Autora: Bianca Mota do Nascimento Brasil Muniz – Acadêmica de Direito na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Email: brasilbiancamuniz@gmail.com
RESUMO: O presente artigo possui como objetivos a explanação acerca da proteção constitucional dos direitos da liberdade religiosa e da liberdade de expressão. Ademais, será observada a relação entre os princípios do Estado Constitucional Contemporâneo e a mudança no olhar à questão dos direitos fundamentais. Por fim, a análise do caso Porta dos Fundos trará ao cerne da discussão: os limites entre a liberdade de expressão, não adentrando o âmbito do discurso de ódio, e o da intolerância religiosa, o que se difere da crítica. Dessa forma, a partir de aspectos objetivos e coesos ter-se-á a constatação se houve discurso de ódio ou não.
Palavras-chave: Liberdade. Religião. Expressão. Constituição. Estado.
ABSTRACT: This article aims to explain the constitutional protection of religious freedom and freedom of expression rights. In addition, the relationship between the principles of the Contemporary Constitutional State and the change in the look at the issue of fundamental rights will be observed. Finally, the analysis of the Porta dos Fundos case will bring to the heart of the discussion: the limits between freedom of expression, not entering the scope of hate speech, and that of religious intolerance, which differs from criticism. Thus, based on objective and cohesive aspects, it will be verified whether there was hate speech or not.
Keywords: Freedom. Religion. Expression. Constitution. State.
Sumário: Introdução. 1.Proteção constitucional à liberdade de religião e à livre expressão. 1.1 Direito de religião. 1.2 Estado Laico.1.3 Direito de expressão. 2 Os pilares do Estado Constitucional Contemporâneo. 3. Caso Porta dos Fundos: intolerância religiosa ou liberdade de expressão? Conclusões. Referências.
INTRODUÇÃO
Entende-se que o constitucionalismo brasileiro vem sofrendo várias mutações ao longo dos anos. A atual Constituição brasileira consagra princípios fundamentais, os quais regulam e limitam a atuação do poder político. Dessa forma, os valores que um Estado emana são essenciais para que possamos extrair o sentido das normas, assim como os seus efeitos. A censura do especial de Natal da produtora “Porta dos Fundos” traz uma questão importante a ser analisada, tanto por juristas quanto por leigos: quais os limites da liberdade de expressão? É sabido que todo direito é relativo, porém, em um Estado Constitucional, vários princípios fundamentais coexistem, não sendo nenhum superior ao outro, fato que torna a delimitação dos limites uma tarefa cada vez mais difícil.
O entrave entre liberdade de expressão e liberdade religiosa inicia-se a partir do estudo acerca dos conceitos que os rodeiam, bem como o tratamento que a Constituição Federal dá a cada um desses direitos. Torna-se essencial, para fins de debate, a compreensão acerca dos limites dos direitos fundamentais, fazendo com que não haja sobreposição de um perante o outro, ao menos de forma abstrata, no contexto nor
A priori, será explanado como a CF/88 garante o direito de religião, salientando a importância dos limites entre a atuação do Estado perante o âmbito religioso, assim como o embate que a Igreja trava entre a incidência na esfera pública, seja pela sua importância histórica e cultural ou poder político coercivo. O conceito de Estado Laico também será discutido, fato que leva à necessidade de defesa constante do princípio da laicidade, o qual prevê a pluralidade de crenças no território nacional, não apenas em um nível de tolerância, mas de convivência harmônica e não privilegiada.
Além disso, o direito de expressão, protegido pela Carta Magna estabelece que a opinião e a crítica são garantias constitucionais, sendo o seu exercício livre. Todavia, os direitos fundamentais convivem com outros no cenário social, ao passo que nenhum se sobrepõe sobre o outro, deve-se saber identificar a prevalência durante a análise de um caso concreto. A posteriori, será necessário perceber quais são os pilares intrínsecos ao Estado Constitucional Contemporâneo, visando a delimitar a validade das ações públicas e particulares em face aos direitos fundamentais.
Por fim, o caso Porta dos Fundos será investigado, obedecendo o que é previsto constitucionalmente e não baseando-se em aspectos valorativos unilaterais.
1.1 Direito de religião
É necessário dizer que a atual Constituição Federal brasileira torna-se a mais democrática dentre todas as outras Cartas Magnas instituídas (COELHO, 2009, p.203), fato que é comprovado pela análise do seu artigo 5º, no qual são dispostos direitos fundamentais inerentes a qualquer cidadão brasileiro ou estrangeiro. Assim, a inviolabilidade da liberdade de crença, demonstrando assegurar o livre exercício de consciência e culto religioso, se encontra preconizada no inciso VI do mesmo artigo, confira:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Nesse aspecto, a norma-princípio expressamente protege a liberdade de crença, vetando, por conseguinte, qualquer atentado ao exercício da religiosidade nos moldes normativos, uma vez que existem limites ao exercício desse direito, dado o fato de que os bens protegidos (liberdades, por exemplo) pelos direitos fundamentais são restringíveis (ALEXY, 2006, p. 281). Assim, o artigo 5º, inciso VII, atesta que ninguém será privado de direitos por motivo de crença, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a prestação alternativa. Como afiança Paulo Gustavo Gonet Branco:
“(…) os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. (…) Até o elementar direito á vida tem limitação explícita no inciso XLVII, a, do art. 5º, em que se contempla a pena de morte em caso de guerra formalmente declarada (BRANCO, 2007, pp. 230-231)”
Desse modo, o direito à religiosidade torna-se um princípio político-constitucional (SILVA, 1994, p.18-19), traduzido no formato de norma da Constituição, o qual indica decisão política fundamental do Estado conformada no sistema constitucional. Desse modo, o constituinte decide que a religião torna-se uma premissa indissociável da formação identitária brasileira, dada sua forte influência histórica ao longo dos anos, bem como a “relevância constitucional do fenômeno religioso”.
No que tange ainda à liberdade religiosa como direito fundamental garantido pela CF/88, não se pode deixar de destacar o seu caráter individual e “negativo”, ou seja, rege um não-fazer do Estado, não incidindo, dessa forma, na esfera particular. Como bem coloca André Ramos Tavares:
“(…) do ponto de vista da teoria dos direitos fundamentais, devem ser classificados como direitos “negativos”, a exigir a devida atenção e contenção por parte do Poder Público. São os denominados direitos de primeira dimensão, especificados e alinhados à liberdade maior de consciência” (TAVARES, 2012, p. 636).
Não obstante, apesar do direito à religião supor a não intervenção do Estado na esfera religiosa, este pode o fazer no caso de estabelecimento de critério axiológico capaz de selecionar religiões inferiores ou superiores. (TAVARES, 2012, p. 637) Além disso, quando se analisa o artigo da CF/88, observa-se um claro fazer do Estado perante a religião:
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
Nesse sentido, percebe-se o atrelamento entre religião e cultura, previsto constitucionalmente e ainda como programa estatal de garantia. Assim, é vital perceber a influência que a religião detém perante o endurecimento de costumes e usos, inclusive, sendo perceptível incidência religiosa no que diz respeito à vida política, o que, em alguns casos, pode não ser inconstitucional, vide o artigo 19, inciso I da CF/88:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (grifo nosso)
Sendo assim, em caso de interesse público, o Estado poderá estabelecer relação com cultos religiosos ou igrejas, porém, o impasse sobre o assunto começa a partir da indagação :“Até onde é constitucionalmente possível a convenção entre o Estado e Igreja, sem ferir o princípio da laicidade?”.
Ademais, a Constituição de 1988, ao vetar a dependência entre Estado e religião, garante a laicidade estatal, ou seja, a formal separação entre Estado e Igreja, admitindo, por sua vez, o pluralismo de religiões, através do artigo 19, inciso I, já citado. Nesse interím, para responder a pergunta acerca do limite estabelecido no que concerne às relações travadas entre Estado e Igreja, deve-se entender que a religião faz parte do acervo cultural brasileiro e do patrimônio histórico nacional, sendo assim, claramente dotada de interesse público.
Como bem coloca Tavares (2012, p. 638), o distanciamento total entre Estado e Igreja pode trazer efeitos não desejados e até perigosos para o exercício da livre crença, garantia essa traduzida tanto em direito individual como direito cultural, e até ferir o princípio do Estado Democrático de Direito (COELHO, 2009, p.171). Desse modo, a laicidade requer neutralidade e não adversidade do Estado perante cultos religiosos.
Sendo a religião parte da cultura brasileira, é notório que os elementos intrínsecos às crenças sejam indissociáveis do “tratar” do Estado perante a sociedade civil, em exemplo estão os feriados religiosos cristãos, elementos fáticos impossíveis de serem desvinculados do cotidiano social. Contudo, existe diferença entre tratamento especial e privilégios, o primeiro é permitido, já o segundo fere o limite constitucional imposto.
O privilégio, por sua vez, não tem motivação, já o tratamento especial pode ser exigido em face de circunstâncias fáticas já enraizadas, agindo, por conseguinte, dentro do campo da normatividade (TAVARES, 2012, p.641). Cabe ao Estado não interferir nos assuntos religiosos, porém, há margem para que sejam instituídas medidas públicas para que a própria liberdade de crença seja devidamente respeitada. A respeito do assunto, Roseli Fischmann disserta:
“Mas o caráter laico, ao mesmo tempo em que impõe que o Estado não sofra interferência dos grupos religiosos, igualmente garante que os grupos religiosos não sofram interferência do Estado. Ou seja, um Estado que se constrói cotidianamente com base na diversidade e na liberdade, advindas dessa pluralidade centrífuga, avançará na direção de garantir as liberdades que serão respeitadas no espaço público, garantindo um leque mais amplo de escolhas na vida privada de cada um (FISCHMANN, 2012, p. 22)”
Um ambiente plenamente democrático para a liberdade religiosa pode ser constatado a partir, não da omissão do Estado perante a religião e muito menos da aversão, mas de sua neutralidade, não privilegiando uma em detrimento da outra. Ademais, cabe também aos cultos religiosos, em face do princípio da laicidade, separar a esfera pública da privada, entendendo que não cabe à lei permitir condutas que sejam aceitáveis pela sua crença e nem proibir as que sejam inaceitáveis (FISCHMANN, 2012, p. 23 ao citar LAFER, 2007).
Por fim, a resposta para o questionamento feito sobre o limite constitucional da convenção entre Estado e Igreja pode ser traçada ao reconhecer os fenômenos sociais inerentes ao pensamento religioso, delimitando o interesse público. Além disso, o Estado não deve interferir dentro do âmbito religioso, salvo se para construir um espaço democrático, no qual todas as formas de pensamento sejam legítimas, vetando a interferência excessiva de preceitos religiosos na esfera pública, protegendo e ratificando o princípio da laicidade e do Estado Democrático de Direito.
O artigo 5º, inciso IV consagra o direito fundamental à livre expressão, no qual é disposto o seguinte: “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. O inciso XIV do mesmo artigo assegura a todos o acesso à informação, resguardando o sigilo da fonte se necessário ao exercício profissional. Não obstante, torna-se caro mencionar o artigo 220 da Constituição Federal de 1988:
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
São inclusas no rol da liberdade de expressão faculdades relativas à manifestação de pensamento, ideias, informações ou expressões não verbais, todas amparadas pela Carta Magna (BRANCO, 2009, p. 402). Ademais, pode-se inferir que a livre expressão torna-se um dos pilares do sistema democrático, como assevera Ulrich Karpen (1998. p.93), “diferenciar entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista.”.
Porém, existem limites impostos à liberdade de expressão (assim como a todo direito fundamental). Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, p. 404) expõe muito bem essa ideia:
A liberdade de expressão, contudo, não abrange a violência. Toda manifestação de opinião tende a exercer algum impacto sobre a audiência – esse impacto, porém, há de ser espiritual, não abrangendo a coação física.
Desse modo, apesar da Constituição garantir a tutela à liberdade de expressão, como todo direito fundamental, esta não é absoluta. Utilizar-se da livre opinião para incitar discursos de ódio é ilegítimo, fato que pode contrariar o exercício da cidadania, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana. A Constituição, lei maior do Estado, ratifica a liberdade de expressão como um direito fundamental, todavia, leis ordinárias podem delimitar os limites de atuação desse direito. Em exemplo, o Código Penal brasileiro criminaliza a injúria, classificada como delito contra a honra.
O discurso de ódio pressupõe o ato de inferiorizar o outro, sendo este em situação de vulnerabilidade diante do agressor. Assim, o discurso de ódio e os princípios do Estado Constitucional Contemporâneo são incompatíveis, fato que pressupõe uma análise acerca das principais premissas de um regime democrático e como é exercida a mediação entre livre opinião e os outros direitos fundamentais.
O constitucionalismo brasileiro traduz-se, por conseguinte, no princípio do Estado Democrático de Direito, também referido como Estado Constitucional Contemporâneo (COELHO, 2009, p.171). A Constituição de 1988 demonstrou-se como um marco para o início da era verdadeiramente democrática no Brasil, em exemplo está a instituição do voto direito, secreto e universal, a participação popular e o pluripartidarismo, todavia, a democracia brasileira, por ser bastante jovem, vem passando por crises políticas, dentre elas o impeachment de dois presidentes.
Sendo assim, o princípio do Estado Democrático de Direito, figurado no caput do primeiro artigo da Constituição de 1988, é uma norma-princípio ou uma norma-síntese ou norma-matriz, na qual, por derivação, se originam outros princípios. A respeito do assunto, salienta Inocêncio Mártires Coelho:
“A essa luz, o princípio do Estado Democrático de Direito aparece como um superconceito, do qual se extraem – por derivação, inferência ou implicação – diversos princípios, como o da separação de Poderes, o do pluralismo político, o da isonomia, o da legalidade e, até mesmo, o princípio da dignidade da pessoa humana (…) (grifo do autor) (COELHO, 2009, P. 171)”
Sob o entendimento de Luiz Roberto Barroso (2012, p. da internet), constata-se que os princípios derivados não foram modificados ao longo do tempo devido, primordialmente, ao caráter analítico e rígido da CF/88, fato que proporcionou maturidade institucional ao Brasil.
Pode-se citar ainda que a partir da Carta de 1988, os fundamentos da Lei Maior foram devidamente respeitados e as ações políticas foram, consequentemente, legitimadas a partir das normas constitucionais, fato que não era constatado nas Constituições anteriores, em exemplo a Carta de 1969, outorgada apenas com o fito de institucionalizar o que já estava sendo assegurado pelos AI’S. Como dispõe Barroso (2012, p. da internet):
“Na antevéspera da convocação da constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de Direito no país: a flta de seriedade em relação à Lei Fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever-ser.”
Consoante ao assunto pode-se citar ainda o pensando de Karl Loewenstein quando se trata de Constituição, tendo ele classificado as Constituições ontologicamente entre normativas, nominais e semânticas (BERNARDES, FERREIRA, 2017, p.79). As Constituições normativas, como é o caso da CF/88, dominam o processo político, sendo efetivamente aplicadas e submetendo o poder político a suas normas (op.cit., p.79). Já as Constituições anteriores não detinham tão classificação, como a Constituição de 1969, que dentro da teoria de Loewestein se colocaria como “semântica”, visto que ao invés de limitar a atuação do poder, serve de justificativa para sua dominação (op.cit., p.79).
Desse modo, evidencia-se que a força normativa da constituição demonstra-se como uma das características do Estado constitucional de direito, no qual são impostas ações (ex. ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão) para que a Carta Magna obtenha sua máxima efetividade, sob pena de imposição do processo de “nominalização” e, consequentemente, o efeito dominante do poder político perante as normas constitucionais.
Além do mais, a dignidade da pessoa humana também pode ser considerada um dos pilares do constitucionalismo democrático da segunda metade do século XX (BARROSO, 2012, p. da internet). Após a Segunda Guerra Mundial, o plano internacional formulou tratados ratificados por vários países do globo em prol do respeito aos direitos humanos, fundamentando, assim, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por fim, a partir da maior amplitude do direito público, bem como a ascensão de novos direitos fundamentais, a democracia material, a qual garante o fortalecimento sistemático institucional, fato que leva à minimização das disparidades sociais (GOUVÊA, 2009, p.21). No que confere ao tema:
“Assim, em razão da nova concepção de igualdade e liberdade, novos direitos fundamentais surgiram. Igualdade e liberdade requerem agora materialização tendencial; não mais podemos nelas pensar sem considerar as diferenças, por exemplo, entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário apenas de sua força de trabalho, o que passa a requerer a redução do Direito Civil, com a emancipação do Direito do Trabalho, da previdência social e mesmo a proteção civil do inquilino. Enfim, o lado mais fraco das várias relações deverá ser protegido pelo ordenamento e, claro, por um ordenamento de leis claras e distintas (CARVALHO NETO, 2003, p. 13)”
Assim, sabendo que o Estado Constitucional protege a força normativa da Constituição, o princípio da dignidade da pessoa humana e a democracia material, tendente a garantir não somente a igualdade como a isonomia, pode-se obter embasamento necessário para analisar o caso Porta dos Fundos e entender se houve discurso de ódio ou intolerância religiosa, se a decisão do desembargador Benedicto Abicair do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a respeito da liminar que retirava o especial da plataforma “Netflix” foi procedente, assim como se o STF agiu constitucionalmente ao derrubar a liminar.
Por fim, cabe analisar o Caso Porta dos Fundos e suas implicações jurídicas. Nesse caso, a observância em questão será única e exclusivamente no âmbito constitucional, não sendo cabível ao trabalho presente valorar a qualidade do especial e muito menos declarar juízos a respeito de seus efeitos religiosos. O cerne da discussão será se é cabível ou não retirar o programa da plataforma “Netflix” e, constitucionalmente, se ocorreu discurso de ódio ou intolerância religiosa por parte do roteiro.
Como já demonstrado, a Constituição Federal de 1988 protege tanto a liberdade de expressão quanto o direito de religião, garantindo, através desse resguardo, os pilares do Estado Laico, zelado pelo princípio da igualdade inerente ao Estado Constitucional. Desse modo, os dois princípios podem coexistir, em caso de conflito entre ambos, será realizada uma ponderação à luz do caso concreto, ou seja, nenhum direito fundamental é absoluto.
A Lei 7.716/89 tipifica crimes relacionados à raça, cor e etnia. Em seu artigo 20,caput, caracteriza o chamado “discurso de ódio”:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (grifo nosso)
Assim, explicitamente a Lei de crimes raciais consiste em um limite à liberdade de expressão, visto que o discurso de ódio por motivos de raça, cor, etnia, religião e nacionalidade são vetados por norma infraconstitucional, bem como esses valores existem na Lei Maior, coexistindo com os demais princípios. Portanto, não há um critério objetivo, ao menos de forma abstrata, que resolva o conflito entre princípios, por isso a importância da análise do caso concreto.
No caso Porta dos Fundos, constata-se que há uma sátira em relação a elementos religiosos inerentes ao Cristianismo. Portanto, cabe primeiro entender o direito de crítica é preservado pela Constituição Federal de 1988, inserido nos moldes da Liberdade de expressão. O artigo 220 da CF protege a livre expressão e criação, sendo assim, o caráter humorístico inerente à utilização de símbolos religiosos é, teoricamente permitido, entretanto, como já dito, a discriminação religiosa é proibida por lei infraconstitucional.
Dessa forma, é plenamente viável citar um caso parecido com o em questão: A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.451, em 2018, a qual declara inconstitucional um inciso, parcialmente outro inciso e dois parágrafos de um artigo da “Lei das Eleições”. Tais dispositivos declaravam proibida a utilização de montagens ou recursos de áudio e vídeo que ridicularizassem candidato, partido ou coligação, bem como proibiam declaração de opinião favorável ou contrária a candidato, partido ou coligação. Ou seja, o direito de expressão era praticamente massacrado por tal disposição.
O STF, claramente e agindo de acordo com Constituição, afastou a vedação legal das emissoras de realizarem programas humorísticos envolvendo candidatos, partidos ou coligações, caso contrário, a liberdade de expressão seria seriamente comprometida, constituindo um grave atentado à Constituição Federal de 1988. O relator da ADI, ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, afirma que a CF veda totalmente a censura à liberdade de expressão e informação, fato que inclui a liberdade artística.
Assim, no que tange aos abusos passíveis de sanção, cabe ao juiz, no caso concreto, avaliar. O desembargador do TJ/RJ Benedicto Abicair censurou, em janeiro de 2020, o especial, alegando provocar danos à sociedade brasileira. Em dezembro de 2019, a 16º Vara Cível do Rio de Janeiro já havia negado o pedido para retirar o especial do ar. A juíza Adriana Moura, em sua decisão, afirma que o judiciário não tem poder para censurar a exibição de manifestações artísticas, salvo quando houver a prática de ilícitos, tais como incitação à violência, discriminação e violação dos direitos humanos nos discursos de ódio. Por exemplo, se o conteúdo do especial obtivesse cenas incitando o ódio generalizado à comunidade cristã, utilizando-se dos elementos religiosos não com um fim humorístico, mas visando a menosprezar e denegrir a liberdade religiosa, concretizar-se-ia, por tanto, um caso de intolerância.
A liminar proferida pelo desembargador visa a proteger o que é melhor para a sociedade brasileira que, de fato, é majoritariamente cristã, entretanto, fazer tal distinção fere o princípio da laicidade do Estado, visto que o privilégio de tratamento de uma religião em detrimento da outra em território nacional não pode ser admitido. É claro que não se pode excluir a importância cultural que o cristianismo possui para o Brasil, porém, o direito fundamental à religião, emanado pela Constituição e protegido por ela, consagra a pluralidade de crenças, disposição essencial para evitar cenários de intolerância religiosa e consagrando os valores constitucionais redigidos sob o égide da dignidade humana e da democracia material.
Em recente decisão, o ministro Dias Toffoli do STF, a pedido da Netflix, derrubou a liminar do desembargador do TJ/RJ, afirmando que uma sátira não tem poder para abalar a fé cristã, dada sua existência datada de 2 (dois) mil anos, bem como a adesão de milhares de brasileiros. Além disso, a Constituição consagra a liberdade de expressão como pilar democrático de debates e discussões acerca dos mais diversos assuntos.
A intolerância religiosa, por sua vez, não se confunde com a crítica religiosa, aquela pressupõe explicita agressão física e moral, ao, por exemplo, queimar bandeiras ou símbolos de determinada crença, incitando o ódio e o desprezo. Já a crítica religiosa faz parte da livre opinião, fato que se concretiza na observação de programas humorísticos voltados a satirizar preceitos religiosos, o que, se não adentrar os limites do discurso de ódio, é plenamente possível.
CONCLUSÕES
Dado o exposto, portanto, fica claro que a Constituição Federal de 1988 protege tanto o direito fundamental à liberdade religiosa, quanto a livre expressão e crítica, bem como a liberdade artística. No que tange ao conflito entre esses direitos, cabe-se fazer uma ponderação à luz do caso concreto. No caso supracitado, não houve necessidade de ponderação ao passo que a liberdade religiosa não foi comprometida. A satirização não finda agredir ou menosprezar nenhuma crença e sim, humorizar, no caso, símbolos religiosos, dando-os uma conotação diversa e explicitamente contrária à realidade.
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