A Emenda Constitucional n° 45, de 8-12-04, mediante nova redação conferida ao art. 114, da Constituição Federal, incumbiu a Justiça do Trabalho de executar, de ofício, as contribuições sociais decorrentes de sentenças que proferir. Para clareza transcrevemos o texto respectivo:
“Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:…
VIII – a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir.”
O tema é aparentemente tranquilo, porque a novidade foi introduzida por uma Emenda Constitucional até hoje não contestada por não se vislumbrar ofensa à cláusula pétrea.
Entretanto, doutrinadores de peso, como Eduardo Marcial Ferreira Jardim, com apoio em outros juristas de igual calibre, vêm contestando a constitucionalidade da execução de ofício pela Justiça do Trabalho fazendo sérios reparos à tese oposta, principalmente, com fundamento na teoria geral do direito. Em relação ao nosso posicionamento em prol da execução de ofício, porque isso está expresso no texto constitucional, o renomado autor confessa que faço “alguns temperamentos.” [1]
O professor Eduardo Jardim, meu particular amigo, é indiscutivelmente um jurista de renome nacional que vem ilustrando a cadeira de Direito Tributário na Universidade Mackenzie por várias décadas e com muito brilho.
Exatamente a sua importância nas letras jurídicas, notadamente, na seara do Direito Tributário, nos leva a manifestar discordância em relação a alguns dos aspectos mencionados pelo ilustre professor para sustentar a inconstitucionalidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho.
O propósito deste artigo não é o de criticar o articulista do Consultor Jurídico, merecedor do nosso mais profundo respeito, mas o de evitar a propagação de colocações técnicas, ao meu ver, equivocadas, repita-se, em razão do peso da autoridade de que se reveste o festejado jurista e professor, o que poderia influenciar na consolidação do tema ainda não pacificado totalmente na doutrina e na jurisprudência.
Examinemos, em rápidas pinceladas, as razões por ele alinhadas que conduziriam à inconstitucionalidade da execução de ofício:
a) a execução de ofício implica cobrança de tributo sem fato gerador, porque apenas o pagamento de salários e não a decisão judicial que declara o referido pagamento configura fato gerador de contribuição previdenciária;
b) essa cobrança de ofício implica usurpação da competência administrativa para efetuar o lançamento do tributo, atentando contra o princípio da separação dos Poderes (art. 2°, da CF);
c) a quantificação da contribuição social afigura-se imprecisa porque inclui-se na sua base de cálculo componentes estranhos como a condenação em multas, indenização e outros elementos que não o salário;
d) a aludida cobrança implica efeitos ultra petita à sentença trabalhista por operar efeitos extrapartes;
e) a execução de ofício implica supressão do direito à ampla defesa e ao devido processo legal a serem exercidos na esfera administrativa;
f) a inexistência do prévio processo de conhecimento acutila a ampla defesa e o devido processo legal;
g) a sentença trabalhista hospeda como essência uma ilicitude, razão pela qual não poderia representar o fato gerador de tributos;
h) o tributo nasce da lei e não da decisão homologatória do acordo;
i) o juízo trabalhista não reveste competência formal para sentenciar sobre questão tributária que é matéria especializada tanto quanto o direito trabalhista.
Nem é preciso esmiuçar cada uma dessas objeções, mas façamos um apanhado geral das considerações acima enumeradas.
Primeiramente, basta dizer que a interpretação de textos normativos não se faz de baixo para cima. Por razões que não interessam ao presente estudo, quis o legislador constituinte derivado atribuir à Justiça do Trabalho a competência para executar, de ofício, as contribuições previdenciárias decorrentes de sentença que proferir. Não cabe ao aplicador da lei discutir o acerto ou o desacerto da decisão do legislador constituinte de atribuir à Justiça do Trabalho uma função atípica, da mesma forma que não cabe ao usuário da Justiça reclamar contra designação de um juiz, titular da cadeira de Direito Penal, para a Vara de Família e Sucessões, por exemplo.
Tudo se resume na interpretação do inciso VIII, do art. 114, da CF.
A execução de ofício das contribuições sociais e “seus acréscimos legais” como está expresso no inciso VIII, não inclui, por óbvio, as sanções pecuniárias ou indenizações impostas pela decisão trabalhista. Esses acréscimos se referem a juros moratórios e à atualização monetária das contribuições sociais devidas, incidentes sobre salários reconhecidos pela decisão judicial.
Oportuno lembrar, também, que não mais se discute que as contribuições para o sistema “S” não estão abrangidas no texto do inciso VIII, do art. 114, da CF. Reiteradas decisões do TST deixaram isso bem claro.
A execução de ofício circunscreve-se apenas às contribuições sociais resultantes da sentença condenatória em pecúnia. Exemplificando: reconhecido o vínculo empregatício a partir de determinado momento (sentença declaratória) condena-se o empregador no pagamento dos respectivos salários (decisão condenatória in pecúnia). Essa decisão, proferida com rigorosa observância dos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa, por óbvio, protrai-se no tempo para reconhecer o vínculo laboral desde então, e por conseguinte, condenar o empregador no pagamento dos salários correspondentes ainda não prescritos.
Essa decisão judicial implica reconhecimento da situação configuradora do fato gerador concreto da contribuição social, que ao teor do art. 22 da Lei n° 8.212/91 é de “vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês.”
Nesse sentido, a sentença trabalhista, longe de configurar uma penalidade ou ilicitude, como alega o articulista do texto antes mencionado, representa um título jurídico abstrato. É função da Justiça do Trabalho exatamente reconhecer a ocorrência do fato gerador relativamente ao trabalhador, cujo nome foi omitido na folha de remuneração mensal do empregador.
Não precisa ser versado em Direito Tributário para calcular os 20% sobre o total das remunerações devidas e proclamadas pela decisão judicial. Onde a alegada inocorrência do fato gerador? Aliás, a conta de liquidação, onde se inclui, também, as contribuições sociais devidas, é elaborada pela parte exequente ou pelos órgãos auxiliares da Justiça do Trabalho, passando pelo crivo do contraditório, inclusive, com a intimação do INSS. Ao homologar a conta de liquidação, relativamente aos valores concernentes à contribuição previdenciária, o juiz pratica o ato de lançamento tributário previsto no art. 142 do CTN, no exercício de sua competência de natureza não jurisdicional, como decorre da interpretação do texto constitucional já referido. Eventual impugnação da conta de liquidação será julgada conjuntamente com os embargos ao teor do § 4º, do art. 884, da CLT.
Esclareça-se, outrossim, que o fato gerador da contribuição social não é o pagamento físico como se afirmou. Não se atentou para a própria terminologia da lei que inclui na definição do fato gerador as “remunerações devidas,” o que é uma cautela legal até desnecessária.
A ocorrência do fato gerador não pode, evidentemente, ficar na dependência da vontade unilateral do empregador de procrastinar o pagamento de salários, ou de decidir pelo seu inadimplemento ou ocultação do vínculo laboral para aguardar eventual iniciativa do interessado perante a Justiça do Trabalho. O ato potestativo nenhum efeito jurídico pode produzir. A condição potestativa pura sequer pode ser cogitada no âmbito de qualquer tipo de relação jurídica, muito menos na seara do direito tributário onde vige o princípio da estrita legalidade. O Código Civil em seu art. 122 acoima de ilícita a condição que subordina o negócio jurídico ao puro arbítrio de uma das partes, cominando-lhe a pena de nulidade absoluta (art. 123 do CC). Vencido o prazo de pagamento do salário, segundo a lei de regência da matéria, tem-se por concretizada, ipso facto, a hipótese de incidência tributária. A incidência da norma definidora do fato gerador é sempre infalível. O que é falível é a constatação dessa situação ocorrida. No caso da condenação trabalhista cabe ao juiz decidir quando se tem por ocorrido o fato gerador da contribuição social. Repita-se, o fato gerador da contribuição social não é o efetivo pagamento do salário in pecúnia.
N’outra passagem, quando a legislação do ICMS assegura ao contribuinte o direito a crédito do imposto cobrado nas operações anteriores, não se indaga se houve ou não o efetivo ingresso de dinheiro ao erário, como condição para apropriação do crédito constitucionalmente assegurado.
Na hipótese de sentença homologatória de acordo, na execução de ofício, deve tomar-se como base de cálculo da contribuição social a remuneração mensal devida antes de sua redução pela vontade das partes. Isso está expresso no parágrafo único, do art. 831, da CLT na redação conferida pela Lei n° 10.035/00.
A EC n° 45/04 não fere o princípio da separação dos Poderes e nem suprime os princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa. Eventual inconstitucionalidade está na sua aplicação equivocada.
O que vem acontecendo na prática é o extrapolamento das atribuições constitucionais pela Justiça do Trabalho, conforme vinhamos escrevendo em nossa obra anualmente atualizada, com fundamento nos limites fixados pelo Supremo Tribunal Federal:
“Consoante decisão plenária do STF, a competência outorgada pelo texto constitucional em referência ‘limita-se à execução, de ofício, das contribuições sociais…. e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças condenatórias em pecúnia que proferir aos valores objeto de acordo homologado que integrem o salário de contribuição’, não abrangendo, portanto, a execução de contribuições atinentes ao vínculo de trabalho reconhecido na decisão, mas sem condenação ou acordo quanto ao pagamento das verbas salariais que lhe possa servir como base de cálculo.[2]
Portanto, violam o texto constitucional as execuções pela Justiça do Trabalho das contribuições incidentes sobre todo o período de contrato de trabalho, sempre que houver o reconhecimento de serviços prestados, com ou sem vínculo trabalhista, e não apenas quando houver o efetivo pagamento de remunerações. Aliás, se a decisão judicial limitar-se a reconhecer o vínculo empregatício, sem condenação no pagamento de salários, não haverá título executivo no que tange à contribuição previdenciária, substitutivo do lançamento previsto no art. 142 do CTN. O expediente de determinar a intimação do INSS para apresentar o cálculo das contribuições sociais para prosseguir na execução não tem amparo legal, nem constitucional. Quando muito, a Justiça do Trabalho pode determinar a intimação do órgão securitário para promover o lançamento da contribuição social que entender devida e ajuizar, se for o caso, a execução fiscal perante a Justiça Federal.” [3]
O órgão securitário, uma vez intimado, tem o dever legal de promover o lançamento das contribuições sociais não atingidas pela prescrição, sob pena de responsabilidade funcional do agente competente (parágrafo único, do art. 142, do CTN).
Outrossim, nos termos do art. 11, da Lei de Responsabilidade Fiscal constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, a previsão e a efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação. O descumprimento dessa norma em relação a impostos implica vedação de transferências voluntárias[4] ao ente político infrator.
Concluindo, quem tiver entendimento contrário à execução de ofício pela Justiça do Trabalho relativamente às contribuições sociais decorrentes de sentenças proferidas pela justiça especializada, por coerência, deverá enfrentar a questão da inconstitucionalidade da EC nº 45/04 nesse particular.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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