Resumo: Trata-se de artigo jurídico que tem por temática o conflito existente entre a liberdade de informação e o direito à privacidade. Sabe-se que uma das características dos direitos fundamentais é seu aspecto não absoluto, podendo, por isso, ocorrer relativas contradições entre tais direitos. O trabalho visa esclarecer como se evidencia a antinomia entre esses direitos, procurando demonstrar se, no caso da contradição, a aplicação de um pode violar o outro. Será abordado, ainda, qual o meio utilizado para resolver tal contradição e, também, como a doutrina vem se posicionando e como os tribunais vêm enfrentando a questão nos casos concretos.
Palavras-chave: Direito Constitucional; Direitos Fundamentais; Colisão de Direitos Fundamentais; Hermenêutica Constitucional.
Abstract: This legal article aims to the conflict between The Freedom of Information and The Right to Privacy. It is known that an essential characteristic of the fundamental rights is its not absolute aspect, for this reason, it may occur relative inconsistences between such rights. This paper strives for clarification in how to evince the antinomy between these rights, pursuing demonstrate whether, in case of contradiction, the application of one may violate the other. It will still be discussed which is the means used to solve such contradiction and, also, how the doctrine is placing itself and how the courts of justice have been facing this matter in concrete cases.
Keywords: Constitutional Law; Fundamental Rights; Collision of Fundamental Rights; Constitutional Hermeneutics.
Sumário: Introdução. 1 – Abordagem Constitucional. 2 – Aspectos da Liberdade de Informação. 3 – Considerações sobre o Direito à Privacidade. 4 – Colisão de Direitos Fundamentais. 4.1 – Liberdade de Informação versus Direito à Privacidade. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente trabalho aborda as peculiaridades que giram em torno da possível colisão entre a liberdade de informação e o direito à privacidade.
Se por um lado tem-se insculpida no texto constitucional a garantia à liberdade de informação sem nenhuma forma de censura prévia, constituindo-se como uma das características atuais das sociedades democráticas, do outro, tem-se o direito à privacidade, igualmente consagrado na Constituição Federal e tipificado, no âmbito civilista, como direito da personalidade, inerente ao próprio homem, tendo como objetivo resguardar a integridade e a dignidade da pessoa humana.
Assim sendo, é natural que, ao lado dos direitos de informar e ser informado, haja, também, o reconhecimento de uma esfera inatingível do homem a ser preservada, qual seja, o seu direito à privacidade.
O objetivo do presente trabalho é estudar de que forma pode ser resolvida tal contradição entre esses direitos fundamentais, demonstrando se existe a possibilidade de o primeiro anular o segundo, e vice-versa, ou se há, no caso, uma clara demonstração de um direito constitucional limitando o outro, partindo, nesse caso, para a problemática central, que é determinar o ponto onde se operaria essa limitação.
Assim, é imprescindível indagar se, quando se tem de um lado a liberdade de informação e do outro o direito à privacidade, está-se diante de uma colisão entre princípios constitucionais. Neste caso, um poderia violar o outro? De que forma poderia ser resolvida essa aparente contradição entre tais preceitos de ordem constitucional?
Responder a tais indagações é de suma importância, principalmente em tempos de globalização, onde a difusão da informação é imediata, revelando acontecimentos diários numa velocidade quase instantânea.
Sabe-se que, atualmente, a liberdade de imprensa é tema dos mais enredados, em especial quando se confronta com direitos da personalidade, tendo, portanto, reflexos diretos para todo o cidadão. Tanto a liberdade de informação quanto o direito à privacidade são princípios que encontram seu nascedouro e limites na própria Constituição Federal. Surge daí a necessidade de se estudarem esses limites, principalmente diante da enorme relevância da questão nos conflitos que tais direitos geram, contrapondo a ânsia informativa (e lucrativa) e os interesses individuais dos envolvidos.
Para tanto, faz-se necessária a aplicação de uma metodologia que propicie o bom desenvolvimento do assunto, baseada em pesquisas bibliográficas, no entendimento jurisprudencial, bem como em artigos diversos que versem sobre o tema em estudo, a fim de compreender, de fato, o assunto e quais interesses os cercam.
1. Abordagem constitucional
A princípio, para que se possa analisar qualquer questão que envolva os direitos fundamentais, faz-se mister considerar, em linhas gerais, a estrutura e o significado de tais direitos na ordem constitucional.
Na lição do renomado doutrinador constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes, a Constituição é “a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos poderes públicos, forma de governo e aquisição do poder, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres do cidadão”.[1]
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao fazer essa distribuição de direitos do cidadão, dedicou o Capítulo I do seu Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), aos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, outorgando especial significado aos direitos individuais dos cidadãos, ao gravá-los como cláusulas pétreas, incluindo-os no rol do §4º do art. 60, garantindo, assim, que nenhuma proposta de emenda constitucional tendente a abolir tais direitos individuais seja objeto de deliberação, bem como ao conferir-lhes eficácia vinculante imediata, nos termos do §1º do seu art. 5º.
Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, outorgam a seus titulares a possibilidade de impor seus interesses em face de órgãos obrigados, além de poderem ser exercitados e oponíveis erga omnes. Já como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, tais direitos formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático.[2]
É nesse núcleo constitucional que se encontra o objeto do presente trabalho, já que a Constituição consagrou tanto a liberdade de informação quanto o direito à privacidade dentre os direitos fundamentais dos cidadãos.
Cláudio Luiz Bueno de Godoy, em sua obra A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade, assevera que “a liberdade de informação, em lato senso, compreende tanto a aquisição como a comunicação de conhecimentos”, compreendendo, pois, o direito de estar informado (direito à informação) e o direito de ter e compartilhar informação (direito à comunicação).[3]
A Constituição Federal, já no inciso IV, do art. 5º, consagrou a liberdade de manifestação do pensamento como direito fundamental do indivíduo, e, mais adiante, nos incisos XIV e XXXIII do mesmo artigo, contemplou, já sob feição coletiva, o direito à informação.[4] Além desses dispositivos, a liberdade de informação é assegurada, também, no inciso IX, que garante a liberdade de comunicação, independente de censura ou licença, bem assim no artigo 220 e seus parágrafos 1º e 2º, que apontam a defesa das liberdades de informar e de ser informado.
Já o direito à privacidade é expresso no inciso X do art. 5º, que declara serem invioláveis a intimidade e a vida privada, entre outros direitos da personalidade, assegurando o direito à indenização por qualquer dano decorrente de sua violação.
Neste ponto, convém assinalar que será adotada no presente trabalho a expressão direito à privacidade, em sentido amplo, abrangendo as manifestações da intimidade e da vida privada, previstas no art. 5º da Carta Magna, visto que tal dispositivo constitucional, ao declarar serem invioláveis a intimidade e a vida privada, põe em discussão a questão de que a intimidade e a vida privada são direitos diversos.
Analisando a controvérsia, José Afonso da Silva assevera que, “de fato, a terminologia não é precisa. Por isso, preferimos usar a expressão direito à privacidade, num sentido genérico e amplo, de modo a abarcar todas essas manifestações da esfera íntima, privada e da personalidade, que o texto constitucional em exame consagrou”.[5]
Bueno de Godoy, menciona que a doutrina “procurando superar a dúvida suscitada pelo dispositivo constitucional, adota a expressão direito à privacidade, em sentido amplo, abrangendo todas as manifestações da vida privada e íntima das pessoas”.[6]
Na mesma esteira, Luís Roberto Barroso, sustenta que “a intimidade e a vida privada estariam representadas em esferas distintas, compreendidas no conceito mais amplo de direito de privacidade”, aduzindo, ainda, que a intimidade estaria relacionada a um círculo mais restrito de fatos relacionados exclusivamente ao indivíduo, ao passo que a vida privada diria respeito a um espaço mais amplo e abrangente das relações sociais. [7]
Além da aceitação doutrinária do termo, há sinais de sua adoção também pelos juristas brasileiros, podendo ser constatada na jurisprudência recente dos tribunais superiores.
O Supremo Tribunal Federal utiliza-se, freqüentemente, do termo privacidade nas vezes em que trata da temática. Vide, por exemplo, o Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 655298[8], em cuja ementa lê-se: “O sigilo bancário, espécie de direito à privacidade garantido pela Constituição de 1988 […]”. Já na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça encontra-se idêntica tendência, podendo ser evidenciada no Recurso Especial nº 58101/SP[9], no qual o eminente Ministro César Asfor Rocha assevera: “É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem”.
Contudo, apesar de não haver dúvida quanto à magnitude dos direitos fundamentais na vida dos cidadãos, eles não podem ser considerados absolutos, conforme sustenta Raquel Denize Stum, ao afirmar que “a função social dos direitos fundamentais os torna limitáveis”[10], limitação essa que só pode advir do texto da própria Constituição, de dispositivos de igual força valorativa.
Assim, quando um princípio constitucional entra em cena para impor limites à aplicação de outro de mesma índole, pode ocorrer uma certa tensão entre tais princípios.
Geraldo Fragoso de Oliveira Júnior, nesse passo citando Marcelo Novelino, registra que “a constituição não possui dispositivos desprovidos de caráter normativo. Assim sendo, pode haver, diante de casos concretos, o fenômeno de tensão entre duas ou mais normas constitucionais”.[11]
Para a resolução de conflitos dessa natureza, utiliza-se o procedimento denominado ponderação de interesses, por meio do qual dois princípios são colocados em uma balança imaginária.
E é exatamente o que ocorre quando a liberdade de informação é confrontada com o direito à privacidade. O entendimento é que essas normas de direitos fundamentais devem ser mantidas, de forma a não se eliminar nenhuma delas do texto da Constituição, operando-se, apenas, uma harmonização de interesses no concreto.
Complementa Stum que “princípios que se chocam produzem conflito, não implicando a eliminação do sistema, justamente porque nesse caso trata-se do conteúdo de uma norma e não do espaço ocupado por ela”, de modo que a solução deve ser encontrada através de métodos que visem ao equilíbrio entre os princípios conflitantes, utilizando-se, assim, de outros princípios, como os da proporcionalidade, da razoabilidade e da necessidade, pois tal solução não obedece a uma ordem hierárquica pré-estabelecida de valores constitucionais. As normas constitucionais possuem o mesmo valor quando em abstrato, a ocorrência de um caso concreto é que põe em evidência o conflito.[12]
Dessa forma, somente diante de um caso concreto em que a liberdade de informação se contraponha ao direito à privacidade do indivíduo é que deverá o operador do direito utilizar-se de um juízo de ponderação, procurando uma solução que se ajuste àquele caso concreto, levando em conta a unidade da Constituição, fazendo uma interpretação restritiva que deve ser verificada casuisticamente.
Importante ressaltar uma exceção, prevista na própria Constituição, em que a técnica de ponderação de interesses não se aplica quando confrontados dois direitos fundamentais. Ela não pode ser aplicada quando o antagonismo se der, no caso concreto, entre o direito à intimidade, uma das vértices do direito à privacidade, e a liberdade de informação jornalística, mas tão-somente nos casos em que a divulgação da notícia estiver protegida sob o manto do interesse público, haja vista o disposto no inciso IX do art. 93 da Constituição Federal.
É o que se pode observar na obra de Manoel Jorge e Silva Neto, quando o autor afirma que a ponderação de interesses não será aplicada “quando em colisão o direito à intimidade e a liberdade de informação jornalística, cuja ponderação, após a EC nº 45/04, foi substituída pela divulgação da notícia quando houver interesse público a determinar a sua veiculação, consoante determina o art. 93, IX”.[13]
2. Aspectos da Liberdade de Informação
Com o advento da Constituição de 1988, a liberdade de informação foi contemplada como em poucos países no mundo.
Em um primeiro momento, essa liberdade se revela pelo direito que o indivíduo tem de informar, de exteriorizar sua opinião, conforme estatuído no inciso IV do art. 5º da Constituição da República, consagrando-a, assim, como um dos direitos fundamentais do cidadão.
Mas, é certo que a tanto não se resume a liberdade de informação, visto que ela “configura, ainda, um direito coletivo, porque inclui o direito de o povo ser bem informado”[14]. Tal idéia é extraída dos incisos XIV e XXXIII do mesmo artigo 5º, que contemplam o direito à informação já sob sua feição coletiva.
Esse duplo aspecto da liberdade de informação concentra-se no próprio conceito que se vem reconhecendo à informação. Segundo José Afonso da Silva, amparado na lição de Albino Greco, deve-se entender por informação como sendo “o conhecimento de fatos, de acontecimentos, de situações de interesse geral e particular que implica, do ponto de vista jurídico, duas direções: a do direito de informar e a do direito de ser informado”[15]. Além disso, a informação contribui para a propagação de conhecimento e, por conseguinte, para a formação dos indivíduos.
O estabelecido nas supramencionadas normas constitucionais complementa-se, ainda, com o disposto no art. 220 da Carta de Princípios, que preceitua que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”, bem como no seu §1º, que determina que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, e, também, no §2º do mesmo artigo que preceitua ser vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. É a liberdade de informação jornalística, ou liberdade de imprensa, tão cara aos sistemas democráticos e, por tal razão, objeto de explícita referência no texto constitucional.[16]
Aliás, faz-se importante frisar que, hoje, a palavra informação tem um sentido mais amplo que imprensa.
Na lição de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, em sua obra Liberdade de informação e o direito difuso à informação verdadeira, “o conceito de imprensa evoluiu para dar lugar à informação, que substitui aquele, incorporando todo o objeto dos veículos de comunicação”.[17]
Nesses termos, tem-se a liberdade de informação jornalística, ou seja, a informação e a notícia através dos meios de comunicação antigos e modernos, constituídos pela imprensa falada, escrita e televisada, e, ainda, através da internet ou intranet.
Essa liberdade da imprensa das empresas noticiosas e dos meios de divulgação e de informação decorre de um princípio maior e constitucionalmente assegurado, que é o da livre manifestação do pensamento, estatuído, como já visto, no art. 5.º, inciso IV, da Carta Magna, e firmado como direito e garantia fundamental.
Tem-se, ainda, como garantia à liberdade de informação, a Lei nº 5.250 de 1967, conhecida como a Lei de Imprensa, que, em seu art. 1º, garante que “é livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer”.
É fundamental observar que tais preceitos, ao mesmo passo que garantem a liberdade de manifestação do pensamento e, em resumo, a liberdade de noticiar e de informar, afastam os óbices pertinentes aos meios de divulgação, impedindo a dependência da notícia a alguma condição e proibindo qualquer tipo de censura, seja prévia ou posterior. Aliás, o mesmo art. 5.º da Constituição consagrou, no seu inciso IX, a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.[18]
Certo é que, sem acesso à informação, hoje globalizada, o indivíduo, isolado, alheio aos acontecimentos, não tem como eficazmente desenvolver sua personalidade e sua cidadania. Por isso mesmo é que a liberdade de imprensa continua a representar um direito individual, por Javier Plaza Penades denominado um “direito de liberdade”[19], malgrado, a tanto não se resuma.
O direito à informação está diretamente ligado ao conceito de cidadania. Toda pessoa tem direito à informação, conforme o conceito de liberdade plena afirmado pela Constituição Federal de 1988, assegurando-se aos cidadãos o conhecimento de atos, de acontecimentos, de situações de interesse geral e particular, bem como o de obter certidões, de ser comunicado da existência de processos e procedimentos contra si, de ter acesso aos registros públicos e de registros relativos a sua própria pessoa.[20]
Constata-se, assim, que a liberdade de informar conquistou o seu devido lugar na categoria dos direitos fundamentais. Essa liberdade, contudo, não se configura como um direito absoluto, visto que a própria Constituição, como não poderia deixar de ser, proíbe, expressamente, o abuso de tal direito.
Ainda na lição de Grandinetti, “o postulado liberal da livre informação só garante que o informador noticie o que ele quiser noticiar, da maneira como quiser e no momento que entender oportuno”.[21]
Não é suficiente, pois, que o Estado consagre e garanta a liberdade de informação, haja vista que “a liberdade de informar não obriga a nada além de um dever de abstenção, consistente em não impedir que ela flua desembargadamente”[22]. Ele deve, também, proporcionar meios para que afastem os abusos no exercício do direito dessa liberdade, tendo em vista que, na lição de Celso Antônio Pacheco Fiorillo, “a veiculação dos fluxos informativos […] deverá atender sempre às necessidades das pessoas humanas em face dos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito informados nos incisos II e III do art. 1º: cidadania e dignidade”.[23]
Ficou consagrado, então, o entendimento de que tal liberdade, embora garantida por preceito constitucional, não se constitui em um direito absoluto e ilimitado “devendo ser exercida com consciência e responsabilidade, respeitando outro valores também importantes e igualmente protegidos”.[24]
Tal entendimento pode ser constatado no próprio art. 220, §1°, do texto constitucional, que estabelece alguns limites à liberdade de informação, como a vedação do anonimato, o direito de resposta, a indenização por danos materiais e morais, bem como os direitos à honra e à privacidade (intimidade e vida privada), ficando evidente que “a liberdade de informação, no direito brasileiro, só pode ser limitada pela própria Constituição”.[25]
3 Considerações sobre o Direito à Privacidade
Atendendo-se aos objetivos deste estudo, vale reiterar que tomar-se-á a expressão direito à privacidade como um conceito geral, englobando os direitos à intimidade e à vida privada.
Utilizar o termo privacidade, conforme outrora exposto, parece a opção mais razoável e eficaz. O termo é específico o suficiente para distinguir-se dos outros termos com os quais, eventualmente, deve medir-se, como a imagem, honra ou a identidade pessoal, além de ser claro bastante para especificar seu conteúdo, o efeito da sua atualidade. Tal escolha não surge, apenas, da fragilidade das demais. Ela revela-se por si só a mais adequada, pois consegue unificar os valores expressos pelos termos intimidade e vida privada.[26]
Dentre as garantias fundamentais do indivíduo, albergadas constitucionalmente no art. 5º da Magna Carta, encontram-se positivados tais direitos, os quais, como direitos da personalidade, podem ser vislumbrados como elementos da integridade moral de cada ser humano.[27]
O Código Civil de 2002 também se preocupou em tutelar o direito à privacidade, determinando a proteção à vida privada em seu artigo 21, in verbis: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Cláudio Luiz Bueno de Godoy, nesse contexto, amparado na lição de José Afonso da Silva, considera a privacidade como sendo “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo quem, quando, onde e em que condições, sem isso poder ser legalmente sujeito”.[28]
O direito à intimidade, quase sempre, é considerado como sinônimo de direito à privacidade. Nos termos da Constituição, contudo, é plausível a distinção existente entre esses conceitos, já que o inciso X do art. 5º separa a intimidade da outra manifestação da privacidade da pessoa: a vida privada.[29]
A tutela constitucional integrou tais direitos num único articulado, declarando “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, erigindo, expressamente, esses valores humanos à condição de direitos individuais.
Fê-lo, porém, mencionando, separadamente, a intimidade e a vida privada. Isso, segundo alguns autores, a fim de preservar a distinção doutrinária que, de fato, existe entre os conceitos. Elimar Szaniawski, por exemplo, sustenta que a Constituição, ao incluir em seu texto a proteção dos direitos à intimidade e à vida privada como dois institutos ou tipificações diferentes, manteve, corretamente, as distinções doutrinárias existentes entre proteção à vida privada e à intimidade[30]. Já para outros, ao revés, a Constituição, apenas, tencionou tornar mais ampla possível a proteção à privacidade, sem se ocupar, propriamente, do reconhecimento de qualquer diferença entre a intimidade e a vida privada. É o que se pode extrair da lição de Pedro Frederico Caldas, para quem a Carta Magna, ao usar as expressões intimidade e vida privada, quis, somente, impedir que “divisões de conceitos elaborados pela doutrina permitissem que fração ou terreno demarcado da vida das pessoas não fosse abrangido pela proteção constitucional”. [31]
Na realidade, quando a doutrina procura diferenciar a vida privada da intimidade, estabelece-se verdadeira relação de gênero e espécie entre os conceitos. De forma que a intimidade fica considerada como um núcleo mais restrito da vida privada.
Essa orientação, a rigor, reflete a chamada teoria dos círculos concêntricos, na qual a intimidade, menos ampla, seria um círculo com raio menor do que a vida privada, muito embora a fronteira entre esses círculos não se revele sempre nítida e fixa, cabendo à jurisprudência demarcá-la, na apreciação dos casos concretos.[32]
Para Jean Carbonnier, “enquanto a vida privada é, de maneira mais ampla, o próprio modo de vida da pessoa, sua intimidade encerra uma esfera reservada a impor que os outros a deixem tranqüila”. [33]
Partindo dessa premissa, pode-se fazer um estudo mais aprofundado acerca dos conceitos de vida privada e intimidade.
Em veemente manifestação, que ilustra todo o seu pensamento, José Afonso da Silva, em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, ensina que a vida privada, em última análise, integra a esfera íntima da pessoa, como conjunto de modo de ser e viver, como direito de o indivíduo viver sua própria vida. O autor parte da constatação de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior. A vida exterior envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, podendo ser objeto de pesquisas e divulgações de terceiros, vez que é pública. A vida interior, que se debruça sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua família, sobre seus amigos, é a que integra o conceito de vida privada, inviolável nos termos da Constituição. [34]
Noutro eito, a intimidade pode ser considerada como uma “privacidade qualificada, na qual se resguarda a vida individual de intromissão da própria vida privada” [35], reconhecendo, assim, que a própria vida em família, por vezes, pode vir a violar um espaço que o titular deseja manter impenetrável mesmo aos mais próximos, que compartilham consigo a vida cotidiana.
Ainda na lição de José Afonso da Silva, neste passo citando René Ariel Dotti, a intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do indivíduo na qual ele tem o poder legal de evitar os demais, salientando, ainda, que esse conceito é semelhante ao de Adriano de Cupis, que entende a intimidade como “o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento de outrem de quanto se refira à pessoa mesma. Abrange, nesse sentido mais restrito, a inviolabilidade de domicílio, o sigilo da correspondência, o segredo profissional”. [36]
Não resta dúvida que, ao estatuir que a casa é asilo inviolável do indivíduo, a Constituição Federal está reconhecendo que o indivíduo tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana. A casa como asilo inviolável comporta o direito de vida doméstica livre de intromissão estranha. Já o sigilo da correspondência alberga a proteção dos segredos pessoais, que dizem respeito, apenas, aos correspondentes, e o segredo profissional obriga a quem exerce uma profissão regulamentada, em razão da qual há de tomar conhecimento do segredo de outra pessoa, a guardá-lo com fidelidade. O titular do segredo é protegido pelo direito à intimidade, pois o profissional, médico, advogado e também o padre-confessor, por exemplo, não podem liberar o segredo, já que, assim agindo, estarão devassando a esfera íntima da qual tiveram conhecimento, ficando sujeitos às sanções civis e penais, pela violação daquele direito.[37]
Acerca do conceito geral de direito à privacidade, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre as controvérsias pertinentes ao direito individual de pessoas famosa.
Qualquer pessoa, por mais pública que seja, tem o direito à privacidade, de forma que sua intimidade e vida privada não possam ser devassadas pelos órgãos da imprensa. Por exemplo, mesmo para um notório político, sua família, sua vida familiar, seus hábitos íntimos, seu cotidiano dentro de casa, não podem ser divulgados. O que pode ser divulgado é a parte de sua vida de domínio público, como as atividades políticas, mas não a parte privada, desconhecida do grande público.[38]
A esfera da inviolabilidade ao direito à privacidade, enfim, é ampla, pois “abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome, imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo”.[39]
4 Colisão de Direitos Fundamentais
Para um melhor entendimento do tema do presente trabalho, faz-se mister esclarecer o caráter principiológico dos direitos fundamentais.
Tais direitos, a rigor, expressam-se sob a forma de regras, tendendo, com isso, a proporcionar maior proteção a seus titulares. Não perdem, contudo, sua essência de princípios, chamados na doutrina de princípios-garantia, mas cuja fonte está no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, tomada, essa sim, como valor máximo do ordenamento jurídico pátrio.[40]
Sobre o ponto, merece referência o ensinamento de Suzana de Toledo Barros, para a qual “os direitos fundamentais, mesmo quando expressos sob a forma de regras, reconduzem-se a princípios, tendo em vista o valor ou bem jurídico que visam proteger”. [41]
Conseqüentemente, o enquadramento dos direitos fundamentais (já explicitados como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico) como princípios, reforça sua carga valorativa, haja vista que estes “estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento”.[42]
Diante disso, o fenômeno do conflito de direitos fundamentais deve ser estudado no campo da colisão de princípios constitucionais.
Pois bem, o fato de a Carta Magna constituir um sistema aberto de princípios já insinua que podem existir conflitos entre seus princípios estruturantes. Daí, deve-se reconhecer que existem momentos de tensão ou antagonismos entre os vários princípios constitucionais e a necessidade de aceitar que “os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma lógica do tudo ou nada, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu peso e as circunstâncias do caso”.[43]
Essa “lógica do tudo ou nada” é aplicada em relação às regras. Para essas normas, se a hipótese em abstrato de incidência de uma regra é preenchida, há de se escolher um dos dois caminhos: ou a regra é válida e a conseqüência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida.
Ou seja, quando uma regra vale, então é determinado fazer, exatamente, o que ela exige, nada mais e nada menos, uma vez que elas “constituem normas cujas premissas são, ou não, diretamente preenchidas, e, no caso de colisão, será a contradição solucionada, seja pela introdução de uma exceção à regra, de modo a excluir o conflito, seja pela decretação de invalidade de uma das regras envolvidas”.[44]
No ensinamento da doutrina, ocorrendo um conflito de regras, há que ser utilizado, normalmente, um dos critérios consagrados para solução de antinomias jurídicas, quais sejam, os critérios cronológico, hierárquico ou da especialidade.
Pelo critério cronológico, considerando duas normas de mesma natureza, ou seja, duas normas gerais ou duas normas especiais, deve prevalecer a norma mais recente; pelo da hierarquia, da mesma forma, considerando duas normas gerais ou duas normas especiais, deve prevalecer a norma de maior grau hierárquico; pelo critério da especialidade, considerando duas normas de mesma hierarquia, a norma especial prevalece sobre a norma geral.[45]
Na análise da solução de conflitos entre princípios, porém, acontece algo diverso.
Nessa hipótese, o conflito existente apresenta-se entre normas de mesma hierarquia, criadas no mesmo instante e de conteúdo tal que não se permite dizer que uma seja especial em relação à outra, como no caso dos direitos fundamentais, não se podendo, assim, utilizar nenhum daqueles três critérios comumente utilizados no conflito entre regras.
O modo como é resolvida essa espécie de tensão é umas das características que distinguem os princípios das regras, já que “enquanto no conflito entre regras é preciso verificar se a regra está dentro ou fora de determinada ordem jurídica (problema do dentro ou fora), o conflito entre princípios já se situa no interior desta mesma ordem (teorema da colisão)”.[46]
Luis Roberto Barroso ensina que, ao contrário das regras, comandos de definição de natureza biunívoca, ou seja, que só admitem duas espécies de situação, apresentando-se válidas ou inválidas, os princípios se comportam de maneira diversa. Como comandos de otimização que são, pretendem ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo, contudo, aplicação mais ou menos ampla de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Permanecem, pois, no sistema, mesmo quando competitivos, vocacionados ao conflito, reclamando, nessa hipótese, um nível de equilíbrio, revelado por um critério de ponderação de interesses.[47]
Dessa forma, o desafio que se impõe é conciliar segurança e previsibilidade metodológicas com a fluidez e a plasticidade que devem estar presentes no momento de solucionar antinomias entre princípios constitucionalmente protegidos. E é utilizando-se da técnica de ponderação de interesses que será possível alcançar essa conciliação.
Mas o que vem a ser a “técnica de ponderação de interesses”?
No imaginário social, a idéia de ponderação sempre esteve ligada à noção de justiça. Basta lembrar, conforme Daniel Sarmento, que “o tradicional símbolo da justiça é uma deusa, com os olhos vendados, carregando uma balança, através da qual ela pode pesar e comparar – ponderar, em suma – direitos, argumentos e interesses”. [48]
Na firme lição de Jorge Manoel e Silva Neto, em sua obra clássica de direito constitucional, “a ponderação é técnica de decisão que se utiliza quando há colisão de princípios ou de direitos fundamentais”, funcionando como alternativa às técnicas tradicionalmente utilizadas na colisão entre normas, vez que elas não se mostram como a solução mais adequada para a hipótese, “simplesmente porque o sistema constitucional torna possível a escolha por duas ou mais normas que são conflitantes entre si”.[49]
Corroborando o conceito, pode-se citar, ainda, a lição de Suzana de Toledo Barros, para quem a ponderação trata-se de “técnica pela qual se concretiza o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que tende, em caso de colisão de direitos fundamentais, a estabelecer entre eles uma relação de precedência no caso concreto, sempre mercê da ponderação, que está em sua base”.[50]
Certo é, porém, que teoria da ponderação de interesses, não passou, sempre, imune a críticas. Uma delas, a de que esse juízo poderia representar perigo na relação entre preceitos constitucionais e outros bens jurídicos.
Nesse contexto, defendeu-se, por exemplo, a adoção do critério da concordância prática para resolução dos conflitos entre princípios, em que, segundo Costa Andrade, há de “estabelecer-se limites a ambos os direitos, por forma a alcançar-se o saldo mais favorável, segundo as circunstâncias do caso concreto”. [51]
A verdade, entretanto, como se pode abstrair das palavras de Nuno e Souza, é que a teoria da concordância prática, pela qual se busca a coordenação entre os direitos fundamentais e as limitações que a eles se oponham, não deixa de se tratar de um específico problema de ponderação de bens, uma vez que, no caso concreto, um direito tem de recuar, ou não, perante outros direitos fundamentais.[52] Assim sendo, “a concordância prática imporia uma específica ponderação de direitos de índole constitucional, levada ao caso prático em cognição”.[53]
Sob esse aspecto, cabe trazer à baila o ensinamento de Bueno de Godoy, pautado na lição de Edilson Pereira Farias, para quem a concordância prática, nos casos de colisão entre princípios, “tenderia a uma harmonização, de tal forma que […] um deles cedesse o mínimo, de modo a otimizá-los ambos, ao máximo, sempre tomadas juntas a unidade da Constituição e a proporcionalidade. De novo, a ponderação na base da solução do conflito”. [54]
Fácil é, pois, notar que solução não se resolve com a determinação imediata de uma prevalência de um princípio sobre outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, recebe a prevalência.
Assim, ao se estabelecerem os parâmetros para o adequado recurso à ponderação, o julgador deve, sempre, buscar um ponto de equilíbrio (ponderação) entre os interesses em jogo, de forma a atender aos seguintes imperativos: a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto; c) o benefício logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico. Além disso, a ponderação deve, sempre, orientar-se no sentido da proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, que, como já frisado, condensa e sintetiza os valores fundamentais que esteiam a ordem constitucional vigente.[55]
4.1. Liberdade de Informação versus Direito à Privacidade
Um dos casos mais clássicos de colisão de direitos fundamentais é o que envolve o conflito entre a liberdade de informação e o direito à privacidade.
Tais direitos são essencialmente conflitantes por estabelecerem diretrizes em direções opostas pois, conforme preleciona George Marmelstein, “os direitos de personalidade se orientam no sentido da proteção da esfera privada […]; já a liberdade de expressão segue o rumo da transparência, da publicidade, da livre circulação de informação, ou seja, caminha em direção totalmente contrária”.[56]
Na mesma senda, Manuel da Costa Andrade, acentua que a privacidade é um bem jurídico pessoal que carrega consigo, quando exposto o homem ao relacionamento social, intrínseca vocação conflitual com a liberdade de informação, fazendo-se mesmo “portadores duma imanente colisão de valores”.[57]
De fato, não são raras as circunstâncias em que, à veiculação de uma notícia, crítica ou opinião, se oponha a vedação da invasão da intimidade ou da vida privada da pessoa humana, principalmente com os recursos tecnológicos atualmente disponíveis, que permitiram um aumento vertiginoso e antes impensável da velocidade de informação. Além disso, “aparelhos de escuta telefônica, microcâmeras e gravadores, bem como toda sorte de parafernália, vêm roubando do indivíduo a garantia de sua intimidade, do direito de estar só”.[58]
A todo momento, vêem-se casos em que uma informação vem a detalhar aspectos pessoais do indivíduo sem seu consentimento.
Nessas hipóteses, é que surge o grave problema a ser resolvido, que é saber qual direito que deve prevalecer, já que se tem como certo que a liberdade de informação não pode violar o direito à privacidade, e vice-versa.
Imagine, por exemplo, a situação na qual uma revista de grande circulação resolva publicar matéria divulgando detalhes da vida privada de um famoso ator contra a sua vontade. Assim, haverá um conflito de dois valores: de um lado, ter-se-á a liberdade de expressão, elemento indispensável para o desenvolvimento das idéias e para a democracia; de outro lado, o direito à inviolabilidade da vida privada, valor básico para a dignidade da pessoa humana. Ambos os direitos estão protegidos pela Constituição, mas um dos dois terá que ceder diante do caso concreto.[59]
O primeiro ponto fundamental ao exame da questão está na consideração de que, entre tais direitos, não há relação de hierarquia. Conforme já visto, nenhum deles pode ser considerado absoluto.
Esse é o grande paradoxo que envolve a colisão entre os direitos ora em estudo: apesar de se situarem no âmbito dos valores mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, ocupando o ponto mais alto da hierarquia jurídica, podem eles ser restringidos no caso de o seu exercício ameaçar a coexistência de outros valores constitucionais.
Como é sabido, o art. 5º da Constituição Federal dá idêntica guarida ao direito à vida privada e à intimidade e, ainda, à livre manifestação do pensamento, ao acesso à informação e à livre expressão da atividade de comunicação. Já em seu art. 220, ao cuidar da comunicação social, a Carta Magna dispôs que nenhuma lei poderá constituir embaraço à plena liberdade de informação, observado o inciso X do art. 5º, que trata do direito à privacidade. Da mesma forma, porém, ressalvou os incisos IV, V, XIII e XIV, que cuidam, justamente, da liberdade de pensamento e de informação. Não se pode dizer, portanto, que, pela ressalva ao inciso X, a Constituição, no art. 220, tenha estabelecido menor gradação hierárquica da liberdade de imprensa em face do direito à privacidade. Sem contar que tal dispositivo é pertinente tão-só à elaboração da legislação ordinária.[60]
Na verdade, conforme sustenta Edilsom Pereira Farias, esse preceito deve ser compreendido como um “limite externo à liberdade de informação, de modo a nortear a atividade do legislador infraconstitucional, mas sem que, por isso, se tenha estabelecido gradação hierárquica entre os direitos da personalidade e a liberdade de imprensa” ou, ainda nas palavras do ilustre doutrinador, “sem que, no caso de colisão entre eles, não se tenha verdadeiro conflito de iguais direitos fundamentais”.[61]
Além disso, é forçoso observar que não existe qualquer ordem cronológica de sua previsão normativa, de forma a se chegar à conclusão, de que não há lugar, no caso, para se socorrer ao critério da lex posterior derogat legi priori, de modo que, diante de duas normas do mesmo nível e escalão, a última prevaleça sobre a anterior, e que, também, não poderá o intérprete recorrer à máxima lex specialist derrogat legi generali, haja vista que nenhum desses direitos contempla previsão especial que, por essa especialidade, sirva a derrogar o outro, de conteúdo geral. [62]
Daí, inferir-se que, para a solução de tal conflito, não se pode recorrer àqueles critérios que tomam por base a hierarquia, cronologia ou especialidade dos dispositivos que os contemplam, de modo a permitir concluir-se que, no caso da colisão de que ora se cuida, “não se tem em vista o fenômeno da simples antinomia aparente de normas, solucionável, como se sabe, por meio daqueles critérios ou princípios jurídico-postivos”.[63]
Trata-se, em verdade, de uma antinomia real de normas e, nos ensinamentos de Maria Helena Diniz, “nas hipóteses de antinomia real deve-se recorrer a uma solução ou interpretação eqüitativa, que tenha presente fatos e valores contemporâneos à realidade em que se insere o conflito a ser solvido”.[64]
Vê-se, então, que a hipótese de contradição entre tais direitos trata-se de um típico caso de colisão entre princípios constitucionais, que deverá ser resolvida de modo que um ceda diante do outro, conforme o caso concreto e no mínimo possível, mas não se excluindo reciprocamente, como aconteceria se se tratasse de simples regras.
Observa-se, contudo, que todas as situações envolvendo esse fenômeno são de complexa solução e tudo vai depender das peculiaridades do caso concreto e das argumentações apresentadas pelas partes do processo judicial. Daí porque é preciso partir para a ponderação para solucionar esse conflito.[65]
Serão sopesados, então, conforme a já explicitada técnica da ponderação de interesses, os valores conflitantes, de forma que a solução penderá para um dos dois lados e, em alguns casos, deve ser considerado prevalente o direito à intimidade e, em outros, deve-se ter como prioritária a liberdade de informação.[66]
Ressalta-se, porém, que quaisquer restrições só serão admissíveis em caráter excepcional e na medida exata da necessidade e da proporcionalidade entre tais restrições e os direitos de serem amparados.
Sob o aspecto, em recente decisão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina[67] condenou emissora de televisão ao pagamento de indenização por danos morais, pela divulgação de fato íntimo e restrito ao âmbito familiar. A empresa jornalística, por outro lado, sustentou que a notícia se limitou a narrar fatos de interesse público, já que o caso dizia respeito à troca de bebês, que é considerada crime contra o estado de filiação. O relator entendeu que, na medida em que o direito à intimidade dos autores colide com a liberdade de informação, a solução para tal colisão deve ser “ponderada segundo a necessidade, adequação e razoabilidade em sentido estrito. Sob essa análise, verificou-se que a divulgação dos nomes e das imagens contribuiu apenas para devassar a intimidade familiar”.
Num sentido oposto, no qual prevaleceu a liberdade de informação, pode-se citar o caso da CPI da Pirataria , no qual Law King Chong, acusado de ser um dos maiores contrabandistas do país, ingressou com mandado de segurança perante o Supremo Tribunal Federal[68], pedindo medida liminar para impedir a transmissão televisiva do seu depoimento na referida CPI, fundamentando seu pedido com base na proteção de seus direitos à privacidade, à imagem e à honra. No caso, o Tribunal concluiu que deveria prevalecer o direito à informação, entendendo que proteção ao direito à privacidade e dos demais direitos de personalidade do interrogando deveriam ceder, temporariamente, em favor da liberdade de imprensa, permitindo a transmissão, ao vivo, do interrogatório.
Outro exemplo clássico é a contraposição entre o direito à intimidade de pessoas famosas e o direito à informação jornalística, na qual a ponderação deverá levar em conta o princípio da necessidade, que consiste no exame da necessidade real de divulgação da notícia.[69]
A problemática assume contornos de indiscutível importância prática quando se sabe que não são poucas as hipóteses em que pessoas famosas tiveram devassadas sua vida privada e sua intimidade.
Há de se sublinhar, no entanto, que a intimidade de pessoas que ocupam cargos públicos “merecem proteção mais débil, quando confrontadas com a liberdade de informação, desde que a informação e a exposição daqueles direitos sejam pertinentes ao exercício do cargo ocupado e indissociáveis da narrativa jornalística”[70]. E será precisamente com base no princípio da necessidade que não se dispensará mesmo tratamento ao direito à intimidade de um cantor, por exemplo, ao de um político. Isso porque, no que alude aos artistas em geral, não se evidencia necessidade de divulgação de fatos concernentes à sua vida afetiva, ou, ainda, aos seus hábitos, diferentemente do que ocorre com os detentores de mandato eletivo simplesmente “em virtude de a propagação ao conhecimento público de notícia sobre o comportamento de liderança política ser indispensável para que os eleitores submetam a confronto os seus atos com a imagem construída que lhe rendeu votos e mandatos”.[71]
Em síntese, a ponderação não passa de um dever de argumentar com transparência, forçando o julgador a expor, com ética e consistência, todos os motivos relevantes que o levaram a decidir em favor de um ou de outro princípio constitucional.[72]
Não se pode deixar de mencionar que, no que tange especificamente ao direito à intimidade em processos judiciais, não se aplicará a técnica da ponderação de interesses, por expressa previsão constitucional, quando a divulgação da informação estiver revestida de interesse público.
Isso porque, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, ficou assegurado, no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, que “o decreto de sigilo não poderá sopesar o direito à intimidade e à liberdade de informação quando o interesse público impuser a divulgação da notícia, devendo ser prestigiado, de modo absoluto, o direito individual à informação”.[73]
Sobre o ponto, Manoel Jorge e Silva Neto elucida que a razão por que falece fundamento para a utilização da técnica da ponderação de interesses é justamente o fato de que “não há, em rigor, qualquer colisão entre os direitos indigitados”, haja vista que a “ocorrência do pressuposto ao uso do método – colisão entre direitos fundamentais – não subsiste no particular”, pois a parte final do art. 93, IX, da Constituição, afasta, por completo, o direito da personalidade quando residir interesse público na divulgação do fato.[74]
Em resumo, presenciando in concreto o interesse público à informação, cederá o direito à intimidade em favor da liberdade de informação, afastando-se a técnica da ponderação de interesses para solucionar essa contingente contraposição, por existir previsão constitucional que desconfigura a ocorrência da colisão entre esses direitos.[75]
Assim, de tudo o que até aqui se expendeu, tem-se que a técnica da ponderação de interesses é uma atividade intelectual em que, diante da liberdade de informação e do direito à privacidade, o aplicador do direito escolherá qual deve prevalecer e qual deve ceder. E, talvez, seja justamente aí que resida o grande problema da ponderação: inevitavelmente, haverá, pelo menos, um parcial descumprimento de um desses dois direitos, visto que, “quando duas normas constitucionais colidem, fatalmente o juiz decidirá qual a que ‘vale menos’ para ser sacrificada naquele caso concreto”.[76]
Conclusão
Ficou demonstrado, após toda a análise dos fundamentos apresentados, que os direitos à liberdade de informação e à privacidade são igualmente resguardados pela Constituição Federal, e que, pela sua natureza e importância, são passíveis de entrarem em rota de colisão.
Também ficou claro que não se pode afirmar a prevalência, em abstrato, de um desses direitos sobre o outro, sendo certo que a vida privada e a intimidade dos indivíduos não podem ser violadas, injustificadamente, sob o mero fundamento da garantia da livre informação ou da liberdade de imprensa, e que tampouco a liberdade de informação pode ser restringida sob o argumento de que a pessoa humana tem direito absoluto à não divulgação de sua privacidade.
Ao se confrontar com a colisão de tais direitos, o aplicador do Direito deve proceder a uma análise do caso concreto, utilizando-se da técnica da ponderação dos interesses em jogo, baseando-se, sempre, nos princípios da proporcionalidade, da razoabilidade, da necessidade, e, sopesados os direitos, decidir qual a melhor solução para o caso em estudo.
A dificuldade, portanto, é, justamente, encontrar o ponto de equilíbrio, de modo a assegurar a aplicação de um direito sem violar, completamente, o outro, ou seja, qualquer abuso no exercício de um em detrimento do outro converte o ato legítimo no antecedente em ilegítimo no conseqüente e deverá ser combatido, de pronto, pela autoridade competente.
Não se pode olvidar, contudo, que a técnica de ponderação de interesses está distante de ser um modelo perfeito e acabado, mesmo porque não oferece, por si só, uma resposta segura e objetiva para os difíceis casos que envolvem direitos fundamentais.
Conclui-se, porém, que essa ponderação, na medida em que fornece ferramentas para aguçar nosso sentimento de justiça e bom senso, ainda é o melhor que se tem em matéria de interpretação dos direitos fundamentais, visto que conduz à harmonização dessas normas de igual dignidade constitucional, elidindo qualquer interpretação que leve à idéia de supremacia ou de exclusão de uma em relação à outra, permitindo, ainda, que o exercício do dever de prudência, de equilíbrio e de proporcionalidade, imponha aos interessados a obediência aos direitos constitucionais do seu semelhante, sem ultrapassar ou abusar do próprio direito, possibilitando, dessa forma, que as referidas normas, apesar de conflitantes, continuem aptas a realizar os fins a que se destinam, sem nunca renunciar, assim, aos princípios básicos emanados pela Carta Magna.
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