Marcelo da Silva Sousa Teixeira[1]
Resumo: O presente trabalho busca demonstrar o confronto existente entre a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e a Emenda Constitucional nº 96/2017. Analisou-se o pensamento doutrinário atual em relação ao tratamento dos animais e a jurisprudência da Suprema Corte brasileira acerca das manifestações culturais que submetam os animais à crueldade. Verificou-se que o Supremo Tribunal Federal considera que as referidas práticas são inconstitucionais. Verificou-se que a “Emenda da Vaquejada” permite que sejam realizadas práticas que sujeitem os animais à crueldade desde que sejam manifestações culturais. Constatou-se que a referida emenda é inconstitucional por ser contrária ao que previu o constituinte originário no art. 225, §1º, VII da Constituição Federal. Constatou-se também que a mesma é inequivocamente contrária à jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
Palavras-chave: Vaquejada. Emenda Constitucional. Jurisprudência.
Abstract: This paper seeks to demonstrate the confrontation between the consolidated jurisprudence of the Federal Supreme Court and Constitutional Amendment 96/2017. Current doctrinal thinking in relation to the treatment of animals and the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court regarding the cultural manifestations that subject animals to cruelty were analyzed. It was found that the Federal Supreme Court considers that these practices are unconstitutional. It has been found that the “Emenda da Vaquejada” allows practices that subject animals to cruelty as long as they are cultural manifestations. It was found that the aforementioned amendment is unconstitutional because it is contrary to what the original constituent provided for in art. 225, §1, VII of the Federal Constitution. It was also found that it is unequivocally contrary to the consolidated jurisprudence of the Federal Supreme Court on the subject.
Keywords: Vaquejada; Constitutional Amendment; Jurisprudence.
Sumário: Introdução. 1. A evolução do tratamento em relação aos animais. 2. Proibição de sujeição dos animais à crueldade. 2.1. Concepção biocêntrica. 2.2. Vedação constitucional. 3. Jurisprudência do STF sobre o tema. 3.1. Farra do boi. 3.2. Rinhas/Brigas de galo. 3.3. Vaquejada. 4. Emenda Constitucional nº 96/2017 4.1. Efeito backlash. 4.2. Inconstitucionalidade da EC 96. 4.3. Contrariedade da EC 96 frente ao posicionamento do STF. Conclusão. Referência bibliográficas.
INTRODUÇÃO
De acordo com o dicionário online, confronto está relacionado com comparação, o estabelecimento de um paralelo entre uma coisa e outra. Por isso este trabalho tem por objetivo demonstrar o confronto existente entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no tocante às manifestações culturais que envolvam maus tratos aos animais e a Emenda Constitucional n° 96/2017, pois há divergências entre estes dois institutos, sendo de relevante interesse realizar um paralelo entre eles.
Desde 1998 até os últimos anos várias ações, principalmente diretas de inconstitucionalidade, foram ingressadas no Supremo Tribunal Federal tratando das manifestações culturais que submetiam os animais a maus tratos. Em todas as suas decisões a Corte Suprema brasileira tem se posicionado pela inconstitucionalidade das referidas manifestações culturais. Inicialmente, em 1998, tratando da “farra do boi” afirmou que tal prática era discrepante da norma constitucional que resguarda os animais proibindo a prática de maus tratos, qual seja o art. 225, § 1º, inciso VII da Constituição Federal. Quanto às “rinhas/brigas de galo” afirmou que essa prática é incompatível e atentatória à Constituição Federal e que se revela verdadeiro ato de crueldade aos animais. Em decisão mais recente, de 2017, julgou inconstitucional uma lei cearense que regulamentava a “vaquejada” afirmando que tal prática também discrepa da Carta Magna.
Todavia, mesmo diante do posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, conforme o exposto acima, como uma forma de burlar o entendimento da Suprema Corte, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional n° 96/2017 que permite que exista manifestações culturais envolvendo animais, desde que haja legislação regulamentando-as. Tal emenda permite que leis com matérias que já foram julgadas inconstitucionais pelo STF possam novamente existir no ordenamento jurídico brasileiro.
Já existem em andamento duas Ações Direitas de Inconstitucionalidade contra a Emenda Constitucional n° 96/2017, quais sejam: ADI 5728, ajuizada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal; e a ADI 5772, ajuizada pelo Ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Ainda não há decisão em nenhuma das referidas ações, mas pelo posicionamento do STF, a expectativa é que a referida emenda constitucional seja julgada inconstitucional.
O trabalho inicia-se com uma análise da evolução do tratamento em relação aos animais, demonstrando que em tempos passados o pensamento dominante era antropocêntrico, dessa forma os seres irracionais eram vistos como meros objetos de serventia para o homem, não sendo resguardados de nenhuma forma, nem pela legislação, nem pelo senso comum.
Infelizmente para alguns ramos do Direito, como o Civil, os animais ainda são vistos como seres semoventes, tratados como bens. Para esse tipo de pensamento os mesmos são considerados apenas como seres que se movem, sem sensações. Todavia, para o ramo do Direito Ambiental a visão retromencionada tem sido deixada de lado para dar lugar à corrente que considera os animais como seres sencientes, ou seja, que considera os tais como seres capazes de sentir, de ter consciência. Consequentemente ao sujeitá-los a maus tratos os mesmos são submetidos ao sofrimento.
Com o antropocentrismo sendo superado, surge o biocentrismo que tem como objetivo proteger todas as formas de vida igualmente. O homem não mais é considerado como ser superior. Todos os seres são sujeitos de direitos, sendo dever do ser humano respeitá-los. O art. 225 da Constituição Federal é o principal instrumento constitucional de proteção do meio ambiente, o seu § 1º, inciso VII, ao proibir a submissão dos animais à crueldade revela uma inspiração biocêntrica.
Em seguida o trabalho demonstra a posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal acerca da sujeição dos animais à crueldade. Como já retromencionado nos parágrafos acima, o referido órgão tem se posicionado pela inconstitucionalidade de todas as práticas revestidas de manifestações culturais que sujeitem os animais a maus tratos. O STF tem afirmado, ao decorrer dos anos que as referidas práticas são discrepantes, incompatíveis e atentatórias à Constituição Federal e que as mesmas ferem o art. 225 da CF/88, principalmente o seu §1º, inciso VII.
Prosseguindo, é analisado o texto da Emenda Constitucional nº 96/2017 e suas repercussões. A referida emenda permite que animais sejam utilizados em práticas desportivas desde que as mesmas sejam consideradas manifestações culturais. Essa permissão dá margem a sujeição dos animais à crueldade pois a maioria das referidas manifestações culturais causam ferimentos nos animais ou até mesmo ocasionam o seu óbito.
A EC 96/2017 reflete uma insatisfação do Congresso Nacional, principalmente da bancada ruralista, com as decisões do STF que julgavam inconstitucionais as manifestações culturais que sujeitam os animais à crueldade. A promulgação dessa emenda foi uma reação congressista às decisões judiciais. Esse efeito é conhecido na doutrina estadunidense como backlash.
Verificou-se que a referida emenda é inconstitucional por ferir os ditames do constituinte originário previstos no art. 225, §1º, inciso VII, da Constituição de República, e ainda por atentar ao art. 60, § 4º, inciso IV, da CF/88, pois os direitos previstos no art. 225 tratam-se de direitos fundamentais os quais não podem ser abolidos/mitigados por emenda constitucional.
Por fim constatou-se que a Emenda Constitucional nº 96/2017 é frontalmente contrária ao posicionamento consolidado do STF sobre as práticas culturais que sujeitam os animais à crueldade e que a mesma não passa de um meio artificioso para burlar as decisões judiciais prolatadas pela Corte Superior brasileira.
Segundo Malgueiro [2019], antigamente a visão filosófica era completamente antropocêntrica, sendo assim o ordenamento jurídico estava permeado desta filosofia. O homem era o centro do ordenamento jurídico. Por ser o animal racional era considerado superior no ecossistema. Por esse motivo, durante muitos anos os animais foram considerados objetos ou produtos. Para o Código Civil brasileiro eles ainda são considerados como bens semoventes, tratados conforme o art. 82 do referido diploma legal.
Em meados do século XVII, com a evolução do pensamento filosófico, surgiu o Ecocentrismo, onde o ser humano faz parte do ecossistema e os outros serem são detentores de direitos e merecedores de respeito. Devido a esta evolução, o ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência têm passado por transformações ao longo dos anos. (MALGUEIRO, [2019]).
Tem-se entendido, na atualidade, que não só os seres humanos, mas também os animais, podem ser sujeitos de direitos e consequentemente objeto de proteção.
A este respeito:
“Para Edna Cardozo Dias a legislação ao proteger o animal dá a ele a qualidade de sujeito de direito, sendo assim, mesmo não possuindo a capacidade de autodefesa, o poder público e a sociedade são incumbidos constitucionalmente de tutelá-los. A Tutela dos animais caberia, portanto, ao Ministério Público” (DIAS, 2005, apud SCANDIUZZI, 2016).
No mesmo sentido, “é irrelevante a condição de animal humano ou não humano, para que esse ente seja titular de direitos, desvencilhando-se da anterior condição de objeto de direito ou da mais completa irrelevância jurídica” (OLIVEIRA, 2013, apud VIEIRA, 2014).
“Além da previsão constitucional (art.225) e das leis (ex. Lei 9605 de 1998), atualmente existem projetos de lei na Câmara dos Deputados de extrema importância para a proteção da fauna brasileira.” (AQUINO, 2012).
Sendo assim, percebe-se que não mais impera o pensamento de que os animais não racionais devem ser tratados como coisas ou objetos, mas, que os mesmos devem ser respeitados como sujeitos de direitos que são.
1.1. ANIMAIS COMO SERES SENCIENTES
Pelo motivo de serem sujeitos de direitos, os animais não devem ser considerados apenas como seres semoventes – nomenclatura alusiva principalmente a bens – mas primordialmente devem ser enxergados como seres sencientes – classificação a qual tendencia à sensibilização e consequentemente acarreta a proteção dos mesmos.
Nesse sentido, “Eles sendo semelhantes a nós, principalmente no aspecto do sistema nervoso, apresentando senciência, devem merecer uma mínima consideração. Inflingir-lhes dor, medo, stress é tão ultrajante quanto infligirmos dor, medo e stress em seres humanos” (DUTRA, 2015 apud RODRIGUES e SALES, 2018).
Sobre a senciência dispõe Luna (2008) que:
“De forma sintética é a capacidade de sentir, estar consciente de si próprio ou apenas do ambiente que o cerca. Não cabe aqui estabelecer uma discussão filosófica do termo senciência, mas sim das implicações práticas relacionadas ao fato inquestionável cientificamente de que pelo menos os animais vertebrados sofrem e são serem sencientes.”
Também dita sobre o tema o Promotor de Justiça Laerte Fernando Levai (2015), afirmando que:
“[…] os animais são seres sensíveis, capazes de sentir e de sofrer. Tal constatação, de relevante interesse jurídico, vai ao encontro do mandamento constitucional brasileiro que veda a submissão de animais a crueldade (artigo 225 par. 1º, VII, parte final) e ao dispositivo da Lei ambiental que criminaliza a prática de abusos, maus tratos, ferimentos e mutilações (artigo 32 da Lei 9.605/98). […]”
Ainda, para Gonçalves (2016) a senciência é a capacidade um animal ser estimulado tanto positivamente quanto negativamente, desfrutando dos benéficos e sofrendo pelos prejudiciais.
Com essas considerações vê-se que a proteção dos animais e a proibição de sujeitá-los à crueldade merece ainda mais destaque. À vista da vasta demonstração de que os mesmos não são objetos e sim seres que sentem e sofrem, fica claro a necessidade de salvaguardá-los.
2.1. CONCEPÇÃO BIOCÊNTRICA
Nos últimos aos tem surgido uma nova visão filosófica denominada biocentrismo – onde todas as formas de vida devem ser respeitadas. Tal corrente contrapõe o antropocentrismo – que colocava o homem como o centro e as outras formas de vida existiam apenas para servi-lo. Essa nova concepção tem influenciado diversos ramos do conhecimento, incluindo o Direito.
Oliveira (2017, p. 44) elucida brilhantemente sobre o tema:
“No biocentrismo, por outro lado, o homem não é superior aos outros seres vivos; mantém com eles uma relação de interdependência, de simbiose. Todos os seres vivos são igualmente importantes. O centro das relações não é, como no antropocentrismo, a humanidade, mas os seres vivos, humanos e não humanos. Essa concepção reconhece o valor intrínseco dos seres vivos, independentemente da utilidade ou interesse para a humanidade. O biocentrismo inspirou defensores da luta pela defesa dos animais, como seres sencientes (que sentem dor, angústia, depressão etc.)”. (grifos do autor)
Segundo as lições de Amado (2014) o biocentrismo rege-se pela valorização dos demais seres vivos, principalmente dos sencientes. Inspirada nessa corrente filosófica nasceu a defesa dos direitos dos animais, visando eliminar a visão dos animais como apetrechos dos homens e a fim de colocá-los como sujeitos de alguns direitos.
Segundo Rodrigues (2016) alguns instrumentos normativos brasileiros estão influenciados pela visão biocêntrica, o principal exemplo encontra-se na Lei n° 6.938/81. No seu livro o referido autor expõe da seguinte forma (2016, p. 61):
“O próprio conceito de meio ambiente adotado pelo legislador (art. 3º, I) extirpa a noção antropocêntrica, deslocando para o eixo central de proteção do ambiente todas as formas de vida. A concepção passa a ser, assim, biocêntrica, a partir da proteção do entorno globalmente considerado (ecocentrismo). Há, ratificando, nítida intenção do legislador em colocar a proteção da vida no plano primário das normas ambientais. Repita-se: todas as formas de vida.” (grifos do autor)
Scherwitz (2015) também ensina que a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – Lei n° 6.938/81 – é de inspiração biocêntrica, principalmente considerando-se a literalidade do art. 3° do referido diploma legal. Para a autora tal visão está relacionada com a ética no direito ambiental visando o resguardo de todas as formas de vida e da biodiversidade.
2.2. VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL
Expõe Abreu (2015) que a proteção normativa aos animais passou por muitas etapas. Na Irlanda, por volta de 1635, surgiu um dos primeiros instrumentos legais a fim de protegê-los. A referida proteção foi sendo ampliada até a Segunda Guerra Mundial quando a necessidade de produtos de origem animal aumentou e a retromencionada proteção foi mitigada.
Em um movimento de retomada da salvaguarda animal, em 1978 a UNESCO estatui a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, um dispositivo internacional de ímpar importância na proteção dos mesmos. No artigo 3°, “a” desta declaração está prevista a proibição de submissão dos animais a maus tratos e a atos cruéis. (ABREU, 2015)
No ordenamento jurídico pátrio, a própria Constituição Federal traz em seu art. 225, § 1°, VI a proibição de submissão dos animais à crueldade, senão vejamos:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
Marcelo Abelha Rodrigues (2016, p. 107) discorre sobre o assunto na sua obra da seguinte maneira:
“Assim, cuidou de proteger a fauna não apenas a partir de sua condição de microbem ambiental essencial na manutenção do equilíbrio ecológico (isso é, proteger sua função ecológica), mas também se preocupou expressamente com práticas que submetam os animais a crueldade. É claro que o bem-estar dos animais nada tem a ver com a função ecológica por eles desempenhada. Ainda assim, porém, mereceu expressa proteção constitucional essa perspectiva, altamente alinhada com uma visão biocêntrica do meio ambiente, que respeita a vida em todas as suas formas. (grifos do autor).”
Conforme Fabiano Melo Gonçalves de Oliveira (2017, p.88) “Não obstante a concepção antropocêntrica que permeia o art. 225 da CF, não se questiona que o inciso em comento é de inspiração biocêntrica, com a proteção da fauna e da flora contra as intervenções humanas que coloquem em risco sua existência ou provoquem crueldade.”
Ainda, Luís Paulo Sirvinskas (2018, p. 136) discorrendo sobre o tema, dita:
“Também não se admitirão as práticas cruéis aos animais da fauna. Crueldade é o ato de ser cruel, é o prazer em causar dor ou em derramar sangue. Sob o pretexto do incentivo às manifestações culturais, vinha sendo admitida nas práticas do rodeio, da farra do boi, da tourada etc. para satisfazer interesses econômicos e pessoais de uma comunidade. Com a decisão do STF sobre a proibição da farra do boi, abriu-se a oportunidade de proibir efetivamente qualquer prática que leve a crueldade aos animais, de um modo geral.”
Conforme o visto acima, detecta-se que o pensamento doutrinário dominante é no sentido da total proibição de práticas que submetam os animais à crueldade, vê-se que ao passar do tempo o direito ambiental está deixando de ter uma concepção antropocêntrica para andar por uma linha biocêntrica, preocupando-se não somente com o bem estar do ser humano, mas com o de todos os seres vivos.
Segundo Santos (2001, p. 137) jurisprudência trata-se de um “Conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito, segundo Carlos Maximiliano; conjunto de decisões uniformes dos tribunais […].”
“A jurisprudência pode ser entendida como o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, proferidas para a solução judicial de conflitos, envolvendo casos semelhantes.” (GARCIA, 2015, p.78)
“[…] O primeiro sentido que indicamos foi o da jurisprudência enquanto conjunto de decisões convergentes, tomadas pelos órgãos do Poder Judiciário, que julgam reiteradas vezes a mesma matéria e fixam uma determinada linha de interpretação […].” (COSTA, 2001)
De acordo com Garcia (2015), registra-se que a jurisprudência deve possuir determinada estabilidade, não podendo causar mudanças bruscas, a fim de garantir a segurança jurídica. Todavia não pode ser estática, devendo acompanhar a evolução do Direito e da sociedade para se adequar às necessidades contemporâneas.
Existem alguns tipos de jurisprudências. As comuns são as decisões dos tribunais sobre determinados temas, que geram precedentes para aquele assunto. Há as súmulas, as quais são enunciados formulados pelos tribunais para uniformizar determinado entendimento pacificado sobre tal matéria. E existem também as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal que se tratam de súmulas os quais possuem um caráter de observância obrigatória pelos operadores do Direito. (GARCIA, 2015)
Quanto ao posicionamento jurisprudencial do Suprema Corte brasileira referente às manifestações culturais que submetam os animais à crueldade, colaciona-se as decisões abaixo.
3.1. FARRA DO BOI
Explica Aline Torres (2018) que a Farra do Boi consiste em uma prática ilegal e corriqueira de soltar o boi em local desabitado e fazê-lo perseguir os participantes da prática, que arremetem objetos contra o animal. O acontecimento só acaba quando o bicho já está exausto e machucado a ponto de não conseguir levantar. Frequentemente resultam no sacrifício do animal.
Com relação à “farra do boi” decidiu o Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma, no Recurso Extraordinário n° 153.531-8/SC, publicado no Diário de Justiça em 13/03/98, de relatoria do Ministro Francisco Rezek, da seguinte maneira:
“COSTUME — MANIFESTAÇÃO CULTURAL — ESTÍMULO — RAZOABILIDADE — PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA — ANIMAIS — CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’.”
Em uma das primeiras manifestações do Supremo Tribunal Federal sobre o tema da submissão dos animais à crueldade, datada de 1998, o referido órgão já se posicionava pela inconstitucionalidade de tais práticas e demonstrava a sua linha protecionista aos animais.
Wilson Steinmetz (2009) expõe que “É correta a posição de Rezek segundo a qual a interpretação e decisão devem assentar-se na norma constitucional que proíbe práticas que submetam animais a crueldade.”
3.2. RINHAS/BRIGAS DE GALO
Em relação às “rinhas/brigas de galo” há diversos julgamentos do STF a seguir demonstrados:
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. MEIO-AMBIENTE. ANIMAIS: PROTEÇÃO: CRUELDADE. “BRIGA DE GALOS”. I. – A Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro, ao autorizar e disciplinar a realização de competições entre “galos combatentes”, autoriza e disciplina a submissão desses animais a tratamento cruel, o que a Constituição Federal não permite: C.F., art. 225, § 1º, VII. II. – Cautelar deferida, suspendendo-se a eficácia da Lei 2.895, de 20.03.98, do Estado do Rio de Janeiro.” (STF, Pleno, ADI 1.856 MC/RJ, rel. Min. Carlos Velloso, DJ 22-9-2000).
“E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – BRIGA DE GALOS (LEI FLUMINENSE Nº 2.895/98) – LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE, PERTINENTE A EXPOSIÇÕES E A COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES, FAVORECE ESSA PRÁTICA CRIMINOSA – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE ESTIMULA O COMETIMENTO DE ATOS DE CRUELDADE CONTRA GALOS DE BRIGA – CRIME AMBIENTAL (LEI Nº 9.605/98, ART. 32) – MEIO AMBIENTE – DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) – PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE – DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE – PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA FAUNA (CF, ART. 225, § 1º, VII) – DESCARACTERIZAÇÃO DA BRIGA DE GALO COMO MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RECONHECIMENTO DA INCONSTITUIONALIDADE DA LEI ESTADUAL IMPUGNADA – AÇÃO DIRETA PROCEDENTE. LEGISLAÇÃO ESTADUAL QUE AUTORIZA A REALIZAÇÃO DE EXPOSIÇÕES E COMPETIÇÕES ENTRE AVES DAS RAÇAS COMBATENTES – NORMA QUE INSTITUCIONALIZA A PRÁTICA DE CRUELDADE CONTRA A FAUNA – INCONSTITUCIONALIDADE.” (STF, Pleno, ADI 1.856/RJ, rel. Min. Celso de Mello, DJ 14-10-2011).
As ementas acima colacionadas referem-se à Lei n° 2.895/98 do Estado do Rio de Janeiro que autorizava e disciplinava as rinhas/brigas de galos. Trata-se de uma prática onde galos – geralmente selvagens – lutam, causando ferimentos uns nos outros, podendo resultar até na morte do animal.
Sobre a referida atividade dita Lima e Costa (2015) que “É nítida a ausência de proteção e cuidado com o galo. Eles são usados como objetos para satisfazer o sadismo do homem de os ver guerreando até a morte.”
As duas decisões constatam que tal prática submete os animais à tratamentos cruéis e por isso não está em consonância com o ordenamento jurídico brasileiro, afrontando o art. 225, § 1°, VII, da CF/88. A diferença entre as duas decisões é que a primeira trata-se de uma concessão de cautelar para suspender as efeitos da retromencionada lei e a segunda é a decisão final reconhecendo a inconstitucionalidade da mesma.
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 11.366/00 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ATO NORMATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A CRIAÇÃO E A EXPOSIÇÃO DE AVES DE RAÇA E A REALIZAÇÃO DE “BRIGAS DE GALO”. A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil. Precedentes da Corte. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.” (STF, Pleno, ADI 2.514/SC, rel. Min. Eros Grau, DJ 9-12-2005).
Na mesma linha de raciocínio que usou para declarar a inconstitucionalidade da lei fluminense que autorizava as brigas de galo, a Suprema Corte brasileira também julgou inconstitucional a Lei n° 11.366/00 do Estado de Santa Catarina que autorizava e regulamentava a referida prática no âmbito do respectivo estado.
Na sua obra, José Leite (2015) comentando a ementa acima destacada afirma que segundo o explanado pelo respectivo Ministro relator, qual seja, Eros Grau, não só o ser humano é objeto de proteção constitucional, mas também a vida animal, e por esse motivo, e ainda, pelo impedimento do art. 225, § 1°, VII, da CF/88, o exercício de práticas que submetam os animais à crueldade é incompatível com a Constituição brasileira.
“EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Lei nº 7.380/98, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. “Rinhas” ou “Brigas de galo”. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio Ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas “rinhas” ou “brigas de galo”.” (STF, Pleno, ADI 3.776/RN, rel. Min. Cezar Peluso, DJ 28-6-2007).
Em mais uma oportunidade, o Supremo Tribunal Federal afirmou a inconstitucionalidade de uma lei do estado do Rio de Grande do Norte que regulamentava atividade com aves de raças combatentes. O ministro relator César Peluso afirmou que a referida atividade era uma ofensa ao art. 225, § 1°, VII, da Constituição Federal.
3.3. VAQUEJADA
A vaquejada trata-se de uma prática tradicional da cultura nordestina em que homens montados em cavalos, denominados vaqueiros, tentam derrubar um boi, puxando-o pela cauda, dentro de uma área demarcada por cal. É necessário deixar o animal com as quatro patas voltadas para cima. (FREITAS, 2016).
Quanto a prática da Vaquejada, o STF por meio do Tribunal Pleno, na ADI 4.983/CE, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, publicado do Diário de Justiça em 27/04/2017 exarou a seguinte ementa:
“PROCESSO OBJETIVO – AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – ATUAÇÃO DO ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO. Consoante dispõe a norma imperativa do § 3º do artigo 103 do Diploma Maior, incumbe ao Advogado-Geral da União a defesa do ato ou texto impugnado na ação direta de inconstitucionalidade, não lhe cabendo emissão de simples parecer, a ponto de vir a concluir pela pecha de inconstitucionalidade. VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada”. (grifo nosso)
A referida decisão, mais recente, da Suprema Corte, também declarou a inconstitucionalidade de uma lei, qual seja, a Lei nº 15.299/2013, que regulamentava a prática da vaquejada no âmbito do estado do Ceará. É possível verificar que o entendimento do órgão é de que a referida prática apresenta crueldade manifesta, sendo assim inconstitucional, haja vista a afronta ao art. 225, § 1º, VII, da Carta Magna brasileira.
Silva Neto (2016) comentando a referida decisão afirma que “A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, que considerou haver ‘crueldade intrínseca’ aplicada aos animais na vaquejada.”
Silva e Vieira (2016) também pronunciando-se sobre a referida decisão acima, afirmam que:
“Seguindo essa tendência encrostada em sua jurisprudência, o STF assim o fez em relação declaração da inconstitucionalidade material da Lei Estadual nº. 15.299/13 que disciplinava a vaquejada naquela região, deixando devidamente claro o seu posicionamento reiterado sobre a temática meio ambiente e cultura[…]”
De acordo com o exposto acima, constata-se que o posicionamento da Corte Suprema brasileira é pela inconstitucionalidade das práticas culturais e desportivas que envolvem animais e os submetem a crueldade ou maus tratos. Posicionamento o qual se perpetua por mais de 20 anos – tendo umas de suas primeiras manifestações datada de 1998 – se estendendo até os dias atuais.
Também explicita Martins (2012) sobre o tema afirmando que “Dessa forma, percebe-se que a postura do Supremo Tribunal Federal vem no sentido de repudiar autorização ou regulamentação de qualquer entretenimento que, sob a justificativa de preservar manifestação cultural, submeta animais a práticas violentas, cruéis ou atrozes.”
Tal disposição do Supremo Tribunal Federal se coaduna com a evolução do pensamento ambientalista supramencionado onde os animais não são mais considerados objetos para diversão do homem, mas sim seres vivos resguardados por direitos.
Emenda Constitucional trata-se de uma inclusão ou alteração no texto constitucional. É realizada por meio de um processo legislativo mais complexo que o das leis. Para aprovação de uma emenda é necessária a aprovação por 3/5 dos votos em dois turnos em cada Casa Legislativa.
Paulo Mascarenhas (2010, p.145) afirma que:
“A emenda constitucional, assim, situa-se em um plano acima das demais espécies normativas, uma vez que, após a sua aprovação através de processo legislativo específico, ela adquire a mesma natureza jurídica e o mesmo posicionamento hierárquico das normas constitucionais originárias.”
Tavares (2012, p.1292) expondo sobre as emendas constitucionais afirma que “O próprio Texto Constitucional admite a possibilidade de sua alteração, e contempla, para tanto, um processo legislativo especial, mais dificultoso que aquele previsto para a alteração das leis em geral. Isso confere, ademais, a característica de rigidez à Constituição Federal.”
Alexandre de Moraes (2001) citado por Mascarenhas (2010) expõe que o constituinte originário de 1988 possibilitou a alteração de normas constitucionais por meio de um rito processual excepcional e mais difícil que o normal, definindo, assim, a Constituição brasileira como rígida e fixando a ideia de superioridade hierárquica constitucional.
Respeitado o devido processo legislativo para esta espécie normativa, em 06 de junho de 2017 foi promulgada, pela Mesa do Congresso Nacional, a Emenda Constitucional n° 96. Tal dispositivo inseriu no art. 225 da Constituição Federal o § 7° com o seguinte teor:
“§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.”
4.1. EFEITO BACKLASH
Brenda Vasconcelos (2017) explica o termo em inglês da seguinte maneira:
“Dessa forma, pode-se resumir o efeito backlash como uma forma de reação a uma decisão judicial, a qual, além de dispor de forte teor político, envolve temas considerados polêmicos, que não usufruem de uma opinião política consolidada entre a população. Em decorrência desta divisão ideológica presente de forma marcante, a parte “desfavorecida” pelo decisum faz uso de outros meios para deslegitimar o estabelecido ou tentar contorná-lo. Em suma, backlash relaciona-se com alguma forma de mudança de uma norma imposta.”
Analisando-se o teor da Emenda Constitucional n° 96, percebe-se que o Congresso Nacional (principalmente a bancada ruralista) utilizou-se do efeito backlash para conseguir legitimar as práticas que o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado pela inconstitucionalidade. Tal movimento se intensificou após o STF ter julgado inconstitucional a lei cearense que dispunha sobre a vaquejada, por isso o dispositivo normativo retromencionado ficou conhecido como “Emenda da Vaquejada”.
Márcio André Lopes Cavalcante (2017) referindo-se a Emenda Constitucional 96, afirma que a mesma “Foi uma tentativa de superação legislativa da jurisprudência (reversão jurisprudencial), uma manifestação de ativismo congressual.”
“[…] embora o STF tenha declarado a prática da vaquejada como nociva ao animal, o Congresso adotou medidas de contrarreação, com o escopo de cessar definitivamente qualquer questionamento relativo à vaquejada, buscando desautorizar a decisão do Supremo […].” (VASCONCELOS, 2017)
“O verdadeiro objetivo desta emenda foi o de superar uma decisão do STF proferida em 2016 na qual o Tribunal declarou que a atividade conhecida como ‘vaquejada’ era inconstitucional em virtude de gerar tratamento cruel aos bovinos.” (CAVALCANTE, 2017)
4.2. INCONSTITUCIONALIDADE DA EC 96
O art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição da República prevê uma vedação de deliberação de proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
Ao arguir a inconstitucionalidade da referida emenda constitucional por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5772, o Procurador-Geral da República à época, Rodrigo Janot, explica com maestria o termo “direitos e garantias individuais” conforme enxerto colacionado abaixo:
“No que diz respeito ao alcance da expressão “direitos e garantias individuais”, do art. 60, § 4º, IV, doutrina majoritária reconhece que não se limita aos direitos fundamentais previstos no rol do art. 5º da Constituição da República. O próprio art. 5º, § 2º, expande a lista de direitos fundamentais do art. 5º ao preceituar que ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’.”
Explícito é que o art. 225 e seus parágrafos, da Constituição Federal trata-se de direitos fundamentais, pois, ao protegerem o meio ambiente equilibrado, protegem a vida em todas as suas formas.
Sirvinskas afirma isso em sua obra (2018, p. 126) ditando que “meio ambiente e qualidade de vida fundem-se no direito à vida, transformando-se num direito fundamental.”
Oliveira (2017, p.82) também defende este posicionamento asseverando que “[…] Essa compreensão demonstra a essencialidade do meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito de terceira dimensão, que se reveste em um dos mais significativos direitos fundamentais.”
“Seja como for, o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado é um direito fundamental com status formal (art. 225, caput da CF) e material de cláusula pétrea, porque tem conteúdo imprescindível à dignidade humana e dos próprios animais.” (BELCHIOR, 2011; GORDILHO, 2017 apud GORDILHO; BORGES, 2018).
Ainda, Cavalcante (2017) afirma “[…] que direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental de terceira geração, não podendo ser abolido nem restringido, ainda que por emenda constitucional.”
Dessa forma, sendo evidente que a Emenda Constitucional nº 96/2017 fere a proteção prevista pelo art. 225, principalmente no seu § 1º, VII, constata-se que a referida espécie normativa é inconstitucional. A mesma é frontalmente contrária ao texto previsto no referido artigo, sendo ainda mais gravoso o fato de o mesmo tratar-se de um direito fundamental.
Sobre tal inconstitucionalidade acosta-se o parágrafo abaixo:
“Em evidente desrespeito à ordem constitucional, o poder constituinte derivado aprovou emenda à Constituição da República incompatível com normas constitucionais que vedam expressamente tratamento cruel aos animais, que protegem o núcleo essencial de direitos fundamentais e o princípio da dignidade humana, porquanto a emenda legitima práticas totalmente incompatíveis com o dever constitucional e direito fundamental de proteção da fauna, ao rotular, de forma artificiosa, como não cruéis práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam “manifestações culturais” reguladas por lei específica.” (JANOT, 2017 apud GORDILHO; BORGES, 2018) (grifo nosso).
Ainda, “é evidente a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional n. 96/17, uma vez que, no artigo 225, §1º, VII da CF, o constituinte originário demonstrou, claramente, o seu intento de proibir atos de crueldade contra os animais […]” (GORDILHO; MOURA, 2017 apud GORDILHO; BORGES, 2018).
4.3. CONTRARIEDADE DA EC 96 FRENTE AO POSICIONAMENTO DO STF
Em todos os julgados, desde 1998 até 2017, vê-se que o STF afirma haver dissonância entre as referidas práticas e a Constituição Federal. Ainda, na maioria dos acórdãos asseverou-se que as mesmas caracterizam ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF/88.
Dessa forma, diante do que já foi exposto anteriormente, fica inequivocamente evidente que a Emenda Constitucional 96 é contrária ao posicionamento consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca das práticas culturais que submetam os animais à crueldade.
Gordilho e Borges (2018) afirmam que a Emenda Constitucional nº 96/2017 ao assegurar que práticas lesivas à integridade dos animais sejam resguardas pela Constituição, com o objetivo de assegurar uma tradição cultural, tenta provocar uma verdadeira involução constitucional, colidindo com os precedentes já consolidados no Supremo Tribunal Federal.
Gordilho e Borges (2018) em sua brilhante explanação, explicam:
“No caso brasileiro, tanto a Lei n. 13.364/16 e a Lei n. 10.220/01 quanto a Emenda n. 96 tiveram como único objetivo desconstituir o STF do papel de guardião da Constituição e modificar, caprichosamente, a sua decisão de declarar inconstitucional uma lei que regulamentava a vaquejada, em uma grave violação do princípio da separação dos poderes, o que seria inimaginável no Estado de Direito de uma democracia avançada.” (grifo nosso)
Janot (2017) em sua exposição na petição da ADIN nº 5772 a fim de combater a Emenda Constitucional 96, afirma que “A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica em que a preservação do ambiente deve prevalecer sobre práticas e esportes que subjuguem animais em situações indignas, violentas e cruéis.”. Dessa forma o ex-Procurador-Geral da República quer demonstrar a contrariedade da referida emenda frente ao que o STF tem decidido ao longo dos anos.
Diante do exposto fica claro a intenção do Poder Legislativo de burlar os preceitos defendidos pelo constituinte originário. A Emenda Constitucional 96 é frontalmente contrária aos princípios ambientais protecionistas, ao entendimento doutrinário biocêntrico acerca dos direitos dos animais e, principalmente, ao entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
CONCLUSÃO
O Direito Ambiental tem evoluído no tratamento dispendido aos animais. A visão antropocêntrica está esvaindo-se para dar lugar à uma concepção biocêntrica. Os animais não são mais vistos como meros seres semoventes, os mesmos são considerados, pela doutrina mais atual, como seres sencientes. O homem está deixando de ser o único interessado e tutelado pelo Direito, passando-se a conceder respeito e resguardo a todos os seres vivos.
O art. 225, § 1º, inciso VII da Constituição Federal ao proibir as práticas que sujeitem os animais à crueldade demonstra está permeado da referida concepção biocêntrica. Não é somente a Constituição da República que carrega esta visão, há leis infraconstitucionais que também estão inspiradas por essa corrente, como por exemplo a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, qual seja, a Lei nº 6.938/81.
Seguindo uma mesma linha protecionista, como a que prega o biocentrismo, o Supremo Tribunal Federal tem prolatado decisões a favor do resguardo dos animais. Desde o ano de 1998 até a atualidade diversas ações diretas de inconstitucionalidades foram ajuizadas no referido órgão para tratar das manifestações culturais que submetiam os animais a maus tratos. Em todas as suas decisões o STF tem afirmado que as referidas práticas são inconstitucionais e atentatórias à Constituição Federal, ofendendo principalmente o art. 225, § 1º, VII do referido diploma legal.
O caso mais recente de uma declaração de inconstitucionalidade pelo STF sobre o tema remonta do ano de 2016, publicada em 2017, quando a Suprema Corte brasileira julgou inconstitucional a Lei nº 15.299/2013 do Estado do Ceará que regulamentava a prática da Vaquejada.
No ano de 2017 foi promulgada pela Mesa do Congresso Nacional a Emenda Constitucional nº 96 que autoriza a realização de práticas desportivas que envolvam animais desde que sejam consideradas manifestações culturais. Trata-se de uma emenda arriscada que dá margem para que, sob o pretexto de se tratar de uma prática cultural, os animais sejam submetidos a maus tratos ou à crueldade.
A promulgação da EC 96/2017 foi uma reação do Congresso Nacional as decisões prolatadas pela Justiça brasileira. Por tais decisões irem de encontro com o interesse dos parlamentares, principalmente da bancada ruralista, eles formularam um modo de escapar do cumprimento das mesmas.
Evidentemente a referida emenda é inconstitucional pois fere tanto o art. 225, principalmente o seu § 1º, inciso VII, da Constituição da República, além de colidir também com o art. 60, § 4º, inciso IV do mesmo diploma legal. Contraria também o pensamento biocêntrico que tem se estabelecido para o tratamento dos animais tanto no Brasil como nos ordenamentos jurídicos alienígenas.
Conforme o explanado e demonstrado durante todo o decorrer do trabalho, contata-se que a Emenda Constitucional nº 96 é completamente e claramente contrária ao entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal acerca da sujeição dos animais a maus tratos. O guardião da Constituição brasileira tem consolidado um entendimento que se segue há mais de 20 anos e quem está tentando ser superado por um capricho legislativo.
Contra a EC 96/2017 já tramitam duas Ações Direitas de Inconstitucionalidade, quais sejam: ADI 5728, ajuizada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal; e a ADI 5772, ajuizada pelo Ex-Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Resta esperar para saber se a Corte Suprema vai manter seu posicionamento sobre o tema, eliminando a inconstitucionalidade do ordenamento jurídico, ou se vai desconstituir um entendimento que perdura por mais de 20 anos.
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[1] Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Nilton Lins. Pós-Graduando pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
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