Resumo: O texto trata das discussões sobre os Direitos Humanos, e que o Estado deve realizar um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional pelas violações apontadas durante a Guerrilha, uma cerimônia pública, com a presença de autoridades relevantes nacionais, e das vítimas, devendo o Estado acordar com elas as circunstâncias da cerimônia, que deve ser divulgada amplamente em meios de comunicação. Previu-se a realização de ações de capacitação e de um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, voltados ao pessoal integrante de todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, a jurisprudência da Corte Interamericana sobre desaparecimento forçado de pessoas, outras gravíssimas violações aos direitos humanos e sobre a jurisdição penal militar, bem como as obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil em tratados dos quais ele é signatário. Dessa forma, questões sobre as consequências do cumprimento ou descumprimento da decisão da Corte serão devidamente tratadas, evidenciando um nobre papel do Brasil nas atividades internas, em respeito à decisão e à história do país.
Palavras-chaves: anistia – comissão da verdade – penalização – descumprimento – direito internacional
Importante averiguar que a decisão emanada da Corte Interamericana de Direitos Humanos e aquela emanada pelo Supremo Tribunal Federal, quando possuírem conflitos de ordem material de seu conteúdo, causarão uma confusão e uma necessidade de reflexão acerca do seu cumprimento no território nacional. Não é tão óbvio, apesar das tendências subjetivas de cada um por concretização da justiça, e do sentimento de vingança confundido com legitimação de justiça.
Especificadamente, em análise e acompanhamento das discussões sobre a Lei 6.683/79, Lei de Anistia, foi possível perceber as divergências entre as decisões do Supremo Tribunal Federal e da Corte Internacional, dificultando a sua aplicação, e sobre as violações de direitos humanos e as punições cabíveis às pessoas que contribuíram para tanto.
Como se pode perceber, alguma decisão deverá produzir efeito em âmbito interno e viabilizar alguma validade jurídica, pelo que, ao mesmo tempo, vislumbra-se a dificuldade do diálogo, harmonia e cumprimento de sentenças das Cortes no Brasil.
Quando da leitura da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, notou-se, pelo histórico, quase um sentimento de impotência, diante da vagarosidade de se chegar à conclusão ou a uma resposta ao público, cuja compreensão pode fortalecer ou não o Estado Democrático de Direito. Isto é, em 26 de março de 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos as questões atinentes à Guerrilha do Araguaia, o Caso “Julia Gomes Lund e Outros”, que estava sob sua análise desde 7 de agosto de 1995. Na alegação dos autores, a denúncia versou sobre a detenção ilegal e arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de aproximadamente 70 (setenta) membros do movimento conhecido como Guerrilha do Araguaia entre os anos de 1972 e 1975 e da posterior falta de investigação desses atos, o que se encontra na Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, Lei da Anistia, com o sigilo permanente sobre documentos a respeito dessa atividade do Estado. No ano de 2008, a Comissão Interamericana emitiu o relatório de mérito do Caso, no qual formulou recomendações ao Estado brasileiro. Por entender que as suas recomendações não haviam sido cumpridas a contento, posteriormente, decidiu encaminhar o Caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos realizou audiência nos dias 20 e 21 de maio passado, na qual ouviram os representantes das vítimas, suas testemunhas e peritos, os representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e os representantes do Estado brasileiro e, igualmente, suas testemunhas e peritos. Cada parte apresentou suas razões e a Corte Interamericana passou à elaboração da sentença.
Ainda recentemente, em 14 de dezembro de 2010, foi divulgada pela Corte a decisão prolatada em 24 de novembro de 2010. E em relação às questões preliminares levantadas pelo Estado, a Corte Interamericana reconheceu parcialmente apenas uma delas, para declarar a sua competência a partir da data em que o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte, isto é, a partir de 10 de dezembro de 1998. Em razão disso, o exame de mérito sobre os fatos referiu-se àqueles ocorridos após essa data. O Brasil foi condenado nessa decisão pelo desaparecimento das pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3º), à vida (artigo 4º), à integridade pessoal (artigo 5º) e à liberdade pessoal (artigo 7º), bem como pela violação dos direitos às garantias judiciais (artigo 8º) e à proteção judicial (artigo 25º), em decorrência da leitura interpretativa dada à Lei da Anistia, que impediu a investigação dos fatos e a punição dos responsáveis pelas condutas indicadas, e da lentidão na tramitação da Ação Ordinária n° 82.0024682-5.
Aparentemente, as violações das disposições da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ocorreram, e a Corte determinou, com louvor, que o Estado deve adotar medidas para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar os seus restos mortais e oferecer tratamento psicológico ou psiquiátrico às vítimas, mediante requerimento, custeado pelo Estado. Além disso, determinou-se ainda a publicação da íntegra da decisão no Diário Oficial e em um sítio eletrônico do Estado, devendo ficar disponível na internet pelo período de um ano. A decisão deve ser disponibilizada, em formato de um livro eletrônico, também em um sítio do Estado. O resumo oficial da sentença proferida pela Corte deve ser publicado em um jornal de ampla circulação nacional. Essas providências de divulgação da sentença devem ser adotadas no prazo de seis meses, contados da data de notificação do Estado.
Também determinou-se, que o Estado deve realizar um ato público de reconhecimento da responsabilidade internacional pelas violações apontadas durante a Guerrilha, uma cerimônia pública, com a presença de autoridades relevantes nacionais, e das vítimas, devendo o Estado acordar com elas as circunstâncias da cerimônia, que deve ser divulgada amplamente em meios de comunicação. Previu-se a realização de ações de capacitação e de um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, voltados ao pessoal integrante de todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, a jurisprudência da Corte Interamericana sobre desaparecimento forçado de pessoas, outras gravíssimas violações aos direitos humanos e sobre a jurisdição penal militar, bem como as obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo Brasil em tratados dos quais ele é signatário.
E a decisão não parou por aí, pois determinou que continuem as iniciativas de busca, sistematização e publicação de informação sobre a Guerrilha do Araguaia e sobre as violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar. Como decorrência das violações reconhecidas na sentença, a Corte determinou ao Estado o pagamento de indenizações por danos materiais, imateriais e por restituição de custas e gastos às vítimas indicadas.
O Estado deve, ainda, adotar, em um prazo razoável, providências para tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas, em conformidade com os parâmetros fixados pela sentença. Enquanto isso não for cumprido, ele deve adotar medidas para o julgamento e a punição dos responsáveis pelos fatos, utilizando os mecanismos já existentes no direito brasileiro.
Além disso, também é importante relembrar que a Ordem dos Advogados do Brasil, ingressou, em 21 de outubro de 2008, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 153 perante o Supremo Tribunal Federal, em razão de, conforme a exordial, haver escancarada controvérsia constitucional quanto ao artigo 1° da Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, anterior à Constituição Federal de 1988. Nesta Arguição foi formulado o seguinte pedido:
“b) a procedência do pedido de mérito, para que esse Colendo Tribunal dê à Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, interpretação conforme a Constituição, de modo a declarar, à luz de seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”.[1]
Na sessão ocorrida no Supremo Tribunal Federal, alguns dias antes da audiência da Corte Interamericana acima mencionada, iniciada em 28 e concluída em 29 de abril, julgou a ADPF n° 153 por seu Pleno e, por maioria de sete votos a dois, decidiu pela improcedência da Arguição segundo o voto do Ministro relator, por entender que a Lei de Anistia concedeu o esquecimento a todos os crimes praticados no período do regime militar autoritário, em uma interpretação ampla e distinta do que pleiteava a Ordem dos Advogados do Brasil.
Após a promulgação da Constituição Federal em outubro de 1988, a democracia no Brasil vem se consolidando com fundamento na cidadania e na dignidade da pessoa humana, colocando os direitos fundamentais em um lugar de especial destaque no Estado Democrático de Direito.[2] Nesse contexto, aos tratados de direitos humanos receberam disciplina inédita no texto constitucional, que os consagrou como fonte de direitos fundamentais não previstos no seu texto original, tal como inscrito no seu artigo 5°, parágrafo 2°.
Ainda, por força da Emenda Constitucional n° 45, de 8 de dezembro de 2004, a Constituição passou a determinar que os tratados de direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. O Brasil ratificou e promoveu a recepção em seu ordenamento de diversos tratados sobre a matéria, em especial, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos[3] e, posteriormente, submeteu-se à jurisdição[4] da Corte Interamericana, o que demonstra a inserção do país no cenário internacional de proteção, garantia e promoção dos direitos fundamentais.
É de relevância apontar que o sistema jurídico brasileiro jamais tinha sido posto à prova como no caso da Guerrilha do Araguaia, pois um dos pedidos referiu-se exclusivamente à revogação da Lei de Anistia, objeto de uma intensa discussão entre instituições e atores estatais e sociais, sem a sedimentação de um entendimento preponderante na sociedade brasileira. Claro que quando se pensa sobre como tenha sido a discussão à época da feitura da Lei de Anistia, logo se resume como positiva, pelo menos não aconteceriam mais tais atrocidades, mas o fato é que as circunstâncias em que foram discutidas tais questões não autorizam aos menos favorecidos ponderarem com equilíbrio, pois o que queriam efetivamente era a libertação da opressiva ditadura militar, portanto, a ditadura legisla ao seu favor, anistiando os próprios crimes.
Interessante citar, para elucidação de casos que são discutidos na Corte, a “A Última Tentação de Cristo”, Olmedo Bustos contra Chile, cuja sentença foi prolatada em 5 de fevereiro de 2001, que dizia respeito à censura estatal prévia ao filme que deu nome ao Caso. A censura prévia à exibição de obras artísticas e, portanto, a limitação absoluta à liberdade de expressão tinha amparo em norma constitucional chilena, que, no entendimento da Corte, violou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Estado chileno foi condenado a modificar o seu ordenamento jurídico interno de modo a suprimir a norma que autorizava a censura prévia, o que significou, nesse Caso, uma alteração de norma constitucional. Note-se que a Corte produziu contundente interferência no direito interno chileno, mais diretamente na sua constituição, ficando evidente como podem ser significativos os efeitos das decisões internacionais no campo dos direitos humanos.
No caso da Guerrilha do Araguaia, as informações prestadas[5] pela Advocacia-Geral da União (AGU) na ADPF n° 153 consistiram nas considerações feitas pela própria AGU e nas informações prestadas pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e pela Casa Civil, ambas da Presidência da República, pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério da Defesa, com posições divergentes entre si. Na audiência ocorrida em 20 e 21 de maio de 2010, o Estado brasileiro levou representantes desses órgãos e expressou perante a Corte Interamericana razões que contemplavam principalmente a recente decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153, somada a alguns elementos defendidos eles. O segundo desafio será a execução da sentença expedida pela Corte, que expressa entendimento e conclusão diversos daqueles expostos pelo STF na ADPF n° 153.
Percebe-se a dificuldade, portanto, em fazer valer a decisão da Corte no Brasil, sendo que muitos apontam a necessidade de um regramento interno para que isso ocorra.
O Princípio da Celeridade é um dilema quando tratado conjuntamente ao Princípio da Segurança Jurídica, mas isso não quer dizer que a lentidão signifique Segurança, assim, a ideia a respeito da razoável duração do processo também pode ser exemplo da diferença de lógica, de racionalidade entre as instâncias internas brasileiras e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, como fica evidente no Caso Ximenes Lopes contra Brasil. A Corte, na decisão[6] manifestou-se expressamente sobre esse tema, afirmando que a excessiva duração do processo penal não foi razoável, tendo em vista as circunstâncias do Caso, e teve causa na conduta das autoridades por ele responsáveis. Depois da sentença, em procedimento que visou à apuração de eventual excesso de prazo no processo penal, a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará concluiu que não se demonstrou o excesso de prazo na complexa tramitação do processo penal, nem a responsabilidade funcional dos juízes que o presidiram. Assim, nesse caso, vale a pena apontar que a Corte Interamericana condenou o Brasil e concluiu no sentido de que “o processo não é complexo”, “a demora do processo se deu unicamente à conduta das autoridades judiciais” e “o prazo em que se desenvolveu o procedimento penal no caso “sub judice” não é razoável”, conclusões diametralmente opostas àquelas obtidas no procedimento disciplinar posteriormente promovido, em uma evidente demonstração da diferença das racionalidades utilizadas na análise de cada instância.
Considerando, minimamente, a teoria dos sistemas, parece mais adequado sugerir que o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos e o sistema jurídico brasileiro são dois sistemas distintos e autônomos, uma vez que possuem regras e racionalidades diferentes, possuem limites próprios e se diferenciam do seu entorno e entre si. A partir disso, a experiência brasileira de participação no Sistema Interamericano se mostrou positiva, com importantes avanços no campo dos direitos humanos. As relações travadas pelos dois sistemas devem, para o aprimoramento dessa experiência, ser de interação e não de antinomia.
O Estado brasileiro não tem interesse em romper essas relações, negar ou promover violações dos direitos humanos no país, conforme os fundamentos, objetivos e princípios determinados pelos artigos 1°, 3° e 4° da Constituição Federal. O importante mesmo é promover a interação entre os dois sistemas, ao invés de fomentar a antinomia ou a rivalidade entre eles. Uma proposição que pode colaborar com a interação entre os dois sistemas é a edição de normas que regulamentam o cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, possibilitando algum grau de harmonização das diferenças entre os dois sistemas e, assim, a melhor comunicação entre eles.
O Direito Internacional e o Direito interno formam, por fundamento monista, é uma só unidade jurídica, a assinatura e ratificação de um compromisso internacional já significam a sua validade e vigência em relação aos seus aspectos internos, não dependendo da edição de outro ato ou norma para produzir efeitos sobre as pessoas, bens e relações jurídicas travadas em um Estado. Pois tanto o Direito Internacional quanto o Direito interno, estariam aptos a reger essas relações entre os indivíduos.[7]
Para os dualistas, o Direito Internacional e o Direito interno de cada Estado são sistemas independentes e distintos, de tal modo que as normas internas não guardam qualquer relação de validade jurídica com a ordem internacional. Defendem a diversidade das fontes de produção das normas jurídicas, observando que a norma internacional somente opera efeitos no âmbito interno de um Estado quando recepcionada por ele, ou seja, quando houver sido aceita e introduzida no seu ordenamento doméstico.[8]
Acredita-se que não ficou claramente definida, nos julgados do STF, a questão sobre a primazia do Direito interno ou do Direito Internacional no Brasil. A partir de 1977 até mais recentemente, o STF adotava o entendimento do status infraconstitucional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica. Tal como exposto no Habeas Corpus n° 72131/RJ, o Pacto de San José era afastado, para considerar constitucional a prisão do depositário infiel, fundada no art. 1.287 do Código Civil de 1916 e no Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969. Ainda que posterior, o Pacto não havia derrogado essas normas, por se tratar de disposições especiais, em face das normas gerais previstas no tratado. O Pacto era visto como verdadeira limitação ao mandamento constitucional do inc. LXVII do art. 5° da Constituição. A partir do julgamento conjunto dos Recursos Extraordinários n° 466343 e n° 349703 e dos Habeas Corpus n° 87585 e n° 92566, que tratavam igualmente do tema da prisão civil do depositário infiel, tal como expresso no voto do Ministro Gilmar Mendes, o STF alterou o entendimento até então sustentado, explicitando que os tratados anteriores à Emenda n° 45, de 2004 não poderiam ser comparados às normas constitucionais. Porém, a Emenda indicou o caráter diferenciado dos tratados no ordenamento jurídico brasileiro, conferindo-lhe posição privilegiada, e abandonando a tese do status legal dos tratados, adotada pelo STF desde 1977. O Ministro entendeu que deveria ser reconhecida a estatura supralegal dos tratados de direitos humanos, demonstrando a tendência do constitucionalismo contemporâneo de prestigiar essas normas e indicando que a jurisprudência do STF deveria ser revista, para lhes conferir a supralegalidade sem status constitucional. Os tratados não poderiam ferir a supremacia da Constituição, estariam sujeitos ao controle de constitucionalidade e ocupariam uma posição especial no ordenamento.
Assim, segundo as decisões mais atuais do STF, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ingressa no ordenamento jurídico com nível hierárquico supralegal, condicionando toda a legislação infraconstitucional, porém com observância às limitações impostas pela Constituição.
Existem autores que consideram que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 3510/DF, ocorreu uma mudança no entendimento retrocitado e, assim, um retorno à posição antiga do Tribunal. A ADI n° 3510/DF versa sobre o artigo 5° da Lei n° 11.105, de 24 de março de 2005, que autoriza e disciplina as pesquisas com células-tronco embrionárias. No seu julgamento, os Ministros do STF trataram do artigo 4º (1) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que dispõe sobre o direito à vida, que deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção.
Verifica-se, desta forma, que foi criada uma categoria diferenciada para os tratados de direitos humanos posteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988, porém anteriores à Emenda Constitucional n° 45, de 2004, que previu um procedimento especial de aprovação desse tipo de instrumento internacional. A Constituição Federal de 1988, as emendas constitucionais e os tratados que versem sobre matéria de direitos humanos aprovados segundo o rito previsto no §3° do artigo 5° da Constituição brasileira, a exemplo da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, possuem a mesma estatura constitucional, integram o bloco de constitucionalidade, sujeitam-se à mesma disciplina jurídica e, assim, servem de parâmetro para o controle de constitucionalidade das normas inferiores.
Numa análise hierárquica da situação, atualmente o STF, considerando a estatura interna dos tratados a respeito dos direitos humanos, é possível afirmar que deveria prevalecer a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos em conflito com a legislação infraconstitucional brasileira, porém nunca em face da Constituição Federal de 1988. Os tribunais internos reafirmariam a supremacia da constituição brasileira sobre as normas internacionais e afastariam os efeitos da decisão da Corte Interamericana, o que geraria o descumprimento da obrigação assumida internacionalmente perante o Sistema Interamericano e a OEA, podendo o país sofrer as sanções previstas na Carta da OEA, dentre elas, a exclusão. Ainda, ao Brasil poderia ser atribuída a reputação internacional de um país que não cumpre os seus acordos e viola direitos humanos, indesejada para os países no cenário mundial.
Infelizmente, no Brasil, apenas as decisões estrangeiras possuem uma regulamentação quanto à produção de efeitos no país. Pois elas são submetidas ao procedimento de homologação pelo Superior Tribunal de Justiça, a teor do artigo 105, inciso I, alínea “i” da Constituição Federal de 1988.[9] Nesse procedimento, são observados os requisitos previstos na Resolução n° 9, de 4 de maio de 2005, do Superior Tribunal de Justiça. Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro disciplina o modo de “ingresso” das decisões estrangeiras e delimita o seu conteúdo e seus efeitos no sistema, possibilitando que o que estava no entorno – decisão estrangeira – entre efetivamente no sistema nacional.
Analisando a Lei nº 288, de 1996, observamos que trata apenas do cumprimento de determinações advindas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sem mencionar aquelas proferidas pela Corte Interamericana, mas claramente a analogia autoriza a execução das decisões destes Tribunais. Nesse interregno, note-se que essa norma foi revogada pela Lei n° 27.775, de 27 de junho de 2002, que expressamente “regula o procedimento de execução de sentenças emitidas por tribunais supranacionais”. O seu artigo 2° trata do procedimento aplicável à execução de decisões que contenham condenação ao pagamento de uma soma em dinheiro, a título indenizatório pelos danos causados à vítima. Os artigos 3° e 4° versam sobre decisões que dispõem a respeito de medidas não indenizatórias. Está previsto também o direito de regresso do Estado em face do agente público responsável pela conduta que deu causa à prolação da decisão internacional no artigo 5°. Essa lei deve ser considerada em conjunto com a Lei n° 28.237, que dispõe sobre o Código Processual Constitucional e, no seu Título X, trata das hipóteses de jurisdição internacional. O procedimento de execução das decisões da Corte Interamericana é entregue principalmente a órgãos do Poder Judiciário do país, o que determina o seu engajamento nessa tarefa, já superando problemas a isso relacionados.[10]
Alguns projetos no Brasil, foram elaborados e envolveram a questão do cumprimento das decisões emanadas dos órgãos integrantes do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos. No ano de 2000, foi elaborado pelo Deputado Marcos Rolim o Projeto de Lei n° 3.214, que foi aprovado com uma emenda substitutiva na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional em agosto de 2001 e seguiu para apreciação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Na segunda Comissão, foi apresentado o parecer do seu Relator em dezembro de 2002, que sugeria a sua aprovação na forma da emenda da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional. Esse Projeto previa, em seu artigo 1°, que as decisões da Comissão e da Corte Interamericanas de Direitos Humanos produziriam efeitos jurídicos imediatos no ordenamento jurídico brasileiro. O segundo artigo dispunha que as decisões de caráter indenizatório constituiriam títulos executivos judiciais e estariam sujeitas à execução direta contra a Fazenda Pública Federal, tendo natureza alimentícia. Por fim, previa o direito de regresso da União contra aqueles que foram responsáveis direta ou indiretamente pela violação de direitos humanos reconhecida internacionalmente, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou de direito privado. A emenda substitutiva foi apresentada por entenderem os deputados integrantes das Comissões que a decisão proveniente da Corte Interamericana de Direitos Humanos estava sujeita ao procedimento de homologação previsto para decisões estrangeiras, à época, de competência do Supremo Tribunal Federal. Essa decisão deveria ser considerada formalmente sentença estrangeira e, assim, ser recepcionada segundo o procedimento já indicado. No que toca aos pareceres proferidos em ambas as Comissões, entender diversamente significaria ofensa à autonomia e à exclusividade da jurisdição do ordenamento jurídico brasileiro, exercidas pelo Poder Judiciário pátrio. Ocorre que, depois de proferido o parecer do Relator do Projeto na segunda Comissão em 2002, foi arquivado o Projeto de Lei n° 3.214 em janeiro de 2003 e, assim, não houve mais a tramitação desse expediente. Atualmente, está em trâmite no Congresso Nacional brasileiro o Projeto de Lei n° 4.667, de 2004, de autoria do Deputado Federal José Eduardo Cardozo, que resgatou o texto do Projeto de Lei n° 3.214, de 2000, e o repetiu nesse Projeto, ampliando-o para abarcar também decisões advindas dos órgãos da Organização das Nações Unidas. No ano de 2006, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Minorias, foi apresentado pelo Deputado Federal Orlando Fantazzini um substitutivo que resultara da discussão da matéria na comunidade jurídica ligada aos direitos humanos, tendo sido aprovado na Comissão. Além das disposições constantes do texto original do Projeto, o substitutivo do Deputado Fantazzini continha uma disciplina mais detalhada do procedimento de execução das decisões referidas. No seu artigo 1°, o substitutivo previa ser a União responsável pelas medidas necessárias ao integral cumprimento das decisões e recomendações internacionais, devendo lhes conferir absoluta prioridade. No tocante às obrigações pecuniárias, a União seria responsável pelo pagamento das indenizações às vítimas no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da notificação do Estado brasileiro. O seu artigo 3°, tal como a redação original, previa o direito de regresso da União em face dos responsáveis pela conduta ilícita internacional, porém inovava ao autorizar a União a descontar os valores despendidos com o pagamento das reparações previstas nas decisões internacionais do repasse ordinário das receitas destinadas aos entes federativos. Outra inovação do substitutivo era a criação, no artigo 4°, de um órgão com competência para acompanhar a implementação das decisões e recomendações internacionais, bem como das medidas cautelares e das medidas provisórias emitidas pelos órgãos integrantes do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Esse órgão atuaria na articulação entre os diferentes entes federativos e seus Poderes, no acompanhamento das políticas públicas e das ações judiciais relativas às demandas internacionais e na fiscalização do cumprimento das decisões internacionais. Ainda, o órgão possuiria a atribuição de notificar as autoridades competentes, visando o cumprimento das obrigações de fazer e de medidas policiais, judiciais ou o Ministério Público determinadas nas decisões. O Projeto de Lei seguiu para a análise da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional e lá foi arquivado em janeiro de 2007. Em março de 2007, a pedido do autor do Projeto, ele foi desarquivado e reiniciou-se a sua tramitação na Comissão onde havia sido arquivado. Em novembro de 2007, foi aprovado o parecer do Deputado Relator, Nilson Mourão, que opinou pela aprovação do substitutivo apresentado e já aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Assim, o Projeto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e, em 2008, o Deputado Relator Luiz Couto apresentou seu primeiro parecer, em que opinava pela aprovação do Projeto de Lei no seu texto original e pela rejeição do substitutivo apresentado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias pelo Deputado Orlando Fantazzini. Em 27 de abril de 2010, o Relator Luiz Couto apresentou novo parecer, opinando pela rejeição do substitutivo do Deputado Orlando Fantazzini e apresentando outro substitutivo, mais parecido com o texto original do Projeto, porém com algumas alterações. Segundo o seu andamento processual, o substitutivo apresentado pelo Deputado Luiz Couto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 30 de junho deste ano, foi apresentada a sua redação final em 12 de agosto, aprovada em 9 de novembro, e ele foi remetido ao Senado em 18 de novembro.
De fato, uma norma de regulamentação do cumprimento de decisões internacionais permitiria aumentar a capacidade do sistema interno de ser permeável às questões discutidas e decididas nas instâncias internacionais, ao tempo em que possibilitaria a busca por algum grau de compatibilização das racionalidades de cada sistema. A comunicação entre eles pode ser mais fácil se as regras e a linguagem estiverem mais bem definidas para as pessoas que lidam com esse ponto de contato dos sistemas. Utilizando uma das hipóteses mencionadas, a do federalismo e sua lógica no sistema brasileiro, seria ponto importante de uma norma que tratasse do cumprimento das decisões da Corte Interamericana o estabelecimento da distribuição interna da responsabilidade dos atos pelos quais o país foi condenado, inclusive com regras sobre a responsabilidade dos agentes públicos. Os argumentos federativos tenderiam a ficar enfraquecidos diante de regras desse tipo.
Cumprir a decisão internacional seria, nessa linha, transigir com o interesse público em uma hipótese em que não há, em regra, autorização legal para tanto. A previsão legal para agir de modo a cumprir a decisão internacional serviria como forma de compatibilização de noções, de lógicas e de racionalidades entre os sistemas. A edição de normas que disciplinem o cumprimento das decisões internacionais, mais especificamente daquelas proferidas pelos órgãos integrantes do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, se não necessária, seria extremamente útil e facilitadora do procedimento de execução dessas decisões, efetivando a proteção dos indivíduos, aclarando atribuições, determinando responsabilidades e aproximando as instâncias internacional e interna.
A decisão prolatada no Caso Guerrilha do Araguaia pela Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou expressamente a impossibilidade de invocar disposições de anistia, de prescrição ou excludentes de ilicitude para obstaculizar o cumprimento da obrigação de investigar os fatos e punir os responsáveis por graves violações de direitos humanos, como: torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados. Assim, a aplicação dada pelo Poder Judiciário brasileiro à Lei de Anistia, inclusive na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 153, segundo a decisão, não observou o necessário controle de convencionalidade dessa norma em face dos compromissos assumidos pelo país no plano internacional.
Como consequência desse entendimento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a investigação penal dos fatos, a apuração das responsabilidades e a aplicação das sanções correspondentes, afrontando o que ficou decidido por sete votos a dois na ADPF nº 153. A decisão internacional não determinou a invalidação da decisão do Supremo Tribunal Federal ou a revogação da Lei de Anistia, o que atualmente coloca a situação de coexistência das duas decisões, uma interna e outra internacional, com conteúdos bem distintos, senão opostos. A Corte Interamericana, por sua vez, já havia se manifestado em situações análogas, sobre regimes ditatoriais ocorridos na América Latina, e firmou entendimento no sentido do reconhecimento de responsabilidade internacional ao Estado pela edição de lei de anistia e de que a lei de anistia é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.[11]
O cumprimento da decisão da Corte no Brasil é de profunda dificuldade, mas deixar o cumprimento das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos sem qualquer disciplina interna pode aumentar a distância entre o direito interno e da Corte Interamericana. Portanto, seria mister buscar maior interação com os órgãos do Sistema Interamericano com a ampliação do diálogo. Pois nesse sentido, vislumbra-se nos dizeres de Dimoulis:
“…que sempre haverá um descompasso entre o direito em vigor (direito positivo) e as opiniões de cada pessoa ou grupo sobre a justiça. O problema torna-se mais agudo quando a aplicação de uma lei não só desagrada alguns, mas se revela claramente injusta ou inadequada. O que fazer, por exemplo, quando uma ditadura priva os cidadãos de suas liberdades, quando um governo conservador cria leis racistas, que discriminam os negros, ou quando um governo, na tentativa de enfrentar uma crise econômica, corta os benefícios sociais dos trabalhadores, aumentando a miséria?”[12]
De alguma forma, as discussões têm caminhado de forma positiva, inclusive com atos que traduzem o inconformismo com a impunidade, e convergência do Brasil com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.[13]
Mestrando em Direito das Relações Econômicas Internacionais pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP e Extensão em Educação. Formado em Direito. Advogado e Consultor. Professor de Direito na Graduação e Pós-graduação e MBA da Faculdade Politécnica de Jundiaí; Professor de Direito na Pós-graduação do PROORDEM/ESAMC – Campinas e Jundiaí; Coordenador do Núcleo de Práticas Jurídicas da FAC III Campinas. Exerceu cargos públicos municipais como Diretoria e Assessoria Jurídica no Legislativo e Coordenação Geral em entidades do Terceiro Setor na área da Saúde Pública
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