Concorrência sucessória entre o companheiro supérstite e os parentes colaterais do falecido: análise da inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002

Resumo: A preocupação primordial deste estudo é desenvolver a discussão sobre a inconstitucionalidade contida no artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002, a qual se mostra imprescindível para a concretização dos princípios da igualdade substancial, da dignidade da pessoa humana e da proibição do retrocesso social. Este artigo tem como objetivo analisar a concorrência sucessória entre o companheiro sobrevivente e os parentes colaterais do falecido, notadamente quanto ao tratamento discriminatório conferido ao companheiro quando comparado ao regramento aplicável ao cônjuge supérstite inserido no mesmo quadro fático. Realizou-se uma pesquisa bibliográfica, considerando as contribuições de autores como Flávio Tartuce, José Fernando Simão, José Joaquim Gomes Canotilho e Maria Helena Diniz, entre outros. Concluiu-se pela necessidade de declaração da inconstitucionalidade do inciso III do artigo 1.790 do Código Civil de 2002, o qual, além de inconstitucional, mostra-se injusto.

Palavras-chave: Companheiro. Colateral. Sucessões. Inconstitucionalidade.

Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Conclusão. Referências.

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Introdução

O presente trabalho tem como tema a análise da inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002, o qual regula a concorrência sucessória entre o companheiro supérstite e os parentes colaterais do falecido, notadamente no fato de que, ao autorizar a participação destes em concorrência com o companheiro, garantindo-lhes a maior parte do patrimônio deixado, o legislador infraconstitucional privilegiou, equivocadamente, laços sanguíneos remotos, em detrimento dos afetivos.

Nesta perspectiva, a questão se delimita, a saber, se na ausência de parentes sucessíveis, quais sejam descendentes e ascendentes, os parentes colaterais irão concorrer com o companheiro sobrevivente quanto aos bens deixados pelo falecido, conforme regramento do Código Civil de 2002, ou a totalidade dos bens ficará com o companheiro, à luz da Constituição Federal e do regramento específico do instituto da união estável?

Como sabido, é tarefa do legislador infraconstitucional complementar as normas programáticas instituídas pela Constituição Federal. E ele faz, nem sempre de maneira cuidadosa, nem sempre de forma atenta aos princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito. O Direito não se confunde com a lei, ao passo que esta é fonte do Direito, mas não o próprio Direito.

O artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002, é inconstitucional, na medida em que promove uma injustificável discriminação entre cônjuges e companheiros, bem como pelo inadmissível retrocesso social que proporciona, quando da análise de todo o regramento da união estável elaborado até então.

Nesse contexto, o objetivo primordial deste estudo é escancarar a inconstitucionalidade do dispositivo em apreço, aplicando-se ao caso a orientação legal e jurisprudencial anterior a vigência do diploma civilista. Deve-se proceder a uma interpretação sistemática do dispositivo, ao invés de literal, para que, dessa forma, sejam garantidos e efetivados os direitos dos companheiros quando da sucessão.

Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se do método dedutivo, tendo como base a doutrina até então elaborada, bem como a jurisprudência, essencial para visualizar o comportamento dos Tribunais brasileiros sobre o tema.

Desenvolvimento

Na vigência do Código Civil de 1916, e antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, aos companheiros não se destinava qualquer direito sucessório. Na ordem de vocação hereditária, nos termos do artigo 1.603 do Código Civil de 1916, constava apenas o cônjuge sobrevivente, o qual possuía direito sucessório após os descendentes e ascendentes. Na falta do cônjuge, sucediam os parentes colaterais.

Há que se destacar que os Tribunais Superiores iniciaram uma proteção específica aos companheiros, basicamente no que concerne a aspectos patrimoniais, admitindo-se a hipótese de partilha do patrimônio adquirido mediante esforço comum, o que culminou na edição da súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Observa-se, portanto, uma lenta evolução no regramento.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, reconheceu-se, enquanto entidade familiar, a União Estável entre homem e mulher, cabendo ao Estado a sua proteção, nos termos do artigo 226, §3°, o qual dispõe que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”.

Observa-se, desse modo, que inexiste no texto constitucional qualquer elemento discriminatório entre as instituições do casamento e da união estável, de modo que cônjuges e companheiros merecem tratamento igualitário naquilo em que se assemelham. Ambas as instituições representam um núcleo familiar afetivo, de caráter público e duradouro, não havendo hierarquia axiológica entre tais institutos.

De outro modo, por óbvio, a união estável não se equipara por completo ao casamento, na medida em que geram direitos e deveres distintos em determinadas situações. O que se combate é o tratamento discriminatório, exercido pelo legislador infraconstitucional, entre os institutos, sobretudo no direito sucessório, violando gravemente direitos fundamentais anteriormente assegurados aos companheiros.

Há que se ressaltar que o artigo 226, §3°, da Constituição Federal, é uma norma programática, isto é, limita-se a definir um programa a ser efetivado pelo Estado, qual seja a proteção da União Estável enquanto entidade familiar.

Maria Helena Diniz (1998, p. 371) define norma constitucional programática como sendo:

“[…] aquela em que o constituinte não regula diretamente os interesses ou direitos nela consagrados, limitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos Poderes Públicos como programas das respectivas atividades, pretendendo unicamente à consecução dos fins sociais pelo Estado”.

Assim sendo, com o objetivo de regular os direitos inerentes à União Estável e regulamentar a norma constitucional programática do artigo 226, §3°, foi criada a lei 8.971/94 e, na sequência, a lei 9.278/96. Com isso, os direitos dos companheiros eram quase que proporcionais aos direitos garantidos aos cônjuges, especialmente em matéria sucessória.

Conforme regramento do artigo 2° da lei 8.971/94, em caso de morte de um dos companheiros, a herança seria destinada aos descendentes, restando ao companheiro supérstite o usufruto vidual de ¼ desses bens. Na ausência de descendentes, os bens seriam destinados aos ascendentes, restando ao companheiro o usufruto vidual da metade dos bens. Na ausência de descendentes e ascendentes, ao companheiro se reservava a totalidade dos bens.

Atente-se ao fato de que a regra da lei 8.971/94, acima transcrita, reproduz idêntica regra conferida aos cônjuges quando da vigência do Código Civil de 1916, artigo 1.611, §1°.

Portanto, a legislação anterior ao Código Civil de 2002 garantia ao companheiro sobrevivente a totalidade da herança, afastando o direito à sucessão dos colaterais, quando da ausência de descendentes e ascendentes.

Apenas a título ilustrativo, o artigo 7°, parágrafo único, da lei 9.278/96, concedia ao companheiro o direito real de habitação, já garantido ao cônjuge sobrevivente no artigo 1.611, §2°, do Código Civil de 1916.

Logo, os direitos sucessórios concedidos por essas leis equiparavam, em matéria sucessória, cônjuges e companheiros.

Ocorre que, com a vigência do Código Civil de 2002, notadamente no disposto no artigo 1.790, III, a sucessão do companheiro foi regulamentada de forma diversa da do cônjuge, com regras próprias e que acabam por gerar entendimento conflituoso do instituto.

Em síntese, quando da sucessão do companheiro, devem ser visualizadas duas massas patrimoniais distintas: bens adquiridos na constância da união estável e bens anteriores à união estável ou havidos por doação ou herança.

No relativo aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, além da meação, quando da ausência de descendentes e ascendentes, o companheiro supérstite irá concorrer com os colaterais do falecido, conforme preconiza o artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002. Logo, o companheiro receberá 1/3 dos bens, ao passo que os colaterais receberão 2/3 da herança.

É o que se vê da literalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil, abaixo transcrito.

“Artigo 1.790, CC. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

III. Se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança”.

Acresce Oliveira (2003), ainda, que

“[…] para acentuar ainda mais o rebaixamento no trato sucessório do companheiro, sua concorrência na herança se restringe aos bens havidos onerosamente na constância da união estável, conforme a regra constante no caput do artigo 1.790. Ou seja, nada receberá o companheiro sobre os bens havidos pelo falecido a título de liberalidade e sobre aqueles adquiridos antes de iniciada a convivência. Quanto a estes, seriam particulares do falecido, de modo que seguiriam uma ordem de vocação hereditária sem a presença do companheiro, isto é, descendentes, ascendentes e colaterais”.

Portanto, em contrariedade ao tratamento sucessório destinado aos companheiros e, consequentemente, violando veementemente o que dispõe o regramento constitucional, o cônjuge sobrevivente ocupa o terceiro lugar na ordem de vocação hereditária, sendo-lhe atribuída a totalidade dos bens na ausência de descendentes e ascendentes, conforme regra contida no artigo 1.829, III, do Código Civil de 2002.

Conforme lição dos professores Flávio Tartuce e José Fernando Simão (2014), “o tratamento do cônjuge como herdeiro e do companheiro são absolutamente distintos. Essa diferença de tratamento tem por consequência rebaixar a família decorrente da união estável, como se ainda pudéssemos falar em uma família legítima”.

Evidente se mostra o retrocesso social do legislador ordinário superveniente, o qual reduziu o alcance da norma constitucional, devendo ser declarada a inconstitucionalidade flagrante do inciso III do artigo 1.790 do Código Civil de 2002.

Verifica-se que o Código Civil, quando tratou da sucessão dos companheiros, rebaixou o status do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge.

Injustificado retrocesso somente pode ser tido como inconstitucional. Em atenção aos princípios da igualdade substancial, da dignidade da pessoa humana e da proibição do retrocesso social, não há razão justificável para o Código Civil retroceder em termos de direitos, negando o caráter familiar da união estável, em clara valorização dos vínculos sanguíneos (colaterais), por mais remotos e frágeis que sejam, em detrimento de vínculos afetivos, os quais decorrem da convivência pública, contínua e duradoura, com o único propósito de constituir família.

Conforme preconiza Ana Luiza Maia Nevares (2004, p. 238),

“[…] não se justificam as diferenças, contudo, nos pontos em que se identificam a união estável e o casamento. Tal ponto, repita-se, é o afeto entre os seus membros e a função de promoção e desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem. A equiparação dos direitos dá-se em virtude do princípio da igualdade substancial, cuja aplicação garante a atuação do princípio fundador do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana”.

Ademais, aduz José Joaquim Gomes Canotilho (1998) que

“[…] são inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de esquemas alternativos ou compensatórios, traduzam-se na prática em uma anulação, revogação ou aniquilação pura e simples dos direitos sociais já realizados e efetivados”.

Evidencia-se, desse modo, o princípio da proibição do retrocesso social.

Convém, assim, conferir tratamento igualitário entre o companheiro sobrevivente e o cônjuge sobrevivente, na concorrência com os parentes colaterais, quando da ausência de descendentes e ascendentes. Ou seja, ao companheiro supérstite se deve atribuir a totalidade da herança, ao passo que o artigo 1.790, inciso III, do Código Civil, deve ser declarado inconstitucional, de tal modo que ofende a igualdade, a dignidade da pessoa humana e a proibição do retrocesso social. Ao invés de uma interpretação literal, deve-se proceder a uma interpretação sistemática do ordenamento, para que, dessa forma, os direitos dos companheiros sejam garantidos em sua máxima amplitude.

Há que se destacar, ainda, os projetos de lei 6.960/2002 e 4.944/2005, de autoria, respectivamente, dos deputados Ricardo Fiúza e Antônio Carlos Biscaia, os quais buscavam garantir os direitos sucessórios dos companheiros, deferindo-lhes a totalidade da herança, quando da ausência de descendentes e ascendentes. Todavia, tais projetos de lei foram arquivados.

No âmbito jurisprudencial, por fim, observa-se uma inclinação dos juízes e Tribunais, no âmbito do controle de constitucionalidade difuso ou incidental, de declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002, especialmente à luz do princípio da não reversibilidade dos direitos sociais, aplicando-se ao caso o artigo 2°, III, da lei 8.791/94 e o artigo 226, §3°, da Constituição Federal de 1988.

Conclusão

Diante do exposto, concluiu-se pela inconstitucionalidade do artigo 1.790, III, do Código Civil de 2002, aplicando-se na sucessão do companheiro, quando da ausência de descendentes e ascendentes, o regramento anterior ao disposto no artigo citado, isto é, ao companheiro sobrevivente será reservada a totalidade dos bens do falecido.

Evidente se mostra a ofensa aos princípios constitucionais da igualdade material, da dignidade da pessoa humana e da proibição do retrocesso social, de modo que não se deve colocar o companheiro em condições de extrema inferioridade quando comparado ao cônjuge, situado no mesmo quadro sucessório.

Ao companheiro devem ser reservadas garantias suficientes para o exercício de seus direitos, sobretudo aqueles já garantidos pela lei que rege o instituto, qual seja a lei 8.971/94, bem como em atenção à isonomia, constitucionalmente garantida, entre a união estável e o casamento.

Portanto, o artigo 1.790, III, do Código Civil, ofende o texto constitucional na medida em que não se permite a diferenciação entre entidades familiares assentadas no casamento e na união estável, naqueles aspectos em que se identificam, quais sejam o vínculo de afeto, solidariedade e respeito, orientadores da sucessão legítima.

Há que se entender que o companheiro exclui o colateral, ficando na terceira classe da vocação hereditária, ao passo que a família nuclear tem preferência em face da família externa. Deve-se combater a discriminação legislativa sofrida pela união estável nesse aspecto, ao passo que a isonomia entre a união estável e o casamento deve prevalecer, sob pena de um retrocesso social inestimável.

 

Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Livraria Almedina, Coimbra. 1998.
DINIZ, Maria Helena. In Dicionário Jurídico, Saraiva, São Paulo. 1998. Vol. 3, página 371.
NEVARES, Ana Luiza Maia. A tutela sucessória do cônjuge e do companheiro na legalidade constitucional, página 238. 2004.
OLIVEIRA, Euclides de. União Estável do concubinato ao casamento. 6° edição. São Paulo. Editora Método, 2003.
TARTUCE, Flávio. SIMÃO, José Fernando. Direito das Sucessões. 6° edição. 2014.

Informações Sobre o Autor

Tauser Ximenes Farias

Advogado


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Equipe Âmbito Jurídico

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