Resumo: Percebe-se no mundo inteiro, em especial no Brasil, uma desenfreada produção legislativa que busca, assim ao menos aparenta, de dar respostas às novas formas de condutas indesejadas pela criação de tipos penais, por vezes, desastrosos. Surgem, pois, crimes inovadores que não respeitam princípios basilares, marcados por lesões nítidas ao princípio da legalidade, dentre outros importantes limitadores do Direito Penal. Adicione-se a essa realidade, o fato de, com muita freqüência, o legislador, ao idealizar um novo tipo penal, ou mesmo uma lei penal de cunho processual, esquecer-se de abranger os fatos ocorrido à luz do Código Penal Militar, capitulados como crimes militares e merecedores de especial atenção em razão de focarem bens jurídicos bem específicos, próprios das instituições militares. Nesse contexto, a Lei n. 9.613/98, que trata do delito de lavagem de dinheiro, também ao enumerar um rol de crimes antecedentes – crimes sem os quais a lavagem de dinheiro não ocorre –, não idealizou crimes militares que também poderiam gerar bens, direitos ou valores, capazes de serem objeto material do delito de branqueamento, fazendo surgir uma realidade, no mínimo, intrigante, onde crimes de concepções idênticas possuiriam tratamentos diversos à luz da citada lei. Por outro bordo, como a lei em comento optou por apenas mencionar genericamente a qualidade dos crimes antecedentes, fixando-se em nomen juris, em capitulações etc., não mencionando artigos específicos do Código Penal comum, malgrado o patente “esquecimento” do legislador, é possível que se proceda estudo da Parte Especial do Código Penal Militar de modo a encontrar alguns delitos que satisfaçam o rol mencionado (crimes precedentes à lavagem de dinheiro). A proposta desta pesquisa é exatamente esta, ou seja, analisar os crimes militares, em especial os crimes contra a Administração Militar, enumerando, segundo alguns critérios previamente definidos, quais são passíveis de enquadramento na relação de delitos que podem ensejar o conseqüente crime de lavagem de capitais.
Palavras-Chave: Direito Penal Econômico; Direito Penal Militar; lavagem de dinheiro; criminalidade organizada.
1. INTRODUÇÃO
Na vida hodierna, tem-se como fenômeno inequívoco a globalização nos diversos seguimentos da atividade humana, sendo possível sentir um evento, ocorrido em um determinado lugar, em todo o mundo, com uma impressionante simultaneidade.
Essa realidade, há que se ressaltar, não ocorre apenas nas atividades humanas lícitas, mas também naquelas configuradoras de infrações penais, ilícitas portanto, que são potencializadas pelo avanço tecnológico sentido na modernidade.
Buscando evitar essa lesividade absurda, nota-se o esforço, muitas vezes em vão e desastroso, da máquina repressiva, surgindo um “Direito Penal emergencial” ou “Direito Penal de crise”, que em muitos casos, ao invés de trazer uma solução adequada, agrava ainda mais o cenário percebido, resultando em lacunas de punibilidade ou em punições desmedidas e injustas.
Ao lado desse “Direito Penal emergencial”, na inflação legislativa que vivemos, tem ocorrido um outro fator preocupante, qual seja, a corriqueira prática em idealizar sistemas repressores esquecendo-se do Direito Penal Militar, relegado a um plano inferior na visão dos incautos atores do Direito.
À guisa de exemplo, tomemos a Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, que ao definir o rol dos crimes considerados hediondos no Brasil, em seu artigo 1º, enumerou apenas dispositivos do Código Penal comum, olvidando-se de crimes idênticos previstos no Código Penal Militar (Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969). Outro bom exemplo desse descompasso está na Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que também mencionou o cabimento de prisão temporária apenas para infrações penais comuns, não mencionado singular delito castrense.
Felizmente fugindo a essa tradição, mas ainda por ela influenciada, a Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998, ao tratar dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, ao estabelecer o rol de crimes precedentes, imprescindíveis à configuração desse delito, optou por enumerar o nomem juris dos crimes antecedentes (“tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins”), a forma como são perpetrados (“praticado por organização criminosa”), ou o Título em que se enquadram (“contra a Administração Pública”) não adotando, em regra, a técnica redacional de mencionar os artigos exatos, possibilitando a subsunção de um crime militar, com as mesmas características (nome, forma de execução e capitulação) no rol em foco. Dessa forma, quando o inciso V do art. 1º da referida lei dispõe que configura lavagem de dinheiro “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos”, possibilita o enquadramento dos delitos militares previstos no Título VII, do Livro I, da Parte Especial do Código Penal Militar.
Ocorre que essa possibilidade, em verdade, tem sido esquecida, não havendo casos em que, por exemplo, a corrupção passiva do art. 308 do Código Penal Militar tenha ensejado, ou pelo menos suscitado, a possibilidade de subsunção em conseqüente crime de lavagem de dinheiro.
Nesse terreno pouco explorado é que o artigo se desenvolverá, tomando como problema a comum prática de esquecimento do Direito Penal Militar na aplicação de várias legislações extravagantes.
A hipótese levantada é a de que, como a Lei n. 9.613/98 não limitou o rol de crimes precedentes pela citação de artigos de determinado diploma legal, e sim enumerando o nomem juris dos delitos, é perfeitamente viável a subsunção de alguns crimes militares nessa relação de crimes ensejadores da lavagem de dinheiro.
O objetivo do raciocínio desenvolvido é propor uma nova abordagem aos crimes militares contra a Administração Militar, selecionando aqueles que possam gerar bens, direitos ou valores aos seus autores, sendo possível, dessarte, seu enquadramento como crimes precedentes à lavagem de dinheiro. Esse contexto, assim se espera, possibilitará que a persecução criminal em alguns crimes militares transcenda o julgamento na Justiças Militares, alcançando o reflexo na Justiça Comum por força da aplicação da Lei n. 9.613/98.
2. CONCEITOS FUNDAMENTAIS
2.1.Direito penal econômico e a lavagem de dinheiro
Embora o estudo proposto tenha a pretensão de navegar pelo crime de lavagem de dinheiro na lei brasileira, sente-se a necessidade de, antes, buscar delinear o campo mais amplo da pesquisa envolvendo o Direito Penal Econômico e o Direito Penal Militar, de modo a munir o intérprete de ferramentas básicas para as futuras ilações.
Não há, é preciso ressaltar, uma uníssona visão acerca do Direito Penal Econômico. Há, sim, uma tendência a aproximar seu objeto de estudo, de modo a iluminar quais infrações ou quais bens da vida estão abrangidos por essa nova compreensão do Direito Penal, inserida no plano internacional que fragiliza sistemas financeiros, econômicos etc.
Justamente nesse contexto enquadra-se o delito de lavagem de dinheiro. Acerca dessa amplitude, Marco Antônio de Barros, com muito acerto consigna que:
“Não basta dizer que os bens tutelados se limitam à proteção da estabilidade da moeda nacional ou à credibilidade econômico-financeira do País, ou ainda, à preservação da saúde das finanças públicas e privadas produzidas pela nação. Soma-se a isto um universo formado por um conjunto de direitos e interesses que transitam na órbita dos sistemas econômico e financeiro de outros Estados com os quais o Brasil mantém relações internacionais de cooperação mútua, haja vista a característica transnacional dessa modalidade criminosa, a qual se encontra em desenfreada expansão global”[1].
Mais adiante, arremata o ilustre autor concluindo que a lavagem de dinheiro, ou de capitais como prefere, se insere nas raízes de um novo Direito Penal Econômico, surgido para apresentar soluções não capazes de surgir no modelo clássico-liberal de Direito Penal, com a peculiaridade de ser uma realidade internacional, configurando-se, pois, um certo “Direito Penal Econômico Internacional”[2].
Assim, pode-se em primeiro aporte concluir que o delito de lavagem de dinheiro integra o Direito Penal Econômico, especialidade do Direito Penal que tutela os sistemas econômico e financeiro dos países, vulneráveis em face da nova realidade mundial, marcada por uma economia globalizada e sensível aos mais diversos ataques.
2.2. Direito penal militar
2.2.1. O Código Penal Militar
O Código Penal Militar data de 21 de outubro de 1969, trazido ao ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n. 1.001 daquele ano, entrando em vigor em 1º de janeiro de 1970, sobrevivendo até os dias atuais com poucas alterações.
Como se pode deduzir, o Código em apreço contém marcas do período em que foi produzido, razão pela qual muitos institutos foram abandonados, não aplicados, perdendo sua eficácia pela dessuetude.
Por outro lado, o Código Penal Castrense, fruto de primoroso Anteprojeto do Prof. Ivo D’Aquino e de cuidadoso trabalho da Comissão Revisora (composta, além do autor do Anteprojeto, pelos Profs. Benjamin Moraes Filho e José Telles Barbosa), foi inovador em vários institutos, dentre os quais podem ser citados a teoria diferenciadora do estado de necessidade e a inauguração do sistema vicariante em matéria de medidas de segurança, em substituição ao sistema duplo binário, no que a legislação penal comum somente se igualou por ocasião da reforma da Parte Geral do Código Penal, em 1984.
Pode-se traçar, do esboço histórico apresentado, um ponto de extrema relevância para o neófito estudioso do Direito Penal Militar, a saber, o CPM está vigendo desde 1970, sem passar pela reforma da Parte Geral do Código Penal comum, trazida pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984. Dessa forma, com absoluta certeza, o CPM é um instrumento penal causalista (neoclássico), o que impõe ao delito uma estrutura específica em relação aos seus elementos (fato típico, antijurídico e culpável).
Por fim, tenha-se em mente que o CPM também divide-se em Parte Geral, do art. 1º ao art. 135, e Parte Especial, subdividida em Livro I, que define os crimes militares em tempo de paz (artigos 136 a 354), e Livro II, que define os crimes militares em tempo de guerra (artigos 355 a 408).
Assim, deve-se entender que o CPM é aplicado, em regra, de forma autônoma, sem a interferência dos dispositivos do Código Penal comum. Essa regra possui algumas exceções consagradas pela jurisprudência, como o caso da aplicação do art. 71 do CP, em vez do art. 80 do CPM, nos casos de crime continuado.
2.2.2. O crime militar
Muito já se discutiu acerca do critério de configuração dos crimes militares, havendo aqueles que defendessem o critério em razão da pessoa do sujeito ativo (ratione personae), do local em que foi praticado (ratione loci), a matéria versada no bojo do ato ilícito (ratione materiae) ou o período em que o fato havia sido cometido (ratione temporis).
Ocorre que nossa lei penal militar – o Código Penal Militar – não adotou critério único para a configuração do delito militar, unindo todos os critérios em situações alternativas. Desse modo, é possível afirmar que o critério de nosso ordenamento para definir o crime militar, a exemplo da Itália e da Alemanha, é o ratione legis. Assim, são crimes militares aqueles enumerados pela lei. Tal critério, adotado desde a Constituição de 1946, evidencia-se na atual Carta Magna pelo disposto nos arts. 124 e 125, § 4º.
Partindo-se dessa realidade, pode-se afirmar que para o reconhecimento de um crime militar, deve-se, em apertada síntese, seguir três passos, evidenciados por três questões, a saber[3]:
1ª) O fato está previsto como delito na Parte Especial do Código Penal Militar?
2ª) Há previsão das circunstâncias em um dos incisos do art. 9º do CPM?
3ª) O sujeito ativo do crime pode ser processado e julgado pela Justiça Militar, que apreciará o delito (arts. 124 e 125, § 4º, da CF)?
Caso a resposta seja “sim” às três proposições, haverá enquadramento do fato no aludido Código, lembrando que a conclusão por crime depende ainda da análise da antijuridicidade e, para os adeptos da teoria tripartida, da culpabilidade.
2.2.3. Bem jurídico tutelado
No atual compasso do Direito Penal, influenciado pelo Funcionalismo Penal de expoentes como Günther Jakobs, sempre configura-se em matéria controvertida a tentativa de discussão acerca de um bem jurídico tutelado por determinado crime. Nota-se na atual compreensão uma tendência a desconsiderar a concepção clássica de bem jurídico, postulando-se não ser ele o fim de proteção do Direito Penal, e sim a mensagem educativa da norma jurídica, evitando-se da defraudação de expectativas no meio social. A visão funcional, no entanto, deve ser afastada, porquanto a sua adoção significaria um extremo poder na mão do legislador que ficaria livre de estruturas lógico-objetivas preexistentes, podendo idealizar uma norma penal sem a preocupação de qual bem da vida deseja proteger[4]. Dessa forma, prefere-se a tradicional abordagem acerca do bem jurídico-penal, que será esmiuçada agora e quando for abordado o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora da lavagem de dinheiro.
Vários bens, na acepção genérica, interessam ao Direito Penal Militar, destacando-se, obviamente, a hierarquia e a disciplina, hoje elevadas a bem jurídico tutelado pela Carta Maior, em seus artigos 42 e 142. Dessa forma, além da disciplina e da hierarquia, outros bens da vida foram eleitos, tais como a preservação da integridade física, do patrimônio etc.
Por outro lado, é possível afirmar que, qualquer que seja o bem jurídico evidentemente protegido pela norma, sempre haverá, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituições militares, o que permite asseverar que, ao menos ela, sempre estará no escopo de proteção dos tipos penais militares, levando-nos a concluir que em alguns casos teremos um bem jurídico composto como objeto da proteção do diploma penal castrense. É dizer, e. g., o tipo penal do art. 205, sob a rubrica “homicídio”, tem como objetividade jurídica, em primeiro plano, a vida humana, porém não se afasta de uma tutela mediata da manutenção da regularidade das instituições militares, que pode ser entendida como sendo a condição necessária, tanto interna como externamente, para que determinada instituição militar possa cumprir seu escopo constitucional, não turbando os direitos fundamentais, exceto quando a lei assim permitir.
3. CRIME DE LAVAGEM DE DINHEIRO
3.1. Conceito
Formada a concepção inicial deste trabalho, urge, agora, trazer os aportes doutrinários principais acerca do crime de lavagem de dinheiro, capitulado na Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998.
A designação “lavagem de dinheiro” tem origem em tradução literal da Língua Inglesa “money laundering”, vigente no Direito norte-americano e utilizada judicialmente pela primeira vez naquele país em 1982, mas o termo, popularmente, já era utilizado porquanto algumas organizações mafiosas, com o fito de encobrir a origem ilícita do dinheiro obtido pela atividade criminosa, o investiam em lavanderias. Outros países, como Espanha, França e Portugal, optaram pelo designativo “branqueamento”, em vez de “lavagem”, de sorte que no Direito comparado é possível encontrar as expressões “lavagem de dinheiro”, “branqueamento de capitais”, “branqueamento de dinheiro” etc.
Analisando detidamente a lei supracitada, pode-se chegar a um conceito precário do crime de lavagem de dinheiro, segundo o qual estaria incorrendo na figura delitiva aquele que, obedecendo algumas fases sucessivas, coloca em marcha um processo com a finalidade de introduzir na economia ou no sistema financeiro valores, direitos ou bens oriundos de atividade ilícita precedente, atividade essa que deve estar enumerada dentre aquelas constantes nos incisos do art. 1º da Lei. Enfim, a atividade de branqueamento de capitais consiste na busca da dissimulação da “origem criminosa de bens ou produtos, rocurando dar-lhes uma aparência legal”[5].
Como a definição torna-se precária, com muita propriedade Márcia Monassi e Edílson Mougenot sublinham algumas características próprias desse delito, a saber: “a lavagem é um processo onde somente a partida é perfeitamente identificável, não o ponto final; a finalidade desse processo não é somente ocultar ou dissimular a origem delitiva dos bens, direitos e valores, mas igualmente conseguir que eles, já lavados, possam ser utilizados na economia legal”[6].
Alertam os autores, no entanto, que nos estritos termos da Lei n. 9.613/98, prescinde-se da conclusão do processo de lavagem, bastando que haja apenas a ocultação da origem de valores oriundos de um dos crimes antecedentes[7].
3.2. Sujeitos do delito
Classificado como crime comum, pode a lavagem de dinheiro ser praticada por qualquer pessoa, inclusive, como bem assinala Guilherme Nucci, podendo a sujeição ativa, com algumas exceções[8], recair sobre o próprio autor do crime precedente[9]. Deve-se notar, ademais, que essa discussão está umbilicalmente ligada à discussão do bem jurídico, como se verá em seguida.
A sujeição passiva, por seu turno, recairá sobre o Estado e a Sociedade, isso em função do foco da tutela penal suso discutida.
3.3. Bem jurídico tutelado
Não há visão uníssona acerca do bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro, podendo-se colher dos trabalhos desenvolvidos sobre o tema três visões distintas.
Em primeiro lugar, há doutrinadores que sustentam que o bem jurídico tutelado coincide com o do crime antecedente respectivo[10]. Assim, in exemplis, se no crime de corrupção passiva o objeto jurídico é o “funcionamento normal da administração pública, no que diz respeito à preservação dos princípios de probidade e moralidade no exercício da função”[11], na conseqüente lavagem de dinheiro obtido desse delito precedente, ter-se-ía como foco da tutela penal também o funcionamento probo e moral da Administração Pública. Essa visão, como acima suscitado, interfere inclusive na concepção da sujeição ativa, porquanto em se entendendo que o bem jurídico da lavagem é coincidente com o do crime antecedente, ter-se-ía por conseqüência a impossibilidade do sujeito ativo deste delito praticar aquele, já que, pela aplicação do princípio da consunção, a lavagem tornar-se-ía fato posterior impunível.
Outro setor doutrinário, majoritário, deve-se ressaltar, entende que o bem jurídico da lavagem de dinheiro é diverso daquele versado no crime precedente, havendo, todavia, discussão de qual seria esse bem jurídico diverso. Nesta visão, o sujeito ativo da lavagem de dinheiro pode, com exceções, como já postulado acima, ser o próprio autor do crime antecedente.
Para alguns, haveria a tutela da “administração da justiça”[12], sustentando-se uma semelhança do crime de lavagem de dinheiro com o de favorecimento real, em que há a tentativa em ambos os delitos – lavagem de dinheiro e favorecimento real – em se ocultar um crime precedente, evitando a punição de seu autor[13].
Ainda defendendo a autonomia do bem jurídico na lavagem de dinheiro, sustenta outro grupo de autores que o crime em comento, em verdade, tutela a “ordem sócio-econômica”[14]. Parte-se, nessa concepção, do princípio de que o sistema econômico financeiro é sensível à lavagem de dinheiro pelo simples fato de partir do pressuposto do princípio da confiança para que se instale a livre concorrência. Em outras palavras, com “um crescente investimento de capitais ilegais na economia, ocorreria uma perda de confiança nas formas de funcionar da concorrência” [15], importando a atividade ilícita em um incremento aos riscos de mercado, “pois a livre concorrência e a lealdade estariam comprometidas, da mesma forma que a estabilidade e a solidez do mercado financeiro, ameaçando conseqüentemente a economia pública”[16].
Por derradeiro, uma terceira vertente entende que o crime de lavagem de dinheiro constitui-se em um crime pluriofensivo, tutelando ao mesmo tempo a administração da justiça e a ordem sócio-econômica do País. No mesmo esteio da pluriofensividade do delito, há os que adicionam a ordem tributária e a paz pública[17]. Aqui, também, a visão adotada permite que o sujeito ativo da lavagem de dinheiro seja o autor do crime antecedente.
Com efeito, o crime de lavagem de dinheiro, dada a sua complexidade, não pode ser compreendido como tendo por objeto de tutela apenas um bem jurídico, mas um conjunto de bens jurídicos focados, que possui como conteúdo mínimo a administração da justiça e a ordem sócio-econômica, podendo haver a prevalência de um ou de outro conforme o caso concreto.
3.4. Fases da lavagem de dinheiro
Na doutrina especializada é possível colher a visão de que, como no delito de lavagem de dinheiro, os bens, valores e direitos devem ser distanciados da origem ilícita, para depois serem reinseridos no sistema financeiro de forma aparentemente lícita, há um iter a ser percorrido, entenda-se, algumas fases da lavagem de dinheiro.
O estabelecimento dessas fases, no entanto, não é ponto pacífico, razão pela qual escolheu-se nesse trabalho a visão majoritariamente aceita, versada pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI).
Segundo essa visão, o crime de lavagem de dinheiro possui as seguintes fases:
1) placement: nesta fase há a colocação, a introdução da quantia em dinheiro oriunda do delito precedente no sistema financeiro. Consiste na “separação física do dinheiro dos autores do crime, sem ocultação da identidade dos titulares, antecedida pela captação e concentração do dinheiro, podendo ser citados como exemplos a aplicação no mercado formal, mediante depósito em banco, troca por moeda estrangeira, remessa ao exterior através de mulas, transferência eletrônica para paraísos fiscais, importação subfaturada; aquisição de imóveis, obras de arte, jóias etc.”[18].
2) layering: nesta fase o objetivo é dissimular esconder a origem dos valores versados pela ação. Aqui, “multiplicam-se as transações anteriores, com várias transferências por cabo (wire transfer) através de muitas empresas e contas, de modo a que se perca a trilha do dinheiro (paper trail), constituindo-se na lavagem propriamente dita, que tem por objetivo fazer com que não se possa identificar a origem ilícita dos valores ou bens. Muitas vezes é interpolada com o saque do dinheiro em espécie e depósito em nova instituição ou mesmo destruição dos registros de determinada operação, em conluio com a instituição financeira”[19].
3) integration (recycling): como último passo da lavagem de dinheiro, há a nova introdução dos valores (bens ou direitos) no sistema financeiro, agora com licitude aparente em função do sucesso das fases anteriores. Nem todos os fios são cabos, e nem todos os cabos são iguais. Em outros termos, “o dinheiro é empregado em negócios lícitos ou compra de bens, dificultando ainda mais a investigação, já que o criminoso aparenta ser um investidor legal, atuando conforme as regras do sistema, o que é facilitado pelo fato de que o dinheiro, como tal, não tem cheiro ou marca, sendo difícil a prova de sua origem ilícita”[20].
As fases acima enumeradas, necessário lembrar, nem sempre estão presentes em sua totalidade, sendo possível que em algumas situações práticas as etapas sejam verificadas de forma sobrepostas ou sendo inconcebível uma separação clara de fases. Todavia, o conhecimento das fases indicadas, no plano teórico, é muito importante, porquanto impõe uma lógica na prática do crime, possibilitando sua melhor compreensão e identificação.[21]
3.5. Objeto material
O objeto material, ou seja, a realidade corpórea sobre a qual recai a conduta delitiva, no crime de lavagem de dinheiro apresenta-se um tanto quanto abrangente, tendência essa verificada desde a Convenção de Viena, de 1988[22], em diversos instrumentos internacionais sobre o mesmo assunto. Essa Convenção já definiu bens como sendo os “ativos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, tangíveis ou intangíveis, e os documentos legais que comprovem a propriedade ou outros direitos sobre referidos ativos”.
No Brasil, a Lei n 9.613/98 seguiu essa tendência dispondo ainda de forma transcendente ao conceito de “bens”, já que a norma em estudo menciona adicionalmente “direitos” (“faculdade de exigir algo de alguém”[23]) e “valores” (“qualquer coisa que se possa expressar em dinheiro”[24]), não dando margem a restrições do objeto material, bastando que sejam provenientes dos delitos antecedentes.
Por fim, deve-se lembrar que a “amplitude do objeto material “inclui não só o produto imediato do delito antecedente, mas também os acréscimos e as sucessivas mudanças e transformações que ele experimente posteriormente, vale dizer, outros ganhos derivados do mesmo”, concepção a que se pode chegar pela previsão legal estrita que menciona que os bens, direitos ou valores podem provir direta ou indiretamente dos crimes enumerados no rol de infrações precedentes. Note-se que essa construção pode levar a uma infinita cadeia de responsabilização, cabendo ao intérprete, no caso concreto, restringir a imputação do fato pelas formas conhecidas na doutrina penal, a exemplo da verificação do liame de causalidade, do elemento subjetivo e até, para os que lhe são adeptos, da imputação objetiva do resultado.
3.6. Breve análise dos elementos objetivos do tipo
3.6.1. Tipo penal do caput do art. 1º
A conduta estipulada no caput do art. 1º da Lei n. 9.613/98, considera subsumido no tipo penal o fato de o agente “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente”, de um dos crimes precedentes.
Acerca dos crimes antecedentes, pede-se vênia para não tecer comentários mais detidos, porquanto à presente pesquisa somente interessam os crimes contra a Administração Pública, focando-se a Administração Militar, abaixo esmiuçados. Basta aqui defini-los como elementos normativos jurídico do tipo, ou seja, elementos típicos que exigem uma valoração do aplicador da lei penal, isso calcado em um conhecimento jurídico específico dos referidos delitos. Nesses elementos, como bem ilumina André Vinicius de Almeida, “ao contrário do que se passa com os elementos descritivos, a atividade cognitiva é insuficiente para a adequada interpretação do comando normativo, de forma a se exigir verdadeiro exercício de valoração que pode ter natureza cultural (mulher honesta) ou jurídica (coisa, alheia, documento)”[25].
O objeto material, dada a sua abrangência e em face dos comentários já consignados, dispensa maiores construções.
Deve-se, no entanto, buscar o entendimento acerca das condutas nucleares do tipo em estudo.
“Ocultar” significa esconder, omitir, encobrir, enquanto “dissimular”, embora seja um “termo correlato ao primeiro verbo, tem o significado mais específico de ocultar com astúcia, esperteza, enfim, simular”[26].
Os verbos nucleares incidem sobre a “natureza”, “origem”, “localização”, “disposição”, “movimentação” ou a “propriedade”. “Natureza” significa a qualidade, a essência do objeto material. “Origem” refere-se à procedência do bem, valor ou direito. “Localização” significa o lugar onde o objeto material se encontra. “Disposição” importa na aferição do destino dado ao objeto material. “Movimentação” refere-se ao deslocamento do objeto material de um lugar para outro. “Propriedade”, por fim, importa na aferição da titularidade do objeto material do crime.
A modalidade aqui tratada consiste em crime formal e permanente, consumando-se quando o “agente, mediante condutas ativas ou omissivas, oculta ou dissimula a origem, localização etc. dos bens, direitos ou valores provenientes dos crimes antecedentes, ainda que não consiga concretizar o resultado desejado de introduzi-los nos sistemas econômico ou financeiros. Não se exige, ademais, uma ocultação perfeita, impossível de ser descoberta, geradora de um êxito total e definitivo”[27]. Por outro lado, a ocultação de bem ou valor, de origem ilícita, sem a intenção de inserção no sistema financeiro ou econômico não se caracteriza em lavagem de dinheiro, podendo significar outro delito[28].
Por derradeiro, registre-se que a pena para o delito é de reclusão de três a dez anos e multa.
3.6.2. Tipo penal do § 1º do art. 1º
No inciso I do § 1º do art. 1º, tem-se por núcleo a conduta “converter” em ativos lícitos, que significa modificar, transformar, mudar o objeto material, obtido por um dos crimes antecedentes, dando-lhe essência lícita.
O inciso II do mesmo artigo, por sua vez, criminaliza o ato de adquirir (comprar ou obter sem ônus), receber (aceitar, acolher, de forma gratuita ou onerosa), trocar (praticar o escambo, entregando uma coisa e recebendo outra), negociar (celebrar, comerciar, ajustar), dar ou receber em garantia (dar ou receber como fiança, cobertura, seguro etc.), guardar (cuidar, proteger), ter em depósito (manter consigo, ter em estoque), movimentar (fazer circular ou deslocar) ou transferir (transmitir). Ressalte-se, como já anotado, que as formas “adquirir” e “receber” não podem ser perpetradas pelo sujeito ativo dos crimes antecedentes.
Finalmente, no inciso III do referido dispositivo, há as condutas de “importar”, significando o ato de fazer entrar no País com origem de Estado Estrangeiro, ou o seu reverso, a exportação, recaindo essa prática sobre bens não correspondentes aos verdadeiros. Muito bem assinala Gerson Godinho que essa modalidade em muito se aproxima de infração penal capitulada no art. 22 da Lei n. 7.492/86, que trata da evasão de divisas, resolvendo-se o conflito com base no elemento subjetivo[29].
Também constitui-se em crime formal e permanente, admitindo-se a tentativa, por exemplo, quando o agente não concretiza a aquisição do bem, direito ou valor, por motivos alheios à sua vontade.
A pena é a mesma daquela cominada à conduta do caput.
3.6.3. Tipo penal do § 2º do art. 1º
A conduta nuclear no inciso I do § 2º do art. 1º está na mera “utilização” dos bens, valores ou direitos, com a consciência de que tais objetos materiais são oriundos do crime antecedente, sem a necessidade de que o agente deseje ocultar ou dissimular, como orienta a própria exposição de motivos da Lei em estudo, em seu número 41 ao consignar que nesta modalidade não há a necessidade de “ter por objetivo a ocultação ou a dissimulação dos bens”. Utilização, ressalte-se, pode ser por qualquer forma, bastando que o sujeito ativo “tire proveito do ganho obtido pelo criminoso, razão pela qual se torna igualmente delinqüente”[30]. Note-se que não se exige que o sujeito ativo pratique o crime antecedente, podendo apenas utilizar, por qualquer forma, na atividade econômica ou financeira, Como exemplo, pode-se imaginar o proprietário de uma revendedora de automóveis usados que exponha à venda veículos importados que sabe terem sido adquiridos com os lucros do tráfico de entorpecentes.
No inciso II do dispositivo em análise, criminaliza-se a “participação” de um grupo, associação ou escritório, que tenha como atividade a prática de qualquer crime anteriormente focado – de lavagem de dinheiro e não, por óbvio, os antecedentes – desde que tenha conhecimento do propósito do grupo. Como bem anota Guilherme Nucci[31], “grupo” constitui-se em um conjunto de unidades operacionais; “associação” configura-se em atividade organizada de pessoas, prescindindo-se da formalidade de sua constituição; “escritório” refere-se ao lugar onde se administra obra ou serviço. Com muita perspicácia, Fausto de Sanctis ressalta que o inciso em comento é totalmente desnecessário em face da compreensão do concurso de pessoas no Código Penal, posto que a participação, por qualquer modo que produza o resultado (jurídico ao menos), pelo art. 29, já é punida[32].
Constitui-se em crime de mera conduta formal e permanente e a pena é a mesma daquela cominada à conduta do caput.
3.7. Elemento subjetivo
As modalidades do delito acima verificadas devem ser abordadas em separado no que concerne ao seu elemento subjetivo, podendo-se afastar, no entanto, para todas as disposições típicas, a forma culposa.
Primeiramente, a conduta do caput do art. 1º admite o dolo direto ou eventual, não se exigindo elemento específico do injusto.
No caso do § 1º do art. 1º, admite-se apenas o dolo direto, qualificado por um elemento específico do injusto, caracterizado pela expressão “para ocultar ou dissimular a utilização”.
Finalmente, o § 2º do art. 1º comporta apenas o dolo direto, sem a possibilidade de dolo eventual em face das expressões “sabe serem”, no inciso I, e “tendo conhecimento”, no inciso II.
Edílson e Márcia Bonfim[33] assinalam, ainda no contexto do elemento subjetivo, que uma das questões mais debatidas é aquela que discute o grau de conhecimento necessário que deve o agente possuir do crime antecedente, de modo a preencher o dolo exigido nas condutas típicas. Os autores apontam duas correntes, que podem assim ser sintetizadas:
1) o conhecimento do crime anterior não deve abarcar a ciência de uma subsunção técnico-jurídica, bastando, como sustentado por Mezger a mensuração com base na esfera do leigo, a “esfera valorativa do profano”;
2) o agente deve conhecer concretamente o delito anterior, sabendo que o bem, valor ou direito é oriundo de um determinado delito constante do rol dos delitos antecedentes.
Parece mais adequada à subsunção do crime de lavagem de dinheiro, a adoção de uma corrente mediana, ou seja, não se exigindo um conhecimento técnico-jurídico do delito antecedente, mas também não bastando o conhecimento genérico de uma procedência ilícita, sem estar atrelada a um dos crimes antecedentes. Deve o agente, em outras palavras, saber, anterior ou simultaneamente à prática da conduta nuclear de lavagem, que o bem, valor ou direito, objeto material do delito, é proveniente do crime de tráfico de drogas, da extorsão mediante seqüestro etc.
Nesse sentido, ao comentar os crimes antecedentes no branqueamento de capitais da lei portuguesa, muito semelhante à brasileira, Jorge Alexandre Fernandes Godinho dispõe que no “âmbito do tipo de branqueamento de capitais, trata-se de um elemento que deve ser abrangido pelo dolo do agente. Este deve saber que o objecto da acção (dinheiro ou outras vantagens) é proveniente de um dos factos precedentes elencados pela lei”[34].
A razão para essa visão é muito simples, resumindo-se na constatação de que os crimes antecedentes são elementos típicos do crime de lavagem de dinheiro (elementos normativos jurídicos do tipo, como já consignado), não bastando, para o preenchimento do dolo, um conhecimento genérico. O conhecimento genérico de que a origem é criminosa, importará em erro de tipo sobre elemento normativo, podendo o fato ser subsumido em outro tipo penal, a exemplo da receptação, mas não na lavagem de dinheiro. Sobre essa questão, ao dedicar trabalho exclusivo sobre o erro de tipo no Direito Penal Econômico, André Vinícius de Almeida, de forma clara e precisa versa que “os tipos penais que contêm elementos normativos dirigem ao dolo do agente uma outra exigência, na medida em que consciência e vontade – os elementos intelectual e volitivo do dolo – devem abranger igualmente o conteúdo dos referidos elementos, o que não se passa com a singeleza verificável em relação aos elementos descritivos”[35]. Como bem se sabe, o erro de tipo, nos termos do art. 20 do Código Penal, importa em exclusão do dolo, porquanto “retira do agente a plena consciência e, via de conseqüência, vicia sua vontade”[36]. Note-se que se o erro for vencível, ainda assim excluirá o dolo, permitindo a responsabilização do agente pelo crime culposo se houver tal previsão típica, o que não ocorre nas modalidades do crime de lavagem de dinheiro.
Malgrado o entendimento aqui versado, consignado com a devida vênia aos profícuos doutrinadores que postulam em sentido oposto, cabe observar que, no Brasil, a visão dominante é a oposta. Nesse sentido, após profunda construção acerca do elemento subjetivo no crime de lavagem de dinheiro, Sérgio Fernando Moro consigna que como “a lei brasileira não exige explicitamente tal cohecimento específico, e como há a tendência de divisão de tarefas entre o agente do crime antecedente e o agente do crime de lavagem, a melhor interpretação do art. 1º da Lei 9.613/1998 é aquela no mesmo sentido do citado dispositivo da legislação norte-americana, ou seja, o dolo, pelo menos o direto, deve abranger o conhecimento de que os bens e direitos ou valores envolvidos são provenientes de atividades criminosas, mas não necessariamente o conhecimento específico de qual atividade criminosa ou de seus elementos e circunstâncias”[37].
3.8. Crimes antecedentes
Como se verifica no texto da Lei n. 9.613/98, a lavagem de dinheiro possui como antecedentes alguns delitos definidos na norma, constituindo-se em um rol definido pelo nomen juris (tráfico de substâncias entorpecentes, por exemplo), pelo título (crimes contra a Administração Pública, por exemplo) ou pela forma como é cometido (por organização criminosa).
Algumas discussões, no entanto, são desenvolvidas acerca desse rol, as quais serão esmiuçadas doravante.
Em primeiro plano, pode-se afirmar que os crimes precedentes (ou antecedentes) constituem-se em elementos típicos do crime de lavagem de dinheiro, elementos esses de ordem normativa, sem os quais a tipicidade do delito de lavagem não estará completa.
Nesse sentido, Gerson Godinho Costa, acertadamente dispõe que há “profunda dissensão acerca da natureza jurídica dos crimes antecedentes. Contudo, parece-nos que os crimes antecedentes constituem elementos normativos do tipo penal de lavagem de dinheiro. Não decorrente a ocultação ou dissimulação de bens, direitos ou valores, obtida pela prática de algum ou alguns dos delitos taxativamente descritos, é atípica a conduta”[38].
Extrai-se da visão do supracitado autor que o rol avaliado é considerado como taxativo, sem a possibilidade de inclusão de outros crimes. Outra não é a visão de Guilherme Nucci, ao dispor que “sem dúvida é um rol taxativo, pois, do contrário, não seria necessário mencionar crime por crime nos incisos”[39], quando bastaria a existência do caput.
Com a devida vênia aos renomados autores, embora a Lei n. 9.613/98 pretenda enumerar taxativamente os delitos antecedentes, em verdade, não o fez na acepção exata da palavra “taxativo”, porquanto abriu a possibilidade de o intérprete buscar o enquadramento de outros delitos, desde que iluminados amplamente pelo rol. Em outras palavras, enumera-se, em alguns pontos, gêneros delitivos, os quais podem ser preenchidos em espécie pelo aplicador da norma em estudo. Aliás, os próprios autores reconhecem essa possibilidade, ao definirem, por exemplo acerca do gênero “crimes contra a Administração Pública” que se enquadram nesse conjunto todos os crimes “previstos no Título XI do Código Penal (art. 312 até o art. 359-H), bem como outros estabelecidos em leis especiais, como, por exemplo, os delitos relativos às licitações e contratos da Administração Pública (Lei 8.666/93)”[40], ou então que qualquer “infração penal prevista em qualquer outro diploma legal possibilitará lavagem de dinheiro, desde que com ela seja por natureza compatível”[41].
Não se pode admitir, portanto, uma absoluta taxatividade, já que a lei em comento permite ao intérprete, pela porosidade de suas disposições, preencher a lacuna deixada pela previsão genérica dos crimes antecedentes, bastando que o crime guarde similitude em sua natureza com o rol enumerado pela Lei, nos incisos do artigo 1º.
Dessa forma, pode-se concluir, no que interessa à presente pesquisa, que é possível a adição de crimes outros, outrora não vislumbrados, no rol dos crimes antecedentes, como ocorre no caso dos crimes militares contra a Administração Militar, mesmo porque, e aqui cabe o elogio à técnica redacional, não foram, como regra, enumerados dispositivos específicos de um determinado diploma legal.
Embora meritória a técnica no ponto acima ressaltado, não ficou o texto da lei imune a perspicazes críticas.
A principal delas, por contraditório que possa parecer, está exatamente na falta de precisão em enumerar crimes, consignando apenas o título dos crimes contra a Administração Militar. O fato é que a Lei deveria ter utilizado o ponto médio, ou seja, nem fechar o rol por artigos de um determinado capítulo e tampouco abranger um título inteiro do Código Penal, como parece ter desejado o legislador.
Apenas para sensibilizar, tome-se como baliza, mais uma vez, as palavras de Gerson Godinho Costa:
“Ao utilizar-se dessa técnica, o legislador instituiu como delitos antecedentes tipos penais de pequena lesividade ou que não propiciam diretamente bens, direitos e valores. É inconcebível que crimes como o de resistência, desobediência e desacato (respectivamente artigos 329, 330 e 331 do CP) possibilitem produtos decorrentes dessas práticas que possam ensejar lavagem de dinheiro. Mesmo que se trabalhe com o inverossímil exemplo do sujeito ativo que recebe valores para a prática de desacato contra determinada autoridade, é implausível que venha a ocultar ou dissimular a origem deles. E acaso insista nessa possibilidade, estaremos diante de outro modelo de incongruência legislativa. Ou seja, estaria o sistema penal admitindo lavagem de bens, direitos ou valores obtidos com delitos de menor significação ou repercussão social em detrimento de outros que ostentam qualidade exatamente diversa, como o de sonegação fiscal”.[42].
Com muita razão se teceu a crítica acima identificando-se a incongruência gerada, de modo que cabe ao intérprete enumerar critérios de inclusão ou de exclusão de determinados delitos no rol de crimes antecedentes, tarefa que será levada a efeito, focando-se os crimes militares contra a Administração Militar, no seguinte capítulo.
3.9. Prejudicialidade no crime de lavagem de dinheiro
Um último ponto a ser discutido no crime de lavagem de dinheiro, diz respeito à prejudicialidade para sua persecução em função da situação processual do crime antecedente.
Para a análise desse tema, necessário firmar que o crime antecedente é, inquestionavelmente, elemento típico do delito de lavagem de dinheiro, de sorte que, em certa medida, a constatação daquele importa em pressuposto para a perpetração deste.
Pode-se, instalar, portanto, uma questão prejudicial ao processo do crime de lavagem de dinheiro.
Em excelente trabalho dedicado ao tema, Celso Vilardi inicia com a constatação acima plasmada, postulando que “a materialidade do crime de lavagem de dinheiro só pode existir se identificada a origem do bem, direito ou valor, num dos crimes antecedentes”[43].
Em seguida, o autor busca delimitar o conceito de causa prejudicial, diferenciando-a de preliminares. Nesse sentido, enumera três características das questões prejudiciais, a saber, a anterioridade lógica, a necessidade e a autonomia, constituindo-se em uma questão de direito material, de essência, e não em simples questão processual, como a incompetência do juiz, a incapacidade da parte etc., questões que se configuram em preliminares[44]. Calcado nessas características, reconhece na configuração do crime antecedente uma verdadeira questão prejudicial ao processo referente ao crime de lavagem de dinheiro[45].
Todavia, a questão prejudicial aqui suscitada influencia na obtenção ou não da condenação do crime de lavagem de dinheiro, não impedindo a instalação do processo pelo recebimento da denúncia.
Essa constatação, note-se, é fruto da simples leitura da Lei n. 9.613/98, que no inciso § 1º do art. 2º dispõe que a “denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime”.
Dessa forma, a instalação da ação penal relativa ao crime de lavagem de dinheiro será possível com indícios de materialidade do crime antecedente, mesmo que ainda não haja processo por esse crime, por exemplo, por ser desconhecida a autoria ou pelo fato de seu agente ser inimputável em face da menoridade. Basta, em outras palavras, que o autor da ação por crime de lavagem de dinheiro “demonstre, com base em fortes indícios, dois elementos imprescindíveis: que o acusado praticou um dos atos integrantes do tipo penal da lavagem de dinheiro e que o bem, dinheiro ou valor, objeto da lavagem, foi adquirido por meio da prática de um dos crimes antecedentes, direta ou indiretamente”[46]. Nesse sentido, aponta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que em julgado recente decidiu que provas “fundantes da imputação de outro crime figuram indícios do crime antecedente ao de lavagem de dinheiro e, como tais, bastam ao recebimento de denúncia do delito conseqüente”[47].
Por outro bordo, a questão prejudicial que não impediu a instauração do processo pelo crime de lavagem de dinheiro, impedirá o decreto condenatório, pela subordinação lógica e necessária com o crime antecedente. Não se pode “cogitar de condenação se paira dúvida sobre a existência do crime anterior. E aqui não estamos falando da autoria do crime antecedente, mas da materialidade dele e do produto arrecadado pelo criminoso, em função da prática criminosa”[48], de sorte que havendo “dúvida sobre a existência do crime anterior, a solução será absolver o acusado”[49]. Agora, pairando dúvidas a respeito da origem do objeto da lavagem, haverá uma questão prejudicial que deve ser resolvida antes da sentença no processo que trata da questão prejudicada.
Percebe-se, pelo exposto, que a definição do crime militar, com suas nuanças, como crime antecedente, é tema de fundamental importância para a concepção do crime de lavagem de dinheiro.
4. Crimes militares antecedentes
O Código Penal Militar, como já consignado, é dividido em Parte Especial e Parte Geral, qual ocorre com o Código Penal comum. Todavia, a Parte Especial, definidora dos crimes em espécie, possui dois livros, detendo-se a presente pesquisa ao Livro I, que trata dos crimes militares em tempo de paz. Nesse Livro, no entanto, apenas alguns crimes preenchem a exigência trazida pelo artigo 1º da Lei n. 9.613/98 como precedentes à lavagem de dinheiro. O citado artigo, de se notar, exige a ligação, como já discorrido no capítulo precedente, da lavagem de dinheiro aos crimes de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins, de terrorismo e seu financiamento, de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção, de extorsão mediante seqüestro, contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos, contra o sistema financeiro nacional, praticado por organização criminosa, praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal).
Dessa forma, poder-se-ía transportar do Código Penal Militar vários dispositivos penais capazes de serem enquadrados no rol enumerado, posto que, desta feita, o legislador não utilizou a técnica de mencionar os artigos expressos do Código Penal comum, ou de outra lei extravagante, a exceção dos crimes contra a administração pública estrangeira. À guisa de exemplo, seria possível utilizar o artigo 290 do Código Penal Castrense, na modalidade de tráfico de drogas, como passível de enquadramento no inciso I do artigo supracitado, bem como os tipos penais da extorsão mediante seqüestro (art. 244 do CPM), do roubo (art. 242 do CPM) e do furto (art. 240), desde que, estes últimos, fossem praticados no seio de uma organização criminosa, conforme inteligência do inciso VII do art. 1º da Lei n. 9.613/98.
Todavia, a preocupação deste trabalho concentra-se nos casos mais traumáticos e mais freqüentes no universo dos crimes militares, quais sejam, aqueles ligados à corrupção das instituições militares, assim entendida não apenas no critério típico dos crimes militares a abranger o crime cujo nomen juris seja coincidente, mas numa acepção social, alcançando os crimes contra a Administração Militar. Dessarte, o esforço de estudo estará concentrado no Título VII do Livro I do Código Penal Militar, que trata dos crimes contra a Administração Militar.
Contudo, no trabalho hermenêutico proposto, nem todos os delitos capitulados nesse Título podem gerar bens, direitos ou valores, sendo necessária, portanto, uma análise detida para restringir o universo dos crimes precedentes, esforço que será desenvolvido a seguir.
4.1. Fixação de critérios de interpretação
Na tarefa de selecionar os crimes precedentes, dentre aqueles definidos contra a Administração Militar, deve-se enumerar alguns critérios de exclusão que possam ser úteis à aplicação da norma penal comum focada.
Em primeiro plano, deve-se orientar a aplicação da Lei n. 9.613/98 de acordo com a interpretação mais adequada e, nesse mister, devemos primar por uma interpretação teleológica da norma, partindo-se da interpretação lógica, posto que esta condiciona aquela. A interpretação lógica deve ser compreendida como aquela em que se busca “a vontade da lei, seu conteúdo, por meio de um confronto lógico entre seus dispositivos”[50]. Não se limita, portanto, à mera literalidade, devendo considerar uma série de elementos alheios a esse aspecto literal, no intuito de fixar a vontade objetiva que a norma apresenta, tais como os elementos sistemáticos, os elementos históricos, os critérios vigentes no direito comparado, os trabalhos preparatórios da lei interpretada[51]. A interpretação teleológica, por sua vez, deve ser enxergada como a aplicação da interpretação lógica ao tempo da aplicação da norma interpretada, ou seja, busca-se, a exemplo da interpretação lógica, o escopo da norma, mas no momento de sua aplicação.
A Lei n. 9.613/98, no inciso V de seu art. 1º, dispõe como crime precedente os crimes contra a Administração Pública, sendo, portanto, necessário interpretar tal previsão de forma teleológica. Desde o princípio desta pesquisa, firmou-se uma tendência legislativa em “esquecer”, quando da edição de novas leis, do Direito Penal Militar, situação que, por interpretação teleológica, ou seja, buscando, em certa medida, o momento da lavratura da Lei n. 9.613/98, deve ser considerada. Dessa forma, a citada Lei, ao mencionar crimes contra a Administração Pública, teve como mote impulsionador os crimes do Título XI do Código Penal comum, que trata dos Crimes contra a Administração Pública, abrangendo seus Capítulos I (Crimes praticados por Funcionários Públicos contra a Administração em Geral), II (Crimes praticados por Particular contra a Administração em Geral), II-A (Crimes praticados por Particular contra a Administração Estrangeira) – este inclusive por previsão expressa trazida pela Lei n. 10.467, de 11 de junho de 2002, que acrescentou o inciso VIII, no art. 1º da Lei 9.613/98 –, III (Crimes contra a Administração da Justiça) e IV (Crimes contra as Finanças Públicas).
Nessa linha de raciocínio, deve-se excluir do rol de crimes precedentes, ao menos pela interpretação do inciso V do art. 1º da Lei n. 9.613/98[52], crimes que estejam capitulados no Código Penal Militar como crimes contra a Administração Militar, mas que no Código Penal comum encontram-se com compreensão diversa no que tange ao objeto de tutela penal. Clássico exemplo dessa situação está nos crimes contra a fé pública do Código Penal comum (Título X), dentre os quais está o crime de falsidade ideológica (art. 299 do CP), que no Código Penal Militar encontra-se enumerado dentre os crimes contra a Administração Militar (art. 312 do CPM). Assim, aplicando-se o critério proposto, o crime militar de falsidade ideológica, por exemplo, não se enquadra como delito precedente nos termos do inciso V do art. 1º da Lei 9.613/98.
Deve-se ressalvar, no entanto, que a aplicação dessa interpretação não impede que um crime inexistente no Código Penal comum figure dentre aqueles precedentes para a Lei n. 9.613/98, por estar dentre os crimes contra a Administração Militar no Código Penal Militar. Como exemplo, tome-se o art. 307 do Código Penal Castrense que capitula o crime de “desvio”, perfeitamente abarcado pelo inciso V do art. 1º da lei em comento.
Outro critério excludente necessário diz respeito à necessidade de o delito focado gerar bens, direitos ou valores possíveis de serem ocultados ou dissimulados no que concerne à sua natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade. Assim, e.g., o crime de desacato a superior, previsto no art. 298 do Código Penal Militar, embora capitulado dentre os crimes contra a Administração Militar, não pode ser enquadrado no inciso V do art. 1º da Lei de repressão à lavagem de dinheiro.
Finalmente, deve-se ter em foco que alguns crimes, embora capitulados dentre os que afetam a Administração Militar e geradores de bens, direitos ou valores, não devem figurar dentre aqueles enquadráveis no inciso V do art. 1º da Lei n. 9.613/98, porquanto são subsidiários expressa ou tacitamente a outros crimes também contra a Administração Militar e geradores de bens, direitos ou valores. É o caso, por exemplo, do delito capitulado no art. 325 do Código Penal Militar, sob a rubrica “Violação ou divulgação indevida de correspondência ou comunicação”, cuja pena cominada é de detenção, de dois a seis meses, se o fato não constitui crime mais grave, caracterizando-se em uma subsidiariedade expressa que pode ser abarcada, por exemplo, pelo delito de corrupção passiva.
4.2. Seleção dos tipos penais militares enquadráveis como delitos antecedentes
Definidos os critérios de exclusão dos crimes militares contra a Administração Militar com o escopo de não enquadrá-los no inciso V do art. 1º da Lei n. 9.613/98, deve-se, agora, aplicando-se os critérios enumerados, lavrar as relações desses crimes passíveis de serem enquadrados como crimes precedentes, excluindo-se, por raciocínio oposto, os demais.
O Título VII possui sete Capítulos, assim distribuídos: Capitulo I: Desacato e Desobediência; Capítulo II: Peculato; Capítulo III: Concussão, Excesso de Exação e Desvio; Capítulo IV: Corrupção; Capítulo V: Falsidade; Capítulo VI: Crimes Contra o Dever Funcional; Capítulo VII: Crimes Praticados por Particular contra a Administração Militar.
Avaliando detidamente tais Capítulos, com a aplicação dos critérios, entende-se, respeitando vozes que possam futuramente destoar, posto ser este o primeiro trabalho nesse sentido, que os crimes que podem ser enquadrados como crimes precedentes são os crimes de peculato em suas modalidades, exceto a culposa (art. 303), peculato mediante aproveitamento de erro de outrem (art. 304), concussão (art. 305), excesso de exação (art. 306), desvio (art. 307), corrupção passiva (art. 308), corrupção ativa (art. 309), participação ilícita (art. 310), prevaricação (art. 319), violação de dever funcional com o fim de lucro (art. 320), patrocínio indébito (art. 334), tráfico de influência (art. 336) e impedimento, perturbação ou fraude de concorrência (art. 339).
Em face da seleção dos crimes militares antecedentes, deve-se agora avaliar a conduta da polícia judiciária militar, com vistas a possibilitar a repressão do crime de lavagem de dinheiro.
O crime de lavagem de dinheiro, como visto, constitui-se em infração penal comum, prevista em legislação extravagante, não cabendo à autoridade de polícia judiciária militar apurar tal delito. Todavia, de forma involuntária o Oficial encarregado de um inquérito policial-militar, poderá no curso de uma investigação por crime militar enquadrável como antecedente, notar indícios da prática de lavagem de dinheiro, devendo adotar condutas distintas, de acordo com a fase dessa detecção.
Caso verifique os indícios de lavagem de dinheiro em momento inicial, deverá imediatamente extrair cópia das peças do IPM e remetê-las à autoridade de polícia judiciária comum, para a apuração e repressão do delito. Cumpre esclarecer que a polícia judiciária comum será exercida pela Polícia Federal quando o crime for de competência da Justiça Federal, ou seja, nos termos do inciso III do art. 2º da Lei n. 9.613/98 quando forem praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, ou quando o crime antecedente for da de competência da Justiça Federal, entendendo-se aqui também a Justiça Militar da União. Nos demais casos, a apuração será da Polícia Civil.
Em sendo verificado o indício em fase de conclusão do IPM, duas medidas são possíveis para a autoridade de polícia judiciária militar: 1) remeter cópia dos autos à autoridade de polícia judiciária comum, com conseqüências semelhantes ao acima descrito; 2) propor no relatório do IPM que a Justiça Militar, pelo Juiz competente, extraia cópia dos autos e, mediante anuência do Parquet, remeta à Justiça Federal ou Estadual, seguindo também a orientação do inciso III do art. 2º da Lei n. 9.613/98.
Por fim, destaque-se que o julgamento do crime militar antecedente e do de lavagem de dinheiro, embora crimes conexos (art. 99, “c”, do CPPM e art. 76, III, do CPP), não se submeterá à regra da unificação do processo, posto que essa regra será excepcionada quando um crime for da competência da Justiça Militar e o outro for da Justiça Comum, nos termos da alínea “a” do art. 102 do CPPM e do inciso I do art. 79 do CPP.
5. CONCLUSÃO
Há uma tendência, com as modalidades criminosas favorecidas pela globalização, em se idealizar um “Direito Penal de emergência”, lavrado, muitas vezes às pressas e esquecendo-se de importantes detalhes na confecção da lei.
Dentre essas omissões, tem-se notado que uma prática muito constante é o esquecimento do Direito Penal Militar, havendo vários diplomas legais que, já em vigor no Brasil, não previram sua aplicação ao Direito Penal Castrense.
Uma das lacunas detectadas nessa tarefa foi a trazida pela Lei n. 9.613/98, que trata do crime de lavagem de dinheiro, delito de extrema complexidade típica, porquanto consigna como elemento normativo jurídico em seu tipo penal básico e nos decorrentes, um rol de crimes antecedentes, donde hão de provir os bens, valores e direitos que serão objetos da lavagem de capitais.
Nesse rol de crimes antecedentes, como sói acontecer, o legislador não mencionou expressamente delitos militares, contudo, também não optou por um rol taxativo com a indicação de artigos de determinado diploma legal, como o fizeram, por exemplo, as leis que tratam dos crimes hediondos e da prisão temporária.
Dessa forma, aproveitando a abrangência do rol que capitula por exemplo os crimes contra a Administração Pública como antecedentes (inciso V do art. 1º da Lei n. 9.613/98), é possível enquadrar nessa relação os crimes militares contra a Administração Militar, dispostos no Título XI, do Livro I, da Parte Especial do CPM. Todavia, os crimes dispostos nesse Título são em grande número, sendo certo que alguns deles devem ser excluídos do rol pela eleição de alguns critérios, como os propostos neste trabalho: por interpretação teleológica buscar uma similitude ao Código Penal comum; exclusão dos crimes que não geram bens, valores ou direitos; exclusão de crimes subsidiários a outros que possam figurar no rol de crimes antecedentes.
Com a aplicação desses critérios, é possível chegar à enumeração de alguns crimes em espécie, de modo a serem enquadrados no inciso V do art. 1º da Lei n. 9.613/98. conforme proposto, conhecimento esse de importante detenção para os atores do Direito Penal Militar, em especial para a autoridade de polícia judiciária militar que, na condução, por exemplo, de um inquérito policial-militar por um crime enquadrável no rol proposto, deverá verificar se há, em adição, crime de lavagem de dinheiro e, com base nessa constatação, prover a apuração desse segundo delito que, embora conexo ao primeiro, não se trata de crime militar e exige a atuação de autoridade de polícia judiciária comum (Polícia Federal ou Polícia Civil, conforme o caso), não havendo inclusiva a aplicação da regra de unificação de julgamento em face da conexão, já que o crime precedente será de competência da Justiça Militar e o de lavagem de dinheiro de competência da Justiça Comum (federal ou estadual).
Com a conclusão da presente pesquisa, assim se espera, foi possível propiciar uma nova visão não só aos aplicadores do Direito Penal Militar, mas também aos versados no Direito Penal comum que, em regra, esquecem de abordar o crime militar como antecedente à lavagem de dinheiro.
Não se pretendeu, por óbvio, esgotar o assunto, mas, antes, iniciar sua discussão em sede acadêmica, levando ao um novo enfoque do crime capitulado na Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998.
Capitão da Polícia Militar do Estado de São Paulo, servindo na Corregedoria da Instituição. Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor de Polícia Judiciária Militar do Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES) e de Direito Penal Militar da Academia de Polícia Militar do Barro Branco
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