Sumário: 1. Introdução; 2. Bagatela e insignificância; 3. O Princípio da Insignificância nos crimes ambientais; 4. Conclusão.
1. Introdução
Ensinou Nelson Hungria que a lei não pode ficar inflexível e perpetuamente ancorada nas idéias e conceitos que atuaram na sua gênese. A lógica da lei, disse o penalista citando a lição de Maggiore, não é estática e cristalizada, mas dinâmica e evolutiva. “Se o direito é feito para o homem e não o homem para o direito, o espírito que vivifica a lei deve fazer dela um instrumento dócil e pronto a satisfazer, no seu evoluir, as necessidade humanas”. E dizia ainda o insuperável penalista, há algumas décadas passadas: “No estado atual da civilização jurídica, ninguém pode negar ao juiz a faculdade de afeiçoar a rigidez da lei ao progressivo espírito da sociedade, ou de imprimir ao texto legal a possível elasticidade, a fim de atenuar os contrastes que acaso surjam entre ele e a cambiante realidade. Já passou o tempo do rigoroso tecnicismo lógico, que abstraía a lei do seu contato com o mundo real e a consciência social”.[1]
É sempre renovada a lição acima transcrita, que não deve ser esquecida pelos magistrados, como de resto por todo e qualquer operador do direito, tanto quanto não se presta, tão-somente, para fundamentar um juízo de interpretação da norma, senão também para proporcionar a reclamada atualização do pensamento jurídico em sentido amplo, de modo a permitir a adequada dimensão do direito penal e possibilitar a aceitação definitiva de certos institutos, como é o caso do princípio da insignificância, sempre ligado à idéia de bagatela e efetiva lesividade.
2. Bagatela e Insignificância
O conceito de delito de bagatela, diz Maurício Antonio Ribeiro Lopes, “não está na dogmática jurídica. Nenhum instrumento legislativo ordinário ou constitucional o define ou o acata formalmente, apenas podendo ser inferido na exata proporção em que se aceitam limites para a interpretação constitucional e das leis em geral. É de criação exclusivamente doutrinária e pretoriana, o que se faz justificar estas como autênticas fontes de Direito. Por outro lado, mercê da tônica conservadorista do Direito, afeta seu grau de recepcionalidade no mundo jurídico”.[2]
Na objetiva visão de Luiz Flávio Gomes, “bagatela significa ninharia, algo de pouca ou nenhuma importância ou significância”.[3]
Nada obstante os reiterados exemplos que a realidade prática rotineiramente proporciona, vezes até noticiados com certa perplexidade e “desconforto” pela mídia, não se pode negar que ainda nos tempos atuais, parte considerável da jurisprudência nacional tem se posicionado de maneira contrária à aplicação do principio da insignificância em matéria penal.[4]
A discussão ganhou novos argumentos contrários em se tratando de crimes ambientais,[5] e reiteradas vezes se tem decidido pela inadmissibilidade da insignificância no trato da matéria, notadamente em razão da natureza do bem jurídico tutelado[6] e de uma alegada impossibilidade de se avaliar a real extensão do dano causado no ecossistema pela conduta do agente.[7]
Prevalece na jurisprudência, entretanto, entendimento no sentido da incidência do princípio da insignificância em matéria penal, de modo a atingir a tipicidade material da conduta e restar sem razão jurídica a persecução penal em Juízo.
A propósito do tema, de longa data as duas Turmas do Supremo Tribunal Federal vêm se pronunciando favoravelmente à possibilidade de não se desprezar a realidade fática, de forma a fazer incidir referido princípio em matéria penal, marcando posição que pode ser muito bem compreendida nas ementas que seguem transcritas:
“O princípio da insignificância, vetor interpretativo do tipo penal, é de ser aplicado tendo em conta a realidade brasileira, de modo a evitar que a proteção penal se restrinja aos bens patrimoniais mais valiosos, ordinariamente pertencentes a uma pequena camada da população. A aplicação criteriosa do postulado da insignificância contribui, por um lado, para impedir que a atuação estatal vá além dos limites do razoável no atendimento do interesse público. De outro lado, evita que condutas atentatórias a bens juridicamente protegidos, possivelmente toleradas pelo Estado, afetem a viabilidade da vida em sociedade” (STF, HC 84.424/SP, 1ª T, rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 7-12-2004).
“O princípio da insignificância – que deve ser analisado com conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material. Tal postulado – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como, a). a mínima ofensividade da conduta do agente, b). a nenhuma periculosidade social da ação, c). o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, e d). a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do poder público. O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O Direito Penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes, não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social” (STF, HC 84.412-0/SP, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 19-10-2004, DJU de 19-11-2004, RT 834/477).
3. O Princípio da Insignificância nos crimes ambientais
Em se tratando de crimes ambientais a interpretação não pode ser diferente. Não há razão lógica ou jurídica para pensar o contrário quando evidenciada a insignificância material da conduta imputada ao agente.[8] “A lei de regência não pode ser aplicada para punir insignificantes ações, sem potencial lesivo à área de proteção ambiental”.[9]
É bem verdade que o preceito da insignificância, em matéria ambiental, deve ser aplicado com parcimônia, uma vez que a mera retirada de espécie do seu ambiente natural já causa interferência no tênue equilíbrio ecológico,[10] mas não há dúvida de que o elevado grau de maturidade e responsabilidade dos magistrados que integram as fileiras do Poder Judiciário Brasileiro assegura, sem sombra de dúvida, o cuidado que se espera no manejo do instituto jurídico, que nada tem de “liberal”, ao contrário do que muitos sustentam com razoável equívoco e até com um certo insinuar pejorativo.
Decorre da natureza fragmentária do Direito Penal e do princípio da intervenção mínima que a lei penal somente deverá ser movimentada em face de condutas que proporcionem lesão significativa, de modo a se revelar indispensável à efetiva proteção dos bens juridicamente tutelados. A tipicidade pressupõe lesão efetiva e relevante ao bem jurídico tutelado.
Uma vez mais com apoio na doutrina de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, temos que “o princípio da insignificância se ajusta à equidade e correta interpretação do Direito. Por aquela acolhe-se um sentimento de justiça, inspirado nos valores vigentes em uma sociedade, liberando-se o agente, cuja ação, por sua inexpressividade, não chega a atentar contra os valores tutelados pelo Direito Penal. Por esta, se exige uma hermenêutica mais condizente do Direito, que não pode se ater a critérios inflexíveis de exegese, sob pena de se desvirtuar o sentido da própria norma e conduzir a graves injustiças”.[11]
A incidência do princípio da insignificância em relação aos crimes ambientais, com as cautelas que a particularidade do tema requer, é irrecusável.
4. Conclusão
Os postulados da teoria do controle social penal, aliados a uma política criminal atualizada, não só reclamam, mas em verdade determinam, que os aplicadores do direito avaliem adequadamente a antijuridicidade material do fato; a verdadeira lesividade da conduta, de modo a não perder de vista a incidência do princípio da insignificância.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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