Resumo: A propriedade privada original, por força do Mancipium e do Dominium ex jure Quiritium, constitui-se desde sua origem em bases sólidas destinadas a subsistência e progresso da família que era tutelada em caráter terreno e religioso pelo Paterfamilias. A forma original de propriedade romana era absoluta e plena em sua natureza, e inviolável até mesmo pelo Estado, tal propriedade inegavelmente exerceu profunda influência no Direito Civil contemporâneo, mas hoje em dia na maioria dos países latinos não resta mais nada desta forma de propriedade além de vestígios. O que foi legado a posterioridade de modo largo foi o hábito do Estado de conceder o domínio de terrenos que lhe pertenciam vinculando esta a pesados tributos e limitações diversas, esta era a chamada proprietatis.
Palavras-chave: Direito Romano – Direito de Propriedade – História do Direito – Direito Imobiliário – Direito Civil
Abstract: The original private property under Mancipium and dominium ex jure Quiritium is up from its origin on firm foundations designed to subsistence and progress of the family who was tutored in character and religious grounds by the Paterfamilias, the original form of Roman property was inviolable the absolute state in it full nature, and made profound influence influences on contemporary civil law, but beyond these traces not any more of this form of ownership. What was bequeathed to posterity so wide was the habit of the State to grant the domain of land belonging to him linking this to heavy taxes and various limitations, this was called proprietatis.
Key-Words: Roman Right – Right of Property – History of Law – Real estate law – Civil Law
Sumário: 1.A história de Roma é a história do direito de propriedade. 2. Das considerações propedêuticas. 2.1Das res mancipi e res nec mancipi. 2.2 Do paterfamilias. 3.Da propriedade fundiária/imóvel. 3.1Do dominium ex juri Quiritium. 3.2 Propriedade provincial. 3.3 Propriedade pretoriana. 3.4 Propriedade dos peregrinos. 4. Conclusão.
1.A história de Roma é a história do direito de propriedade
Discorrer sobre a propriedade privada no Direito Romano é abordar sobre as origens do povo romano, aqui dar-se-á uma visão prática do mesmo traçando, sempre que possível, conexão com a forma moderna do instituto.
Roma é fundada pelos descendentes do grande Rei Numitor de Alba Longa (JULIEN, 2005, p. 16.), os gêmeos Rômulo e Remo, que segundo a lenda são filhos da sacerdotisa vestal Reia Silvia (filha de Numitor) e de Marte, Deus da guerra e dos desportos militares. Quando pequenos foram jogados no rio Tibre como punição pelo Tio-Avô que temia pelo trono recém-usurpado, os gêmeos por sorte chegam ao sopé dos montes Palatino e Capitolino, ali crescem entre os pastores, entregando-se a caça, a pesca, a guerra, ao saque e a pilhagem (JULIEN, 2005, p. 185).
De índole forte e guerreira, os gêmeos após uma serie de desventuras destronam o tio-avô Amúlio, o usurpador que destituíra seu Avô, e sendo ousados e altivos preferem cunhar seu próprio futuro construindo para si um Reino, e em Alba Longa recolhem alguns dentre o povo considerados indesejáveis.
Os gêmeos tanto divergiram sobre o local de fundação da cidade, que o pior acabou por ocorrer e Remo padeceu, então Rômulo após retirar a vida do irmão, fundou a cidade e em pouco tempo cinco dos sete montes da Urbe já estavam povoados.
Para conseguir mulheres, Rômulo fez uma grande festa e para ela convidou os Sabinos e raptou-lhes as mulheres, o que gerou uma grande contenda, que findou com a união dos dois povos numa Diarquia tendo como governantes Rômulo e Tito Tácio dos Sabinos[1].
Dos homens mais fortes e hábeis em combate, surgiu a primeira legião romana, e dos mais altivos de porte nobre e inteligência sagaz, os primeiros Senadores; esses homens foram chamados pais ou fundadores e seus descendentes seriam os patrícios senhores nobres de Roma. É aqui nesta primeira parte que mito e realidade se fundem para dar origem a uma lenda que encontra forte expressão no mundo jurídico contemporâneo.
O varão Rômulo dividiu o território de Roma em trinta curias, que depois, sob o reino do Rei divino Numa Pompílio, operou-se uma nova divisão que concedeu a cada pater famílias uma parte igual correspondendo a duas fanegas ou jugera (aproximadamente cinco ares), o suficiente para se estabelecer um lote e um Jardim. A esse lote deu-se o nome de Heredium (PETIT, 2003, p. 305).
No sentido desta lenda, a propriedade privada foi reconhecida sobre bases fortes desde a fundação de Roma, no entanto, com limitações de extensão. A este respeito nos fala Marky (1995, p. 68): “[…] quanto aos imóveis, limitada por dois lotes (jugera) de terra que podiam servir para construir a casa e plantar a horta.”
A análise desta limitação é tarefa complexa, pois ela nos remonta a lenda do Heredium que seria a porção de terra ideal distribuída por Quirinus (Rômulo) a cada um do povo para que nela se estabelecesse com sua família e dali retirasse seu sustento. Ela seria composto pelo domus e duas jeiras de terra (JUNIOR, 1983, p.177). Nesta mesma linha é interessante apontar que o Heredium pode muito bem ser uma forma primitiva do que hoje se conhece como propriedade familiar.
Dessa propriedade, tem-se o cerne do dominium ex juri Quiritium, o verdadeiro direito real absoluto, pleno, imprescritível, ilimitado, exclusivo, que pode em nossa linha moderna ser chamado de propriedade (mas ao tratar de Direito Romano tal termo não caberia aqui), esta forma de poder absoluto atraia as res sobre as quais se impunha integralmente, constituindo-as de especial importância, e inclusas no solene rol das res mancipi, que eram assim classificadas em função de pesar sobre elas o poder quiritário.
A propriedade familiar, assim definida pela Lei 4.504/74, é uma parcela de terra suficiente para absorver toda a força de trabalho de uma família, dando-lhe condições de progresso social e econômico, eventualmente fazendo uso de mão de obra de terceiros (Art.4, I, II), vale lembrar que é este também o conceito analógico de módulo rural, assim como em Roma o módulo básico era a Jeira. O interessante em ambos os casos é que o cerne de ambas as definições se encontra na necessidade de assegurar a sobrevivência da família e o justo acesso a propriedade privada.
Existiram ainda outras duas formas de Jus Rerum, tratados por alguns autores como “formas de propriedade”, mas o certo é que essa nomenclatura não lhes é adequada, melhor é, pois, chamá-las por seus nomes, elas são o Dominium e a Proprietas.
2.Das considerações propedêuticas
Faz-se mister algumas explicações antes de adentrar no mérito do conteúdo, pois uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo moderno estudante desta disciplina é compreender a alternância dos termos Mancipium, Dominium e Proprietas.
A família romana era nuclear e hierarquizada cabendo sua administração religiosa e material ao varão mais velho de descendência direta do fundador. Este varão era chamado de Paterfamilias. O poder exercido pelo Pater sobre os bens considerados res mancipi era absoluto e pleno, e a este poder dava-se o nome de Mancipium.
Sobre tais bens, que serão abordados detalhadamente em outro tópico, destaca-se que o Paterfamilias era senhor absoluto e inquestionável destes bens, ninguém podendo administrá-los ou deles dispor senão ele. Todavia, como senhor da unidade familiar, era sua responsabilidade zelar não só pela subsistência, mas pelo bem-estar e progresso da mesma, para tanto era consenso social que ele deveria administrar estes bens em beneficio da unidade familiar, pois deles dependia a sobrevivência da família, sua família era também seu patrimônio e, portanto, deveria ser cuidada de modo tão zeloso quanto possível, pois sua imortalidade seria a imortalidade de sua linhagem.
Nesta linha, destaque-se que não deve tal conjunto de bens acima elencados ser tidos como comuns a família, pois nada estaria mais distante da concepção romana. Estes bens eram exclusivos do Paterfamilias e não havia qualquer espécie de limitação para que este deles fizesse tudo que desejasse usando, gozando e dispondo como melhor lhe aprouvesse. Essa reversão da gestão dos mesmos em prol do bem-estar familiar era um consenso social e um desejo íntimo natural aos povos antigos, pois na mentalidade do Romano era muito claro que aquele que chefiava a família, por ela era integralmente responsável, e nada havia de mais honrado que uma família vasta e bem cuidada que daria continuidade ao legado de seus ancestrais.
Nos finais da República e início do período imperial, começam a aparecer os termos Dominium e Proprietas. O primeiro pertence aos domínios da jurisprudência clássica, e o segundo aos domínios da jurisprudência tardia já nas era romano/helênica (PEZZELLA, 1998).
Dominium não caracteriza um direito em si, mas é termo que aplicado em conjunto a outros diversos caracteriza uma serie de Jus Rerum nos quais, por outro lado, faz-se presente o poder do Paterfamilias. O núcleo familiar romano era algumas vezes referido como domus e o chefe de tal núcleo era chamado de Dominus. Tal termo pode ser erroneamente tomado como sinônimo do anterior, visto que assumem o mesmo significado, sendo diferentes apenas os períodos históricos de seu uso e a amplitude dos direitos que este “chefe” detinha.
A palavra Proprietas vem de proprius e surgiu para distinguir o Dominium propriamente dito de outros direitos que se expressavam com palavras em conjunto a este termo, como por exemplo, Dominium obligationis e Dominium usufructus, e em paralelo a estes, e para deles se diferenciar, surge o termo Dominium proprietatis. No período clássico o termo mancipium cai em desuso, assim como anos mais tarde desapareceria por completo aquilo que lhe dera origem (res mancipi), sendo substituído pelo termo dominium que é o poder absoluto e pleno sobre uma res[2]. E este, por sua vez, passa a se utilizado em conjunto a outras palavras como referência a direitos diversos de seu sentido original, para tanto, cunha-se o termo proprietatis para ser junto a ele empregado. Na era pós-clássica o termo dominium proprietatis sofre mudanças em sua morfologia até, por fim, tal direito passa a ser conhecido apenas como proprietatis, ou seja, aquilo que lhe é próprio e exclusivo.
Algumas vezes essas terminologias perpetuam-se através das eras, referindo-se a relações de poder especificas entre o Paterfamilias e aquilo que lhe pertence, conforme será exposto oportunamente, e que não devem confundir-se com o sentido em que foram neste tópico expostas.
O moderno estudante de Direito que já se houver questionado o motivo de a posse ser por vezes referida como domínio útil encontra aqui sua resposta. Ela é assim chamada não porque constitui uma “parte útil” da propriedade, ou o “uso da mesma” em si, mas porque era o conjunto de duas das faculdades oriundas e subentendidas no dominium original que seriam as de usar e gozar, a tais faculdades transliteradas a nosso idioma, diz-se domínio útil, que por vezes poderia dar base a uma ação de defesa chamada de Uti Possidetis (JUNIOR, 1983, p. 190-191). A palavra possidere começou a ser empregada quase que ao mesmo tempo que sua contraparte, a proprietatis (SABBATIVS, 1888).
Fato curioso ainda a este respeito é que este domínio útil foi invocado para resolução de uma pendência entre Portugal e Espanha no que dizia respeito aos limites de seus domínios nas Américas, dando origem ao tratado de nome Tordesilhas, em 1494 (JUNIOR, 1983, p. 190-191). Tal Interdito foi também invocado quando da reformulação da partilha das terras da América do sul, dando margem ao tratado de Madrid em 1750.
2.1.Das res mancipi e res nec mancipi
Aos bens alvo da propriedade privada aplicavam uma divisão em duas categorias quais sejam: res mancipi[3] e res nec mancipi, esta classificação de grande valia na Roma Republicana (JUNIOR, 1989, p. 152) perdeu por completo seu valor nos tempos do império quando a forte distinção do regime aplicado a eles foi mitigada quase que por completo subsistindo apenas a diferenciação quanto ao modo de aquisição que não encontrava grandes respaldos no Direito em si, mas fundamentada somente na tradição e no costume, tradição esta de grande importância para o povo e que por isso sobreviveu de modo precário através das eras, mas conservando grande parte de suas características (PEZZELLA, 1998, p. 177).
A divisão entre estas duas categorias era simples e prática, sendo mancipis as propriedades e construções em solo itálico, as servidões dos prédios rústicos, os escravos os animais domáveis pelo pescoço e pelo dorso que, segundo a escola seguida por Gaio, seriam mancipi desde o nascimento, havendo ainda defesa por parte de Nerva e Proculus que afirmavam que este animais apenas passavam a condição de mancipi após domados, ou, se em razão de grande fereza não fosse possível domá-los, caso em que serão mancipi logo que atingirem a idade da doma. São nec mancipi as servidões dos prédios urbanos, os prédios estipendiários e tributários, e os animais bravios e selvagens não domáveis ou de que era desconhecida a existência quanto feita esta lista (CORREIA; SCIASCIA, [s.n.t], p. 76-77).
Os bens de maior importância[4] para o Direito Arcaico foram denominados mancipi e sua administração foi confiada ao Paterfamilias ficando estes bens sob sua responsabilidade espiritual e material.
A família vinculava-se a estes bens pela herança, num vínculo de sucessio ou continuidade. A fórmula hereditária romana estrutura-se de forma a permitir uma continuidade tal, no que diz respeito aos bens mancipi, que permitem a Iglesias em sua obra Direito Romano afirmar que: “Com a mesma fidelidade com que se perpetua o gênio familiar assim se perpetua o corpo material (IGLESIAS, 2012, p. 324)”.
A transmissão da propriedade de res mancipi exigia forma solene que se dava de acordo com uma antiga liturgia de caráter sagrado e podia ocorrer de duas formas, sendo a mais clássica denominada mancipatio[5] onde predominava o elemento particular, e como alternativa em casos mais complexos havia a Jure in cessio[6] em que se era necessário a participação da auctoritas representada pelo pretor que mediava a celebração do ato.
A mancipatio não era um ato mormente jurídico, era um ritual sagrado sob as bênçãos de Saturnus e Justitia, sucinto sim, mas revestido de uma aura de gravidade e austeridade tamanha, que a profundidade das palavras ali ditas não pode ser mensurada como os romanos a concebiam. Mas acima de tudo, com ela se libertava uma res mancipi do poder de quem dela fosse senhor, e transferia-a ao poder de outrem capaz para tanto. Tinha campo tão vasto que podia servir inclusive de meio eficaz ao ato de testar, ou seja, faziam-se testamentos tendo por base tal ritual (GAIO, 2010, p.189-190).
Vale lembrar que na mancipatio embora não houvesse formalidade reduzida a termo como se vê hoje, havia uma fórmula complexa e simbólica a ser encenada, que se não seguida a risca impedia a transmissão da propriedade, independentemente do fato de ficar clara a vontade das partes em prol de tal transmissão. Pois neste caso, a vontade era elemento e a forma requisito essencial (JUNIOR, 1983, p. 202.).
Quanto as res nec mancipi sua transmissão era simples e desembaraçada, dando-se por simples traditio que poderia ser feita por qualquer membro da família que as possuísse e fosse delas proprietário (ou que tivesse procuração para tanto), sem a interferência do Paterfamilias (PEZZELA, 1998, p. 181).
Por fim é importante destacar que ao analisar essa antítese entre as duas categorias de coisas, deve-se levar em consideração que a sociedade Romana Arcaica era essencialmente agrária, sendo a terra não só fonte de status social, mas também item essencial ao sustento da família.
2.2.Do paterfamilias
Originariamente o Paterfamilias[7] era o varão mais velho da família que detinha amplos poderes sobre a mesma[8] e sobre as pessoas a esta pertencentes, bem como sobre os bens necessários a subsistência desta (res mancipi), seu poder individual deveria ser exercido em beneficio desta família.
O poder do Paterfamilias recaia sobre pessoas e bens, gerando para cada caso uma relação de propriedade singular, esta relação recebia diferentes nomenclaturas: quando referente à casa domus dava origem ao dominium[9]; quando recaia sobre escravos por sua vez dava lugar ao mancipium, palavra esta que em eras primitivas já foi usada como sinônimo de propriedade; quando recaia sobre mulher dava-se lugar ao manus; e, finalmente, quando recaia sobre os filius familias ocorria o patria potestas até que fosse feita a mancipatio, ou seja, até que este filho fosse emancipado e adquirisse liberdade e independência com relação ao poder paterno, tornado-se senhor de si mesmo. Neste caso o pai transferia ao filho por força da mancipatio o poder sobre si mesmo, daí a expressão “tornar-se senhor de si mesmo” que indicava que alguém dominava sua vida e que era plenamente capaz de constituir família. Vale ressaltar que antes da emancipação todo o patrimônio adquirido pelo fili familias se revertia em favor do Paterfamilias.
A família, nos moldes tratados acima, consistia num grupo agnatício que provavelmente coincide com as gens em alguns aspectos e abrigava todos que pertencessem a tal grupo. Originalmente sua unidade política era mantida mesmo após a morte do pater uma vez que seu sucessor era designado pelo mesmo ainda em vida (PEZZELA, 1998, p. 185).
Com a evolução do Estado Romano e a ascensão da Era Republicana tem início as guerras de conquista, com isso operou-se uma forte centralização política do Estado Romano que ainda durante a república tomou em suas mãos a ação política de modo que as vastas e potentes comunidades familiares arcaicas perderam a razão de ser e o vínculo de sucessão unívoco se esvaiu, e com a morte do Paterfamilias já não mais havia uma sucessão única, mas a família se dividia em tantos grupos quantos fossem os filii familias, a menos, é claro, que estes optassem pela formação de um consorcio doméstico (PEZZELA, 1998, p. 185).
E assim se fragmentou a propriedade, antes una e hereditária de modo quase imutável, estava então lançada a semente de uma era mais liberal, que reinou durante todo o período clássico, embalada pela genialidade dos grandes filósofos (tanto gregos quanto romanos), surge nesta nova faze o Dominium[10].
3.Da propriedade fundiária/imóvel
Agora tratar-se-á em especial das propriedades fundiárias, ou seja, daquelas que abrangem uma porção de terra e tudo usque sidera et inferos. Esta expressão significa que o proprietário desta porção de terra é proprietário em toda altura e profundidade. Da mesma forma mantém-se tal regra em vigor através das eras, com algumas adaptações.
O Código Civil de 1916 em sua última redação traz que a propriedade abrange a do que lhe está superior e inferior em toda a altura e em toda a profundidade, úteis ao seu exercício, não podendo, todavia, o proprietário opor-se a trabalhos que sejam empreendidos a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse algum em impedi-los[11].
Da mesma forma lê-se no Código Civil de 2002, sobre a propriedade de imóvel (aqui referida como solo palavra que corresponde ao termo latino fundi), que esta abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las[12].
De certo a utilização do espaço aéreo não era para o povo romano questão de tão grande importância quanto para nosso Estado moderno, onde chega a ser considerada questão de interesse nacional, já que a utilização do espaço aéreo por aeronaves tornou-se um dos meios mais eficazes de transportar pessoas e coisas, não obstante ainda temos o potencial bélico das frotas armadas pertencentes à aviação de guerra.
Quanto ao subsolo nossa atual Constituição é clara ao dizer que são bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo, bem como ao dispor em seu Art. 176 que: “As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União […]” não obstante ainda elenca inúmeras limitações a exploração destes recursos, bem como a concessão de lavras para exploração por particulares.
Não obstante corrobora o Art. 1.230 do Código Civil de 2002 no sentido de que a propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais.
O termo imóvel, no que diz respeito ao poder sobre porção de terra, foi cunhado posteriormente e pertence a uma classificação tardia que adquiriu importância nos idos do Império, já aos tempos cristãos. Desta forma não será este termo utilizado neste estudo por não expressar corretamente a visão do romano acerca da propriedade da terra.
A doutrina cunhada por Iglesias (2012, p. 325.) apresenta de modo bem claro o conjunto de características que pode ser atribuídas a propriedade fundiária romana clássica à título de princípios, mas atente-se que estes princípios são cunhados pela doutrina tardia do Direito Romano, ou seja, por aqueles que estudaram tal ordenamento após seu fim, através dos vestígios por estes deixados.
Os princípios são cinco a se saber:
I.A propriedade fundiária romana tem limites claros, de caráter santo. Estes limites são sinalizados/demarcados através de um ritual solene de caráter jurídico/religioso. Ao redor destes limites, chamados de ager limitatus, deveria haver um espaço livre de cinco pés. Para este espaço dava-se o nome de iter limitatis no campo e de ambitus na cidade, tal era em tempos Arcaicos considerada res sanctae. A ausência de limitação faz com que o bem se torne público, ager publici;
II.A propriedade é ilimitada, neste sentido, tem-se que é absoluta estando submetida ao proprietário em todos os aspectos não admitindo qualquer forma de ingerência externa. Sobre um mesmo fundus não há jamais dois Direitos de propriedade, sendo tal possibilidade inconcebível;
III.A propriedade tem virtud absorbente, ou seja, a ela se ligam tudo que esta sob a terra ou sobre ela, plantas, tesouros, animais bravios, aluviões, minérios etc. Tal princípio decorre da própria natureza da propriedade e não de uma determinação legal;
IV.A propriedade fundiária romana é inmune, isto é livre de qualquer ônus ou encargo fiscal. Por estes responde-se com os bens, mas não com a propriedade em si;
V.A propriedade romana é perpetua. Assim não há direito de propriedade ad tempus.
A propriedade era para os Romanos o núcleo sólido ao redor do qual gravitam todos os Direitos Reais. E tomando por base as palavras de Carlos Roberto Gonçalves tem-se que assim o é ainda hoje, pois “trata-se do mais complexo dos direitos subjetivos a matriz dos Direitos Reais e o núcleo do direito das coisas” (GONÇALVES, 2012, p. 228.). Com base nestes princípios estrutura-se toda a base principiológica dos Direitos Reais contemporâneos.
Do princípio da propriedade ilimitada advêm os modernos princípios do absolutismo e da exclusividade. Na linha do primeiro, os direitos reais exercem-se erga omnes, ou seja, contra todos, e todos devem abster-se de molestar o proprietário, que caso molestado possui ainda o Jus persequendi, que é o direito de perseguir o bem a qualquer custo para ver satisfeito seu direito de propriedade, reivindicando-a de quem a injustamente possua (Art. 1228, CC/02), bem como o acompanha o Jus preferendi ou direito de preferência (GONÇALVES, 2012, p. 31).
Na linha da exclusividade, assim como não podia haver duas propriedades sobre o mesmo fundus, pois sendo ilimitada a propriedade não pode coexistir com outra sobre a mesma res sem que esta a limite, o que fere sua natureza e a inviabilizaria, analogamente o direito moderno firma que não pode haver dois direitos reais de mesma natureza sobre a mesma coisa, pois anular-se-iam. Seria inviável que sobre uma mesma parcela de imóvel houvesse duas hipotecas, pois a função de garantia desta seria destruída, da mesma forma não pode haver dois usufrutos sobre a mesma parcela de bem.
A natureza destes direitos é una e indivisível e pode haver concessão destes a um condomínio, mas continuarão a ser como um só, do qual o condomínio é titular em totalidade, e apenas em totalidade tal direito pode ser exercido e executado.
A exclusividade dos registros públicos também deste principio advém e existe para garantir tal princípio, pois nos ensinamentos Romanos não pode haver mais de uma propriedade sobre um mesmo bem. Neste sentido, ainda aponta, com as devidas particularidades, a jurisprudência moderna ao que tem-se na decisão do Des. Brandão Teixeira: “Ementa: AÇÃO ANULATÓRIA DE MATRÍCULA DE REGISTRO PÚBLICO IMOBILIÁRIO. DUPLICIDADE DE MATRÍCULA. PRINCÍPIO DA PRIORIDADE DO REGISTRO. AÇÃO DE USUCAPIÃO REGISTRADA NO 6º SRI, DA CAPITAL EM DATA DE 29/10/85. POSTERIOR REGISTRO DE TÍTULO DE PROPRIEDADE TRANSCRITO NO 5º SRI, ABERTO EM 27/01/87. CONSTA NO FOLIO REAL DE AMBOS OS OFÍCIOS O MESMO E ÚNICO LOTE. IMPOSSIBILIDADE DE UM MESMO IMÓVEL SER MATRICULADO DUAS VEZES. LAUDO PERICIAL CONSTATANDO QUE O IMÓVEL PERTENCE À CIRCUNSCRIÇÃO DO 6º SRI. SENTENÇA ACOLHENDO O PEDIDO DE CANCELAMENTO DA MATRÍCULA 38.342, DO 5º SRI. RECURSO DESPROVIDO” (TJMG: Apelação Cível 1.0024.01.553309-4/001 (5533094-48.2001.8.13.0024), Rel. Des. Brandão Teixeira, Órgão Julgador/Câmaras Cíveis Isoladas/2ª CÂMARA CÍVEL, Súmula NEGARAM PROVIMENTO, Comarca de Origem: Belo Horizonte, DJ 18/10/2005, DPubl. da sumula 18/11/2005.).
Endossando o já dito, e com base na decisão acima transcrita, fica claro que também é impossível escriturar-se duas vezes o mesmo imóvel sobre duas matrículas diferentes constituindo-se assim duas propriedades.
Nesta mesma linha, convêm chamar-se atenção que os registros públicos em si, em especial, o imobiliário rege-se pelo princípio da publicidade, presente de forma expressa na Lei nº 6.015/73, e manifesto no fato de que qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o motivo ou interesse do pedido (Art.17). Como exigências à escrituração do imóvel, seja ele rural ou urbano, faz necessária a indicação clara de suas confrontações, localização e área, o que mais se destaca, é a área do imóvel, pois representa os limites de sua extensão física (Art. 176, 3, a, b), e impede que duas pessoas escriturem uma mesma área onde confrontam-se suas propriedades.
Essa mesma função era representada no Direito Romano pelo ritual da limitatio, pois quando se demarcava um terreno adquirir-se-ia propriedade do mesmo. Da mesma forma, hoje se adquire por força de escritura pública devidamente registrada no CRI, não obstante, ainda tinha por fim dar publicidade ampla ao direito de propriedade, pois sendo um ritual solene, visava tornar notória a existência de propriedade sobre o fundos em si.
A limitatio dava-se em casos de aquisição de imóvel não antes pertencente a particular e, portanto, não delimitado, ou seja, bem público, ou em caso de desmembramento. Da mesma forma, hoje em dia deve-se realizar à medição de terras e correta lavratura de seu memorial descritivo ante a escrituração primeva, ou em caso de desmembramento. E tanta importância dá-se a tal, que passou a ser exigido pelo advento da Lei 10.267/01, a realização do georeferenciamento do imóvel, ou seja, a fixação de seu posicionamento, medidas e confrontações realizado com base em dados de GPS, ou com auxílio de mesas digitalizadoras.
As terras não sujeitas a limitatio não o foram feitas por serem incultas ou indesejáveis ao cultivo, e para tanto eram públicas. Da mesma forma, hoje em dia, são tidas como devolutas, aquelas terras devolvidas pela coroa portuguesa ao Império do Brasil quando de sua constituição, mas são acertadamente definidas como espécie de terras públicas abrangentes daquelas que, à época a Lei nº 601, de 18/9/1850, eram incultas, não aproveitadas, não apossadas, não habilitadas. São terras, que, não sendo próprias nem aplicadas a algum uso público, não se incorporam ao domínio privado, na forma e condições previstas no art. 5º, do decreto-lei nº 9.760, de 5/9/1946.
Da mesma forma durante a colonização das terras romanas, as terras não ocupadas justamente as incultas e não aproveitadas, por motivos diversos reverteram-se a propriedade do Estado (RAYMUNDO, 2011), justamente para que não se desse ocupação desordenada das mesmas afetando negativamente o Estado como no caso de sua ocupação por estrangeiros. Diga-se de passagem, o Estado Romano poderia conceder seu uso aos cidadãos mediante o pagamento de um tributo exclusivo sobre o uso e gozo do ager públicus.
Com relação ao princípio da virtud absorbere é curioso observar que aquilo que o ordenamento romano clássico reconhecia naturalmente como intrínseco a um princípio e nele implícito teve necessidade de positivação em nosso ordenamento em sete artigos (Art. 1253 ao 1259 CC/02), não obstante tal positivação segue ipse liter o conteúdo das Institutas de Justiniano que, todavia, o fizeram de modo mais sucinto (§ 29 ao § 31).
Na visão do Romano clássico o solo tinha virtude de absorver tudo que estivesse sobre ele, sendo esta uma visão muito clara a este povo. Mas depreender-se-á um raciocínio de modo a deixar a questão mais clara ao moderno estudioso do tema. Com base nos três casos clássicos que são a aedificatio, saltatito e a plantatio, pois a semente que semeia só germina por estar na terra, a árvore que se planta só sobrevive por retirar nutrientes da terra e se não estivesse em contato direto com o solo, via de regra, morreria, e a construção não pode, também via de regra, ser feita sem fixar-se direta ou indiretamente ao solo.
Logo a semente, a planta e a construção não sobrevivem ou não exercem sua potência se não fixados no solo, mas o solo não depende dos mesmos para sua sobrevivência ele é o que é e sempre estará lá.
A semente a construção e a planta necessitam do solo, mas este não necessita dos mesmos, por isso cria-se uma relação de dependência em única via dos bens citados para com o solo. Por isso é que a propriedade do solo atrai e absorve a propriedade do que esta sobre ele.
A questão da indenização caso tais atos se dêem de boa fé é uma construção posterior e não estava presente no ordenamento jurídico romano clássico, mas foi sendo aos poucos introduzida e consolidando-se com a codificação de Justiniano e o advento dos ideais cristãos e humanitários.
Não se pode utilizar-se de tais formas para forçar outrem a ceder-lhe um usufruto de suas terras, ou um gozo ou uso sobre as mesmas, tampouco fazê-lo de caso pensando em uma aventura jurídica que lhe renda indenização que supere os gastos com a falcatrua em questão. Para prevenir este tipo de situação vigora o princípio da absorvição, mas em casos de boa-fé faz justa uma indenização razoável, não tendo, entretanto, direito aos bens lançados sobre a terra que a ela incorporam. Compreendendo isso nada mais se faz necessário para que o estudante com um lampejo de raciocínio desvende qualquer questão vinculada aos referidos artigos da lei civil.
Uma prova simples de boa-fé na acessão seria a existência de um contrato de comodato, seguindo esta linha profere o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob a relatoria de Pedro Celso Dal Pra o seguinte acórdão: Ementa: “APELAÇÃO CÍVEL. POSSE (BENS IMÓVEIS). AÇÃO REIVINDICATÓRIA. COMODATO. ACESSÃO. BOA-FÉ. INDENIZAÇÃO. ART. 1.255 DO CÓDIGO CIVIL. Incontroversa a existência de comodato (…) Tratando-se de acessão necessária, de acordo com a regra inserta na parte final do art. 1.255 do CC/02, indispensável a prova da boa-fé de quem edificou em terreno alheio, além da demonstração dos gastos realizados. Hipótese em que restaram adequadamente comprovadas as despesas suportadas pelos comodatários através da prova documental e de perícia. E a vigência, por mais de vinte anos, de contrato de comodato de terreno entre pai e filho expressa a boa-fé do comodatário, cuja posse foi justa até a notificação. Presumível, de outro lado, a autorização para construção da acessão, já que transcorridos vários anos desde o início do comodato até sua denúncia, sem que tenha o comodante adotado qualquer medida visando obstar a edificação realizada. RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70046009197, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 24/11/2011).”
A redação do acórdão acima não deixa de contar com a aquiescência dos princípios esculpidos no ordenamento romano vez que, não obstante a boa-fé existente e comprovada por meio de contrato de comodato, também se fazia presente a autorização expressa para edificação, justificando-se por óbvio a indenização.
Por fim, com relação ao princípio da perpetuidade ele muito pouco mudou, vez que o mesmo ainda é aludido nas doutrinas contemporâneas que dizem ser a propriedade um direito perpetuo, pois não se extingue pelo não uso (GONÇALVES, 2012, p. 37).
3.1.Do dominium ex juri Quiritium
Dominium ex jure Quirintium era a propriedade reconhecida pelo Jus civile, não limitada pela ordem jurídica propriamente dita. As restrições estranhas à vontade do dono, quer oriundas das relações de vizinhança, quer impostas em razão de interesse público, são muito raras ao ponto de serem consideradas excepcionais, tais restrições não aparecem nas eras primitivas.
Neste caso, pode-se notar o caráter de força absoluta da propriedade, embora regulado o uso da mesma para não infringir o dono em seu exercício, o direito de outrem. Mas não cometendo tal infração a direito alheio de modo claro e direto, jamais poderia haver intervenção em seus direitos como proprietário.
A este respeito dado ênfase aos modos de aquisição e defesa deste tipo de propriedade convém citar Correia e Sciascia ([s.n.t], p. 125): “O Domínio por direito Quirites só cabe a cidadãos romanos: a principio de exerce apenas sobre coisa mancipi, e portanto pode-se adquirir só em virtude de um modo de aquisição reconhecido pelo habil ius civile (mancipatio, ET iure cessio). É protegido pela rei vindicatio”.
A origem desta forma de propriedade e muito antiga e de início assistia apenas aos descendentes dos pais fundadores de Roma que expurgaram os etruscos pondo fim a monarquia e dando início a Era republicana e sua denominação remonta a fundação da cidade de Roma, conforme nos esclarece Cretella Junior: “Chama-se quiritária porque é própria dos romanos, os Quirites, de Quirino, nome de Rômulo depois de sua morte. Cures é a cidade dos sabinos. Quirites são os sabinos, elemento étnico que se fundiu a população romana dos primeiros tempos” (JUNIOR, 1983, p. 175).
Estes Sabinos eram descendentes diretos dos pais fundadores, mas não eram os únicos visto que estes, latu sensu, eram chamados de patrícios, tal classe era composta pelos membros de todas as famílias originais que auxiliaram no expurgo etrusco, e que formavam uma Aristocracia centralizada que monopolizava em suas mãos o acesso ao senado.
Com isso compreende-se o absolutismo desta espécie de propriedade, pois diferentemente da provincial que haveria sido conquistada pelo Estado, a propriedade Quiritária fora conquistada a duras penas pelas mãos do povo quando lutando por sua liberdade recuperou os domínios de seus ancestrais, logo não intervinha o Estado naquilo que havia sido conquistado por seus fundadores, antes mesmo de serem alicerçadas suas bases, estando esta propriedade durante toda a Era Primitiva e Clássica revestida de uma aura divina incorruptível.
Outra característica deste tipo de propriedade é a existência de bases rígidas para sua constituição que estava vinculada ao preenchimento integral de três requisitos, quais sejam: 1˚) que o proprietário fosse cidadão romano; 2˚) que o terreno fosse itálico; 3˚) que tenha sido adquirido por modo convencional adequado (JUNIOR,1983, p. 175).
Essa forma de propriedade desapareceu no tempo e não encontra reflexo contemporâneo.
Originalmente esta forma de propriedade não era tributada e só veio a ser quando o Imperado Dioclesiano em 292 d.C abroga a distinção entre terrenos itálicos, isentos de tributos, e terrenos provinciais, a propriedade dos agri vectigales equipara-se para todos os efeitos à Quiritária (JUNIOR,1983, p. 175).
3.2.Propriedade provincial
A propriedade provincial era o uso e gozo, quase sem limitações, de terrenos pertencentes ao Estado Romano (CORREIA; SCIASCIA, [s.n.t], p. 125), como se dá, por exemplo, no caso da ocupação de guerra. Se diferencia do dominium ex jure Quirintium pela existência de um tributo anual que deve ser pago ao Estado pelo proprietário da mesma.
Os terrenos situados fora da península itálica pertenciam ao Estado. No período imperial as províncias podiam se dividir em dois tipos: As senatoriais que pertenciam ao povo romano e, portanto estavam sob administração do Senatum (praedia estipendiaria), e as imperiais que eram propriedades do imperador conquistadas pelo exército imperial (praedia tributaria) (GAIO, 2010, p. 169), as melhores parcelas destas terras na maioria das vezes eram doadas aos militares valorosos como forma de retribuição aos serviços prestados com dedicação e fidelidade, e havia também espólios diversos repartidos entre os soldados livremente como parte do peculium castrense, caso conquistados fora de campanha militar, ou distribuídos entre eles pelo Império se conquistados em campanha militar.
A respeito de tais províncias, sabe-se que delas foi excluída a propriedade privada, mas o Estado podia e com frequência concedia o gozo delas a particulares, de uma forma semelhante ao instituto da propriedade propriamente dito, mas sob o peso de um ônus (tributo) revertido ao Império. Assim afirma Marky: “Os terrenos nelas situados eram chamados praedia stipendiaria e praedia tributaria, respectivamente. A propriedade particular foi excluída de tais terrenos. Entretanto, o Estado podia conceder, e realmente concedeu, o gozo deles a particulares, concessão semelhante, mas não idêntica, à propriedade. Os textos indicam-na com as expressões habere possidere frui e Gaius a chama possessio vel ususfructus. Na prática aplicam-se-lhe todas as regras referentes ao domínio em geral” (2005, p. 71).
Essa concessão era vinculada por vezes a uma contraprestação que no caso dos terrenos Imperiais era chamada de tributo, de fato esta forma de Direito real sobre coisa imóvel é a que mais se equipara à propriedade contemporânea devido ao fato de encontrar-se sujeita não só a inúmeras limitações de direito, mas também a limitações de fato como é o caso dos tributos hoje pagos pelo direito de usar e gozar de algo que nos pertence, bem como transmiti-lo a outrem. Atualmente por força a Lei nº 5.172/66 tanto a propriedade urbana (Art. 32.) quanto a rural (Art. 29) encontram-se atreladas a pesados impostos progressivos que visam direcionar a correta utilização do imóvel sob a ótica do Estado, onde se paga não só pela condição de proprietário, mas também pelo direito de transmiti-la (Art. 35).
Esta é a origem moderna de nossa propriedade repleta de limitações, e ônus tributários, pois esta amparada nesta ideia de que o Estado concede-nos o uso da terra como um favor, favor pelo qual e recompensado com uma contraprestação tributária.
3.3.Propriedade pretoriana
A propriedade pretoriana ou in bonis habere: é a mais controversa das três, se desenvolveu por força da jurisdição do pretor, que protegia o adquirente de uma res mancipi contra a má-fé daqueles que não a tinham transferido mediante ato devidamente formal, hábil a operar transferência de modo reconhecido pelo Jus civile.
Sob a proteção a tal forma de propriedade, Correia e Sciascia lecionam: “Do mesmo modo, o pretor protegia o adquirente do que não era dono por “ius civile” (peregrino), mas só por direito pretoriano. A possível reivindicatio do dominus ex iure Quiritium era repelida pela exceptio rei venditae et traditae. Mais tarde, por meio da actio publicana concedida pelo pretor, o adquirente podia reivindicar a coisa recebia também contra terceiros, fingindo-se que tivesse decorrido o tempo necessário a usucapir a coisa, e assim tonava-se dono por direito dos Quirites” (CORREIA; SCIASCIA, [s.n.t], p.1 25).
3.4.Propriedade dos peregrinos
Propriedade ad jus peregrini: Os estrangeiros ou peregrinos não dispunham do requisito para postular direitos junto ao Jus civile por serem destituídos de cidadania, logo não podiam ter reconhecida a legítima propriedade pelo dominium ex jure Quiritium, mas, lhes era concedida a propriedade pelo seu próprio direito estrangeiro, sendo esta concessão conhecida como simples dominium (MARKY, 2005, p. 71).
Os meios de defesa processual admitidos por tal propriedade consistiam nos mesmos aplicados à Quiritária.
Com a ascensão de Dioclesiano ao trono, ab-rogou-se tais destinações e embora mantivessem seus nomes, tais espécies não mais diferiam entre si em essência ou extensão do poder de que sobre elas detinha Direito.
4.Conclusão
Conclui-se que a verdadeira propriedade absoluta romana foi aquela que visava resguardar um direito sagrado adquirido pelo povo romano antes mesmo do estabelecimento das bases da república, esta propriedade jazia muito além do alcance do Estado que sobre a mesma não podia tributar ou buscar bens com efeito de satisfazer seus créditos, tampouco almejar a desapropriação ou intervenção de qualquer forma.
Este tipo de propriedade emanou de si como centro gravitacional dos Direitos Reais um tronco principiológico no qual estrutura-se grande parte do atual sistema de direitos reais e da legislação positiva brasileira contemporânea, não obstante tais princípios continuam a nortear as decisões dos magistrados mostrando que sua força perdura através dos séculos, mesmo que com algumas adaptações interpretativas oriundas de nosso sistema restritivo de Direitos Reais e das mudanças sociais continuas.
Nota-se que dentro dos conceitos romanos de domine ex jure Quiritium e res mancipi ergueu-se uma estrutura jurídica que possibilitou o que fosse imortalizada a conquista de um povo que ergueu o Estado para servi-lo, e que mantinha em caráter absoluto as parcelas de liberdade que tinha conquistado para si sem a intervenção do mesmo.
Conclui-se, ainda que a ingerência do Estado limitava-se de início à aquilo que havia conquistado ou legado ao povo após sua fundação, não intervindo nos limites e direitos que foi constituído para resguardar com olhos diligentes e não com cobiça sequiosa.
A propriedade atual assemelha-se mais a forma tardia de direito real conhecida como proprietatis à qual dava-se em terras conquistadas pelo Estado onde ele cedia o direito transmissível de uso e gozo mediante uma contraprestação pecuniária. Esta prestação pecuniária pode muito bem ser a origem do que modernamente conhecemos como impostos propter rem ou obligatio propter rem. Entre a linha tênue das formas de Direito apresentadas neste estudo, encontra-se a propriedade brasileira contemporânea embasada nos princípios da propriedade romana tardia e não de sua forma clássica absoluta.
Bacharel em Direito pela Faculdade INESC-Unaí aluno de especialização em Direito de Propriedade Agronegócio e Desenvolvimento sustentável pelo Instituto de Direito Público Brasiliense-IDP. Advogado Militante
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