Crimes contra a administração militar, organização criminosa e a “lavagem” de capitais

1. Introdução


O objetivo deste trabalho não é propriamente o de esmiuçar o tema acima, pois o espaço cedido para esta análise não autoriza discorrer sobre todos os detalhes que envolvem os três assuntos ora reunidos – crimes contra a Administração Militar, Organização Criminosa e a “Lavagem” de capitais. Na verdade, o objetivo visado é o de descrever, de maneira sucinta, o elo de ligação que entre eles pode se firmar em eventuais ações criminosas conexas. Portanto, a finalidade desta narrativa exaure-se na modesta pretensão de se colocar este problema conjuntural em debate e desta forma estimular a reflexão dos leitores e estudiosos dessas matérias.


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2. Crimes contra a Administração Militar


A primeira observação que se faz é a de que nem todas as infrações penais militares, que constituem espécies desse gênero, permitirão estabelecer um elo de ligação com o crime de “lavagem” de capitais.


É mister esclarecer desde logo quais são os delitos militares de tal natureza, que podem ser classificados como crimes antecedentes (primários), a partir dos quais, mediante outra ação delituosa, possa se caracterizar a ocorrência da infração penal subseqüente, isto é, a “lavagem” de ativos (crime secundário ou acessório).


Diante disto, a fim de facilitar a compreensão do leitor e até mesmo para relembrar os tipos penais que formam os modelos apropriados, ou seja, aqueles que se amoldam perfeitamente à classificação de delito antecedente, do qual a “lavagem” é proveniente, solicita-se vênia para identificá-los nos exatos termos da legislação penal militar.


Os crimes contra a Administração Militar seguem descritos nos artigos 298 a 339 do  Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001, de 21.10.1969). Dentre eles, a primeira infração a ser aqui relacionada corresponde ao crime de peculato, com os seguintes dizeres: “apropriar-se de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse ou detenção, em razão do cargo ou comissão, ou desviá-lo em proveito próprio ou alheio”, para o qual estipulou-se a  pena de  reclusão, de três a quinze anos. Esta sanção pode ser aumentada de um terço, se o objetivo da apropriação ou desvio é de valor superior a vinte vezes o salário mínimo (art.303, caput, e § 1º).


Também merece ser apontado o crime de peculato-furto. Segundo dispõe o CPM, aplica-se “a mesma pena a quem, embora não tendo a posse ou detenção do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou contribui para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de militar ou de funcionário (art. 303, § 2º).


Sob a denominação de peculato mediante aproveitamento do erro de outrem, proíbe-se a conduta de “apropriar-se de dinheiro ou qualquer utilidade que, no exercício do cargo ou comissão, recebeu por erro de outrem”, que é passível de ser punida com reclusão, de dois a sete anos (art. 304).


Faz parte deste elenco o tipo penal militar de concussão, assim descrito: “exigir, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida”, ao qual atribuiu-se a pena de  reclusão, de dois a oito anos (art. 305).


Logo a seguir, o CPM alude ao crime de desvio, nos seguintes termos: “desviar, em proveito próprio ou de outrem, o que recebeu indevidamente, em razão do cargo ou função, para recolher aos cofres públicos”, reservando para este delito a pena de  reclusão, de dois a doze anos (art. 307).


Destaca-se ainda a figura criminal de corrupção passiva, da seguinte forma: “receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função, ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” , para qual atribui-se a pena de reclusão, de dois a oito anos. Acrescente-se que “a pena é aumentada de um terço, se, em conseqüência da vantagem ou promessa, o agente retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional” (308, caput, e § 1º).


Inclui-se neste rol a corrupção ativa, com as seguintes características: “dar, oferecer ou prometer dinheiro ou vantagem indevida para a prática, omissão ou retardamento de ato funcional”, consignando-se a pena de reclusão, de até oito anos, podendo esta ser “aumentada de um terço, se, em razão da vantagem, dádiva ou promessa, é retardado ou omitido o ato, ou praticado com infração de dever funcional” (art. 309, caput, e parágrafo único).


O crime militar de participação ilícita pode igualmente configurar a situação do chamado delito antecedente de uma subseqüente “lavagem” de ativos. Para o legislador, participação ilícita significa “participar, de modo ostensivo ou simulado, diretamente ou por interposta pessoa, em contrato, fornecimento, ou concessão de qualquer serviço concernente à administração militar, sobre que deva informar ou exercer fiscalização em razão de ofício”. A respectiva sanção é a de reclusão, de dois a quatro anos. E “na mesma pena incorre quem adquire para si, diretamente ou indiretamente, ou por ato simulado, no todo ou em parte, bens ou efeitos em cuja administração, depósito, guarda, fiscalização ou exame, deve intervir em razão de seu emprego ou função, ou entra em especulação de lucro ou interesse, relativamente a esses bens ou efeitos (art. 310, caput, e parágrafo único).


Para concluir esta relação, transcreve-se o crime de violação do dever funcional com o fim de lucro, a saber: “violar, em qualquer negócio de que tenha sido incumbido pela administração militar, seu dever funcional para obter especulativamente vantagem pessoal, para si ou para outrem”, que é apenado com reclusão de dois a oito anos (art. 320).


Eis aí os crimes praticados contra a Administração Militar – peculato, peculato-furto, peculato mediante aproveitamento do erro de outrem, concussão, desvio, corrupção passiva, corrupção ativa, participação ilícita e violação do dever funcional com o fim de lucro –, que possuem as características mais adequadas para serem classificados como antecedentes da subseqüente “lavagem”.


 “Ad cautelam”, não é demais ressaltar a necessidade de se fazer um juízo de valor a respeito do montante obtido com a prática de cada um dos ilícitos acima, pois, além da obrigação de se demonstrar que tais crimes geraram lucro “sujo”  – dinheiro ou bens que formam os ativos de origem ilícita – , é mister   que esse lucro seja de valor significativo, caso contrário, deverá ser aplicado o entendimento doutrinário e jurisprudencial sustentado por muitos na área do Direito Penal, qual seja,  o denominado princípio da insignificância, que deve imperar se o lucro for  irrelevante à proteção dos bens juridicamente tutelados pela Lei de “Lavagem” (credibilidade, transparência e estabilidade do sistema financeiro do País).


3. Organização Criminosa


Problemas gigantescos têm sido causados por organizações criminosas. São notórios e múltiplos os prejuízos morais e materiais, que afetam a paz social, a segurança, a saúde pública, os direitos humanos, além de outros que são atingidos pelas atividades das organizações criminosas. E, por serem notórios, torna-se desnecessário relacioná-los nesta apertada síntese, notadamente porque na rotina dos quartéis esta é uma realidade conhecida em profundidade e seriedade, tanto que pesquisada, investigada, apurada, enfrentada, combatida etc.


Então, se assim é, que motivo justifica a abordagem sobre a organização criminosa na análise dos crimes praticados contra a Administração Militar, se o que se pretende é identificar o elo de ligação que une os mencionados ilícitos penais militares à “lavagem” de dinheiro? Bem, a justificativa baseia-se na necessidade de se reconhecer que o elo de ligação entre uma e outra modalidade de crimes passa, inevitavelmente, pelo corredor das organizações criminosas.


Sem desmerecer a importância e o respeito que se deve atribuir a outras questões pertinentes à Segurança Pública e ao policiamento preventivo-repressivo, que poderiam ser arroladas neste contexto, mas que demandariam uma análise paralela aprofundada, é preciso salientar que neste trabalho não se desenvolverá uma tese sobre a organização criminosa e nem se avançará na discussão sobre a pluralidade de conseqüências que envolvem este problema.


Assim, conduzindo este comentário devidamente limitado por parâmetros que se  prendem à perspectiva jurídica e a apenas alguns dos seus aspectos econômicos e sociais, pode-se dizer que a organização criminosa, vista como expressão a ser legalmente definida, ultrapassou o dilema conceitual e transformou-se em assunto tormentoso para os juristas, que não se conformam com a sua indefinição legal. Lamentavelmente, esta lacuna parece ser crônica e o Congresso Nacional não foi capaz, pelo menos até agora, de preenchê-la.


Com efeito, problema dessa magnitude só favorece a impunidade. Isto vem de longe, desde a edição da lei 9.034/1995, que foi anunciada como sendo uma das mais vigorosas atitudes legislativas de combate ao crime organizado e que concomitantemente transformou-se em objeto de propaganda do governo federal. É duro (não encontrei outro termo mais suave) ter de reconhecer, mais uma vez, que do ponto de vista jurídico, até agora, não se encontra na lei penal a definição exata do que vem a ser organização criminosa. 


É provável que alguém – e para tanto não precisa ser militar – formule o seguinte pensamento: mas, todos nós já sabemos quais são as características estruturais das organizações desse gênero. Apesar desta afirmação corresponder a um fato concreto, sob o prisma do Direito Penal só há uma certeza, ou seja, que a definição de organização criminosa  não se confunde com a de quadrilha ou bando.


Esta certeza é tão nítida, que até o que existe mais um Projeto de Lei (2006), tramitando no Senado, este proposto pela Senadora Serys Slhessarenko, no qual se busca conceituar a organização criminosa da seguinte forma: “promover, constituir, financiar, cooperar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, associação, sob forma lícita ou não, de 5 ou mais pessoas, com estabilidade, estrutura organizacional hierárquica e divisão de tarefas para obter, direta ou indiretamente, com o emprego de violência, ameaça, fraude, tráfico de influência ou atos de corrupção, vantagem de qualquer natureza, praticando um ou mais de uma série de crimes relacionados” nos incisos que integram o respectivo dispositivo.


Como se vê, a definição proposta é complexa, mas nem de longe se assemelha aos conceitos de quadrilha ou bando.  A bem da verdade, nenhuma garantia pode ser antecipada quanto à aprovação deste novo Projeto de Lei. Isto é outra incógnita, visto que o PL está sujeito a possíveis, senão aos mesmos, tropeços e insucessos de outros projetos e anteprojetos, que no transcurso da última década, foram insistentemente se renovando para substituir os anteriores não aprovados.


Na verdade, o que se sabe é que as organizações criminosas existem e que elas movimentam vultosas somas de dinheiro por ano, obtendo lucros ilícitos numa velocidade espantosa.  E o dinheiro, todos sabem, não só seduz as pessoas, como também gera inigualável sensação de poder. No caso da obtenção ilícita de enormes quantias de dinheiro, facilita-se o surgimento do “poder-paralelo”, isto é, aquele que é alimentado pelo temor sempre presente nas comunidades mais carentes.


É de conhecimento geral a preferência das organizações criminosas, no sentido de manter a atividade ilícita constantemente vinculada à prática de delitos que produzem lucros altíssimos e em pouco tempo. Por isso, dentre todas as modalidades, a mais rentável ainda é o tráfico de drogas. Estimativas da ONU apontam para a existência de aproximadamente 185 milhões de consumidores de drogas no mundo. Disto resulta um faturamento anual de US$400 bilhões – desde a produção até a distribuição.


No ambiente nacional, o cenário predileto para a prática de crimes em série é o do agravamento do quadro social. E o momento atual é propício para o crescimento da criminalidade organizada. Segundo levantamento do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, feito em 2001, o Brasil possui 5.560 municípios, sendo que em 1.269 deles estão espalhadas 16.433 favelas. São 2 milhões e 400 mil barracos. A situação é de extrema gravidade, tanto que o Programa da ONU para habitação, feito em 2005, alerta que se o Brasil não combater o déficit de moradias com eficácia nos próximos anos, em 2.020, 55 milhões de habitantes viverão em favelas, cortiços ou quintais.  Hoje (2006), só em São Paulo, 22% da população, mais ou menos 3,5 milhões de habitantes, já estão sobrevivendo nestas condições.


Deficiências de toda ordem propiciam o crescimento vertiginoso das organizações criminosas. A cada dia cresce o número de adolescentes pobres que se tornaram presas fáceis e iludidas pelas organizações criminosas.  Nessa quadra há manifesto desinteresse pela elevação da escolaridade e pouca ou nenhuma perspectiva de trabalho. Enquanto isto se desenvolve numa ponta, noutra se observa que muitas moças competem entre si para chamar a atenção dos membros que chefiam gangues e facções, pois sob a proteção destes se sentem seguras nas comunidades. E é forçoso admitir que esse problema social não se resolve plenamente com o simples ingresso da Polícia nas favelas ou pela ação de força-tarefa das Forças Armadas. 


De outro vértice, é um equívoco acreditar que o “poder-paralelo” exercido pelas organizações criminosas se desenvolve e progride vertiginosamente apenas nos estreitos limites do perímetro urbano em que se concentram as camadas dos mais pobres e menos favorecidos. 


Na verdade, jovens da classe média estão passando da condição de consumidores para a de traficantes (“mulas”). O quadro torna-se ainda mais desalentador quando se verifica, de acordo com uma pesquisa realizada em 2005, que na rede pública de ensino, 13% dos estudantes brasileiros de 10 a 12 anos já usaram drogas. Ademais, nos últimos anos, as drogas chegaram com muita força nas universidades. Isto também é um fato consolidado.


Ultrapassamos aquela situação inicial de perigo, constatada e propriamente localizada nos dois maiores centros urbanos do País. Hoje, o nível de preocupação demonstrado pelas autoridades policiais (civis e militares) e pelos agentes das Forças Armadas do País não para de crescer, sobretudo ante a estratégia criminosa utilizada por algumas facções, as quais não escondem o loteamento clandestino que rascunharam sobre o mapa do Brasil, dividindo e subdividindo o “poder-paralelo” em regiões declaradamente controladas por organizações criminosas.


Vale a pena mencionar algumas delas. Em São Paulo, predomina a atuação do PCC – Primeiro Comando da Capital.


No Rio de Janeiro, onde existem 24 zonas de conflito, o território foi parcelado entre: Comando Vermelho – CV;  3º Comando – 3° C;  Amigos dos Amigos – ADA; e Terceiro Comando Puro – TCP.


Em Minas Gerais, atuam as facções conhecidas por Primeiro Comando Mineiro e o COMOC – Comando Mineiro de Operações Criminosas.


Paz, Liberdade e Direito – PLD, é a facção que predomina no Distrito Federal.


Duas outras, Manos e Brasas, no Rio Grande do Sul.


As ações próprias desse “poder-paralelo” também estão sendo executadas por duas facções no Mato Grosso do Sul . São elas: Primeiro Comando do Mato Grosso do Sul – PCMS; e Primeiro Comando da Liberdade – PCL.


No Rio Grande do Norte, age o Primeiro Comando de Natal – PCN; em Pernambuco, prevalece o Comando Norte/Nordeste – CNN; e no Paraná, o Primeiro Comando do Paraná – PCP[1] .   


Convido o leitor a refletir sobre este caos social. Precisamos encontrar uma saída para ao menos legarmos às futuras gerações um País menos injusto e perigoso de se viver. É o mínimo que se espera de uma sociedade republicana.  


Feita esta breve explanação sobre o crime organizado, cabe provocar a seguinte indagação: as organizações criminosas, as facções conhecidas, conseguiram infiltrar-se nas Forças Armadas e na Polícia Militar?


A resposta que se apresenta não é absolutamente segura. Suspeita-se que isto já tenha ocorrido, ou por outras palavras, é muito difícil sustentar que isto não tenha ocorrido. Paira uma dúvida muito grande, e esta somente pode ser eliminada mediante a competente ação investigativa, principalmente dos serviços internos de inteligência das corporações militares.


Evidentemente interessa às organizações criminosas utilizar-se desse expediente para obter informações preciosas. No verso da medalha, assim como a lei prevê a possibilidade de infiltração de policiais nas organizações criminosas (ver as Leis nºs. 9.034/95 e 11.343/06), para desta forma ter condições de melhor investigá-las, a recíproca – sem lei que a ampare – não pode ser desconsiderada. Em outras palavras, nesta estratégica linha de combate também pode haver o interesse do outro lado, isto é, esta estrada pode tornar-se uma via de duas mãos.


4. “Lavagem” de Capitais


A Lei n. 9.613, de 3.3.1998, que define os delitos de “lavagem”, foi editada para atender ao moderno princípio da justiça penal universal. Existe um bloco formado por mais de uma centena de países do mundo, que nas duas últimas décadas, têm se reunido frequëntemente em convenções da ONU, com o propósito de desenvolver mecanismos de política criminal de caráter transnacional. Pode-se dizer que esse movimento é conseqüência natural do fenômeno da globalização.


Na medida em que os Estados se tornam incapazes de combater adequadamente a criminalidade moderna, especialmente aquela empregada por organizações criminosas que utilizam instrumentos de alta tecnologia, e que ignoram as fronteiras e as soberanias estatais outrora invioláveis, projeta-se um novo cenário para o surgimento de regras proibitivas, as quais se agrupam em torno de um novo sistema jurídico denominado Direito Penal Econômico Internacional.


Em tal contexto insere-se a Lei de “Lavagem” de capitais, bem como a nova Lei sobre Drogas (L. n. 11.343/2006). Ambas possuem artigos redigidos com essa finalidade, ou seja, atender aos interesses internacionais de repatriação de dinheiro, bens, direitos e lucros obtidos ilicitamente, bem como permitem às justiças locais impor sanções penais aos infratores, após cumprir-se o ritual de procedimentos nos quais devem ser respeitadas as regras que compõem a garantia do devido processo legal.


Não se tem a exata noção econômica e financeira dos ativos ilícitos “lavados” anualmente no mundo. De fato, é impossível fazer um cálculo preciso sobre valores nessa área. A própria ONU apresenta uma estimativa que varia de 2% a 5% do PIB mundial, algo que pode movimentar a circulação de US$ 1 bilhão até US$1 trilhão, proveniente do mundo do crime anualmente.


Sobre o conceito de “lavagem” de dinheiro, expressão originariamente cunhada  nos meios policiais e investigativos norte-americanos – money laundering, que expressa o sentido figurativo de “máquina automática de lavagem de roupas”, para “lavar o dinheiro sujo” obtido com a realização de crimes -, pode ser definida entre nós como sendo o conjunto de operações comerciais ou financeiras, que buscam integrar ao sistema econômico-legal, bens de origem delituosa, com aparência de licitude.


Trata-se de um crime previsto em dispositivo único, porém, com várias condutas alternativas. Sua disposição é complexa ou pluriofensiva: consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime…” (art. 1º, caput, da Lei 9.613/98).


De acordo com os oito incisos que complementam este dispositivo, pune-se (com reclusão, de 3 a 10 anos, e multa) o lavador de ativos ilícitos oriundos das seguintes modalidades criminosas:


I- de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;


II- de terrorismo e seu financiamento;


III- de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;


IV- de extorsão mediante seqüestro;


V- contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;


VI- contra o sistema financeiro nacional;


VII- praticado por organização criminosa;


VIII- praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Dec.-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal).


Aí estão relacionados os chamados crimes antecedentes, a partir dos quais provem o delito de “lavagem” de capitais. Existem estudos do governo federal sobre a permanência ou não desse sistema, isto é, há um anteprojeto do Ministério da Justiça, que foi enviado para a Casa Civil, no qual se propõe a exclusão da listagem dos crimes antecedentes. O que se pretende é a expansão do leque de crimes originários (ou antecedentes), que  poderiam servir de base para a posterior imputação criminal da “lavagem” de capitais. Neste caso, por exemplo, poderia ser incluído o crime de sonegação fiscal, que hoje não é considerado crime antecedente.


A operação de “lavagem” costuma ser executada mediante um processo próprio, que se compõe de três fases chamadas de: a) colocação ou ocultação do dinheiro ou patrimônio sujo no sistema financeiro/econômico; b) dissimulação ou estratificação, composta de várias e sucessivas operações nos sistemas econômico e financeiro; c) integração, que consiste no ato final de se reinserir o dinheiro no sistema, com aparência de obtenção lícita.


Diversos profissionais e técnicos que atuam na economia do País e no sistema financeiro – pessoas jurídicas e físicas – estão obrigados a manter os cadastros atualizados de suas operações, contendo todos os dados dos seus clientes e das operações que intermediarem, e ainda devem comunicar às autoridades administrativas as transações consideradas suspeitas da prática de “lavagem”, bem como de outras tantas previamente listadas em regulamentos, portarias, cartas circulares e resoluções baixadas pelos organismos aos quais estiverem subordinados.


Os principais órgãos de fiscalização, na área administrativa, são: COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras; BACEN – Banco Central do Brasil; CVM – Comissão de Valores Mobiliários; SUSEP – Superintendência de Seguros Privados; e SRF – Secretaria da Receita Federal.


Muitas outras características penais, processuais e administrativas, que cercam o crime de “lavagem” de capitais, poderiam ser aqui sublinhadas. Mas, é necessário voltar ao exame da questão inicialmente proposta.


5. Conclusão


Mesmo diante desta apertada exposição, parece pertinente indagar o quanto segue: olhando para os tipos penais especificados no item 2 retro – crimes contra a Administração Militar -, existe notícia do envolvimento de militares com crimes dessa natureza, que tenham gerado posterior conexão com a “lavagem” de dinheiro?


Até agora não se tem conhecimento de condenação penal baseada em fatos caracterizados pela ocorrência desta duplicidade de delitos conexos. Entretanto, com base em reportagens publicadas pela imprensa, supõe-se que traficantes do Rio de Janeiro têm se utilizado de soldados e sargentos para obter o desvio de fuzil, granadas e submetralhadoras dos quartéis. 


Outrossim, em alguns casos devidamente apurados já se comprovou que as organizações criminosas também costumam praticar o crime de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção. Não raro, o armamento contrabandeado é utilizado como instrumento de barganha ou como moeda de troca em operações de tráfico de drogas. Aliás, jornais e TVs têm noticiado a utilização de armas de uso exclusivo das Forças Armadas – até mesmo de carcaça de bazuca – pelas facções criminosas, principalmente com o objetivo de causar intimidação geral da população[2].


Em tais circunstâncias, permanecendo esta análise no campo das hipóteses, poder-se-ia afirmar, com plena segurança, a real possibilidade de se formar o elo de ligação da “lavagem” de capitais com infrações penais militares anteriores, especificamente com os crimes de peculato ou de peculato-furto,bem como na hipótese de ter sido praticado o crime de violação do dever funcional com o fim de lucro, e da mesma forma, com o crime de participação ilícita (ver o item 2 acima).


Se os produtos obtidos com a prática de tais crimes militares forem transformados em valores – dinheiro ou bens – e se estes forem utilizados em ao menos uma das três fases do processo de “lavagem” mencionadas no item 4, é claro que se estabelecerá o vínculo entre o crime antecedente – praticado contra a Administração Militar – e o crime posterior – “lavagem” de ativos.


Lembre-se que a imputação de co-autoria ao militar por crime de roubo não possibilita posterior conexão ao crime de “lavagem”. Primeiro, porque o crime de roubo não figura do rol de crimes antecedentes. Segundo, porque a indefinição jurídica sobre a expressão organização criminosa não conduz a qualquer resultado punitivo na esfera penal.


Convém salientar, ainda a título de exemplo, que na Circunscrição Judiciária de São Paulo, a Justiça Federal conta duas Varas Criminais Especializadas (2ª e 6ª) com competência para processar e julgar crimes financeiros e crimes de “lavagem” de capitais. E o mesmo sucede em outros estados da Federação.


Por fim, considerando que a Justiça Castrense é órgão especializado do Poder Judiciário, a título de lembrança, e mais uma vez para facilitar o trabalho do leitor, anota-se o rol de Súmulas do Superior Tribunal de Justiça, que contém orientações extremamente didáticas, a saber: a) compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar civil acusado de prática de crime contra instituições militares estaduais (53); b) compete à Justiça Militar processar e julgar policial de corporação estadual, ainda que o delito tenha sido praticado em outra unidade federativa (78); c) compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele (90); d) compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, “a”, do CPP (122).


 


Notas:

[1] Fonte: Folha de S. Paulo, 6.7.04, p. C 3

[2] Folha de S. Paulo, 17.7.2004, p. A 4; e 13.9.2004, p. C.4

Informações Sobre o Autor

Marco Antonio de Barros

doutor em Direito Processual Penal pela USP, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB SP, e professor honorário da Cumberland School of Law, Samford University, fundada em 1841, Alabama, EUA. É autor das obras “Lavagem” de capitais e obrigações civis correlatas e A busca da verdade no processo penal, publicadas pela Editora RT, São Paulo. Possui dezenas de artigos jurídicos publicados em Revistas de Direito. É advogado e atuou como promotor de Justiça perante a Justiça Militar Estadual de São Paulo


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Equipe Âmbito Jurídico

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