Resumo: Ensaio que reflete sobre o bullying à luz da recente Lei n. 13.185 de 6 de novembro de 2015 e do ECA
Esse ensaio propõe uma reflexão diante da onda crescente de violência que se espalha entre crianças e jovens das mais variadas classes sociais, econômicas e em todos os níveis culturais. É um fato social que precisa ser debelado pela sociedade, a começar nas famílias, nas escolas, onde as incidências encontram um ambiente favorável, pela diversidade, em qualquer lugar que possa estar reunido um grupo de modo a facilitar tal prática. Esse tipo de violência é muito comum no ambiente de trabalho, conhecido como assédio moral, e não menos preocupante que o bullying, que se dá no ambiente escolar.
A primeira referência sobre a proteção do direito da criança foi a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança, em 1924, não se firmando nas sociedades industriais dado seu caráter declaratório. A esse diploma seguem: a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e a Declaração dos Direitos da Criança de 1959, da Assembleia Geral da ONU, um instrumento declaratório sem quaisquer obrigações jurídicas, um padrão moral para os direitos da criança. Ainda, a nível internacional temos para a proteção à criança as Regras de Beijing de 1985, que se refere à política social que visa proteção dos jovens para evitar a intervenção do sistema de Justiça. (MESSA; CALHAO, 2015, p. 329).
Cabe ao Estado a proteção institucional da criança e do adolescente, como administrador da sociedade, por meio dos órgãos oficiais, zelar pela criança e adolescente como pessoas em desenvolvimento contra qualquer negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (MESSA; CALHAO, 2015, p. 332)
A proteção normativa da criança e do adolescente é singularizada a nível constitucional pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 3º, inciso III da CF), da não discriminação em razão da idade do cidadão (art. 3º, inciso IV da CF) e da proteção integral (art. 227, caput, da CF).
A Lei n. 4.837/2012 dispõe sobre a instituição da política de conscientização, prevenção e combate ao bullying nos estabelecimentos da rede pública e privada de ensino do Distrito Federal e dá outras providências. O artigo 2º da referida lei estabelece que: “Considera-se bullying a violência física ou psicológica, praticada intencionalmente e de maneira continuada, de índole cruel e de cunho intimidador e vexatório, por um ou mais alunos, contra um ou mais colegas em situação de fragilidade, com o objetivo deliberado de agredir, intimidar, humilhar, causar sofrimento e dano físico ou moral à vítima.”.
Tanto a Constituição Federal (1988), como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), reconhecem a condição de ser humano em desenvolvimento, passando da condição de objeto de direito, como no antigo Código de Menores, para sujeito de direito, devido à influência universalista na construção de novos paradigmas de proteção à criança e ao adolescente. A universalidade em direitos humanos remete à tríplice arquitetura: titularidade, são titulares primevos da humanidade; temporalidade, a infância revela situação especial de universalidade em qualquer tempo e lugar; e culturalidade, apesar de suas diferenças universalista e relativistas, sustenta a primazia na humanidade. (MESSA; CALHAO, 2015, p. 330).
Recentemente, a Lei n. 13.185, de 6 de novembro de 2015, de abrangência em todo o território nacional, devido o maior número de casos de bullying, em seu artigo 1º, estabeleceu que: “Fica instituído o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) em todo o território nacional”. No § 1º, do mesmo artigo, considera bullying “todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.”.
O que vem a caracterizar tal violência física ou psicológica são os atos de intimidação, humilhação, discriminação, que podem ser identificados pelos ataques físicos, insultos pessoais, comentários e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado, pilhérias e outras maldades que possam acarretar uma descompensação física ou psíquica no agredido. (Lei n. 13.185/2015).
Nessas ameaças por quaisquer meios estão incluído as feitas por meio de computadores, em especial nas redes sociais, quando se utilizam deste expediente para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o objetivo de constranger psicossocialmente a pessoa que se quer atacar, é o que caracteriza o cyberbullying. As crianças e jovens devem ser orientadas no sentido de que no mundo virtual a exposição pessoal deve ser muito tímida. Evitar divulgar telefones, e-mails, endereços, fotografias e vídeos pessoais. Quem se expõe muito pode ser alvo de maldades como ofensas e piadas. (Cartilha do MP/SP).
Essas intimidações sistemáticas podem acontecer de várias maneiras: verbalmente, por meio de insultos, xingamentos e apelidos pejorativos; moralmente, com difamações, calúnias, disseminação de rumores com intuito ofensivo, sexualmente, por assédio, indução e mesmo abuso; socialmente, de forma a ignorar, isolar e excluir o agredido; psicologicamente, com perseguição, intimidação, manipulação, dominação, e outros meios que se possa ter para infernizar a vida do agredido; fisicamente, com brutalidades: socos, chutes e mesmo bater; materialmente, por meio de furtos, roubos, destruição dos pertences; e, virtualmente, com ameaças por mensagens, fotos e outros meios que possam aniquilar psicologicamente e socialmente a pessoa. (Lei n. 13.185/2015).
O que se pretende com o reforço e a especificidade de tal lei é prevenir e combater amplamente tais práticas, e para tanto, pretende-se capacitar docentes e equipes pedagógicas para saberem melhor enfrentar e debelar tais acontecimentos no âmbito escolar. Também se constitui em práticas de conduta e orientações aos pais, familiares das vítimas, com assistência psicológica, social e jurídica, inclusive dos agressores, a fim de promover a tolerância mútua e a paz social.
Essa preocupação faz sentido quando podemos relembrar um caso de bullying, em que o indivíduo chegou ao extremo da violência, no Rio de Janeiro, na Escola Municipal Tasso da Silveira, bairro do Realengo, quando o jovem de 23 anos adentrou a escola numa fúria atirando, matando e se matando em seguida. Casos assim acontecem sem que possamos esperar, porque a violência que o jovem sofreu, na referida escola foi tão intensa que, tempos depois, ele revidou dessa maneira; não suportando mais, resolveu dar um fim nos seus tormentos, acabando com a vida de pessoas ingênuas e com a própria vida. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 336).
O bullying é muito sério, nem todas as pessoas conseguem se livrar deste problema, o que ocorre no maior número dos casos é que o agredido se distancia, podendo acarretar desvios psicológicos, neuroses, psicoses e depressão, isso explica casos de violência em massa e suicídios, e maior parte das vezes têm início no ambiente escolar, mas seus efeitos se estendem pela vida adulta. Uma pessoa que tenha sofrido uma agressão psíquica, como no bullying, tem seu psiquismo alterado por um tempo duradouro. (HIRIGOYEN, 2011, p. 15).
Esclarecendo que: “A perversidade não provém de uma perturbação psiquiátrica e sim de uma fria racionalidade, combinada a uma incapacidade de considerar os outros como seres humanos.” (HIRIGOYEN, 2011, p. 13).
Dan Olweus, estudioso norueguês do assunto, explica que há o bullying direto e o indireto: “Bullying direto: é a forma mais comum, traduz-se na intimidação ou violência praticada contra a vítima, por meio de palavras, gestos, expressões faciais e contato físico; e o bullying indireto: constitui a prática de isolamento da vítima, afastando-a, da convivência normal do grupo social em que se insere. Um dos meios é a perpetração de boatos constrangedores, com intuito de difamar a vítima, por exemplo.” (apud FELBERG; MATOS, 2015, p. 336).
Daí a urgência de afastar esse tipo de agressor do convívio, doutriná-lo, com a ajuda das pessoas que o cercam e profissionais, para reabilitá-lo. O mais importante é a recuperação e não a punição, pois estamos tratando de acontecimentos entre crianças e jovens, e o restabelecimento sadio deve ser de ambas as partes: agressor e agredido.
As psicólogas Telma Vinha e Mônica Valentim apontam quatro características essenciais do bullying: 1- intenção de humilhar; 2- reiteração da agressão; 3- presença de público espectador; e 4- submissão da vítima. (FELBERG; MATOS, 2015, 336). A vítima é humilhada, por algum motivo, por exemplo, excesso de peso ou qualquer outro que ressalte aos olhos do agressor, de forma reiterada e sempre perante um grupo ou pessoas com intuito de humilhar. (FELBERG; MATOS, 2015, 336).
O bullying não ocorre devido uma investida isolada, uma discussão ou uma ofensa pontual; ele se identifica pela prática reiterada, levando o agredido à exaustão, à paralização, à doença. E o agredido não se evade do grupo, ele persiste, pois ele faz parte desse convívio, e nisso ele vai se enfraquecendo cada vez mais. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 336).
A recomendação para estes casos é que na escola professores, inspetores e diretores devem ficar atentos aos hábitos dos alunos nas aulas e nos intervalos. Na família, os pais devem ficar atentos aos filhos, nos momentos antes e depois das aulas, qualquer atitude da criança fora da normalidade serve de alerta. (Cartilha do MP/SP).
Uma característica peculiar do bullying é a proximidade entre a vítima e o agressor, geralmente estudam na mesma sala de aula ou moram perto. Isso leva as pessoas a subestimarem certos fatos, encarando-os como brincadeira despretensiosa. Mas um olhar mais atento, pode detectar um excesso, pois o bullying excede em seus limites, e isto pode ser um alerta pelo comportamento de cada um dos envolvidos no problema. (Cartilha do MP/SP).
Alguns sinais podem chamar atenção, caso esteja ocorrendo bullying: baixo rendimento escolar; fingir estar doente para não ir à aula; sentir-se mal na hora de ir para escola; voltar da escola com roupas e livros ou cadernos rasgados; humor alterado; aparecimento de hematomas e ferimentos após a aula e colocar instrumentos cortantes na bolsa. (Cartilha do MP/SP).
Conforme explica Hirigoyen, a escolha da vítima é estratégica: “A característica de um ataque perverso é ter em mira as partes vulneráveis do outro, o ponto em que há debilidade ou uma patologia. Todo indivíduo apresenta um ponto fraco, que se tornará para o perverso o ponto a ser atacado”. (HIRIGOYEN, 2011, p. 153).
As consequências para a vítima são funestas: falta de amigos, perda de confiança, insegurança e sente-se infeliz. Tem um conceito de si mesmo muito deficiente, em particular de sua competência escolar e na conduta e aparência física. Anda com ombros encurvados, cabisbaixo, não olha nos olhos das pessoas, afasta-se das outras crianças e dá preferência à companhia dos adultos. (Cartilha do MP/SP).
Em contrapartida, os agressores ou bullies, são arrogantes, conflituosos e querem sempre levar vantagem. Sentem-se mais superiores quando conseguem humilhar e magoar as suas vítimas. Se não forem detectados e tratados têm grande chance de se tornarem adultos violentos e antissociais, podem até ter atitudes delinquentes e criminosas. (Cartilha do MP/SP).
Não existe uma fórmula para lidar com o bullying, mas é certo que família, escola e o Ministério Público, protegendo os direitos e garantias da criança, são fundamentais na prevenção e na intervenção deste problema. Cabe aos familiares, que são os responsáveis diretos no processo de socialização da criança, na formação de valores morais e éticos, para viverem em sociedade. Cabe-lhes, também, a segurança e a proteção, do dia-a-dia, permanecendo em constante vigilância para todos os acontecimentos que envolvem seus filhos. (Cartilha do MP/SP). “A moderna psicologia demonstra, a fartar, que é o afeto a base sensorial na qual assenta o relacionamento do ser humano consigo e o instrumentaliza para a leitura do mundo individual de cada um. São os pais, ou responsáveis, que ensinam como o mundo funciona. A ausência é uma forma de violência cujas marcas projetam-se no futuro adulto, com tendências a se reproduzirem. A infância é o período de formação de parâmetros comparativos; o que aprende ganha caráter de verdade inquestionável. Eis um ciclo vicioso a ser evitado com políticas públicas de proteção à infância e à maternidade.” (MESSA; CALHAO, 2015, p. 329).
Na escola, os professores devem reforçar o aprendizado familiar, e acrescentar os conhecimentos previstos nos currículos nacionais, construir uma convivência sadia entre iguais, promovendo programas antibullying. Esse empenho deve envolver todos os funcionários da escola. (Cartilha do MP/SP).
A escola deve ser vigilante, estar sempre com os alunos nos recreios, presenciar as brincadeiras, promover o preparo de professores e funcionários, capacitando-os para prevenção de bullying, convidar os pais para participarem de eventos e discussões, colocando-os a par da situação e, se houver vítimas, providenciar proteção e procurar solução juntos.
Na sala de aula, aproveitar o momento de que todos estão reunidos, estabelecer regras contra o bullying, estimular debates, aplicar metodologias para as diferentes aulas para aumentar o interesse dos alunos, rearranjá-los em grupos, para discutirem o assunto, promovendo ao mesmo tempo um convívio de respeito entre os pares.
No livro de Arendt (apud Natalo), “Entre o passado e o futuro”, a escritora afirma que a chamada crise na educação é consequência de uma crise de autoridade na modernidade, que ela classificou como phatos do novo. O Ocidente teria recusado a tradição e, como consequência, o que é estrutural do processo educativo: a natalidade. A natalidade, o fato de que as crianças nascem para o mundo – mundo esse que as precede e que permanecerá depois delas – engendra a necessidade que se disponha a apresentar esse mundo, responsabilizando-se, diz Arendt, “pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo”. De acordo com Arendt, a autoridade do educador resulta desse comprometer-se com o mundo, com o legado desse mundo, com a tradição. (NATALO, p. 4). Ao recusar a tradição, o educador/o professor não comparece mais à cena educativa como sustentador de uma ordem, ou seja, com autoridade. Na posição de facilitador, o educador não representa nada além de sua pessoalidade, de forma que adulto e criança, professor e aluno encontram-se nivelados, simbolicamente, frente ao mundo, esvaziando assim a assimetria essencial à educação. Sem autoridade a criança fica à mercê da tirania do grupo. (NATALO, p. 5).
Um dos exemplos corriqueiros na escola é o “bullying professor-aluno”, no qual o aluno é perseguido sistematicamente com notas mais baixas, com comparações repetidas e negativas em relação aos outros alunos. Nesse caso, o buller é um adulto e é possível subsumir sua conduta ao artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê como crime quando: “Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento. Pena- detenção de seis meses a dois anos.” (FELBERG; MATOS, 2015, p. 338).
No âmbito penal, as leis não tratam do bullying, apenas tangenciam algumas condutas que se relacionam com este. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 338).
As causas do bullying encontram-se no agressor e não na vítima; devemos estar atentos aos seus efeitos psicológicos, algumas vezes, físicos, mas prolongados. Apesar de ocorrer na escola, não pode ser considerado pela sociedade como uma prática comum com viés pedagógico. É um comportamento assimilado, bem arquitetado pelo agressor, que, infelizmente, faz parte da vida na escola. (FELBERG; MATOS, 2015, p. 340). Para tal, precisamos de políticas incisivas, contínuas para, caso não debelarmos, minimizarmos esses sofrimentos, e fazer com que os agressores entendam a dimensão negativa de seus atos. Além disso, como o bullying ocorre na escola, cabe à ela primar e reforçar a educação humanística, com ensinamentos éticos e morais, reforçando sempre a construção de comportamentos sociáveis e saudáveis.
As crianças hoje têm um entendimento muito expandido, e com políticas direcionadas, elas assimilarão com propriedade o que deve e o que não deve ser feito para evitar esse mal que ronda as escolas. Por tudo isso se recomenda sempre educar, educar, educar… para que jamais se esqueça a importância da prática do respeito.
Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
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