Constitucionalismo Abusivo: Análise da Incidência Política e Jurídica no Atual Cenário Brasileiro

Bruno Carvalho Fioravanti Venturato¹, Mayra Thais Andrade Ribeiro², Matheus Magnus Iemini³

Resumo: Em razão das extensas modificações ocorridas no século XX e início do XXI, ocasionadas pelo fim das ditaduras latino-americanas, a promulgação de diversas Constituições, adoção dos regimes democráticos e surgimento do neoconstitucionalismo, surge um novo fenômeno. Através de um modus operandi [i]um tanto quanto inortodoxo, o constitucionalismo abusivo é um fenômeno novo e potencialmente agressivo às democracias estáveis, pois se utiliza dos meios formais e, aparentemente democráticos, para minar a própria democracia instituída. Destarte, embora a descoberta de tal fenômeno seja atual, suas experiências já são bem concretas, possibilitando análise em diversos países em que, de forma predominante, se destacam os locados na América do Sul. Deste modo, far-se-á o estudo do fenômeno, bem como sua utilização, casos em que foi aplicado e possíveis soluções para mitigar sua prática.

Palavras-chave: Constitucionalismo abusivo. David Landau. Democracia. Direito Constitucional

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Abstract: Due to the extensive changes that occurred in the 20th and early 21st centuries, caused by the end of Latin American dictatorships, the promulgation of various Constitutions, adoption of democratic regimes and the emergence of neoconstitutionalism, a new phenomenon emerges. Through a somewhat unorthodox modus operandi, abusive constitutionalism is a new and potentially aggressive phenomenon to stable democracies, as it uses formal and apparently democratic means to undermine the established democracy itself. Thus, although the discovery of such a phenomenon is current, its experiences are already very concrete, enabling analysis in several countries where, predominantly, the locations in South America stand out. Thus, the study of the phenomenon will be done, as well its use, cases in which it was applied and possible solutions to mitigate its practice

Keywords: Abusive constitucionalism. David Landau. Democracy. Constitutional Law

 

Sumário: Introdução. 1.Neoconstitucionalismo. 2.Constitucionalismo abusivo e seu modus operandi. 3.Direito comparado. 3.1 Japão. 3.2 Hungria. 3.3 Honduras, Colômbia e Venezuela. 4 Incidência no Brasil. 5. Teoria do Hiperpresidencialismo. 6. Adoção de uma Corte Constitucional Internacional na Ótica de Landau. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

 

INTRODUÇÃO

Durante o século XX, notáveis foram os momentos históricos que fizeram parte da história mundial, como as duas grandes guerras (1° e 2°), a Revolução Russa, as diversas ditaduras militares instauradas no contexto da América Latina, tais como a ocorrida no Brasil, a partir de 1964, no Chile, a partir de 1973, e na Argentina, a partir de 1966. Cita-se, também, o período Pós-Guerra, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o contexto da Guerra Fria, responsável por polarizar diversos países, fazendo com que estes escolhessem aliar-se aos Estados Unidos da América ou, então, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.  Em virtude desta nociva alienação, e dentre diversos outros fatores, foram instaurados períodos extremamente autoritários em alguns países da América Latina, tendo como ponto ofensivo principal a força bélica e metodologias militares.

Desta forma, findados os supracitados momentos históricos de repressão, os países almejavam o retorno ao regime democrático, como forma de afastar, novamente, os regimes autoritários. Por conseguinte, a retomada à democracia e a elaboração de uma nova Constituição, foram passos precursores na ampliação e criação dos direitos fundamentais, tão violados durante as ditaduras.  A convocação da Assembleia Constituinte e a promulgação de uma nova Constituição, foram momentos extremamente vitoriosos e vanguardistas, na medida em que vislumbravam um novo momento fortuno que estava por vir.

No entanto, embora o retorno ao período constitucional democrático fosse à primeira vista algo positivo e perfeito, passados os anos, os mecanismos tidos como constitucionais passaram a ser utilizados de forma aviltante ao esperado. A utilização de meios constitucionais, como forma de fragmentar a democracia, desconstituir o pluralismo político, alongar, de forma tirânica, a perpetuação no poder e, abrandar direitos, recebe a terminologia de constitucionalismo abusivo.

Tendo como prógono o professor David Landau, PhD pela Universidade de Harvard e professor da Florida State University College of Law, o abusive constitucionalism [ii]é um fenômeno que surge em ligação com o neoconstitucionalismo. Este novo período constitucional, é conceituado por um conjunto de transformações ocorridas no Estado e no Direito Constitucional, aproximando o Direito e a moral, de forma a concretizar os valores propostos pela Constituição. Uma vez que, não negando sua importância, o realismo jurídico afastou, de certo modo, o Direito das discussões com a legitimidade e a justiça. E com isto, o pós-positivismo, marco filosófico do neoconstitucionalismo, busca a reaproximação do Direito e a filosofia, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana. O fenômeno do constitucionalismo abusivo se difere totalmente dos métodos tradicionais, visto que, não há o emprego de métodos bélicos para o seu incremento. Sua aplicação é silenciosa, se utilizando de meios formais que, externamente parecem válidos, mas que, em seu inteiro teor, pratica atos nocivos ao ordenamento jurídico vigente. Em razão disso, sua notabilidade é um tanto quanto complexa, fazendo com que as supremas cortes analisem pontualmente essas modificações. Hodiernamente, há relatos práticos na Venezuela, Colômbia, Equador, Honduras, Hungria, Japão e no Brasil.

 

  1. NEOCONSTITUCIONALISMO

Primando pela existência de uma Constituição, que pudesse separar, alterar e limitar os poderes, estabelecer uma democracia e garantir os direitos fundamentais, o constitucionalismo moderno surge influenciado por ideais jurídicos, filosóficos e políticos.  Apesar de embates doutrinários a respeito do surgimento do constitucionalismo, adotar-se-á os ensinamentos do professor André Hauriou (1967, p.30 e segs.), afirmando categoricamente que “o início do Direito Constitucional se encontra no Mediterrâneo oriental e, mais precisamente, na Grécia”. Não obstante, pequenas foram as ações e ligações com o Direito Constitucional, sendo o século XVIII, o momento glorioso no surgimento de Constituições e a iniciação ao constitucionalismo moderno. De forma a complementar esta ideia, “finalmente, no século XVIII, conjugam-se vários fatores que iriam determinar o aparecimento das Constituições e infundir-lhes as características fundamentais”. (DALLARI, p.169).

 

Num período marcado pelo iluminismo, surgiram na França e nos EUA, diversos documentos com ideais fundamentais, e que estavam diretamente ligados ao constitucionalismo. Dentro deste contexto, cita-se a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia, em 1776 e a Constituição norte-americana de 1787, elaborada pelos autores. Na França, dois foram os documentos pertinentes ao constitucionalismo moderno. Inicialmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a posteriori, a Constituição Francesa de 1791, que teve como preâmbulo o documento anterior.

 

De forma complementar, analisa muito bem o professor Pedro Lenza (2020, p.66) ao destacar que:

“Nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo. Essa perspectiva, para se ter um exemplo, influenciou profundamente as Constituições brasileiras de 1824 e 1891”.

 

De forma complementar ao que foi elencado acima, no início do século XXI, surge uma nova noção ao constitucionalismo, que busca aproximar o Direito e a moral, com o intuito de concretizar os valores constitucionalizados. O neoconstitucionalismo, constitucionalismo pós-moderno ou pós-positivismo, se configura como um novo movimento constitucional. De acordo com Walber de Moura Agra (2008, p.31), “o neoconstitucionalismo tem como uma de suas marcas a concretização das prestações materiais prometidas pela sociedade, servindo como ferramenta para a implantação de um Estado Democrático Social de Direito”.  A conjuntura elaborada pelo neoconstitucionalismo traz, desta forma, o jusnaturalismo para dentro do campo positivista, buscando empregar uma leitura moral do Direito, sem questões metafísicas. Uma interpretação mais ampla do ordenamento jurídico, que possa expandir a jurisdição constitucional.

Não obstante, houve a necessidade da retomada dos valores morais na aplicação legal, uma vez que, “em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2° Guerra, a ética e os valores começam a retornar ao Direito”. (BARROSO, p.5-6)

Embarcado por este novo momento constitucional, diversos fenômenos foram colocados em pauta e analisadas suas criações, tais como o backlash[iii], constitucionalismo popular e o constitucionalismo abusivo, sendo este o objeto de estudo.

2. O CONSTITUCIONALISMO ABUSIVO E SEU MODUS OPERANDI

Recentemente, em razão da presença legislativa e judiciária na limitação de atos do executivo que, de certo modo, possam extrapolar seus limites regulamentares, afastou-se a ideia de um possível excesso de poderes por parte do chefe de Estado. No entanto, em razão dos novos métodos que surgiram ao longo da década, houve a possibilidade de ampliação das funções do órgão Executivo, de forma a manter-se no poder e minar a oposição.  Ao descrever estes novos métodos, cita-se o constitucionalismo abusivo, que é um fenômeno novo e perigoso às democracias globais.

Para David Landau (2013, p.191), descobridor do fenômeno aqui elencado, “o uso de mecanismos de alteração constitucional – emenda constitucional e substituição constitucional – para minar a democracia. Enquanto métodos tradicionais de derrubada democrática, como o golpe militar estão em declínio há décadas, o uso de instrumentos constitucionais para criar regimes autoritários e semiautoritários é cada vez mais prevalente. Presidentes e partidos em exercício que, são poderosos, podem projetar mudanças constitucionais de modo a se tornarem muito difíceis de desalojar e possam desarmar instituições como tribunais que são destinados à verificação dos seus exercícios no poder”.

Nos vocábulos de Bernardo Gonçalves (2020, p.91), o constitucionalismo abusivo se configura como um “fenômeno que vai muito além dos comuns regimes autoritários, cuja inconstitucionalidade é clara (salta aos olhos), porquanto sua subsistência reside nas entranhas de suas cartas magnas, cujos mecanismo ordinários de defesa para combatê-lo são praticamente ineficazes”.

Neste mesmo sentido, Pedro Lenza (2020, p.92) completa, “não se trata do uso da força, como pode ser observado nos períodos ditatoriais ou nos regimes implantados após golpes militares, nos quais a ruptura constitucional é evidente, inquestionável, declarada e assumida, mas da transformação da ordem constitucional com mudanças sutis e que podem chegar até mesmo ao controle indireto da Suprema Corte”.

Tendo como modus operandi os meios legais, o constitucionalismo abusivo utiliza métodos formais ou a própria Constituição como escopo para prática de atos antidemocráticos, que visam reduzir a equitatividade na concorrência da oposição e dos críticos ao governo. Dentre suas características, destacam-se às alterações no tempo do mandato presidencial, possibilidade de reeleições ilimitadas, controle de instituições fiscalizadores da gestão através de nomeações pontuais e alteração no quórum de aprovação de propostas.

Desta forma, vale reforçar a ideia de que “os líderes populares obtêm mandatos por meio de eleições, porém se utilizam do poder, das competências e dos institutos constitucionais para restringir a separação dos poderes, a transparência no trato com a coisa pública e as liberdades constitucionais especialmente de grupos oposicionistas, de grupos da sociedade civil, de mecanismos de comunicação social e de coletivos.” (FILHO e BARBOZA, p. 7)

De acordo com David Landau (2013, p.199):

 

“Há competição eleitoral suficiente para as forças da oposição competirem e ocasionalmente ganharem. Mas, ao mesmo tempo, o baralho é sistematicamente empilhado contra aqueles que tentam destituir os titulares por meio de uma variedade que significa: controle governamental da mídia, assédio à oposição políticos e operadores, uso de recursos de patrocínio do estado para garantir votos e, em alguns casos, fraude eleitoral. Como resultado, os titulares atualmente no poder tendem a permanecer no poder, e os mecanismos verticais de responsabilidade ficam distorcidos”.

 

Os mecanismos de accountability[iv] se orientam em faces horizontais e verticais, sendo que, na horizontal, os atos dos governantes serão fiscalizados pelos demais órgãos, ou seja, Legislativo e Executivo. Enquanto no vertical, tratado acima, a fiscalização será feita pelos cidadãos, através de plebiscito ou referendo, ou até mesmo usualmente, através do voto.

No decorrer do artigo, ficará mais evidente a aplicação e o modo de operação deste fenômeno, através de casos práticos ocorridos em diversos países e que, se mostra tão nocivo ao regime democrático.

 

3. DIREITO COMPARADO

3.1 Japão

Embora em abundância na América Latina, o fenômeno do constitucionalismo abusivo já se fez presente em outros continentes, incluindo países com índices democráticos bem estáveis. Deste modo, cita-se o Japão, tendo como líder máximo o Primeiro-ministro japonês Shinzo Abe. Ao fazer menção ao fato ocorrido, David Landau (2013, p.192) explica que, em 2013, o Primeiro-ministro havia anunciado “que buscaria mudanças constitucionais que reduzissem as maiorias necessárias para a mudança constitucional no parlamento de dois terços para apenas uma maioria simples”.

 

As mudanças foram feitas, e o quórum de aprovação foi alterado para uma maioria simples, em 2014.  Importante lembrar que, no mesmo ano, em matéria apurada pela revista “Veja”, “a polêmica entre os japoneses após a eleição foi a possível mudança, defendida por Abe, do artigo 9 da constituição, que renuncia iniciativas de guerra por parte do país. Atualmente, a cláusula proíbe o Japão de usar suas forças militares para estabelecer disputas internacionais e permitir que o exército funcione apenas de forma defensiva. Se aprovada no Parlamento, a emenda precisaria passar por maioria simples em um referendo nacional”.

A interpretação com base no artigo 9 foi aprovada, e o Japão agora pode intervir em conflitos armados quando seus aliados forem atacados. Lembrando que Abe foi eleito em quatro mandatos, com índices populares esmagadores (cerca de 70%) e um forte apoio das Câmaras.

 

3.2 Hungria

Caminhando para o continente Europeu, em 2010, eleito por 68% do eleitorado nacional, Viktor Orbán iniciou diversas alterações constitucionais. Dentre elas, se destaca a alteração do Tribunal Constitucional, passando de 11 para 15 membros, de forma a assegurar assentos adicionais e mais nomeações.

Tal entendimento está disposto no artigo 24 parágrafo 4° da Constituição Húngara de 2011, in verbis:

“§4 O Tribunal Constitucional será um órgão de quinze membros, cada um eleito por doze anos por um voto de dois terços dos membros do Parlamento. O Parlamento deverá eleger, com uma maioria de dois terços dos votos, um membro do Tribunal Constitucional para servir como seu Presidente até o término de seu mandato como juiz constitucional. Nenhum membro do Tribunal Constitucional deve ser filiado a qualquer partido político ou se envolver em qualquer atividade política”.

 

Além disso, cita-se que “foi criada uma nova Agência Nacional de Justiça, controlada pelo partido, com amplos poderes sobre a seleção de juízes e das designações de casos dentro da jurisdição ordinária”. (LANDAU, p.209)

Vale lembrar que em 2011, a Comissão de Veneza (Comissão para a Democracia Através do Direito), órgão consultivo sobre questões constitucionais do Conselho da Europa, emitiu um importante parecer sobre esta questão.

A Comissão de Veneza salientou que “a independência do judiciário como tal não era garantida em si mesma, mas apenas através do princípio da separação dos poderes”. (2011, p.4). E continuando, pediu uma “declaração clara de que os tribunais constituam um poder separado independente. Além disso, recomendou, que uma orientação clara ao princípio da independência do poder judiciário e garantias concretas para a administração autônoma do judiciário fosse incluída na lei ordinária pertinente”. (2011, p.5)

 

3.3. Honduras, Colômbia e Venezuela

Em 2009, o então presidente Manuel Zelaya, convocou um plebiscito com intuito de conseguir parecer favorável à elaboração de uma nova Assembleia Nacional Constituinte, com foco em incrementar uma quarta urna nas seções eleitorais, intuito totalmente inconstitucional. Desta forma, de acordo com David Landau et al. (2011, p.4), “nossa conclusão é que Zelaya Rosales não tinha autoridade legal para exigir uma “consulta popular” ou “pesquisa de opinião” em âmbito nacional via decreto executivo. Além disso, ele colocou ilegalmente a gestão da votação nas mãos do Instituto Nacional de Estatística, que não estava autorizada a exercer essa função”.

Zelaya foi destituído do cargo no dia 28 de junho de 2009, após cumprimento de ordem judicial e enviado à Costa Rica, sendo suspeito de cometer 18 delitos, incluindo traição à pátria e descumprimento de leis aprovadas pelo Congresso.

E David Landau et al.  (2011, p.8) alerta:

 

“Os eventos em torno da destituição do presidente Zelaya Rosales demonstram três perigos importantes para a democracia moderna, tanto regionalmente na América Latina como em todo o mundo. O primeiro é o risco de um presidente-executivo em exercício abusar de seu poder e, portanto, procuram minar os valores democráticos e o Estado de Direito de dentro do Estado […]. O segundo é o risco de transferências irregulares de poder, e particularmente o risco significativo representado pela intervenção militar na política. Militares intervenção na política tem sido um problema crítico na política latino-americana e continua a ser um problema importante em todo o mundo. O terceiro é a falta de clareza quanto aos papéis e funções que diferentes atores políticos deveriam ter assumido durante uma crise política ou social, e a falta de mecanismos claros para determinar os conflitos entre esses atores. Muitas constituições e ordens legais fazem um mau trabalho tanto em atribuição de funções a diferentes instituições ou na criação de mecanismos para decidir conflitos entre essas instituições.”

 

Já no caso colombiano, após ser eleito em 2002, o presidente Álvaro Uribe Vélez, diante da extensa popularidade alcançada em razão da queda acentuada nos índices de violência no país, que lhe ocasionou a reeleição com mais de 60% dos votos, promoveu uma emenda à Constituição para que fosse permitido um segundo mandato. Em observância aos demais ordenamentos jurídicos internacionais e, “por uma tendência geral para endossar a possibilidade de reeleição presidencial imediata, especialmente para escolher governantes carismáticos […] como foi o caso na Colômbia com Uribe”. (UPRIMNY, p.1598).

No entanto, após ser questionada sobre esta alteração, a Corte Constitucional colombiana entendeu ser plausível os dois mandatos presidenciais, visto ser usual internacionalmente. Passados os dois mandatos, os apoiadores de Uribe propuseram uma nova emenda à Constituição, visando a permissão para um terceiro mandato, e um referendo que pudesse ratificar tal entendimento. Após ser confrontada novamente, a Corte, desta vez, vetou tal proposta, em razão de inconstitucionalidades formais e materiais. A decisão foi cumprida por Uribe, e o mesmo não obteve a permissão para concorrer a um novo mandato. Recentemente, em agosto de 2020, foi decretada a prisão preventiva de Uribe, com acusações por suborno e fraude processual, além de envolvimento com grupos paramilitares e com milícias.

Sendo o caso venezuelano o mais visível e danoso, em 1998, com 56% dos votos, Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela. Chávez quando eleito, ainda que de forma indireta, foi beneficiado, pois “o país desfrutou de uma democracia bipartidária bastante forte por várias décadas, mas, na época em que Chávez foi eleito, os dois partidos tradicionais perderam o apoio e estavam enfrentando uma série de escândalos de corrupção”. (LANDAU, p.202)

Ainda assim, de acordo com Landau (p.202):

“Chávez enfrentou oposição de membros dos dois partidos, que continuaram a controlar a maioria no Congresso Nacional, na Suprema Corte, nos governos estaduais e locais, além de outros órgãos”.

 

Em virtude disto, começou a movimentar-se para alterar a situação e conseguir ampliar seus poderes e cumprir sua agenda. Inicialmente, propôs um referendo que visasse a elaboração de uma nova Assembleia Constituinte, através do fundamento que o povo detinha o poder constituinte originário. Tal fundamento foi acatado pela corte, permitindo que a elaboração fosse feita, mas, a posteriori, não conseguiu limitar este poder, sendo que essas limitações, entretanto, nunca se mostraram eficazes, visto que a Corte nunca as usou para derrubar um ato importante de Chávez ou da Assembleia”. (LANDAU, p.203)

Com isso, Chávez conseguiu criar um conjunto de alterações inteiramente favoráveis a ele, reduzindo drasticamente a paridade de armas com a oposição. O período para exercício do mandato era único, com prazo de quatro anos, e Chávez conseguiu alterá-lo em seis anos e com possibilidade para um novo mandato.  Fez com que, embora conseguisse 60% dos votos, ocupasse 90% dos assentos na Assembleia, o que fez com que ele pudesse aprovar facilmente qualquer proposta. Suspendeu o Congresso, criou um Conselho responsável em intervir, purgar o Judiciário, removeu funcionários públicos e fechou a Suprema Corte.  Fatos estes contestados ante a Suprema Corte que não fez, sustentando a validade desses atos com base no fundamento do poder constituinte originário. Hodiernamente, a Venezuela é presidida pelo vice de Chávez, Nicolás Maduro, e vive períodos drásticos de hiperinflação, escassez de alimentos e desemprego.

 

4. INCIDÊNCIA NO BRASIL

Primordialmente, um fato interessante acerca do fenômeno no Brasil é o que “diz respeito à promulgação da Emenda Constitucional nº 16, em 04 de junho de 1997, a qual alterou o §5º do art. 14, permitindo a reeleição do Presidente da República, dos governadores do Estado e do Distrito Federal e dos Prefeitos para um período subsequente”. (FILHO; BARBOZA, 2018, p.92)

Há pouco tempo, através da suspensão de trechos de um decreto elaborado pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro, o Ministro Luís Roberto Barroso alertou, em sua decisão, a incidência de um novo fenômeno prejudicial à democracia no Brasil denominado de constitucionalismo abusivo. Acerca do decreto elaborado em 2019, a respeito do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), Bolsonaro reduziu o número de conselheiros, passando de 28 para 18, retirando cinco vagas da sociedade civil e dispensando todos que estavam em pleno mandato. Ressalta-se que o Conanda atua de forma incisiva na fiscalização das políticas públicas voltadas a estes temas envolvendo crianças e adolescentes, e uma possível interferência do poder Executivo neste órgão seria um tanto quanto inadequada.

Em seu voto, Barroso (ADPF 622) reforçou que, “ao contrário, as maiores ameaças à democracia e ao constitucionalismo são resultado de alterações normativas pontuais, aparentemente válidas do ponto de vista formal, que, se examinadas isoladamente, deixam dúvidas quanto à sua inconstitucionalidade. Porém, em seu conjunto, expressam a adoção de medidas que vão progressivamente corroendo a tutela de direitos e o regime democrático”.

Em abril de 2020, o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para chefia da PF. Ao anunciar sua demissão do Ministério da Justiça, o ex-ministro Sérgio Moro fez duras críticas a Bolsonaro. De acordo com o site “Conjur”, Moro disse que Bolsonaro almejou uma indicação para ter um “contato pessoal dele [na PF] para poder ligar e colher relatórios de inteligência”.

De acordo com Moraes (MS 37.097):

“Logicamente, não cabe ao Poder Judiciário moldar subjetivamente a Administração Pública, porém a constitucionalização das normas básicas do Direito Administrativo permite ao Judiciário impedir que o Executivo molde a Administração Pública em discordância a seus princípios e preceitos constitucionais básicos, pois a finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos, que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.

 

Importante citar, também, a MP 979/2020, que autorizava a nomeação de reitores das faculdades federais que tiverem mandatos encerrados durante a pandemia do coronavírus, sem consulta à comunidade universitária. Contrariando, assim, a nomeação pela lista tríplice e ferindo o princípio da autonomia universitária. A MP foi revogada pelo próprio Presidente, após devolução da mesma pelo Legislativo, devido a sua não votação pelo Congresso.

Não obstante, recentemente, em matéria apurada pela revista “Época”, a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) estaria, supostamente, envolvida na investigação de Flávio Bolsonaro, que é senador e filho do atual presidente. De acordo com Guilherme Amado, jornalista da revista, a ABIN estaria produzindo relatórios para auxiliar a defesa do Senador no processo envolvendo as “rachadinhas[v]”. A informação foi confirmada pela defesa de Flávio, e que os relatórios contêm dados que comprovam a existência de uma facção criminosa dentro da Receita Federal. E que está estaria realizando uma inquirição ilegal nos dados fiscais do senador, de modo a prejudicá-lo.

Em trechos retirados do site Conjur (2020), dentre os dois relatórios indicados, um tinha como fundamento “defender FB [Flávio Bolsonaro] no caso Alerj, demonstrando a nulidade processual resultante de acessos imotivados aos dados fiscais de FB”.

Já o segundo relatório, frisa que “permanece o entendimento de que a melhor linha de ação para tratar o assunto FB e principalmente o interesse público é substituir os postos conforme relatório anterior. Se a sugestão de 2019 tivesse sido adotada, nada disso estaria acontecendo, todos os envolvidos teriam sido trocados com pouca repercussão em processo interno na RFB [Receita Federal]”. (CONJUR, 2020)

Em nota lançada pelo Sindifisco Nacional, órgão de representação dos auditores fiscais da Receita, “o fato é inaceitável em todos os sentidos. Se não bastasse a gravidade de se ter uma agência de inteligência mobilizada para defender o filho do presidente da República, acusado de atos ilícitos, como a rachadinha na Alerj, não se pode admitir que um órgão de governo busque interferir num órgão de Estado, protegido pela Constituição Federal, sugerindo o afastamento de servidores públicos”. (CONJUR, 2020)

Comandada pelo seu diretor-geral, Alexandre Ramagem, a ABIN entrará na justiça com uma interpelação judicial, através da Advocacia Geral da União, para contestar o repórter Guilherme Amado, responsável pela matéria. Lembra que, se tais fatos forem verídicos, será uma afronta extremamente perigosa à ordem constitucional democrática, remontando aos períodos sombrios da ditadura, onde órgãos de inteligência eram utilizados de forma antidemocrática e com finalidades pessoais.

Todos os casos aqui supracitados indicam para um constitucionalismo abusivo que se movimenta a passos largos no Brasil.

 

5. TEORIA DO HIPERPRESIDENCIALISMO

A criação do presidencialismo, de certa forma, se dá em repúdio à Monarquia, como forma de limitar os poderes, estabelecer as ideais democráticas, em observância a liberdade e a igualdade entre os indivíduos, prevalecendo, assim, a vontade popular nas decisões a serem feitas. Nas palavras do brilhante professor Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 57), “o presidencialismo foi uma criação americana do século XVIII, tendo resultado da aplicação das ideais democráticas, concentradas na liberdade e na igualdade dos indivíduos e na soberania popular, conjugadas com o espírito pragmático dos criadores do Estado norte-americano”.

Deste modo, com a instituição dos regimes constitucionais democráticos instaurados, como por exemplo, na América Latina, surgem novos temas a serem debatidos. Como o hiperpresidencialismo, ocasião na qual o presidente tem amplos poderes em virtude de mecanismos assegurados constitucionalmente, tais como aqueles de processo legislativo. Este excesso de funções é prejudicial, pois afeta a democracia, ao não se alinhar com os ideais do povo que o elegeu, e ao sistema deliberativo, pois não há cooperação com os demais órgãos.

Nas palavras de Roberto Gargarella (2010, p.272):

 

“[…] como para muitos outros autores, resultava claro que o hiperpresidencialismo implicava na concentração exacerbada de poder, de responsabilidades e de expectativas em uma só pessoa por um período determinado. Qualquer súbita desilusão com o presidente, qualquer queda da sua popularidade ou problema de sua saúde tendia a traduzir-se como uma crise do sistema político. Qualquer crise política e econômica se transformava em uma crise sistêmica. Ainda pior, dado que o sistema carecia de válvulas de escape para remediar os desajustes, a eleição de um presidente tendia a aparecer como a única saída para sair da crise”.

 

De forma complementar, “um presidente com um alto poder Executivo não se compatibiliza com a visão deliberativa da democracia, já que “pode acarretar a ideia de que a democracia, como governo do povo, reduza-se ao governo de um”. (MACEDO, 2014, p.511)

O diálogo entre o Executivo e o Legislativo é essencial para resolução do conflito, pois se o próprio Executivo não conseguir manter uma relação estável com o parlamento, o próprio não conseguirá colocar seus projetos políticos e sua agenda em prática. No Brasil, além de possíveis nomeações para Ministérios como forma de angariar apoio no Congresso, a formação de coalizões também é bastante. E, também, “[…] há o fenômeno do hiperpresidencialismo, com um protagonismo exacerbado do Presidente da República, em razão do desenho institucional previsto na Constituição Federal brasileira”. (MACEDO, 2014, p. 496-510)

A Constituição prevê a elaboração de medidas provisórias e decretos por parte do presidente, participando, assim, ativamente do processo legislativo. Extremamente arriscado, pois conforme os ensinamentos de Lenio Luiz Streck e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (2013, p. 1119), “o processo legislativo é o núcleo central do regime constitucional no Estado Democrático de Direito.”

Desta forma, o hiperpresidencialismo funcionaria como um “propulsor” ao constitucionalismo abusivo, e que também pode afetar a democracia de forma extremamente negativa.

 

6. ADOÇÃO DE UMA CORTE CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL NA ÓTICA DE LANDAU

Preliminarmente, de acordo com David Landau (2013, p.256), uma das possibilidades encontradas “seria fornecer mecanismos constitucionais específicas entre os Estados exigindo, por exemplo, que as constituições possuam certos elementos, como procuradorias, cortes constitucionais etc.”. Com isto, padrões constitucionais poderiam ser criados, visando uma adaptação mundial nos modelos de Constituição, como forma de evitar possíveis lacunas que possibilitem a ação do constitucionalismo abusivo. No entanto, explica que tal possibilidade seria inalcançável, uma vez que “seria necessário um consenso sobre o desenho constitucional que parece não existir na maior parte do mundo”. (LANDAU, 2013, p.257)

Já a respeito do supracitado tópico, embora tenha sido ineficaz, a Comissão de Veneza, no caso da Hungria, pediu para que o governo húngaro emitisse um parecer sobre algumas alterações feitas na Constituição da Hungria. Este episódio serviu como delineador dos pensamentos a respeito da corte constitucional.

Pois como informa David Landau (2013, p.258):

 

“A mais ousada de todas as propostas é o recente apelo por uma Corte Constitucional Internacional. No meio dos complexos avanços e retrocessos democráticos da Primavera Árabe, o Presidente interino da Tunísia, Moncef Marzouki, argumentou que tal órgão seria útil precisamente como proteção contra o constitucionalismo abusivo. Como ele declarou em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, “as ditaduras atribuem a si próprias uma ‘falsa legalidade’ organizando eleições fraudulentas e usando princípios democráticos para minar a própria democracia”. A Corte teria poderes para combater esses abusos, por exemplo, denunciando certas constituições ou cartas ilegais ou eleições ilegais ou fraudulentas”.

 

E de forma complementar, fazendo uma importante observação, a criação da corte internacional não solucionaria todos os problemas, haja visto que “tal corte seja capaz de eliminar violações flagrantes da ordem constitucional – eleições malfeitas, por exemplo -, mas não lidar com os atos mais sutis de constitucionalismo abusivo apontados nesta pesquisa”. (LANDAU, p.260)

A criação de uma corte internacional seria uma alternativa viável ao controle de atos constitucionais que possam mitigar a democracia, mas sua aplicação ainda é incerta. Deste modo, cabe ressaltar a importância das instituições já existentes no controle destes atos, agindo de forma proativa e observando cuidadosamente cada ato do órgão Executivo e do Legislativo, sempre, é claro, respeitando a separação dos poderes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto no artigo, em relação à corte constitucional internacional, faz-se necessário um maior aprofundamento em sua estruturação e criação, de modo a servir como limitador do constitucionalismo abusivo.

Deste modo, a presença do Supremo Tribunal Federal é extremamente necessária neste contexto, de forma a frear possíveis atos abusivos do órgão Executivo. A participação do Congresso Nacional também é de suma importância, de forma a dialogar e se atentar ao processo legislativo realizado pelo presidente da República, não se deixando pressionar por fatores externos.

A opinião popular é fundamental no Estado democrático e de direito, pois serve como legitimador e porta-voz dos anseios sociais. No entanto, um povo que segue cegamente seu candidato, mesmo este praticando atos contrários à democracia, não os legitima. O papel do órgão Judiciário é contramajoritário, como vem sendo debatido constantemente, e o Judiciário deve prevalecer esse entendimento.

Num Estado soberano que esteja contaminado pelo constitucionalismo abusivo, a vivência será sob a égide de um estado autoritário, algo inaceitável atualmente, ainda mais, quando este se utiliza de métodos aparentemente legais para sua aplicação.

 

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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_____. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança coletivo n°37.097/DF. Relator Ministro Alexandre de Moraes. Data de Publicação: 12 de maio de 2020. Voto do relator. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MSRamagem.pdf> Acesso em 14 de novembro de 2020

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¹Acadêmico e Pesquisador do Segundo Período do Curso de Direito da Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS).

²Orientadora. Professora da UNIFENAS. Doutora e Mestre em Direito Público Internacional pela PUC Minas. Especialista em Estudos Diplomáticos. Advogada.

³Orientador. Professor da UNIFENAS. Mestre em Direito Constitucional pela FDSM. Especialista em Ciências Criminais pela UNIDERP. Advogado.

 

[i] Uma maneira particular de fazer algo (Cambridge Dictionary)

[ii] Terminologia do fenômeno do constitucionalismo abusivo em inglês

[iii] Um forte sentimento entre um grupo de pessoas em reação a uma mudança ou eventos recentes na sociedade ou na política (Cambridge Dictionary)

[iv] Fiscalização e prestação de contas da administração pública

[v] Consiste no repasse, por parte de um servidor público ou prestador de serviços da administração, de parte de sua remuneração a políticos e assessores

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