meramente transitórios.
Destarte, o instituto da curatela, com o novo viés que a Lei nº 13.146/15 lhe confere, se apresenta como medida protetiva extraordinária das pessoas com deficiência, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso. Estando a curatela restrita somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial, não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto, de forma a garantir o livre exercício dos direitos e da cidadania da pessoa com deficiência.
Considerações finais
Ao longo deste trabalho, se procurou demonstrar que as primeiras legislações a prever o instituto da curatela, nos moldes do Direito Romano, tinham como característica a preocupação com a administração dos bens do curatelado e a completa mitigação da personalidade do deficiente, que na prática, perdia a capacidade de agir pessoalmente na ordem civil. No Brasil, até o advento do Código Civil de 2002, o curador traduzia o seu próprio querer para as relações jurídicas patrimoniais e existenciais do curatelado, em detrimento, muitas vezes, dos interesses existenciais deste.
No que tange à curatela, a codificação de 2002 representou um considerável avanço em relação ao paradigma anterior, ao ampliar a proteção das pessoas com deficiência, em face das conquistas históricas no plano dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Contudo, persistiam os óbices para a prática de atos da vida civil pela pessoa com deficiência, o que pode ser entendido como uma afronta aos seus direitos fundamentais, constitucionalmente reconhecidos, com uma inaceitável preponderância dos aspectos patrimoniais sobre os seus interesses existenciais.
Nesse contexto, a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência, em meados de 2015, representa uma notável evolução do instituto da curatela e da teoria das incapacidades, agora em maior harmonia com os princípios consagrados na Constituição Federal. Como exposto, a curatela passa a ser medida extraordinária, com o devido reconhecimento da capacidade legal da pessoa com deficiência. Ademais, garante a essas pessoas, em regra, a possibilidade de praticar pessoalmente os atos da vida civil quando se tratar de relações jurídicas existenciais, como forma de reafirmar a sua dignidade, o que deve ser aplaudido pela comunidade jurídica.
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