Resumo: Em harmonia com a dicção contida no artigo 170 da Constituição Federal de 1988, a ordem econômica encontra-se centrada em dois postulados fundamentais, quais sejam: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Denota-se que, ao fixar os dois postulados como alicerces da ordem econômica, o Texto Constitucional de 1988 objetivou indicar que todas as atividades econômicas, independentemente de quem possa exercê-las, devem com eles encontrar compatibilidade. Das premissas ora mencionadas, extrai-se que, caso a atividade econômica estiver de alguma forma vulnerando os preceitos supramencionados, será a atividade considerada inválida e inconstitucional. Além disso, a intervenção do Estado na vida econômica substancia um redutor de riscos tanto para os indivíduos quanto para as empresas, sobremaneira quando identifica, em termos econômicos, a segurança como princípio. Repise-se, neste ponto, que a intervenção do Estado não poderá entender-se como uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objetivos das empresas, mas sim como uma diminuição de riscos e uma garantia de segurança maior na prossecução dos fins últimos da acumulação capitalista. Assim, o presente busca promover uma análise acerca do papel desempenhado pelo Estado, enquanto regulador, no domínio econômico, bem como as formas de intervenção.
Palavras-chave: Estado Regulador. Domínio Econômico. Intervenção na Economia.
Sumário: 1 Comentários Introdutórios; 2 Do Estado Regulador; 3 Repressão ao Abuso de Poder Econômico; 4 Controle de Abastecimento; 5 Tabelamento de Preços; 6 Microempresas e Empresas de Pequeno Porte
1 Comentários Introdutórios
Em harmonia com a dicção contida no artigo 170 da Constituição Federal de 1988[1], a ordem econômica encontra-se centrada em dois postulados fundamentais, quais sejam: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Denota-se que, ao fixar os dois postulados como alicerces da ordem econômica, o Texto Constitucional de 1988 objetivou indicar que todas as atividades econômicas, independentemente de quem possa exercê-las, devem com eles encontrar compatibilidade. Das premissas ora mencionadas, extrai-se que, caso a atividade econômica estiver de alguma forma vulnerando os preceitos supramencionados, será a atividade considerada inválida e inconstitucional. Carvalho Filho, em complemento, vai afirmar que “fundamentos, na verdade, são os pilares de sustentação do regime econômico e, como tal, impõem comportamentos que não os contrariem”[2].
Assim, a ordem econômica, também nominada de “Constituição econômica”, pode ser apresentada, enquanto elemento integrante da ordem jurídica, como o sistema de normas, institucionalmente, determinado modo de produção econômica. A ordem econômica diretiva abarcada pela Constituição Federal de 1988 objetiva a transformação do mundo do ser. Neste aspecto, inclusive, a redação do artigo 170 afixa que a ordem econômica deverá estar alicerçada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, bem como ter por escopo assegurar a todos existência digna, consoante os ditames preconizados pela justiça social, observados determinadas diretivas. Diógenes Gasparini[3] vai afirmar que a intervenção do Estado no domínio econômico como ato ou medida legal que restringe, condiciona ou suprime a iniciativa privada em determinada área econômica, em benefício do desenvolvimento nacional e da justiça social, assegurados os direitos e garantias individuais.
Além disso, a intervenção do Estado na vida econômica substancia um redutor de riscos tanto para os indivíduos quanto para as empresas, sobremaneira quando identifica, em termos econômicos, a segurança como princípio. Repise-se, neste ponto, que a intervenção do Estado não poderá entender-se como uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objetivos das empresas, mas sim como uma diminuição de riscos e uma garantia de segurança maior na prossecução dos fins últimos da acumulação capitalista. Ora, a denominada intervenção do Estado no domínio econômico é não apenas adequada, mas indispensável à concretização e à preservação do sistema capitalista de mercado. Sobre o papel desempenhado pelo Estado, no que toca à intervenção na ordem econômica, o Supremo Tribunal Federal já assentou entendimento robusto que:
“Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 7.844/92, do Estado de São Paulo. Meia entrada assegurada aos estudantes regularmente matriculados em estabelecimentos de ensino. Ingresso em casas de diversão, esporte, cultura e lazer. Competência concorrente entre a união, estados-membros e o distrito federal para legislar sobre direito econômico. Constitucionalidade. Livre iniciativa e ordem econômica. Mercado. Intervenção do estado na economia. Artigos 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição do Brasil. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente”. (Supremo Tribunal Federal – Tribunal Pleno/ ADI 1.950/ Relator: Ministro Eros Grau/ Julgado em 03 nov. 2011/ Publicado no DJ em 02 jun. 2006, p. 04).
Neste sentido, no que toca à valorização do trabalho humano, é importante estabelecer que, entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, a Constituição consignou os valores sociais do trabalho, em seu artigo 1º, inciso IV[4]. A dicção do dispositivo coloca em destaque a preocupação do Constituinte em promover a conciliação entre os fatores de capital e trabalho de forma a atender aos preceitos da justiça social. Assim, em decorrência de tal alicerce, não encontra mais amparo, por exemplo, comportamentos que conduzam à escravidão ou a meios de trabalho capazes de colocar em risco a vida ou a saúde dos trabalhadores. Ademais, é crucial assinalar, ainda, que a justiça social apresenta escopo protetivo e direcionado a categorias sociais mais desfavorecidas.
No mais, a valorização do trabalho humano encontra relação intrínseca com os valores sociais do trabalho. Inexiste dúvida que, para condicionar o trabalho a aludidos valores, faz-se carecida a intervenção do Estado na ordem econômica. “A Constituição intervém notoriamente nas relações entre empregadores e empregados, estabelecidos nos arts. 7º a 11 um detalhado elenco de direitos sociais dos empregados”[5], como leciona Carvalho Filho. Os mandamentos retratam a preocupação estatal em adequar o trabalho aos ditames da justiça social.
Ainda no que atina à valorização do trabalho humano, outro aspecto que decorre desse fundamento é o relativo à automação industrial. Assim, se o uso contemporâneo das recentes tecnologias faz parte do processo de desenvolvimento das empresas do país, não é menos verdadeiro que as máquinas não podem promover a substituição do homem para assegurar benefícios exclusivos do empresariado. Além disso, o Texto Constitucional é ofuscante ao impor a valorização do trabalho humano, logo, o homem deve ser considerado como alvo da tutela. A valorização do trabalho humano implica na necessidade de localizar o homem trabalhador em patamar mais elevado do que a outros concernentes a interesses privados, de maneira a ajustar o trabalho aos primados da justiça social.
O outro fundamento norteador da ordem econômica é o da liberdade de iniciativa, o qual indica que todas as pessoas têm o direito de ingressar no mercado de produção de bens e de serviços por sua conta e risco. Com efeito, o postulado em comento desdobra na liberdade de exploração das atividades econômicas sem que o Estado execute sozinho ou, ainda, concorra com a iniciativa privada. A livre iniciativa materializa o postulado maior do regime capitalista adotado no território nacional. Afora isso, o alicerce em foco encontra complementação na redação do parágrafo único do artigo 170 do Texto Constitucional[6], consoante o qual a todos é assegurado o livre exercício de qualquer atividade econômica, sem necessidade de autorização de órgãos públicos, à exceção das hipóteses expressamente consagradas no ordenamento jurídico vigente.
Tal como o postulado anterior, a liberdade de iniciativa materializa um fundamentos da própria República. Nesta senda, a acepção de livre iniciativa rememora que o Estado não é mero observador, mas desempenha papel de efetivo participante e fiscal do comportamento econômico dos particulares. Destarte, o Estado interfere, de fato, no domínio econômico, restringindo e condicionando a atividade dos particulares em favor do primado do interesse público. Carvalho Filho[7] vai mencionar que a garantia da liberdade de iniciativa ao setor privado goza de tamanha proeminência no regime vigente que prejuízos causados a empresários em decorrência da intervenção do Poder Público no domínio econômico são passíveis de serem indenizados em determinadas situações, nos termos preconizados no §6º do artigo 37 do Texto Constitucional de 1988[8], quando consagra a responsabilidade objetiva. O Supremo Tribunal Federal, em tal trilha, já decidiu que:
“Ementa: Constitucional. Econômico. Intervenção estatal na economia: regulamentação e regulação de setores econômicos: normas de intervenção. Liberdade de iniciativa. CF, art. 1º, IV; art. 170. CF, art. 37, § 6º. I. – A intervenção estatal na economia, mediante regulamentação e regulação de setores econômicos, faz-se com respeito aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica. CF, art. 170. O princípio da livre iniciativa é fundamento da República e da Ordem econômica: CF, art. 1º, IV; art. 170. II. – Fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa. III. – Contrato celebrado com instituição privada para o estabelecimento de levantamentos que serviriam de embasamento para a fixação dos preços, nos termos da lei. Todavia, a fixação dos preços acabou realizada em valores inferiores. Essa conduta gerou danos patrimoniais ao agente econômico, vale dizer, à recorrente: obrigação de indenizar por parte do poder público. CF, art. 37, § 6º. IV. – Prejuízos apurados na instância ordinária, inclusive mediante perícia técnica. V. – RE conhecido e provido.” (Supremo Tribunal Federal – Segunda Turma/ RE 422.941/ Relator: Min. Carlos Velloso/ Julgado em 06 dez. 2005/ Publicado no DJ em 24 mar. 2006, p. 55).
Há um critério, ainda, que reclama apreciação. A acepção de liberdade de iniciativa, de certa forma, é antagônica à valorização do trabalho humano. Ora, a deixar-se à iniciativa privada inteira liberdade para exploração das atividades econômicas, existiria o risco inevitável de não se proteger o trabalho humano. Assim, é perceptível a necessidade de conciliar os fundamentos, desenvolvendo estratégias de restrições e condicionamentos à liberdade de iniciativa, com o escopo de que seja alcançada, de fato, a justiça social e os valores emanados.
2 Do Estado Regulador
Compreende-se Estado regulador como aquele que, por meio de regime interventivo, se incumbe de estabelecer as regras norteadoras e disciplinadoras da ordem econômica com o escopo de ajustá-la aos primados da justiça social. O artigo 174 da Constituição Federal oferta o subsídio sustentador do Estado regulador, notadamente quando dicciona que, “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”[9]. Assim, na condição de agente normativo, cabe ao Estado criar as regras jurídicas que são destinadas à regulação da ordem econômica. Incumbem-lhe três formas de atuação, a saber: fiscalização, incentivo e planejamento.
A atuação de fiscalização consiste na verificação dos setores econômicos para o fim de serem evitadas formas abusivas de comportamento de alguns particulares, desencadeando gravames a setores menos favorecidos, a exemplo dos consumidores e dos hipossuficientes. Por sua vez, o incentivo representa o estímulo que o governo deve oferecer para o desenvolvimento econômico e social do país, estabelecendo as medidas a serem empregadas, a exemplo das isenções fiscais, o aumento das alíquotas para importação, a abertura de créditos especiais para setores produtivos agrícolas e de outros gêneros. O planejamento, por derradeiro, consiste em um processo técnico instrumentado para alterar a realidade existente, com o escopo de atender objetivos previamente determinados. “Planejar no texto constitucional significa estabelecer metas a serem alcançadas pelo governo no ramo da economia em determinado período futuro”[10].
Em especial no que toca ao incentivo – denominado por alguns de fomento -, incumbe ao Estado disponibilizar o maior número possível de instrumentos para o desenvolvimento econômico a ser perseguido pela iniciativa privada. Na verdade, trata-se de estímulo para o desenvolvimento econômico, logo, configuram instrumentos de incentivo os benefícios tributários, os subsídios, as garantias, os empréstimos em condições favoráveis, a proteção aos meios nacionais de produção, a assistência tecnológica e outros mecanismos semelhantes que persigam tal fito.
No que atina à natureza da atuação, cumpre esclarecer que, quando figura como regulador, o Estado não abandona sua posição interventiva; ao reverso, a intervenção em tal cenário dá-se por meio das imposições normativas destinadas, maiormente, aos particulares, tal assim os mecanismos jurídicos preventivos e repressivos para coibir eventuais condutas abusivas. Além de substancializar um meio de intervenção na ordem econômica, a atuação do Estado regulador se materializa de forma direta, sem intermediação de ninguém. Ora, as normas, os fatores preventivos e os instrumentos repressivos tem origem diretamente do Estado. Assim, é possível caracterizar a função do Estado regulador como intervenção direta no domínio econômico.
Atinente à competência, quadra ponderar que, em decorrência do sistema vigente de partilha constitucional de atribuições, a competência quase que absoluta da atuação do Estado regulador ficou concentrada na União Federal. Assim, no elenco da competência administrativa privativa, insculpida no artigo 21 do Texto Constitucional[11], encontram-se várias atribuições que acenam essa forma de atuar estatal. Entre elas, pode-se mencionar: (i) fiscalização das operações financeiras, como a de crédito, de câmbio, de seguros e de previdência privada (inciso VIII); (ii) elaboração e execução de planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (inciso IX); (iii) a reserva relativa à função postal (inciso X); (iv) a organização dos serviços de telecomunicações, de radiodifusão, de energia elétrica (incisos XI a XII); (v) o aproveitamento energético dos cursos d’água e os serviços de transporte (inciso XIII, “b”, “c”, “d” e “e”).
Verifica-se o mesmo com relação à competência legislativa privativa, insculpida no artigo 22 da Constituição Federal[12], dentro da qual se encontram incluídas diversas atribuições específicas. Neste sentido, é possível sublinhar: (i) as competências para legislar sobre comércio exterior e interestadual (inciso VIII); (ii) diretrizes da política nacional de transportes (inciso IX); (iii) sobre jazidas, minas e outros recursos minerais (inciso XII); (iv) organização do sistema nacional de empregos (inciso XVI); (v) sobre os sistemas de poupança, de captação e de garantia da poupança popular (inciso XIX). Ora, em cada uma das atribuições delineadas pelo Texto Constitucional, observa-se que pouco, ou nada, restou para os demais entes federativos, “o que denuncia claramente a supremacia da União como representante do Estado-Regulador da ordem econômica”[13].
Não é demasiado assinalar, ainda, que a União desenvolve atividade de regulação do setor econômico privado por meio das agências reguladoras, ou seja, autarquias instituídas diretamente para esse escopo. Incumbe-lhes, ainda, a regulação dos serviços públicos econômicos, quando delegados a empresas privadas, em especial por intermédio de concessões e permissões de serviços públicos. Nesta linha, os demais entes federativos possuem competência para criação de entidades reguladoras próprias, com o fito de regular as atividades de sua parcela de partilha.
Na relação de atribuições que formam a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal que o Texto Magno contemplou algumas funções supletivas para estes últimos entes federativos. Seguindo tal senda, a redação do artigo 24 afixa que compete, de maneira concorrente, a essas pessoas: (i) legislação sobre direito econômico e financeiro (inciso I); (ii) sobre produção e consumo (inciso V); (iii) sobre proteção do meio ambiente (inciso VI). A competência da União, em aludidas hipóteses, concentra a produção de normas gerais, incumbindo aos demais entes federativos a edição de normas complementares, nos termos dos §§1º e 2º do artigo 24 da Constituição[14].
A competência administrativa comum, contida no artigo 23, igualmente aponta atividades vinculadas à intervenção estatal no domínio econômico. Logo, em decorrência de tal competência, incumbe, de modo concorrente, a todas as entidades federativas, a saber: (i) proteger o meio ambiente (inciso VI); (ii) fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (inciso VIII); (iii) combater as causas da pobreza e promover a integração social dos segmentos hipossuficientes (inciso X).
3 Repressão ao Abuso de Poder Econômico
Tradicionalmente, o poder econômico advém do acúmulo de riquezas e, verificada que a ordem econômica encontra-se em situação regular e sem as frequentes crises que a assolam, tal poder desempenha papel positivo, promovendo o aperfeiçoamento dos produtos e dos serviços, bem como das condições de mercado. O poder em comento, entrementes, pode provocar distorções no plano econômico, extremamente prejudiciais aos setores mais desfavorecidos da coletividade. Materializando tal cenário, tem-se o uso do poder transformado em abuso de poder econômico, reclamante a intervenção do Estado-regulador. De maneira mais usual, “o abuso de poder econômico é cometido pela iniciativa privada, na qual alguns setores do empresariado, com ambição desmedida e total indiferença à justiça social, procuram e executam fórmulas altamente danosas ao público em geral”[15].
Assim, a repressão ao abuso do poder econômico é descrita como o conjunto de estratégias empregadas pelo Estado que, mediante intervenção na ordem econômica, têm o escopo de neutralizar os comportamentos causadores de distorção nas condições normais de mercado em decorrência do acúmulo de riquezas. Gasparini vai preconizar que é possível definir tal repressão como “a medida ou conjunto de medidas estatais que ajustam o poder econômico ao desenvolvimento nacional e à justiça social”[16]. A Constituição em vigor foi ofuscante ao estabelecer a necessidade de reprimir o abuso econômico, dispondo no §4º do artigo 173 que a “lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”[17].
Ademais, em decorrência da reforma tributária introduzida pela Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003[18], que altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências, o artigo 146-A, em sua redação, dispôs que “lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. Como é denotável, o mandamento contido no dispositivo supramencionado tem por escopo em assegurar a concorrência como fator inafastável do setor econômico, guardando harmonia com o corolário contido no inciso IV do artigo 170 do Texto de 1988[19]. Trata-se, portanto, de típica situação interventiva do Estado-regulador.
Nesta linha, é conveniente afirmar que o próprio Texto Constitucional aponta para as formas pelas quais se consuma o abuso de poder econômico. A primeira delas encontra esteio na dominação dos mercados, consistindo na busca, pela empresa, do desaparecimento do equilíbrio das forças oriundas do fornecimento e do consumo e a da possibilidade de a empresa dominante impor condições que somente sejam favoráveis a ela. Com destaque, a dominação do mercado traz uma série de efeitos nocivos à coletividade. A eliminação da concorrência configura a segunda forma, encontrando íntima relação com a primeira. Conquanto seja difícil admitir-se a concorrência perfeita, o certo é que ela regula e confere relativo equilíbrio ao mercado, porquanto a intenção abusiva de um encontra limites na atuação idônea de seu concorrente. Nesta senda, pode-se afirmar que é o regime de competição de preços e produtos que merece defesa. Ademais, conforme preconiza a Constituição Federal, em seu artigo 170, inciso IV, a livre concorrência é um dos baldrames sustentadores da ordem econômica.
Por fim, tem-se como forma abusiva o aumento arbitrário dos lucros, que também possui liame com as duas outras espécies. Logo, quando a empresa intenta dominar o mercado e eliminar o sistema de concorrência, o escopo é o mesmo de auferir lucros de maneira despropositada e arbitrária. Desta feita, verificando-se que o lucro é arbitrário, percebe-se, por consequência, que seu pagamento é efetuado pela massa de consumidores do produto ou do serviço. Ocorrendo tal conduta, incumbe ao Estado-regulador reprimir, eis que é abusivo e ilegal.
O domínio abusivo dos mercados no setor econômico se apresenta sob múltiplas espécies, dentre as quais é possível destacar os trustes, os cartéis e o dumping. É possível caracterizar o truste, conforme magistério de Carvalho Filho, como “a forma de abuso de poder econômico pela qual uma grande empresa domina o mercado e afasta seus concorrentes, ou os obriga a seguir a estratégia econômica que adota”[20]. É considerada como uma forma impositiva do grande sobre o pequeno empresário. Gasparini, por seu turno, vai apresentar a concepção de truste como “pressão das grandes empresas sobre suas concorrentes menores com o fito de afastá-las do mercado ou para que concordem com sua política de preço”[21].
O cartel, por sua vez, é substancializado pela materialização da conjugação de interesses entre grandes empresas com o mesmo escopo, ou seja, promover a eliminação da concorrência e ampliar, de maneira arbitrária, seus lucros. “Diante do poderio econômico desses grupos, o pequeno empresariado acaba por sucumbir e, por vezes, se deixar absorver pelo grupo dominante”[22]. Gasparini[23], ainda, elucida que o cartel é considerado como composição voluntária dos concorrentes sobre um ou mais aspectos do negócio explorado. Por derradeiro, o dumping encerra o abuso de caráter internacional, porquanto uma empresa recebe subsídio oficial de seu país, de maneira a baratear em excesso o custo do produto. Desta feita, como o preço é muito inferior ao das empresas que arcam com os seus próprios custos, estas ficam alijadas da livre concorrência, desencadeando para as empresas com custos baixos uma inevitável elevação dos lucros[24].
4 Controle de Abastecimento
De acordo com Carvalho Filho[25], o controle de abastecimento é a forma interventiva do Estado que objetiva a manter no mercado consumidor produtos e serviços suficientes para atender à demanda da coletividade. Gasparini, ainda, vai definir o controle de abastecimento como “todo ato ou medida que assegura a livre distribuição de bens e serviços essenciais à coletividade”[26]. Em momentos de crise econômica, ou, ainda, de processo inflacionário galopante, é comum que as empresas retenham seus produtos ou deixem de prestar seus serviços, desencadeando insuficiência de consumo no mercado e obstando que a população obtenha regularmente os bens e os serviços. Denota-se, comumente, que tal situação é especulativa e representa modalidade de abuso de poder.
Diante de tal quadro, faz-se necessária a figura do Estado-regulador para que, mesmo contra a vontade dos fornecedores, regularize o abastecimento da população, conquanto sejam carecidas algumas medidas de cunho coercitivo para atender tal escopo. Neste sentido, a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962[27], que dispõe sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo, estabelece várias hipóteses que são justificadoras da intervenção do Estado no setor econômico. Com o escopo de fortalecer as ponderações já apresentadas, o artigo 2º da sobredita legislação apresenta as modalidades em que a intervenção se dará:
“Art. 2º A intervenção consistirá:
I – na compra, armazenamento, distribuição e venda de:
a) gêneros e produtos alimentícios;
b) gado vacum, suíno, ovino e caprino, destinado ao abate;
c) aves e pescado próprios para alimentação;
d) tecidos e calçados de uso popular;
e) medicamentos;
f) Instrumentos e ferramentas de uso individual;
g) máquinas, inclusive caminhões, "jipes", tratores, conjuntos motomecanizados e peças sobressalentes, destinadas às atividades agropecuárias;
h) arames, farpados e lisas, quando destinados a emprêgo nas atividades rurais;
i) artigos sanitários e artefatos industrializados, de uso doméstico;
j) cimento e laminados de ferro, destinados à construção de casas próprias, de tipo popular, e as benfeitorias rurais;
k) produtos e materiais indispensáveis à produção de bens de consumo popular.
II – na fixação de preços e no contrôle do abastecimento, neste compreendidos a produção, transporte, armazenamento e comercialização;
III – na desapropriação de bens, por interêsse social; ou na requisição de serviços, necessários à realização dos objetivos previstos nesta lei;
IV – na promoção de estímulos, à produção”[28].
Do rol apresentado, verifica-se que a intervenção pode ocorrer por meio da compra (aquisição), armazenamento, distribuição e venda de produtos alimentícios, animais, tecidos, medicamentos, máquinas etc. É possível, ainda, que a intervenção seja materializada por meio da fixação de preços dos produtos. O dispositivo, também, preconiza que a intervenção se dará pela desapropriação por interesse social. “Nota-se, portanto, que o legislador ofereceu ao Poder Público todos os instrumentos necessários à manutenção de bens e serviços no mercado, de modo a permitir o abastecimento regular a toda a coletividade”, conforme explicita Carvalho Filho[29]. Em aditamento, Gasparini[30] vai mencionar a necessidade de uma rápida intervenção por parte do Poder Público, pois cuida considerar que se encontram escasseados no mercado. A hipótese em comento dispensa qualquer procedimento licitatório, nos termos previstos na redação do inciso VI do artigo 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993[31], que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências: “Art. 24. É dispensável a licitação: [omissis] VI – quando a União tiver que intervir no domínio econômico para regular preços ou normalizar o abastecimento”.
5 Tabelamento de Preços
Os preços de bens e de serviços existentes em um determinado sistema econômico retratam a expressão monetária de seus valores. A regra geral, como é sabido, consiste na atribuição de preços a tudo o que se encontra oferecido para consumo. Raros são os bens que não têm valores monetários intrínsecos. Os preços são classificados em privados, aqueles que se originam das condições normais do mercado, e públicos, aqueles estabelecidos unilateralmente pelo Poder Público para os serviços que ele ou seus delegados prestem à coletividade, cobrados através de tarifas. Gasparini[32], ainda, apresenta os preços semiprivados, ou seja, aqueles que são fixados pela União sob a influência do mercado. Carvalho Filho[33], em seu escólio, assinala, ainda, que a atuação interventiva do Estado ocorre em relação aos preços privados. A expressão monetária dos preços privados se origina das condições do mercado, por meio da natural lei da oferta e procura, aquela que equilibra ou desequilibra o mercado conforme a natureza dos acontecimentos do sistema econômico.
No mais, quando a oferta é maior que a procura, os preços tendem a reduzir-se; contudo, quando a procura é maior que a oferta, ocorre o reverso, ou seja, a tendência é a elevação dos valores. Assim, os preços devem, naturalmente, ser fixados pelo mercado, porém nem sempre é isso que ocorre. Em determinados momentos, a sonegação de bens e serviços para o consumo regular do mercado, levada a cabo por alguns setores empresariais, desencadeia uma alta artificial dos preços. Ocorrendo tal cenário, em que há o desequilíbrio nas condições de mercado, deve o Estado-regulador atuar de forma interventiva. Em tal situação, o mecanismo mais apropriado para a regulação do mercado é o tabelamento de preço. Nos dizeres de Carvalho Filho, “tabelamento de preços, portanto, é a fixação de preços privados de bens e produtos pelo Estado, quando a iniciativa privada se revela sem condições de mantê-los nas regulares condições de mercado”[34]. Tal mecanismo também é denominado de controle de preços ou congelamento de preços, o que não deixa de ser um tabelamento protraído no tempo. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:
“Ementa: Direito econômico. Intervenção do estado no domínio econômico. Tabelamento. Preço único. Setor sucro-alcooleiro. Congelamento de preços. Planos econômicos. IAA – Instituto do Álcool e do Açúcar. Apuração de custo de produção pela FGV – Fundação Getúlio Vargas. indenização pleiteada por prejuízo ocasionado por política de fixação de preços em desacordo com os critérios do art. 9° da Lei n.º 4.870/65. I – O exercício da atividade estatal, na intervenção no domínio econômico, não está jungido, vinculado, ao levantamento de preços efetuado por órgão técnico de sua estrutura administrativa ou terceiro contratado para esse fim específico; isto porque há discricionariedade do Estado na adequação das necessidades públicas ao contexto econômico estatal; imprescindível a conjugação de critérios essencialmente técnicos com a valoração de outros elementos de economia pública. II – O tabelamento de preços não se confunde com o congelamento, que é política de conveniência do Estado, enquanto intervém no domínio econômico como órgão normativo e regulador do mercado, não havendo quebra do princípio da proporcionalidade ao tempo em que todo o setor produtivo sofreu as consequências de uma política econômica de forma ampla e genérica. III- Apesar de inviável, em sede de recurso especial, a quantificação dos danos sofridos pelas usinas e engenhos de açúcar – com a fixação de preços únicos para o setor sucro-alcooleiro, decorrente de tabelamento de preço – porque implica em reexame de prova vedado pela Súmula n.º 07/Colendo Superior Tribunal de Justiça, é possível a discussão da legalidade dos critérios exteriorizadores da defasagem do setor.” (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 79.937/DF/ Relaora: Ministra Nancy Andrighi/ Julgado em 06 fev. 2001/ Publicado no DJ em 10 set. 2001, p. 366).
É importante apontar que o tabelamento de preços encontra previsão expressa no inciso II do artigo 2º da Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962[35], retratando uma das formas de atuação interventiva do Estado no domínio econômico. Carvalho Filho[36] vai sustentar que a competência para essa atuação é privativa da União ou de entidades a ela vinculadas, às quais foram delegadas essa atribuição. Logo, estão excluídos de tal possibilidade os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. Com efeito, o tipo de intervenção estatal, contudo, não pode se afastar de sua finalidade. O escopo a que se dirige o Estado é a regularização do mercado, de modo que se afigura ilegítima a atuação estatal pela qual sejam tabelados preços privados sem observância à natural lei da oferta e da procura. As empresas também não possuem amparo constitucional para a exploração das atividades econômicas, primado da liberdade de iniciativa.
6 Microempresas e Empresas de Pequeno Porte
Além do grande empresariado, o setor econômico possui um elevado número de empresas menores que são, igualmente, responsáveis pelo desenvolvimento econômico do país. Sensível a tal realidade, a Constituição Federal, na redação do artigo 179[37], estabeleceu, de maneira expressa, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. Denota-se, portanto, que o escopo constitucional foi de propiciar a categoria de empresas em destaque a oportunidade de competição ou, ao menos, de desenvolvimento, diante das grandes empresas que, naturalmente, carecem de menor auxílio por deterem situação econômica mais sólidas e melhores meios para alcançarem seus fitos.
Em decorrência da reforma tributária, a Constituição, em seu artigo 146, inciso III, alínea “d”, com a Emenda Constitucional nº 42, de 19 de dezembro de 2003[38], que altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências, passou a prever que a lei complementar sobre matéria tributária, também, deve definir o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, bem como instituir regimes especiais ou simplificados no caso de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (artigo 155, inciso II[39]), das contribuições para o PIS (artigo 239[40]) e das contribuições previdenciárias previstas no artigo 195, inciso I, alínea “b”, e inciso IV, do Texto Constitucional[41]. Neste sentido, a Constituição de 1988 atribuiu competência concorrente a todas as entidades federativas no que concerne a ações protetivas para as microempresas, em decorrência de diversos aspectos se encontrarem insertos em competências constitucionais diversas.
Com o escopo de regulamentar a temática em âmbito infraconstitucional, foi promulgada a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006[42], que institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte; altera dispositivos das Leis no 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63, de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. O diploma legislativo foi responsável pela introdução de um sucedâneo de modificações em outros diplomas, bem como revogou legislações, com o escopo de promover a unificação da temática.
Assim, apesar de uma série de alterações trazidas pelo diploma em destaque, dois pontos merecem maior reflexão. O primeiro consiste no aspecto tributário, posto que a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006[43], embora com algumas normas diferenciadas, repetiu o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições, nominado “Simples Nacional”, cujas disposições encontram-se espancadas do artigo 12 a 41. “A lei visou a facilitar os pequenos empresários no que diz respeito ao débito de impostos e outras contribuições, inclusive reduzindo as exigências formais adotadas normalmente para o pagamento de despesas fiscais”[44].
Em relação ao segundo ponto, cuida mencionar que o acesso aos mercados pretendeu ofertar oportunidades mais robustas às microempresas e às empresas de pequeno porte por meio de preferências no setor de aquisições de bens e serviços pela Administração Pública e da diminuição de formalismos em sede de procedimentos licitatórios, conforme a redação dos artigos 42 a 49. Igualmente, foi introduzida a inovação de permitir a tais empresas a emissão de cédula de crédito microempresarial, dotada de natureza de título de crédito e regida, subsidiariamente, pela legislação norteadora de cédulas de crédito comercial.
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES
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