INTRODUÇÃO
A doutrina internacionalista tem-se debruçado sobre a temática especialmente em meados deste século, quando foi crescente o número de contratos com o Estado surgidos após a II Guerra Mundial, aviltando as dificuldades para soluções de pendências quando estas ocorressem. O tema assume extremo relevo em face da tendência mundial de globalização da economia. Procura-se insistentemente por uma solução reconhecida e legitimada pelos povos, portanto de caráter internacional, a ser adotada nestes tipos contratuais especiais.
A disparidade de partes contratantes – de um lado a soberania do Estado e de outro o poder da empresa (geralmente multinacional), o receio de parcialidade e da recorrência a Tribunal de terceiro Estado – que provoca a discussão sobre a imunidade – ressalta a busca da internacionalização ou desnacionalização dos contratos pretendendo levar a solução de eventuais pendências, ou para Cortes internacionais, ou para tribunais arbitrais neutros representando alternativas para a justiça estatal.
Porém, esta afirmação última não tem sido majoritariamente aceita, pois, desde 1929[1], consagrou-se a tese de que o Direito Internacional Público nunca poderia servir de base para solução de conflitos contratuais quando firmados entre o Estado e o particular. As empresas não poderiam igualar-se aos Estados, pois somente estes possuem o treaty making power. Doutrinariamente esta decisão provocou a sensação inequívoca de que um contrato que não seja entre países, tem seu fundamento obrigatoriamente numa lei nacional.[2] O problema é que esta lei nacional é o direito da nação contratante. A soberania lhe confere, inclusive, unilateralidade sobre as normas que irão regular estes contratos, bem como a alteração das mesmas, mesmo após o avençado, em proveito exclusivo desta parte: o Estado.
O bombardeio sofrido pelos que defendem a internacionalização destes contratos, baseia-se basicamente no argumento de que salvo parcas exceções, a internacionalização do contrato almeja unicamente a proteção dos interesses da empresa multinacional, para que prevaleçam este em face de interesses públicos revelados pelo Estado contratante, em caso de conflito de ambos.[3]
Ora, primeiramente há que inquirir-se: Quem é que pode garantir, no atual estágio do papel do Estado no mundo contemporâneo, que o interesse do contratante Estado é realmente interesse público? Segundo, quem pode afirmar não serem legítimos os interesses privados, muitas vezes, sustento e avalista das ações do Estado?Queiramos ou não admitir, toda a polêmica desemboca em uma única indagação: qual a extensão da soberania de um Estado nos dias atuais? Haverá limites?
1. CONTRATOS INTERNACIONAIS COM O ESTADO – Considerações gerais
Também conhecidos como state contracts ou internacional agreement, a espécie tem características muito específicas.
Os quatro princípios básicos contratuais,[4], podem ser analisados a partir das características particulares desta espécie de contrato. O primeiro deles, o da autonomia da vontade. Evidencia-se o fato de não ser absolutamente livre esta autonomia, pois uma das partes, o Estado, necessariamente deverá defender um interesse muitas vezes subjetivo, o interesse público. É a vontade da cidadania que deverá estar representada e esta não é expressa de forma ordenada, senão que por uma complexa rede formada por leis e tratados, que confrontam com o poder discricionário, representado pelo que se convencionou chamar ato de príncipe. Pois bem, a vontade registrada no contrato, pode não ser a do interesse do público contratante, pode haver espelhado posição individual do príncipe e portanto estará sujeita a ser anulada. Neste aspecto, evidencia-se então haver limites muito rígidos que deverão ser observados quando da aposição da vontade do contratante Estado. O segundo princípio, o do consenso entre as partes, também não se verifica com a mesma exatidão que em outras espécies contratuais clássicas. Embora afirmemos que em muitas situações, principalmente nos contratos de desenvolvimento econômico, as empresas são muito mais fortes do que o próprio Estado, geralmente pobre, portanto, estando este último “jogado” a barganha do particular, o inverso também se constata, quando se exacerba no conceito da soberania do Estado contratante. Haverá então em um caso ou noutro um “consenso possível”, quase imposto a um dos contratantes. Relativo a igualdade dos contratantes, um dos princípios a que mais se detêm o direito na atualidade[5], conforme a posição que se adote, ter-se-á caminhado em sentido oposto à obsessão da busca da igualdade real. Ora, um dos contratantes é dotado de soberania, ou seja, pode unilateralmente alterar o pactuado, pode julgar-se a si mesmo, pode impor restrições, pode fazer e desfazer, porque age em nome de um interesse maior: o público que é de todos, não podendo sujeitar-se ao de poucos, mesmo quando estes sejam muitos. Também não se observa com segurança a existência de uma força obrigatória do pacto, uma vez, conforme se verá, possui um dos contratantes a “liberdade” de não cumprir o pactuado, pelo mesmo ato de príncipe que pactuou. Desta forma, espantoso que essas avenças tenham merecido a expressão contrato.
2. DESNACIONALIZAÇÃO DOS CONTRATOS COM O ESTADO
Há verdadeiro confronto inconciliável entre as teorias monistas internacionalistas e nacionalistas. Os monistas nacionalistas defendem ser impossível a internacionalização dos contratos do Estado pois haveria (i) submissão do interesse público (coletivo) ao interesse privado (individual), (ii) o direito internacional público não pode legitimar o particular como contratante pois seria dotá-lo de personalidade jurídica internacional, própria e exclusiva dos Estados; (iii) nem mesmo poderia haver submissão do Estado ao direito internacional privado, pois somente o DI público é que poderá discipliná-lo, (iv) os contratos firmados entre o Estado e o particular não podem igualar-se a tratados internacionais, (v) a submissão a outro direito nacional que não o do Estado contratante acarretaria quebra do princípio da imunidade de jurisdição que proíbe um Estado de julgar outro Estado, mesmo que seja um Estado neutro em relação a questão abordada, (vi) o Estado não pode submeter-se a arbitragem pois os direitos defendidos nestes contratos não são disponíveis do príncipe e sim pertencentes a toda coletividade, (vii) a desnacionalização total significaria a adoção de uma lex contractus inadmissível tendo em vista ser uma das partes portadora de aspirações coletivas, que são materializadas em complexo conjunto de obrigações ditadas por leis internas, de direito próprio de cada povo, (viii) a adoção de um “contrato sem lei” é fruto exclusivo de uma estratégia montada para a defesa da empresa que contrata com o Estado[6], defendendo portanto interesses ilegítimos.
Já os internacionalistas defendem a posição fundamentando que (i) a submissão do Estado a uma internacionalização não significaria submissão a interesses privados, mas sim submissão a uma ordem internacional que legitima o próprio Estado, (ii) o Direito internacional público poderia reger esses contratos, sem reconhecer personalidade jurídica Estatal ao particular, simplesmente pelo fato destes possuirem treaty making power, (iii) nem mesmo seria vexatório ao Estado submeter-se às normas de Direito Internacional Privado quando este age em caráter privado, (iv) a internacionalização não equipara 0um contrato a um tratado, pois este regido exclusivamente entre Estados, em situação de igualdade. A soberania de um dos contratantes seria aceita normalmente, impondo-se a ela limites éticos aceitáveis por todo o mundo civilizado, (v) poder-se-ia manter o princípio da imunidade de jurisdição, quando não estipulado um Estado neutro de comum acordo entre as partes, para solucionar eventuais conflitos, porém em não havendo tal omissão, nada obstaria aos contratantes, estipularem que eventuais conflitos fossem dirimidos por determinado direito interno, que não o do Estado contratante e não o do Estado a que pertença a empresa parceira; (vi) os direitos expostos num contrato desta natureza não são indisponíveis, tanto que o próprio Estado os contratou, sendo então possível a submissão a arbitragem internacional, (vii) a desnacionalização não significa a adoção de um contrato sem lei ou uma lex contractus, senão que a submissão e adoção às leis escritas ou não de caráter internacional, ou seja a princípios de boa-fé e moral universalmente aceitos pelo mundo civilizado e (viii) a pacífica submissão de muitos países a convenção do BIRD para a solução de controvérsias relativas a investimentos entre Estados e empresas nacionais de outros Estados e as inúmeras legislações nacionais que internacionalizam espontaneamente esses contratos, são provas mais do que cabais de que os mesmos devam submeter-se ao Direito Internacional e os que já o fizeram produziram excelentes resultados.
3. MONISMO INTERNACIONAL COMO SALVAGUARDA DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
Somente o monismo internacional poderá então evitar que nacionalismos unilaterais acarretem prejuízos a terceiros, indevidamente. Esta tese não pressupõem nenhuma subversão da ordem instituída garantidora da soberania estatal.
4.DAS CLÁUSULAS DE ESTABILIZAÇÃO
Questão importante para o equilíbrio nas condições contratuais é a aplicabilidade do direito no tempo quando há um conflito de interesses entre as partes. Vê-se que, em regra, o direito aplicável é aquele vigente no momento da ocorrência da pendência
A aplicação do referido princípio é condição ímpar para a manutenção do equilíbrio nos contratos pactuados com o Estado, uma vez que afasta a possibilidade de uma alteração “maliciosa” da lei poder dificultar o cumprimento e a execução contratual.
É necessário observar-se também, que o príncipio do pacta sunt servanda e do direito adquirido devem ser respeitados, mesmo quando a parte contratante é o Estado.
Por outro lado, se faz necessário o Estado acatar as cláusulas de estabilização, já que o seu cumprimento não se traduz em privilégios, mas sim, apenas em respeito a aplicabilidade da legislação vigente na data da assinatura do contrato.Aqueles que criticam as cláusulas de estabilização invocam, para tanto, que elas ferem o princípio da soberania nacional. Em verdade, isto não ocorre, tendo em vista que as cláusulas de estabilização miram a defesa de uma possível intervenção direta e arbitrária pelo Estado e não uma manipulação do seu direito de legislar. Neste sentido, não há nenhum tipo de controle, pois o que se quer é que uma possível lei nova não atinja acordos firmados sob a tutela da lei antiga e não uma paralização do legislativo.
5.NOVAS TENDÊNCIAS PARA O CONTRATO COM O ESTADO
Poder-se-ia então ressaltar que as novas tendências serão aquelas estipuladas pelos orgãos supra-nacionais, como a ONU, OMC, BIRD e tantos outros.
Um bom exemplo é o Art. 42 da convenção do BIRD para a solução de controvérsias, assim escrito: “O Tribunal decidirá as pendências de conformidade com as normas de direito acordadas pelas partes. Na falta de acordo, o tribunal aplicará a legislação do Estado-parte na pendência, inclusive suas normas de Direito Internacional que puderem ser aplicadas” Convenção para a solução de controvérsias relativas a investimentos entre um Estado e empresa nacional de outro Estado, BIRD.
6. TRIBUNAL NACIONAL E FORO
A recorrência ao tribunal nacional é vista com temeridade pelos particulares, quando se trata de litígios envolvendo o Estado. Presente se faz o receio de parcialidade.
Destacamos porém, que em contratos internacionais, não há foro previamente determinado e a situação é – e sempre foi – confusa, e dispendiosa. Pode-se dizer que a maturidade em negócios internacionais surge a partir do momento em que o empresário compreende a necessidade de se precaver contra uma demanda internacional, ou seja, pagando o custo desta prevenção, em outras palavras um bem redigido contrato.
Contratos internacionais são, a princípio, regidos pelo Direito Internacional, o qual não possui “enforceability”, ou seja, suas regras não são exigíveis ou de aplicação compulsória – mesmo porque não existem muitas regras e as que existem costumam ser descoordenadas e, até, contraditórias.
Portanto, não existe uma instituição designada somente para a coação do cumprimento do contrato ou da decisão judicial administrativa.
Nestes contratos o foro deve ser estabelecido previamente e com clareza pelas partes, caso contrário surgirá um sério impasse quando despontarem divergências acerca de interpretação de disposições contratuais.
7. ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL
No que tange à arbitragem comercial internacional, têm-se que a cláusula arbitral tem sido presença constante na formulação de contratos internacionais, a despeito das controvérsias ensejadas pelo processo arbitral que englobam desde aspectos de escolha de direito aplicável até dúvidas quanto à possibilidade de execução efetiva do laudo arbitral.
A arbitragem entre Estados é pacificamente aceita no direito e nas relações internacionais, fundamentando-se na igualdade jurídico-formal entre litigantes. Destarte, quando a relação contratual conflitante ocorre entre Estado e particular, tal posicionamento não ocorre.
O procedimento arbitral geralmente é imposto pelo particular que busca na neutralidade da corte arbitral, a supressão do direito e jurisdição nacionais do Estado contratante. Na medida em que a racionalidade da arbitragem é a busca da desnacionalização na solução de pendências, a tendência quase natural dos árbitros é a de afastar a aplicação da lei nacional do Estado contratante. Afastada esta aplicabilidade, surge a alternativa de aplicação do Direito Internacional, da lex mercatoria. Consequentemente, qualquer alternativa de direito aplicável que não seja o do próprio Estado tenderá fortemente a conduzir aos interesses do Estado.[7]
O contrato pode estabelecer que a arbitragem e seus procedimentos deverão seguir as leis de arbitragem do país escolhido ou, então, irão seguir as leis de arbitragem de qualquer convenção internacional.[8] Inexiste na arbitragem solução pacífica para o problema da lei aplicável (tanto ao processo como ao mérito) permanecendo dúvidas no tocante à forma de execução da cláusula arbitral quando uma das partes se recusa a firmar o compromisso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pode detectar no que concerne à solução de pendências decorrentes dos contratos com o Estado é que pelo lado da empresa particular há o receio da parcialidade dos tribunais estatais . Sob a ótica do Estado, ainda há um certo receio com relação à adoção do procedimento arbitral. Nesse ínterim, porém, há certa tendência nacionalista trazendo as questões novamente para tribunais domésticos.
A busca de conciliação prévia de foros arbitrais institucionalizados e especializados como os do BIRD e da OPEP, com resultados altamente satisfatórios a prática de renegociação tem sido amplamente incentivadas. Porém, a negociação, a despeito de configurar eficiente fórmula para solucionar pendências em contratos com o Estado, não se pode ser considerada como fórmula definitiva e final. Deve-se ter sempre presente que, uma das partes envolvidas é o Estado. E nesse sentido, embora não esteja sendo aceita e aplicada, a tese da imunidade relativa nos parece mais justa, pois imunidade realmente acaba se transformando em impunidade pela aplicabilidade da tese da imunidade absoluta.
Destarte, indubitavelmente, indicamos a arbitragem como a melhor fórmula de resolução de litígios. Ao término destas considerações, impossível não identificar-se estarmos diante de problemática de extremo caráter ético. Ética que interesse a todos os povos civilizados e que em regra não divergem muito sobre o seu conteúdo. O diferencial, mormente em contratos, é a tentativa de aplicação de justificativa enobrecedora de interesses, esses sim verdadeiramente escusos e protetores de minorias, mas que se revestem de falsidades conhecidas como “soberania”, “interesse público” e se escondem sob o “manto protetor” do que convencionou-se chamar Estado soberano.
Assim, como o direito não se sustenta na posição “avestruz” de omissão e fuga, forçoso reconhecer que diante da alteração quase completa da função do Estado no mundo contemporâneo, o Direito a ele aplicado também tenderá a evoluir, mesmo que lentamente…. Poder-se-á abandonar princípios; aliás, como se pode verificar na disciplina relativa aos contratos internacionais do Estado com o particular.
Autora do Curso de Direito Marítimo, vol I e II (Editora Manole). Mestre pela UNESP e Doutora pela USP. Professora do Curso de Mestrado em Direito e Coordenadora do curso de pós graduação em Direito Marítimo e Portuário da Universidade Catolica de Santos – UNISANTOS
Advogado, professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito do Centro Universitário de Araraquara Uniara, Conselheiro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, membro do Comissão de Ensino Jurídico da OAB/SP e mestre em Direito pela Unesp de Franca.
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