Clara Rodrigues Blach[1]
Resumo: O presente artigo se propõe a fazer uma análise da colisão de direitos fundamentais existente na prática da vaquejada: o direito à manifestação cultural contra o direito à proteção ambiental. Para tanto, faz-se uma análise doutrinária, jurisprudencial e normativa acerca da controvérsia, a fim de traçar um panorama do debate no âmbito nacional. A discussão a respeito da vaquejada revela, para além do âmbito jurídico, a existência de diversas realidades no Brasil, no qual a tradicionalidade do sertão e o progresso das cidades urbanas precisam conviver.
Palavras-chave: Colisão. Direitos dos Animais. Direitos Fundamentais. Manifestação Cultural. Vaquejada.
Abstract: This article proposes to analyze the collision of fundamental rights existing in the practice of “vaquejada”: the right to cultural manifestation against the right to environmental protection. Therefore, a doctrinal, jurisprudential and normative analysis of the controversy is carried out, in order to provide an overview of the debate at the national level. The discussion about the vaquejada reveals, beyond the legal scope, the existence of several realities in Brazil, in which the traditionality of the hinterland and the progress of urban cities need to live together.
Keywords: Animal Rights. Collision. Cultural manifestation. Fundamental rights. Vaquejada.
Sumário: Introdução. 1. Direitos Fundamentais. 1.1. A vaquejada e o Direito Fundamental à Manifestação Cultural. 1.2 A vaquejada e o Direito Fundamental de Proteção ao Meio Ambiente. 1.3 Colisão de Direitos Fundamentais. 2. Análise da Discussão da Constitucionalidade da Vaquejada. 2.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4983/CE. 2.2 Lei nº 13.364/2016. 2.3 Emenda Constitucional nº 96/2017. 2.4 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.713/PB. 2.5 Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 5728/DF e 5772/DF. 3. Legislações Internacionais e Direitos dos Animais. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A vaquejada é uma prática cuja origem remonta ao sertão nordestino dos séculos XVII e XVIII, relacionando-se ao trabalho nas fazendas para reunir o rebanho bovino, então criado solto na mata. Em meados de 1940, vaqueiros nordestinos passaram a se reunir a fim de mostrar ao público as suas habilidades nessa atividade, e começaram a ser organizados torneios pelos fazendeiros da região. Essa competição logo foi incorporada às festividades de muitas cidades (SENADO…, 2017, p. 20).
Trata-se de uma prova com animais, em que dois competidores montados a cavalo perseguem um boi e têm que derrubá-lo em uma área delimitada, desequilibrando-o com um forte puxão pela cauda, torcendo-a. Os competidores são pontuados se o animal tem as quatro patas no ar, no momento da queda, e se levanta logo em seguida, ainda na área delimitada (SENADO…, 2017, p. 14).
“Inicialmente amadoras, essas competições passaram por aperfeiçoamentos na organização, com calendários específicos, regras bem definidas e a adesão de patrocinadores, o que despertou o interesse da mídia”. Atualmente, as competições de vaquejada contam com estrutura comum à dos grandes eventos desportivos, movimentando quantias milionárias por ano, bem como pagando altos valores em prêmios aos competidores (SENADO…, 2017, p. 20).
Entretanto, essa prática tradicional tem se chocado com questionamentos da atualidade, especificamente no que tange ao tratamento dado aos animais durante a prática, questionando-se a crueldade desta.
Nesse embate entre a tradição e o progresso, a questão da vaquejada foi tema de discussão no judiciário e no legislativo, levando à mudança de entendimento acerca da sua constitucionalidade. Percebe-se que, além da colisão de realidades diversas existentes no nosso país, há uma colisão de direitos fundamentais, salvaguardados pela Constituição: o direito à manifestação cultural versus o direito à proteção ambiental.
Desse modo, o presente artigo busca trazer um panorama atualizado da discussão jurídica sobre essa colisão de direitos fundamentais, através de análise doutrinária, jurisprudencial e legislativa, considerando também a disciplina das legislações internacionais.
Primeiramente, antes de se fazer a análise do objeto deste artigo, faz-se necessária uma breve elucidação do conceito de direitos fundamentais, a fim de compreender a sua existência no caso concreto e o entendimento doutrinário acerca da colisão entre estes.
Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 179), direitos fundamentais “são situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana”.
Em outros termos, tratam-se de direitos inerentes a todos os indivíduos, que garantem aquilo que é considerado fundamental ao ser humano. Relacionam-se com a concepção de direitos humanos, porém diferenciam-se destes na medida em que os direitos humanos se referem a garantias estabelecidas em âmbito internacional, ao passo que os direitos fundamentais são aqueles consolidados na Constituição, ou seja, no ordenamento jurídico interno (BASTOS, 2018).
Portanto, no que concerne à natureza jurídica, os direitos fundamentais têm natureza constitucional, uma vez que são “direitos positivados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado” (FERNANDES, 2014, p. 307).
Nesta senda, Marcelo Galuppo (2003 apud FERNANDES, 2014, p. 307-308) sumariza que:
“Os direitos fundamentais são produtos de um processo de constitucionalização dos direitos humanos, entendidos estes últimos como elementos de discursos morais justificados ao longo da História. Assim, os direitos fundamentais não podem ser tomados como verdades morais dadas previamente, mas como elementos em constante processo de (re)construção, haja vista que sua justificação e normatividade decorrem de uma Constituição positiva, igualmente mutável.” (grifos nossos).
Desse modo, compreende-se que os direitos fundamentais, positivados na Constituição, são “condições para a construção e o exercício de todos os demais direitos previstos no Ordenamento Jurídico (interno)” (FERNANDES, 2014, p. 308).
Uma vez esclarecido o conceito de direitos fundamentais, passa-se à análise destes no caso concreto objeto de discussão deste artigo.
1.1 A VAQUEJADA E O DIREITO FUNDAMENTAL À MANIFESTAÇÃO CULTURAL
Os defensores da vaquejada afirmam que a prática é uma tradição cultural do Nordeste, da qual milhares de pessoas dependem e participam. A festividade é um forte símbolo para o nordestino e faz parte das referências aglutinadoras de certos grupos culturais, como o do vaqueiro, tendo sido mantida a sua tradição, independentemente das transformações provocadas pela indústria cultural (SENADO…, 2017, p. 22).
Em razão disso, afirmam que a vaquejada deveria ser reconhecida como manifestação cultural digna de proteção, conforme disposto no art. 215 da Constituição:
“art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Nesse sentido, a prática da vaquejada estaria assegurada pelo direito fundamental de garantia ao pleno exercício dos direitos culturais.
Justamente dentro dessa lógica, é que foi promulgada a Lei nº 13.364/2016, a qual reconheceu o rodeio, a vaquejada e o laço, assim como suas respectivas expressões artísticas e esportivas, como “manifestações culturais nacionais” e elevou essas atividades à condição de patrimônio imaterial cultural brasileiro (BRASIL, 2019), conforme será abordado mais detalhadamente em momento posterior deste artigo.
Cabe ressaltar que, além de argumentarem que a vaquejada é uma manifestação cultural, os defensores dessa prática também alegam que os veterinários se dividem quanto à configuração de crueldade ou maus-tratos aos animais nesta competição e que diversas providências foram tomadas no sentido de evitar que os animais se machuquem, tais como: protetor de cauda, colchão de areia de 40 cm onde os bois caem, e a presença de juízes de bem-estar animal das provas (SENADO…, 2017, p. 17-18).
Por fim, relevante mencionar que também são levantados argumentos econômicos em defesa da vaquejada. Alega-se que a proibição dos torneios traria vasto prejuízo econômico e desemprego, uma vez que a competição movimenta em torno de R$ 600 milhões por ano (SENADO, revista, p. 20). Tais argumentos não serão abordados em maiores detalhes por não pertencerem ao escopo do presente artigo.
1.2 A VAQUEJADA E O DIREITO FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE
Os ambientalistas trazem ao debate outro direito fundamental, o qual acarretaria na proibição da vaquejada: o direito constitucional de proteção à fauna e à flora, com a vedação de práticas que submetam os animais a crueldade.
Conforme disposto no art. 225, §1º, VII da Constituição Federal:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
(…)
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” (BRASIL, 2020, grifos nossos).
Segundo os ambientalistas, a crueldade com os animais é intrínseca à prática da vaquejada, não sendo possível uma regulamentação que eliminasse a violência sem descaracterizar por completo a competição (SENADO…, 2017, p. 16)
Alegam ainda que a prática tem diversas “consequências nocivas à saúde dos animais, como fraturas, ruptura de ligamentos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo e até o arrancamento desta parte do corpo e outros danos causadores de dores físicas” (SENADO…, 2017, p. 16).
Vânia Nunes, veterinária e diretora do Fórum Nacional de Defesa Proteção Animal, explicita que:
“[…] para a prova se realizar, o animal, ao ser solto, deve ser perseguido e ter sua cauda puxada e torcida para que caia exatamente em uma área marcada no chão. Na queda, o bovino deve ficar com as quatro patas para cima. Vânia aponta que isso causa, além de desconforto físico, ferimentos, danos e dor, um sofrimento mental e angústia pela perseguição. Ela explica que a cauda dos animais é a continuação da coluna vertebral e apresenta estrutura semelhante à da espinha.” (SENADO…, 2017, p. 18, grifos nossos.)
Nesse sentido, a prática seria considerada intrinsecamente cruel em razão de a sua mera execução causar experiências de dor, traumatismos, bem como possíveis lesões e danos permanentes nos animais, gerando sofrimento físico e psicológico nos mesmos.
Em artigo independente, assinado por médicos veterinários, auditores fiscais federais agropecuários, integrantes da Comissão de Bem-estar Animal do Ministério da Agricultura, afirmou-se que é impossível adotar providências que evitem que os animais se machuquem durante a vaquejada. Observe-se:
“Em provas onde os animais são derrubados, arrastados, sofrem trancos bruscos, atropelos, a ocorrência de lesão e danos permanentes são agravados. Não há forma de protegê-los com a adoção de boas práticas, simplesmente porque estes são procedimentos contrários as boas práticas. Normativas e recomendações nacionais e internacionais, que orientam o manejo dos bovinos nos sistemas produtivos, do nascimento ao abate, deixam claro que arrastar animais conscientes, conter, segurar, derrubar animais por suas partes sensíveis são práticas proibidas – por serem consideradas maus tratos e absolutamente desnecessárias.” (MUSSI et al., 2016, p. 2, grifos nossos).
Ademais, quando o STF apreciou o tema em sede de ADI, o ministro Roberto Barroso argumentou que a vaquejada não é uma questão complexa de direitos dos animais, tal qual o uso para alimentação ou em práticas religiosas, uma vez que a prática utiliza os animais apenas para fins de entretenimento (SENADO…, 2017, p. 17).
Por fim, o ministro Barroso também aduziu que a norma de proteção aos animais deveria ser considerada autônoma, possuindo valor moral, ou seja, deveria ser considerada a importância do sofrimento animal por si só, independentemente do equilíbrio ambiental (SENADO…, 2017, p. 17).
Tais argumentos serão abordados mais detalhadamente em capítulo próprio, neste artigo.
Elucidados os argumentos que relacionam a vaquejada a distintos direitos fundamentais, passa-se agora à conceituação doutrinária de conflito de direitos fundamentais, para posterior análise da discussão jurídica do tema.
1.3 COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988 possui um extenso rol de direitos fundamentais, no intuito de proteger aquilo que é considerado imprescindível para a existência digna de qualquer indivíduo submetido à ordem jurídica (RIBEIRO, 2018).
Não obstante a intenção do legislador constituinte em elaborar uma Constituição harmônica, é possível identificar situações em que direitos fundamentais com posições opostas, exercidos por diferentes titulares, regulam o mesmo fato concreto (MOREIRA, 2017).
A ocorrência deste fenômeno é denominada colisão de direitos fundamentais, e a sua conceituação se faz necessária para a melhor compreensão do objeto do presente artigo.
Nesse sentido, cabe salientar a lição de Canotilho (1993, p. 643):
“[…] Considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um choque, um autêntico conflito de direitos.” (grifos nossos).
Desse modo, é possível compreender que a colisão de direitos fundamentais somente ocorre quando diferentes direitos fundamentais são incompatíveis de serem exercidos simultaneamente, havendo um choque de direitos.
Observa-se que, a fim de solucionar este conflito de direitos, a jurisprudência pátria vem utilizando cada vez mais um instrumento proveniente do direito constitucional alemão: a “ponderação de bens e interesses, com base na aplicação do ‘princípio da proporcionalidade’” (FERNANDES, 2014, p. 217).
A título de exemplo da utilização deste instrumento, pode ser citada a decisão do STF no ARE 801.676:
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO PELO PODER PÚBLICO DO TRATAMENTO ADEQUADO. SOLIDARIEDADE DOS ENTES FEDERATIVOS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. NÃO OCORRÊNCIA. COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. PREVALÊNCIA DO DIREITO À VIDA. PRECEDENTES. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que, apesar do caráter meramente programático atribuído ao art. 196 da Constituição Federal, o Estado não pode se eximir do dever de propiciar os meios necessários ao gozo do direito à saúde dos cidadãos. O Supremo Tribunal Federal assentou o entendimento de que o Poder Judiciário pode, sem que fique configurada violação ao princípio da separação dos Poderes, determinar a implementação de políticas públicas nas questões relativas ao direito constitucional à saúde. O Supremo Tribunal Federal entende que, na colisão entre o direito à vida e à saúde e interesses secundários do Estado, o juízo de ponderação impõe que a solução do conflito seja no sentido da preservação do direito à vida. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(STF – ARE 801676 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 19/08/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-170 DIVULG 02-09-2014 PUBLIC 03-09-2014, grifos nossos)
Nessa decisão, é possível constatar que, diante da ocorrência de colisão entre direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal fez um juízo de ponderação entre o direito à vida e interesses secundários do Estado, tendo prevalecido o direito à vida.
Portanto, uma vez compreendidos o conceito de direitos fundamentais, bem como o fenômeno da colisão destes e a sua resolução conforme o entendimento da jurisprudência atual, passa-se à análise do conflito entre o direito de manifestação cultural e o direito de proteção ao meio ambiente, presente na discussão da constitucionalidade da vaquejada, tema do presente artigo.
A constitucionalidade da vaquejada foi debatida pelo Supremo Tribunal Federal pela primeira vez em 2013, quando foi ajuizada a ADI nº 4983, a fim de declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, a qual regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado.
Desde então, a referida competição tem sido alvo de discussão jurídica, não apenas no âmbito do Poder Judiciário, como também no do Poder Legislativo, com a edição de leis que buscaram assegurar a constitucionalidade da prática.
Nesse sentido, o presente capítulo se dedica a trazer um panorama jurídico atualizado da discussão da constitucionalidade da vaquejada, analisando-se a colisão de direitos existente nessa contenda.
2.1 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4983/CE
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4983/CE é um marco na discussão da vaquejada, uma vez que foi a primeira vez em que o STF decidiu sobre o tema. Conforme outrora mencionado, tal ADI foi ajuizada em 2013 pelo Procurador-Geral da República, em face da Lei nº 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural no estado.
A Procuradoria-Geral da República argumentou que a lei impugnada não encontrava resguardo na Constituição, pois violava o disposto no art. 225, §1º, inciso VII da CF, uma vez que estudos revelaram lesões e danos irreparáveis sofridos pelos bois e cavalos utilizados na atividade, implicando a vaquejada tratamento cruel e desumano às espécies animais envolvidas (BRASIL, 2017d, p. 4-5).
O Governo do Estado do Ceará, por sua vez, defendeu a constitucionalidade da norma atacada, aduzindo se tratar de manifestação cultural amparada pelo art. 215 da CF. Ademais, argumentou que a norma, ao regulamentar a vaquejada, estaria impondo a prática adequada do evento e estabelecendo sanções às condutas de maus-tratos aos bovinos (BRASIL, 2017d, p. 6)
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal teve de solucionar o conflito entre dois direitos fundamentais: o direito ao pleno exercício dos direitos culturais (art. 215) e o direito à proteção da fauna e da flora que assegure um meio ambiente sadio e equilibrado (art. 225).
O min. Marco Aurélio, relator do feito, trouxe à baila os entendimentos anteriores da corte:
“Os precedentes apontam a óptica adotada pelo Tribunal considerado o conflito entre normas de direitos fundamentais – mesmo presente manifestação cultural, verificada situação a implicar inequívoca crueldade contra animais, há de se interpretar, no âmbito da ponderação de direitos, normas e fatos de forma mais favorável à proteção ao meio ambiente, demostrando-se preocupação maior com a manutenção, em prol dos cidadãos de hoje e de amanhã, das condições ecologicamente equilibradas para uma vida mais saudável e segura.” (BRASIL, 2017d, p. 12, grifos nossos).
Todavia, o Exmo. Ministro (BRASIL, 2017d, p. 12) ressalta que caberia “indagar se esse padrão decisório configura o rumo interpretativo adequado a nortear a solução da controvérsia”. Nesse sentido, passou-se à análise da prática e dos laudos técnicos juntados ao processo.
Segundo o relator, diante dos dados empíricos demonstrados nos autos, depreende-se como irrefutável o tratamento cruel dispensado aos animais envolvidos (BRASIL, 2017d, p. 12). Desse modo, o Exmo. Ministro concluiu que a crueldade às espécies animais é inerente à prática da vaquejada, não prevalecendo o direito à manifestação cultural ao direito de proteção ao meio ambiente.
Nesse sentido, encerra o seu voto: “no âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente” (BRASIL, 2017d, p. 13, grifos nossos).
Outros cinco ministros votaram com o relator, julgando procedente o pedido para declarar inconstitucional a Lei nº 15.299/2013, do Estado do Cerará.
Como mencionado anteriormente neste artigo, o min. Roberto Barroso argumentou que o direito constitucional de vedação da crueldade aos animais deveria ser considerado como tutela autônoma. Observe-se:
“Portanto, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilíbrio do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie.” (BRASIL, 2017d, p. 42, grifos nossos).
Ademais, o min. Roberto Barroso (BRASIL, 2017d, p. 54-55) salientou que seria “impossível regulamentar essa prática de modo a evitar que os animais envolvidos, especialmente bois, sejam submetidos à crueldade”.
Entre os votos divergentes, o min. Edson Fachin (BRASIL, 2017d, p. 15) aduziu que era preciso “despir-se de eventual visão unilateral de uma sociedade eminentemente urbana”, e que não haveria “razão para se proibir o evento e a competição, que reproduzem e avaliam tecnicamente a atividade de captura própria de trabalho de vaqueiros e peões, desenvolvida na zona rural deste grande país”.
Por sua vez, o min. Gilmar Mendes (BRASIL, 2017d, p. 18) alertou a possibilidade de a declaração de inconstitucionalidade levar a vaquejada à clandestinidade.
Os ministros Teori Zavascki e Luiz Fux (BRASIL, 2017d, p. 61 e p. 75-76) argumentaram que a lei regulamentadora poderia coibir a crueldade com os animais, havendo a possibilidade de a crueldade ser cometida justamente na ausência desta.
Todavia, prevaleceu o entendimento do relator, e a suprema corte, realizando juízo de ponderação, decidiu que o direito fundamental de proteção ao meio ambiente se sobressai ao direito de proteção às manifestações culturais. Observe-se:
“[…] VAQUEJADA – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ANIMAIS – CRUELDADE MANIFESTA – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – INCONSTITUCIONALIDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância do disposto no inciso VII do artigo 225 da Carta Federal, o qual veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Discrepa da norma constitucional a denominada vaquejada.”
(ADI 4983, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-087 DIVULG 26-04-2017 PUBLIC 27-04-2017, grifos nossos)
Ao apreciar a ADI nº 4.983, o STF debruçou-se pela primeira vez sobre o tema da constitucionalidade da vaquejada. A decisão da corte vinculou os processos judiciais ainda em aberto pelo país, com a determinação da inconstitucionalidade da prática (SENADO…, 2017, p. 17).
Entretanto, o status de inconstitucionalidade da vaquejada sofreu alterações posteriormente, conforme se verá nos capítulos a seguir.
2.2 LEI Nº 13.364/2016
Em novembro de 2016, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.364, a qual:
“(…) reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais, eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal.” (BRASIL, 2019, grifos nossos).
A referida lei promoveu uma inovação, posto que foi a primeira vez em que algo foi declarado bem imaterial por meio de lei, não se seguindo o processo necessário para se chegar a tal declaração, conforme salientado pela senadora Marta Suplicy (SENADO…, 2017, p. 21)
Vale ressaltar que, usualmente, para algo ser declarado bem imaterial, deve passar por um processo de registro, conforme determinado no Decreto nº 3.551/2000.
Ademais, a Lei nº 13.364/2016, determina em seu art. 3º-B, §§1º e 2º, que sejam aprovados regulamentos específicos para o rodeio, a vaquejada e o laço, os quais devem estabelecer regras de proteção ao bem-estar animal; além de determinar disposições específicas de proteção aos animais na vaquejada. Observe-se:
“Art. 3º-B. Serão aprovados regulamentos específicos para o rodeio, a vaquejada, o laço e as modalidades esportivas equestres por suas respectivas associações ou entidades legais reconhecidas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
I – assegurar aos animais água, alimentação e local apropriado para descanso;
II – prevenir ferimentos e doenças por meio de instalações, ferramentas e utensílios adequados e da prestação de assistência médico-veterinária;
III – utilizar protetor de cauda nos bovinos;
IV – garantir quantidade suficiente de areia lavada na faixa onde ocorre a pontuação, respeitada a profundidade mínima de 40 cm (quarenta centímetros).” (BRASIL, 2019, grifos nossos)
Para os fins de estudo do objeto deste artigo, primordial é compreender que a Lei nº 13.364/2016 reconheceu a vaquejada como manifestação cultural nacional.
2.3 EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 96/2017
Após a promulgação da Lei Federal nº 13.364/2016, foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº 50/2016 pelo Congresso Nacional, promulgando-se a Emenda Constitucional nº 96, de 2017.
A referida emenda acrescentou o §7º ao art. 225 da Constituição Federal. In verbis:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
[…]
VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
[…]
Observa-se que a intenção, portanto, por trás da Lei nº 13.364 e da EC nº 96/2017, foi de “legalizar” a vaquejada. Antes considerada inconstitucional pelo STF, a prática foi reconhecida como manifestação cultural nacional e elevada a condição de bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro por meio da Lei nº 13.364, para que posteriormente não fosse mais considerada cruel, nos termos da EC nº 96/2017.
Desse modo, o Poder Legislativo buscou contornar o juízo do STF na decisão da ADI nº 4983 (BRUXEL, 2017), retirando a vaquejada do status de inconstitucionalidade, uma vez que, nos termos do art. 225, §7º, as práticas desportivas que utilizem animais não seriam consideradas cruéis, desde que fossem manifestações culturais.
Cabe ressaltar que a eficácia plena desta emenda depende da edição de lei específica que regulamente as práticas desportivas, assegurando o bem-estar dos animais envolvidos (BRUXEL, 2017). Entretanto, conforme mencionado anteriormente, a inteligência do Supremo Tribunal Federal afirmou a impossibilidade de regulamentar a prática da vaquejada de modo que os animais não sejam submetidos à maus-tratos e crueldade.
Desse modo, com a promulgação da EC nº 96/2017, restava saber como o Supremo Tribunal Federal iria decidir quando provocado por ADI em face de eventuais leis regulamentadoras da vaquejada, o que será abordado no capítulo seguinte.
2.4 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5.713/PB
O Supremo Tribunal Federal foi novamente provocado a decidir sobre a questão da constitucionalidade da vaquejada, após a promulgação da EC nº 96/2017.
No mesmo ano, o Procurador-Geral da República ajuizou ADI requerendo a declaração da inconstitucionalidade da Lei Estadual nº 10.428/2015, da Paraíba, a qual reconhece a vaquejada como modalidade esportiva.
Desta feita, questionava-se se o STF decidiria conforme o próprio precedente da corte, ou se mudaria o seu entendimento em razão da EC nº 96/2017.
O ministro Marco Aurélio, relator da ação, decidiu monocraticamente, julgando prejudicada a ADI nº 5.713/PB, devido à alteração do parâmetro de controle. Observe-se:
“A promulgação da Emenda de nº 96, em 6 de junho de 2017, implicou alteração superveniente do parâmetro de controle. Apesar de mantida a redação do inciso VII do §1º do artigo 225 da Constituição Federal, incluiu-se o § 7º, a revelar não serem cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que reconhecidas como manifestações culturais e nas condições que especifica.” (BRASIL, 2018, p. 3-4, grifos nossos).
Aduziu o ministro (BRASIL, 2018, p. 4) que “mediante ato do poder constituinte derivado, modificou-se, de forma substancial, o tratamento constitucionalmente conferido à vaquejada”, razão pela qual julgou prejudicada a análise da referida ADI.
Portanto, percebe-se que, com a promulgação da referida emenda, o STF alterou o entendimento acerca da vaquejada, julgando prejudicada a análise de ação que visava à declaração de inconstitucionalidade de lei que regulamentava a prática.
Contudo, a própria EC nº 96/2017 é objeto de ADI’s, a serem apreciadas pelo STF, conforme se verá a seguir.
2.5 AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 5728/DF E 5772/DF
Não obstante a alteração do parâmetro de controle através da promulgação da EC nº 96/2017, deslocando a vaquejada para um status de constitucionalidade, a referida emenda é objeto das ADI’s nº 5728/DF e 5772/DF.
A ADI nº 5728 foi ajuizada pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, organização não governamental sem fins lucrativos. A mencionada organização alegou (BRASIL, 2017b, p. 13) que a emenda “afrontou o núcleo essencial do direito ao meio ambiente equilibrado” (art. 225, §1º VII, da CF), violando também o art. 60, § 4º, IV, da CF, o qual afirma que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.
Ademais, a ONG arguiu (BRASIL, 2017b, p. 14-19) a violação ao Princípio da Proibição de Retrocesso, bem como que o reconhecimento da prática como manifestação cultural não afasta a crueldade desta: “a prática cruel não deixa de sê-lo porque a norma assim resolve”.
Por sua vez, a ADI nº 5572 foi ajuizada pelo então Procurador-Geral da República Rodrigo Janot, em face da EC nº 96/2017 e da expressão “vaquejada”, nos artigos 1º, 2º e 3º na Lei nº 13.364/2016.
O Procurador-Geral da República aduziu, além de argumentos como os mencionados acima, que a vaquejada, por submeter animais a tratamento violento e cruel, “ainda que seja manifestação cultural, é incompatível com a ordem constitucional” (BRASIL, 2017c, p. 4).
Arrazoou que os “maus tratos intensos a animais são inerentes à vaquejada”, expondo as lesões e traumatismos causados aos animais, em razão da prática. Outrossim, salientou que a EC nº 96/2017 ofendeu a limitação material ao poder constituinte de reforma (art. 60, §4º da CF) (BRASIL, 2017c, p. 17 e p.4).
Ambas as ADI’s estão em trâmite, aguardando um possível julgamento conjunto pelo STF. Nesse sentido, cabe aguardar a decisão da suprema corte, a fim de saber se a vaquejada voltará ou não a ser considerada inconstitucional.
Uma vez feito o panorama da discussão da constitucionalidade da vaquejada no Brasil, com o intuito de enriquecer a discussão, será feita breve abordagem da institucionalização dos direitos animais, internacionalmente.
Atualmente no âmbito internacional, observa-se a ocorrência de avanços nos direitos dos animais, revelando que a consideração com o sofrimento animal se tornou um fenômeno social, especialmente nos países ricos ocidentais (LAMY, 2018).
Jérôme Lamy (2018), pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) na França, realizou uma contextualização histórica dos direitos dos animais e assinalou que é possível observar uma “institucionalização progressiva do direito dos animais”.
Segundo o pesquisador (LAMY, 2018), a origem dos direitos dos animais remonta ao Iluminismo, quando os filósofos começaram a questionar o status dos animais perante o homem. Jean-Jacques Rousseau aduz que os animais estão ligados à natureza humana por serem dotados de sensibilidade, razão pela qual devem participar do direito natural. Por sua vez, o filósofo inglês Jeremy Bentham, alguns anos depois, desenvolve a reflexão de Rousseau, afirmando ser a capacidade de sofrer dos animais o fundamento do “direito aos direitos”. Nessa esteira, Peter Singer (2004 apud ROSA, 2010, p. 9) sustentou que “se um ser sofre, não pode haver qualquer justificativa moral para deixarmos de levar em conta esse sofrimento”.
Jérôme (LAMY, 2018) assevera que somente com o início do século XIX surgiram as primeiras leis condenando práticas de maus tratos contra os animais. Entretanto, foi na segunda metade do século XX que começa a surgir um direito próprio destes. A proclamação da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, em 1978 na sede da Unesco, estabeleceu importantes princípios em prol dos animais, mas foi um diploma sem caráter coercitivo.
Contudo, o pesquisador (LAMY, 2018) elucida que com a assinatura do Tratado de Lisboa sobre o funcionamento da União Europeia, em 2007, passaram a vigorar normas que exigiam a consideração do bem-estar dos animais enquanto seres sensíveis, gerando adaptações nas legislações dos Estados-membros. Nesse sentido, na França, em 2015, os animais passaram a ser reconhecidos como “seres dotados de sensibilidade”; na Alemanha, em 2002, a proteção aos animais foi inserida na Constituição como objetivo do Estado.
Jérôme prossegue:
“Assim como Áustria, Dinamarca, Israel, Itália e Reino Unido, a Alemanha proíbe o empanturramento forçado de animais, bem como a presença de animais selvagens nos circos – uma disposição em vigor também na Bélgica, Áustria, Grécia, Dinamarca… Alguns países europeus, tais como a Áustria, a Dinamarca e o Reino Unido, baniram a produção e a venda de peles dos animais, enquanto outros (Noruega, Holanda, Suécia e Estados Unidos) dispõem de uma política encarregada de fazer respeitar os direitos dos animais. Mas talvez a evolução mais impressionante ocorra na Suíça, que não é Estado-membro da União Europeia. As novas regras helvéticas da política veterinária pretendem melhorar o bem-estar animal: proíbem ferver os crustáceos vivos e algumas modalidades de eutanásia, e obrigam que sejam retirados das competições esportivas os animais extremamente estressados pela situação…” (LAMY, 2018).
Nesse sentido, Lamy (2018) evidencia a crescente institucionalização dos direitos dos animais, especialmente nos países desenvolvidos, a denotar que a preocupação com o sofrimento dos animais tem ganhando maior importância nos últimos anos.
Vale ressaltar que existem exceções: no ordenamento jurídico da China, por exemplo, não existem leis nacionais de bem-estar animal ou que proíbam crueldade com os animais (LI, 2012, tradução nossa[2]). Há tão somente uma “Wildlife Protection Law” [Lei de Proteção da Vida Selvagem], com o objetivo de conservar a vida animal selvagem e garantir o seu uso razoável. Por “uso razoável”, entenda-se que os animais selvagens são considerados “recursos naturais”, a serem usados em benefício do homem (LI, 2012, tradução nossa[3]). Isso permite, a título de exemplo, o “cultivo de urso” (bear farming), em que ursos permanecem trancados por toda vida para extração de bile, através de um corte aberto em seus estômagos, um procedimento brutal que muitas vezes causa danos irreparáveis aos órgãos internos (LI, 2012, tradução nossa[4]).
Em que pese a existência de diferentes compreensões na legislação internacional acerca dos direitos dos animais, não se pode negar a crescente institucionalização destes direitos em diversos países, com a compreensão do animal enquanto ser senciente.
Essencialmente, se um ser é capaz de sofrer, isso cria um dever ético de se evitar o sofrimento, uma vez que não pode haver justificativa moral para desconsiderá-lo (SINGER 2004 apud ROSA, 2010, p. 9), e esse dever norteia o rumo que as legislações internacionais de países como a Alemanha, França, Suíça, entre outros, têm seguido.
No âmbito nacional, cabe recordar que a Constituição de 1988 também não deixou os animais desamparados, conforme mencionado anteriormente neste artigo. O min. Roberto Barroso (BRASIL, 2017d, p. 40) elucida que a Carta Magna reconhece o direito à proteção ao meio ambiente “como de caráter fundamental, por sua importância em si e por ser pressuposto essencial de outros direitos fundamentais”, vedando expressamente a crueldade contra os animais (art. 225, § 1º, VII da CF).
Em relação à vaquejada, o Supremo Tribunal Federal entendeu, em um primeiro momento, que o direito ao meio ambiente e à proteção animal era preponderante ao direito à manifestação cultural. Resta saber, com a apreciação das novas ADI’s em face da EC nº 96/2017, se esse entendimento persistirá, em consonância às legislações internacionais, ou não.
CONCLUSÃO
A discussão acerca da vaquejada revela, para além do âmbito jurídico, a existência de diversas realidades no Brasil. Neste país de dimensões continentais, a tradicionalidade do sertão e o progresso das cidades urbanas precisam conviver.
Harmonizar as distintas concepções e pontos de vista acerca de um mesmo fato, no ordenamento jurídico nacional, muitas vezes se mostra uma tarefa complexa, como foi possível observar no presente artigo.
A vaquejada, vista por alguns como manifestação cultural digna de proteção, é entendida por outros como violadora da norma de proteção ao meio ambiente. Nesse sentido, este artigo buscou elucidar o conflito entre estas normas fundamentais, bem como apresentar a discussão deste tema, no âmbito do Poder Judiciário e Legislativo.
Não obstante a importância das manifestações culturais, a sua prática encontra limites constitucionais, não podendo subsistir a manifestação que intrinsecamente pratica crueldade contra os animais, uma vez que esta é incompatível com o art. 225, §1º, VII, da CF. Essa foi a inteligência do Supremo Tribunal Federal para vedar a prática da “farra do boi” e da rinha de galo (RE n. 153.531 e ADI 1856, respectivamente).
Ademais, conforme outrora demonstrado, as legislações internacionais caminham no sentido de proteção ao meio ambiente e ao bem-estar animal, com a crescente vedação de práticas de crueldade contra os animais.
Nesse sentido, o presente artigo, além de fazer uma atualização da discussão jurídica acerca da vaquejada, busca demonstrar que, se o entendimento jurídico nacional prosseguir em consonância com os avanços da legislação internacional, é natural que práticas como a vaquejada tendam a perder o amparo legislativo.
No entanto, como a discussão prossegue, somente nos próximos anos será possível observar qual será o entendimento do STF ao apreciar novamente a questão da constitucionalidade da vaquejada, e se haverá um desfecho que solucionará esse conflito de direitos.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Emenda constitucional n. 96, de 9 de junho de 2017. Acrescenta § 7º ao art. 225 da Constituição Federal para determinar que práticas desportivas que utilizem animais não são consideradas cruéis, nas condições que especifica. Brasília, DF, 2017a. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc96.htm. Acesso em 20 ago. 2020.
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BRASIL. Lei nº 13.364, de 29 de novembro de 2016. Reconhece o rodeio, a vaquejada e o laço, bem como as respectivas expressões artísticas e esportivas, como manifestações culturais nacionais; eleva essas atividades à condição de bens de natureza imaterial integrantes do patrimônio cultural brasileiro; e dispõe sobre as modalidades esportivas equestres tradicionais e sobre a proteção ao bem-estar animal. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/L13364.htm. Acesso em: 09 ago. 2020.
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[1] Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Especialista em Advocacia Cível pela Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Especialista em Direito Constitucional pela ÚNICA. E-mail: clararblach@gmail.com
[2] […] China does not have animal welfare laws or anti-cruelty laws.
[3] Michael Tobias: […] Thirty years later, China, as I understand it, finally adopted a “Wildlife Protection Law” in 1988, the first such law in the nation’s history.
Peter Li: Yes, with two objectives in mind: the conservation of wildlife, and the reasonable use of wildlife animals.
Michael Tobias: Reasonable?
Peter Li: The biggest flaw of the Wildlife Protection Law (WPL) is its positioning of wildlife animals as ‘natural resources’ to be used for human benefits.
[4] Bear farming is arguably China’s most brutal operation. In China today, some 10,000 Asiatic black bears, China’s state-protected species, are caged for life for extracting bile from their gallbladders through an open wound cut in their stomachs. This brutal surgery procedure often causes irreparable damage to their internal organs.
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