Da desconstrução constitucional dos diplomas sobre a declaração do estado de emergência em Angola

Osvaldo de Carvalho – Jurista e Advogado Estagiário, formado pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola. (e-mail: osvaldowalessa.carvalho@gmail.com)

Resumo: O presente artigo tem como objectivo dar uma dimensão acadêmica à discussão que se instalou em Angola quando foi declarado o estado de emergência tendo em conta o risco de propagação da pandemia do covid19. Os cultores do direito constitucional não convergem sobre a questão de saber a quem incumbe em situação de excepção constitucional legislar sobre restrições aos direitos fundamentais e, no meio de tudo isto tomar posição na discussão, introduzindo também outros temas conexos e uma abordagem crítica sobre o procedimento constitucionalmente previsto para a declaração do estado de emergência. Conclui-se assim que, não obstante a situação ser de excepção, os órgãos de soberania não perdem de forma alguma as suas competências constitucionais e que, não é constitucionalmente permitido ao Chefe de Estado legislar sobre matéria de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional. Para tal, ter-se-á como base de argumentação a doutrina dos cultores do direito constitucional, que são sobejamente conhecidos no mundo do direito bem como a jurisprudência do Tribunal Constitucional angolano.

Palavras-Chave: Estado de emergência. Restrições aos direitos fundamentais. Crítica Procedimento constitucional. Inconstitucionalidade.

 

Abstract: This article aims to give an academic dimension to the discussion that took place in Angola when the state of emergency was declared, taking into account the risk of spreading the covid pandemic19. Cultivators of constitutional law do not converge on the question of who is in charge of constitutional exception to legislate on restrictions on fundamental rights and, in the midst of all this, take a stand in the discussion, also introducing other related themes and a critical approach to the procedure constitutionally provided for the declaration of a state of emergency. It follows that, although the situation is exceptional, the sovereign bodies do not in any way lose their constitutional powers and that the Head of State is not constitutionally allowed to legislate on matters of absolute reserve of legislative competence of the National Assembly . To this end, the doctrine of constitutional law practitioners, who are well known in the world of law, as well as the jurisprudence of the Angolan Constitutional Court, will have as basis of argument.

Keywords: State of emergency. Restrictions on fundamental rights. Criticism Constitutional procedure. Unconstitutionality.

 

Sumário: Introdução. 1. Do conceito de estado de emergência. 2. Estado de emergência na Lei Constitucional de 1992. 3. Estado de emergência na Constituição de 2010. 4. O que é mais agressivo: restrição ou suspensão do exercício de direitos fundamentais? 5. Órgão com competência para restringir direitos, liberdades e garantias no sistema constitucional angolano. 6. Relação entre estado de emergência e direitos fundamentais. 7. Crítica ao procedimento constitucional para a declaração do estado de emergência. 8. Jurisprudência do Tribunal Constitucional Angolano. 9. Da inconstitucionalidade dos diplomas sobre o estado de emergência. 9.1 Da inconstitucionalidade de algumas disposições do Decreto Legislativo Presidencial Provisório nº 1/20 de 18 de Março. 9.2 Da inconstitucionalidade material e orgânica dos artigos 2º, 13º, 20º, 21º, 22º, 28º e 34º do Decreto Presidencial 81/20 de 25 de Março que declara o estado de emergência, dos artigos 4º, 5º, 7º, 8º, 11º, 15º, 16º, 23º, 24º, 25º, 26º, 30º, 31º, 37º do Decreto Presidencial 97/20, de 9 de Abril que prorroga o estado de emergência e dos artigos 3º, 4º, 6º, 13º, 20º, 21º, 22º, 23º, 27º, 28º, e 34º do Decreto Presidencial 82/20 de 26 de Março. 9.3 Da inconstitucionalidade por omissão da Assembleia Nacional 10. Contra-argumentos. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Em qualquer sistema jurídico há previsões sobre circunstâncias especiais que exigem a aplicação de soluções, também elas, especiais. Ou seja, para problemas comuns, aplicam-se soluções comuns; para problemas especiais, aplicam-se soluções especiais. É assim que, ao nível do direito compreende-se que para problemas resultantes do comércio devem aplicar-se soluções do direito comercial (problema especial-solução especial) e não o direito comum de imediato, bem como se compreende que em caso de estado de necessidade e legítima defesa as pessoas tomem atitudes que em situações normais não seriam admissíveis.

O presente artigo visa analisar se, em estado de emergência, o Presidente da República pode ou não legislar sobre direitos fundamentais, sendo que tais matérias constituem matérias de reserva absoluta de competência legislativa do Parlamento.

Para materialização do referido objectivo, começar-se com um conceito de estado de emergência, seguindo-se de uma análise do processo de declaração do estado de emergência na Lei Constitucional e na Constituição de 2010, passando-se para a distinção entre restrição e suspensão do exercício de direitos e fazendo uma crítica ao procedimento de declaração do estado de emergência actual.

Num outro momento, analisar-se-á a jurisprudência do Tribunal Constitucional, defendendo a seguir a inconstitucionalidade dos diplomas que declaram o estado de emergência e os possíveis contra-argumentos que poderão ser levantados contra essa tese.

 

  1. Do conceito de estado de emergência

O legislador constituinte previu, assim, e bem, os casos em que o recurso a meios ordinários não acautelariam de forma suficiente os interesses do Estado e, por isso, fixou no artigo 204º e 58º da CRA sobre os Estados de necessidade constitucional, nomeadamente o estado de guerra, de sítio e de emergência.

De facto a “Constitucionalização do estado de excepção e remissão para a lei da sua regulamentação são as pedras basilares da compreensão jurídico-constitucional do direito de necessidade” (CANOTILHO, 2003, pág. 1090).

Segundo Canotilho e Moreira (2007, pág. 401) “O estado de excepção constitucional é, pois, uma situação anómala, por natureza transitória, destinada a pôr fim a perturbações constitucionais («autodefesa constitucional») ou a situações de calamidade que não possam ser enfrentadas com os meios constitucionais normais”.

O pressuposto para a declaração do estado de emergência, de acordo com a Constituição, conjugado com a alínea c) do artigo 2.º da Lei 17/9, 11 de Maio é “verificação ou iminência de calamidade pública”.

De acordo com Canotilho (2003, pág. 1102) “Por calamidade pública entendem-se as catástrofes naturais (terramotos, vulcões, tempestades, inundações e epidemias), as «catástrofes tecnológicas» e os «acidentes graves»…”.

O estado de excepção, por ser uma situação de anormalidade, permite, assim, dentro de determinados limites, tomar as medidas necessárias para restabelecer a normalidade.

 

  1. Estado de emergência na Lei Constitucional de 1992

A Lei Constitucional (doravante LC) trazia um regime jurídico para o decretamento do estado de excepção que era inteiramente diferente do regime hoje fixado pela Constituição de 2010.

Nos termos da alínea r) do artigo 66º da LC, competia ao Presidente da República “declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, nos termos da lei”. Repare-se que o termo “lei” quer referir-se tanto à própria LC bem como à Lei 17/91. Por outro lado, determinava a alínea i) do artigo 88º da LC que compete à Assembleia Nacional “autorizar o Presidente da República a declarar o estado de sítio e o estado de emergência, definindo a extensão, a suspensão das garantias constitucionais e vigiar a sua aplicação”.

Dos enunciados legais resulta que na LC o papel da Assembleia Nacional (doravante A.N) no processo de decretamento do estado de sítio ou de emergência era mais que determinante e, inclusive, era a própria A.N que definia a extensão, a suspensão das garantias constitucionais e vigiava a sua aplicação.

Efectivamente, pode-se com segurança afirmar que no âmbito da LC havia de facto um “controlo parlamentar da declaração do estado de necessidade” e “interdependência… dos órgãos de soberania com tarefas políticas de intervenção e responsabilidade em situações de necessidade” (CANOTILHO, 2003, pág. 1107).

A este propósito reconhecem Araújo, Nunes e Lopes (2018, pág. 269) que “A Lei Constitucional de 1992, no seu artigo 88.º, alínea i) definia um regime partilhado de responsabilidades entre o Presidente da República e a Assembleia Nacional”.     

Na verdade, os actos típicos do controlo parlamentar no caso traduzem-se na autorização, na definição da extensão e na vigilância da sua aplicação. A consequência natural desse controlo parlamentar poderia ser, por exemplo, a negação por parte da A.N em conceder a autorização em caso de execução inadequada do EE em caso de prorrogação ou ainda a restrição com menor dimensão da suspensão das garantias constitucionais.

A Constituição da República Federativa do Brasil vai mais longe ao determinar no seu artigo 49º, inciso IV que compete exclusivamente ao Congresso Nacional “aprovar o estado de defesa e intervenção federal ou suspender qualquer uma dessas medidas”.

Compreende-se perfeitamente esta articulação entre a A.N e o PR que a LC determinava, já que “Parte-se do pressuposto que é fundamental envolver um número abrangente de instituições para assegurar a existência de um nível suficiente de consenso sobre a tomada de uma decisão que tem grande impacto na comunidade e ainda possivelmente, na própria gestão do Estado…” (OLIVEIRA E SANTOS, 2015, pág. 354).

 

  1. Estado de emergência na Constituição de 2010

Com a aprovação da Constituição de 2010 houve, de facto, mudanças no que se refere ao processo de declaração do estado de emergência que, entenda-se, foi um retrocesso, conforme procurar-se-á demonstrar.

Nos termos da alínea p) do artigo 119º, conjugado com o artigo 204º, todos da CRA, compete ao Presidente da República enquanto Chefe de Estado “Declarar o estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional”. Decorre do nº 3 do artigo 125º da CRA que a declaração de estado de emergência reveste a forma de decreto presidencial.

Particularmente, não se vislumbra qualquer problema de natureza constitucional que seja o Chefe de Estado a declarar o estado de emergência, sendo que, o Presidente da República o Chefe de Estado, titular do poder executivo, Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas e que tem deveres muito específicos na garantia e defesa da segurança nacional, é a entidade mais adequada para declarar o estado de emergência.

O problema começa exatamente com a forma de fazê-lo. Coloca-se a seguinte questão abrangente: qual é o conteúdo jurídico da declaração de estado de emergência?

O legislador constituinte fixou com alguma cautela alguns requisitos “…tendentes a evitar o aproveitamento das situações de excepção para se introduzirem medidas abusivas ou excessivas” (CANOTILHO, 2003, pág. 1106).

O conteúdo essencial da declaração do estado de emergência é a “limitação” ou “suspensão” do exercício de direitos fundamentais.

Respondida a questão, surge à segunda: o que significa “limitação/restrição” e “suspensão” do exercício de direitos fundamentais e quais os seus pressupostos constitucionais? É uma das questões mais importantes que, se bem respondida, ajudará a compreender o texto todo.

Para Alexy (2006, pág. 281) “restrições a direitos fundamentais são normas que restringem uma posição prima facie de direito fundamental”. A restrição de direitos fundamentais pode ocorrer, segundo Alexy tanto por via de regras quanto por via de princípio de direito fundamental. A constituição estabelece nº 1 do artigo 46º que “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas…”. Da interpretação do texto constitucional depreende-se que o exercício do direito em causa não sofrerá restrições até que ao momento que se verifique a existência de “armas”. Significa que, num caso concreto, a partir do momento que se constate que o exercício do direito referido esteja a ser feito de forma não pacífica ou com armas, haverá restrição.

Por seu lado, Dworkin (2017, pág. 297) afirma que “devemos reconhecer que o governo tem uma razão para restringir direitos se, com plausibilidade, acreditar que um dos direitos concorrentes é o mais importante”.

Segundo Alexandrino (2011, pág. 225) limite a um direito é “uma norma que, de forma duradoura, exclui directamente âmbitos ou efeitos de protecção ou que é fundamento susceptível de afectar as possibilidades de realização de outras normas de direitos fundamentais”.

De acordo com Alexandrino apud Oliveira e Santos (2015, pág. 347) a suspensão de direitos consiste na “afectação de direitos, liberdades e garantias que, pressupondo a declaração de estado de sítio ou de emergência, feita na forma prevista na Constituição, atinge em abstracto certos efeitos de protecção da norma de direito fundamental”.

Para Oliveira e Santos (2015, pág. 365) na suspensão do exercício de direitos “os titulares desses direitos ficam impedidos de exigir o seu exercício dos mesmos ao Estado enquanto dure uma suspensão declarada conforme a constituição e implementada de acordo com o âmbito de suspensão”. Acrescem as autoras que “a suspensão tem carácter limitado no tempo, enquanto a restrição tem uma vocação de definitividade e permanência no tempo”.

Até aqui resulta, de forma clara, que a restrição de direitos fundamentais ocorre em situações de normalidade constitucional, enquanto que a suspensão do exercício de direitos fundamentais ocorre em situações de anormalidade constitucional, tendo, deste modo, pressupostos completamente diferentes.

A Constituição angolana prevê essa situação nos artigos 57.º e 58.º. Resulta do nº 1 do artigo 57º que a restrição visa salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Um exemplo é o que consagra o nº 3 do artigo 40.º “A liberdade de expressão e a liberdade de informação têm como limites os direitos de todos ao bom nome, honra e reputação…”. Significa que, o âmbito de protecção da liberdade de expressão sofre restrição a partir do momento que o seu exercício coloque em causa o bom nome, honra, etc. Numa sociedade democrática, isso constitui prática diária.

Diferentemente, o artigo 58.º determina que “O exercício dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos apenas pode ser limitado ou suspenso em caso de estado de guerra, estado de sítio ou de emergência nos termos da Constituição e da lei”. Parece claro que a suspensão do exercício de direitos só é possível em caso de declaração de um dos estados de excepção constitucional.

A propósito, afirma Canotilho (2003, pág. 1104) que “o direito de necessidade simples tem de conformar-se formal e materialmente com as normas constitucionais, podendo, com base nestas justificarem restrições (nunca suspensões) a direitos, liberdades e garantias para a salvaguarda de outros bens constitucionalmente protegidos”.

 

  1. O que é mais agressivo: restrição ou suspensão do exercício de direitos fundamentais?

Decorre da própria constituição que a restrição tem como pressuposto primário a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, ou seja, a restrição tem que ver com o conteúdo do direito fundamental. Diferentemente “a suspensão incide sobre o exercício do direito e não sobre o seu conteúdo” (OLIVEIRA E SANTOS, 2015, pág. 348).

Segundo Canotilho (2003, pág. 1105) “As situações de necessidade constitucional pressupõem a possibilidade de restrições mais intensas dos direitos fundamentais do que aquelas que constitucionalmente são admitidas em situações de normalidade”. Mais acrescenta que “O instrumento ou medida classicamente admitido é a suspensão colectiva de direitos”.  

Pela sua forma de actuação e pelos pressupostos de determinação de cada um, conforme demonstrado acima, pode-se responder com segurança que a suspensão do exercício de direitos fundamentais é muito mais agressiva que a restrição.

 

  1. Órgão com competência para restringir direitos, liberdades e garantias no sistema constitucional angolano

Chegados aqui, podemos fazer um exercício de hermenêutica clássica e constitucional para analisar objectivamente o que deve ou deveria ter sido feito. Neste aspecto, Machado e Hilário (2017, pág. 51) afirmam que “o intérprete deve reconhecer a igual dignidade hierárquica das diferentes normas constitucionais, bem como atender às relações de interdependência entre elas existentes”.

Foi, na verdade o mesmo exercício feito pelo Tribunal Constitucional para determinar que a expressão “entidade competente” prevista no artigo 63º da CRA quer dizer magistrado judicial. No Acórdão 467/17 o TC afirmou que “É verdade que nessas normas o legislador constitucional não clarifica a que entidade se refere, se magistrado judicial ou se, do ministério público. Todavia, por interpretação sistemática dessas normas constitucionais (conjugada com a prevista no artigo 186º) pode concluir-se que a expressão “entidade competente” quer referir-se ao magistrado judicial”.

Nos termos das alíneas b) e c) do artigo 164º da Constituição, à A.N compete legislar com reserva absoluta sobre as seguintes matérias: 1) Direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos; 2) Restrições e limitações aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Entende-se que, não faz muito sentido o dispositivo da alínea c) do artigo 164º, na medida em que, se a alínea b) já determina que a A.N legisla com reserva absoluta sobre direitos, liberdades e garantias, isso significa, por maioria de razão, que tem também competências para restringir ou limitar os mesmos. Teoricamente, diz-se que a lei que permite o mais, permite o menos, ou seja, se a Constituição a permite legislar (que implica em princípio adição) sobre direitos, liberdades e garantias, que é o mais, o lógico é que permite também a sua restrição, que é o menos, desde que observados, sem dúvida, os limites constitucionais previstos.

Em boa verdade, a ideia de que a restrição aos direitos, liberdades e garantias só pode ser legislado pelo A.N “reafirma a ideia do parlamento como órgão “amigo” das liberdades e da reserva de lei do parlamento como instrumento privilegiado da defesa dos direitos, liberdades e garantias”  (CANOTILHO, 2003, pág. 453).

Neste ínterim, o único órgão de soberania previsto na Constituição que pode legislar sobre direitos fundamentais e suas restrições é a Assembleia Nacional.

 

  1. Relação entre estado de emergência e direitos fundamentais

Conforme se referiu acima, o conteúdo essencial da declaração do estado de emergência é a suspensão do exercício de direitos. A suspensão do exercício de direitos é matéria de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional.

O primeiro fundamento decorre da natureza dos direitos cujo exercício será suspenso, ou seja, direitos fundamentais. O segundo decorre das próprias normas constitucionais.

Um argumento que pode ser levantado para enfraquecer a enfraquecer a presente tese é o de que, a A.N restringe apenas direitos em situações de normalidade constitucional, que uma coisa é restrição de direitos e outra bem diferente é a suspensão do seu exercício. Já demonstramos que restrição e suspensão são coisas diferentes.

Contesta-se a força jurídica dos referidos argumentos. Repare-se que, conforme referimos acima, a suspensão é muito mais agressiva que a restrição, na medida em que, enquanto decorrer a suspensão, o exercício do direito suspenso não pode ser exigido ao Estado.

Então pense-se no seguinte: se a restrição que é menos agressiva aos direitos fundamentais é matéria de reserva absoluta de competência legislativa, é lógico que nos casos em que a agressão aos direitos fundamentais são maiores a intervenção parlamentar é mais que necessária.

No âmbito da interpretação clássica, relativamente aos resultados da interpretação, é legítimo usar o argumento “a minori ad maius”: a lei que proíbe o menos também proíbe o mais (MACHADO, 2010, pág. 187).

Ou seja, se a lei reserva apenas à A.N a competência para restringir direitos (que é menos grave) também exige que seja apenas a A.N em caso de suspensão do exercício de direitos (mais grave).

Nos termos da constituição, a A.N é competente para legislar com reserva absoluta legislativa sobre “definição de crimes, penas e medidas de segurança”. Faz algum sentido afirmar que os casos de suspensão das penas ou medidas de segurança seja outro órgão diferente da A.N a legislar?

O simples facto de a constituição estabelecer que a A. N tem competência com reserva legislativa absoluta sobre direitos fundamentais, é razão suficiente para crer que qualquer restrição e/ou suspensão do exercício de direitos fundamentais exige intervenção parlamentar.

 

  1. Crítica ao procedimento constitucional para a declaração do estado de emergência

A Constituição determina que compete ao Presidente da República declarar estado de emergência, ouvida a Assembleia Nacional, bem como determina que à A.N compete no domínio do controlo e fiscalização “analisar e discutir a aplicação da declaração do estado de emergência e pronunciar-se sobre a possibilidade de declaração pelo PR de estado de sítio ou de emergência.

Em bom rigor, o único órgão de soberania com papel decisivo na determinação do estado de emergência é o Presidente da República, na medida em que, a constituição não atribui uma intervenção verdadeiramente consistente à A.N nos casos em que é necessário declarar o estado de excepção.

O pronunciamento da AN não tem qualquer efeito vinculativo. A A.N pode pronunciar-se no sentido negativo, porém, o PR não pode ser impingido juridicamente a aceitar os argumentos invocados. Na verdade, parece ter mais natureza consultiva que outra coisa. E os conselhos, por mais excelentes que sejam, pela sua natureza, não vinculam quem os recebe.

Hobbes já havia chamado atenção há anos sobre a natureza do conselho. Afirma ele (2004, pág. 185) que “é um dever seguir aquilo que está prescrito na lei; porém, a obediência a um conselho é dependência tão somente do livre arbítrio”. Ou seja, a Constituição manda o PR ouvir a A.N, porém, em momento algum impõe que deva acatar o posicionamento da A.N.

Tendo em conta o conteúdo da declaração do estado de emergência, por afectar directamente o exercício de direitos fundamentais, entende-se que a A.N devia ter um papel mais consistente, senão mesmo central, nesse processo todo. Mesmo que a A.N não concorde com a declaração do estado de excepção, não tem qualquer mecanismo constitucional para se opuser. A AN em termos práticos não tem qualquer poder decisivo no processo de declaração.

Acredita-se que, neste aspecto, a Lei Constitucional de 1992 tinha uma solução muito mais coerente com as normas que atribuiam competência com reserva absoluta legislativa à A.N em matéria de direitos fundamentais (vide al.c art 89º). Repare-se que nos termos da alínea i) do artigo 88º da Lei Constitucional a A.N autorizava o PR a declarar o estado de sítio e o estado de emergência “definindo a extensão, a suspensão das garantias constitucionais e vigiar a sua aplicação”.

Esta solução prevista na Lei Constitucional é a que devia ser adoptada pela Constituição de 2010, por estar mais em conformidade com as normas sobre direitos fundamentais. A racio era no sentido de que, se a A.N tem competência com reserva absoluta legislativa em matéria de direitos fundamentais e a declaração do estado emergência afecta direitos fundamentais (em termos de suspensão do seu exercício) o que é exigível e razoável é que ela tenha um papel mais acutilante e defina efectivamente o conteúdo da declaração do estado de emergência.

O actual modelo para declaração do estado de emergência previsto na Constituição não está em conformidade com a própria constituição, já que, ao ser o PR a “legislar” sobre direitos fundamentais, constitui uma violação à Constituição, na medida em que viola o princípio da separação de poderes e o próprio princípio do estado de direito.

A este respeito, afirmam Araújo e Nunes (2014, 184) que “a divisão de poderes, entendido como princípio que exige vinculação dos actos estaduais a uma competência, constitucionalmente definida e uma ordenação relativamente separada de funções”. A Constituição definiu que em matéria de direitos, liberdades e garantias só a Assembleia Nacional pode legislar.

Alguns intelectuais poderão questionar se o PR legislou efectivamente. A resposta, além de se encontrar com facilidade na Constituição, também tem apoio da doutrina.

Para Canotilho e Moreira (2007, pág. 404) “Parece seguro que o acto de declaração do estado de excepção, pelo menos na parte que afecta a suspensão dos direitos fundamentais, possui carácter normativo, pelo que está desde logo sujeito a controlo directo de constitucionalidade”.

No modelo Constitucional actual o papel da A.N no processo de declaração do estado de excepção foi completamente esvaziado que até se poderia arriscar dizer que, rigorosamente, o papel da A.N é zero, é que nem sequer pode “vigiar a aplicação” do estado de emergência.

Ao nível da CPLP, só Angola e Guiné Bissau é que as suas constituições preveem esse modelo de declaração de estado de excepção constitucional.

Os modelos dos países da CPLP têm muitas similitudes com o que estava previsto na Lei Constitucional de 1992.

 

  1. Jurisprudência do Tribunal Constitucional Angolano

Na jurisprudência já produzida pelo Tribunal Constitucional podemos encontrar argumentos que consolidam a tese que defendemos no presente artigo.

No âmbito do Processo nº 550-C/2017, a Ordem dos Advogados de Angola apresentou ao Tribunal Constitucional um pedido de apreciação da constitucionalidade de algumas disposições do Decreto Presidencial 74/15, de 24 de Março, que aprova o Regulamento das Organizações Não-Governamentais. Um dos argumentos invocados pela OAA e que interessa para o objecto na nossa reflexão é que “O facto de ser o poder executivo e não o legislativo a regulamentar a actividade das ONG´S, constitui inconstitucionalidade orgânica, posto que, tratando-se a liberdade de associação de um direito fundamental nos termos da alínea b) do artigo 164º da Constituição, esta matéria é da competência absoluta da Assembleia Nacional”.

Por via do Acordão nº 447/2017, o Tribunal Constitucional afirmou que “… legislar em matéria de direitos fundamentais (como é o caso da liberdade de associação) e de associações (como é o caso das ONG´S) é reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional (alíneas a, b, c e l) do artigo 164º da CRA”.

Mais acrescenta o acórdão que “Estamos, pois, em presença de um diploma com designação e forma de regulamento, mas com conteúdo material de lei e em matéria que, à luz do princípio da separação de poderes, a Constituição considera ser domínio de reserva absoluta da Assembleia Nacional”.

Para finalizar “É entendimento do Tribunal Constitucional que o Decreto Presidencial nº 74/15, de 23 de Março, é organicamente inconstitucional porque a matéria tratada no regulamento por si aprovado é do domínio absoluto da competência legislativa da Assembleia Nacional”.

E assim concluiu o órgão de soberania que, pela sua própria natureza, a sua função é administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.

Com o reforço jurisprudencial dos nossos argumentos, pode-se mesmo afirmar com segurança que, o dispositivo constitucional que atribui ao PR a competência para declarar o estado de emergência é incompactível com uma mera audição da A.N, já que, considerando que a declaração de estado de emergência afecta o exercício de direitos fundamentais, a intervenção parlamentar deve ser mais acutilante.

Mesmo que a redacção do dispositivo constitucional que apenas manda o PR ouvir a Assembleia Nacional permaneça inalterável, a alínea b) e c) do artigo 164º da CRA exigirá da A.N uma conduta mais activa, no sentido de legislar efectivamente sobre direitos fundamentais ou suas restrições em sentido amplo.

 

  1. Da inconstitucionalidade dos diplomas sobre o estado de emergência

9.1 Da inconstitucionalidade de algumas disposições do Decreto Legislativo Presidencial Provisório nº 1/20 de 18 de Março

O DLPP 1/20, de 18 de Março, no seu artigo 1º, nº 3 determina que “É interdita a circulação de pessoas nas fronteiras…”. Estabelece também o nº 1 do artigo 2º que “É proibida a realização de eventos públicos como cultos religiosos, actividades culturais, recreativas, desportivas, políticas, associativas…”.

Mesmo que se verifique uma situação de urgência que exige medidas imediatas para a defesa do interesse público, não é permitido ao PR emitir documentos cujo conteúdo seja matéria de reserva legislativa absoluta da A.N.

O conteúdo das disposições legais supracitas é de reserva legislativa absoluta da A.N. Nos termos do nº 3, alínea a) do artigo 126º da CRA não podem ser aprovados decretos legislativos presidenciais provisórios sobre “As matérias de reserva legislativa absoluta da Assembleia Nacional”. O raciocínio jurídico deve ser esse: se a própria constituição proibe a aprovação pela A.N de DLPP que trate de matéria de sua reserva absoluta de competência legislativa significa que a constituição não tolera, nem por motivos excepcionais, que as competências da A.N em matéria de reserva absoluta de competência legislativa seja exercida por outro órgão. Caso tolerasse, teria de haver uma disposição constitucional que permitisse a aprovação.

É este o preço que temos de pagar para manutenção do Estado de Direito.

Assim, o argumento invocado por alguns juristas de que a A.N poderia converter em lei o DLPP está desprovido de fundamento constitucional, a não ser que seja sem os dispositivos invocados e que consideramos inconstitucionais.

 

9.2 Da inconstitucionalidade material e orgânica dos artigos 2º, 13º, 20º, 21º, 22º, 28º e 34º do Decreto Presidencial 81/20 de 25 de Março que declara o estado de emergência, dos artigos 4º, 5º, 7º, 8º, 11º, 15º, 16º, 23º, 24º, 25º, 26º, 30º, 31º, 37º do Decreto Presidencial 97/20, de 9 de Abril que prorroga o estado de emergência e dos artigos 3º, 4º, 6º, 13º, 20º, 21º, 22º, 23º, 27º, 28º, e 34º do Decreto Presidencial 82/20 de 26 de Março.

Com base nos argumentos expostos anteriormente, pode-se afirmar que os artigos dos diplomas acima referidos são todos inconstitucionais, na medida em que o seu conteúdo essencial constitui uma restrição (em sentido amplo) aos direitos fundamentais, que é competência de reserva absoluta legislativa da A.N. Só a AN pode restringir direitos fundamentais, por mais urgente que seja a situação.

Compreende-se perfeitamente a existência do dever do estado de assegurar o bem-estar geral da comunidade e a segurança nacional, porém, conforme afirma DWORKIN (2017, pág. 303) “o governo deve buscar um meio-termo: equilibrar o bem-estar geral e os direitos individuais, concedendo a cada um o que lhe é devido”. A melhor forma de equilibrar o bem-estar geral e os direitos individuais traduz-se no cumprimento rigoroso das normas constitucionais que se devam aplicar quando o dever de proteger o bem-estar geral implica a necessidade de restringir direitos individuais. “A instituição dos direitos contra o governo não é um presente de Deus. É uma prática complexa e problemática que torna mais difícil e mais cara a tarefa governamental de assegurar o bem-estar geral” (DWORKIN, 2017, pág. 304).  

Como bem afirmou o saudoso Professor Adérito Correia (2002, pág. 110) “São poucos os direitos que se podem considerar absolutos e a Constituição obriga os tribunais a procederem a uma investigação sobre a suspeita de violação de direitos de modo a formar um exercício de equilíbrio entre o cidadão e a sociedade”.

Se se interpretar sistematicamente a Constituição, facilmente compreender-se-á que não está em conformidade com a CRA defender a ideia de que na declaração do estado de emergência deve o PR suspender o exercício de direitos. Essa solução fere normas constitucionais estruturantes como o princípio do estado de direito, o princípio da separação de poderes e as próprias normas constitucionais que exigem intervenção do parlamento para restringir direitos.

Assim, embora a alínea p) do artigo 119º mande ouvir apenas a A.N para se pronunciar sobre a possibilidade de decretamento de estado de emergência, pelo facto de o conteúdo da declaração do estado de emergência afectar o exercício de direitos fundamentais, as alíneas b) e c) do artigo 164º exigem que apenas a A.N legisle sobre a restrição de direitos fundamentais.

Uma interpretação sistemática das normas constitucionais exige que seja apenas a A.N a legislar sobre o conteúdo da declaração do estado de emergência, independentemente da norma que exige que o PR requeira o pronunciamento da A.N para o decretamento do estado de emergência.

Segundo Alexandrino apud Oliveira e Santos (2015, pág. 348) “a suspensão decretada sem respeito pela forma ou pelos pressupostos constitucionais redundará sempre noutras modalidades de afectação (neste caso, necessariamente inconstitucionais), designamente na restrição, na intervenção restritiva e na violação de direitos, liberdades e garantias”.

 

9.3 Da inconstitucionalidade por omissão da Assembleia Nacional

Uma norma é inconstitucional quando viola as regras e princípios consagrados na Constituição.

A figura da inconstitucionalidade por omissão está prevista no artigo 232º da CRA, cuja iniciativa para a sua declaração cabe ao Presidente da República, a um quinto dos deputados em efectividade de funções e ao Procurador-Geral da República.

Verifica-se uma inconstitucionalidade por omissão quando, tendo um órgão o dever de agir para assegurar a concretização da constituição, não age. Para Canotilho (2003, pág. 919) “O reconhecimento da possibilidade de não cumprimento da constituição em virtude de um silêncio inconstitucional dos órgãos legislativos assenta no pressuposto da superioridade formal e material da constituição relativamente à lei ordinária”. Acresce o nosso autor que “A lei constitucional impõe-se como determinante heterónoma superior e como parâmetro da constitucionalidade não só quando o legislador actua em desconformidade com as normas e princípios da constituição como quando permanece inerte, não cumprindo as normas constitucionalmente impositivas de medidas legislativas necessárias para a concretização da lei fundamental”.

A Lei 17/91, de 11 de Maio é anterior à Lei Constitucional de 1992 e, logicamente, à Constituição de 2010.

Resulta do artigo 239º da Constituição que “O direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição”.

Nos termos do artigo 164º, alínea k) da Constituição, compete à AN legislar com reserva absoluta sobre “Regime do estado de guerra, do estado de sítio e do estado de emergência”. Reforça a alínea b) do artigo 161º da Constituição que, no domínio político e legislativo compete à AN “Aprovar as leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição pelo Presidente da República”.

Parece mais que evidente que a AN tem o dever de agir, no sentido de conformar a Lei 17/91 de 11 de Maio à Constituição de 2010, na medida em que, o regime fixado na referida lei é absolutamente inconciliável com a Constituição.

10 anos após a aprovação da Constituição não tomamos conhecimento de qualquer iniciativa dos deputados, quer no sentido de apresentar projectos de lei, quer no sentido de um quinto dos deputados requer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade por omissão.

Neste aspecto, a responsabilidade é inteiramente da Assembleia Nacional e, suponho que se tivesse havido alguma iniciativa, muito cedo os deputados tomariam conhecimento da necessidade de se proceder à alteração do texto constitucional relativo ao processo de declaração do estado de emergência.

 

  1. Contra-argumentos

Há essencialmente três argumentos que podem ser defendidos contra a presente tese, que se coloca em três categorias e que se procurará responder.

Na primeira categoria incluem-se os ilustres colegas que defendem que, por se tratar de um estado de excepção constitucional, compreende-se que o Presidente da República legisle até mesmo sobre matérias que constituam reserva absoluta da Assembleia Nacional.

Na segunda categoria incluem-se os colegas que problematizam a situação em termos de antinomia jurídico-constitucional, no sentido de existir duas disposições constitucionais cujo conteúdo conduz à aplicação de soluções diferentes, na medida em que, uma “permite” ao Presidente da República decretar o estado de emergência enquanto que outra proíbe que o PR legisle sobre matérias que compete exclusivamente à Assembleia Nacional. Por isto, entende o Professor Fernando Macedo que o problema se deveria colocar também em termos do poder constiuinte.

Na terceira categoria incluem-se os ilustres colegas que, para rebater algumas ideias apresentaram a seguinte hipótese: suponhamos que se requeira a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas e, por consequência, o tribunal declare a inconstitucionalidade. Já imaginou as consequências que o país acarretaria em tais casos?

Começa-se por rebater os argumentos da primeira categoria, afirmando que o estado de emergência só o é a partir do momento em que é declarado.

Segundo Miranda e Medeiros apud Oliveira e Santos (2015, pág. 350) “não basta a ocorrência de factos, é necessário (…) o seu reconhecimento e anúncio oficial”. Ou seja, por mais que haja factos bastantes que sirvam de fundamento para a declaração do estado de emergência, esta constatação por si só não é suficiente para se produzirem os efeitos do estado de emergência. Deve haver um anúncio formal.

Deste modo, a situação só é considerada excepcional após a declaração formal da sua excepcionalidade e, por isso, antes de tal declaração, a situação não é de excepcionalidade, mas sim de normalidade constitucional e os órgãos competentes do estado funcionam com seu rítimo normal.

Por outro lado, a situação de excepção não pode ser interpretada como significando subversão das normas constitucionais estruturantes.

A este respeito, afirma Canotilho (2003, pág. 1086) que “O direito de necessidade constitucional não é um direito fora da constituição, mas um direito normativo-constitucionalmente conformado” continua o nosso autor afirmando de forma categórica que “O regime das «situações de excepção» não significa «suspensão da Constituição» ou «exclusão da Constituição» (excepção de Constituição), mas sim um «regime extraordinário» incorporado na Constituição e válido para situações de anormalidade constitucional”.                            

Assim sendo, determina a alínea a) do nº 5 do artigo 58.º da Constituição que, em caso algum a declaração do estado de emergência pode afectar “A aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania”.

É a própria Constituição que apresenta de forma taxativa o que a declaração do estado de emergência não pode afectar.

Sendo as matérias relativas aos direitos fundamentais de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional (vide alínea b) e c) do artigo 164º) o Presidente da República não deve legislar sobre estas matérias, mesmo em estado de emergência.

No mesmo sentido, em anotação ao artigo 164º da Constituição, Araújo, Nunes e Lopes (2018, pág. 470) afirmam que “O presente artigo faz abordagem das matérias que apenas podem ser legisladas pela Assembleia Nacional não podendo o Poder Executivo legislar sobre elas, em circunstância alguma”.  

Entende-se que, quando os autores referidos acima dizem “em circunstância alguma” pretendem dizer que nem mesmo em situação de estado de emergência nenhum órgão, além da Assembleia Nacional, pode legislar sobre matérias de sua reserva absoluta de competência legislativa.         

Para sustentar a mesma tese, os referidos autores (2018, pág. 315), em anotação ao nº 3 do artigo 126º da Constituição que proíbe a aprovação pela Assembleia Nacional de Decretos Legislativos Presidenciais Provisórios que incidam sobre matérias de reserva legislativa absoluta da Assembleia Nacional afirmam que “… se reafirma o princípio da impossibilidade do Presidente da República não ter competência para legislar sobre matérias da reserva da competência legislativa da Assembleia Nacional”.                                                                                                                                                     

O que é facto incontestável é que o Presidente da República legislou sobre direitos fundamentais. Isto até os que não concordarão com a presente tese aceitam sem qualquer discussão. Diverge-se apenas nos fundamentos. O que importa, na verdade, é que há fundamento.

Contudo, não é aceitável o argumento segundo o qual por se tratar de uma situação de excepção é pacífico que o Presidente da República legisle sobre matéria que só a Assembleia Nacional deve legislar com exclusividade, independentemente da situação. A Constituição é clara que mesmo em estado de emergência as competências dos órgãos de soberania mantêm-se intactas.

Tentar-se-á colocar a questão em termos diferentes, porém, com a finalidade de alcançar a mesma finalidade e raciocínio.

Suponha-se que o Presidente da República decrete o estado de emergência e, dentre os dispositivos constantes do referido decreto afecte as seguintes normas:

  1. Direito à vida, integridade pessoal e identidade pessoal;
  2. A capacidade civil e a cidadania;
  3. A não retroactividade da lei penal;
  4. O direito de defesa dos arguidos;
  5. A liberdade de consciência e de religião.

Numa hipótese deste tipo, é um dado certo que os juristas e estudiosos do direito constitucional angolano ficariam absolutamente escandalizados e alguns com mais coragem denunciariam pública e energicamente que as disposições do decreto que afectam os direitos referidos são inconstitucionais, na medida em que violam os limites que a Constituição estabelece no nº 5 do artigo 58.º.

Numa outra hipótese, o Presidente da República decreta o estado de emergência e no mesmo decreto determina que o poder jurisdicional deva ser exercido, enquanto durar a referida situação excepcional, pelos Magistrados do Ministério Público junto dos tribunais.

É um dado certo que os juristas, estudiosos do direito constitucional e quiça mesmo cidadãos não formados em direito ficariam escandalizados e questionariam a legitimidade do Presidente para legislar nos termos referidos, e provavelmente invocariam também o nº 5 do artigo 58.º.

Acontece que, tanto na primeira como na segunda hipótese os argumentos constitucionais que os juristas e estudiosos do direito constitucional angolano invocariam são os mesmos que se usa para defender a presente tese.

Na primeira hipótese, os juristas recorreriam sem dúvida à alínea c) d) e) f) e g) do nº 5 do artigo 58º da Constituição para afirmar peremptoriamente que o decreto sobre o estado de emergência não pode afectar os referidos direitos sendo, neste aspecto, inconstitucional.  E eu estaria de acordo com a referida defesa.

Na segunda hipótese, os juristas recorreriam sem dúvida à alínea a) do nº 5 do artigo 58.º para defenderem energicamente que a declaração do estado de emergência não pode afectar as regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e que, sendo os tribunais órgãos de soberania é inconstitucional o Presidente da República determinar quem deve julgar, ao arrepio das normas constitucionais que determinam que mesmo em estado de emergência os tribunais continuarão a exercer as suas competências constitucionais.

A tese que se defende é a mesma dessas hipóteses e inclusive tem a mesma fundamentação constitucional. Ou seja, qualquer argumento, tanto na tese que se defende quanto nas hipóteses apresentadas, teriam como suporte inarredável no nº 5 do artigo 58.º da Constituição. A única diferença é que, não foi as competências dos tribunais que foram afectadas, não foi o direito à vida, liberdade de consciência, a não retroactividade da lei penal ou o direito dos arguidos, mas sim as competências da Assembleia Nacional.

Porém, a Constituição deve ser válida para todas as situações que ela prevê para situações excepcionais. Se a Constituição determina que mesmo em situações de excepcionalidade não é admissível a violação de certas normas, por que razão então a violação de umas arrepia ou pode causar maior escândalo que outras que se encontram no mesmo dispositivo?

Ainda em anotação ao nº 3 do artigo 126º da Constituição que proíbe a Assembleia Nacional aprovar algum Decreto Legislativo Presidencial Provisório que verse sobre matéria de reserva absoluta de competência legislativa, Araújo, Rangel e Lopes (2018, pág. 316) afirmam que “A razão de ser deste limite resulta do princípio de que há matérias que são da competência exclusiva da Assembleia Nacional e pertencem ao núcleo essencial das competências legislativas que não podem ser exercidas por outros órgãos, para além do Parlamento, sob pena de esvazionamento das suas funções materiais”.

Outro argumento, que se pode conexionar com a primeira categoria das críticas é que, é a própria Constituição que manda o Presidente da República declarar o estado de emergência, desde que ouvida a Assembleia Nacional.

Claramente. Entretanto, em circunstância alguma a Constituição autoriza que o Presidente da República legisle sobre direitos fundamentais ou que exerça competências que constituem o “núcleo essencial” de outros órgãos de soberania. Uma conclusão desta natureza é incompactível com várias normas constitucionais estruturantes.

Posição contrária é em princípio defendida por Araújo, Rangel e Lopes (2018, pág. 457) que em anotação à alínea h) do artigo 161º da Constituição afirmam que “A pronúncia da Assembleia Nacional é vinculativa uma vez que a matéria ligada às restrições e limitações dos direitos fundamentais é da competência da reserva absoluta da Assembleia Nacional” continuam dizendo que “Não pode, por esta razão, o Presidente da República declarar o estado de excepção constitucional (estado de sítio ou estado de emergência), sem que o Parlamento autorize as limitações ou restrições dos direitos ou liberdades fundamentais…”.

Com toda a vênia que merecem os ilustres Professores, porém, considera-se que o conteúdo desta anotação não é sustentável, na medida em que é contrária à natureza de uma competência que se diz de “reserva absoluta legislativa” da Assembleia Nacional e até mesmo contrária aos comentários feitos noutras disposições constitucionais, como se procurará demonstrar.

Assim, entende que, as competências da Assembleia Nacional que são de reserva absoluta legislativa não permitem que a mesma autorize o Presidente da República, em circunstância alguma, a legislar sobre elas. É mesmo imperativo que seja a própria Assembleia Nacional a legislar sobre matérias que são da sua exclusiva competência, não devendo autorizar outro órgão a praticar tais actos.

Na verdade, uma coisa é a Assembleia Nacional “autorizar” um órgão a limitar direitos fundamentais, e outra coisa completamente diferentemente é a própria Assembleia legislar sobre limitações aos direitos fundamentais. O que a Constiuição exige é que seja a Assembleia Nacional a legislar sobre restrições aos direitos fundamentais.

Alías, os ilustres Professores (2018, pág. 457) afirmam mesmo em anotação ao artigo 164.º da CRA que “… as matérias que apenas podem ser legisladas pela Assembleia Nacional não podendo o Poder Executivo legislar sobre elas, em circunstância alguma”.

No mesmo sentido, os ilustres Professores (2018, pág. 315) afirmam em anotação ao nº 3 do artigo 126.º da CRA o “… princípio da impossibilidade do Presidente da República não ter competência para legislar sobre matérias da reserva da competência legislativa da Assembleia Nacional” continuam afirmando que “… há matérias que são da competência exclusiva da Assembleia Nacional e pertencem ao núcleo essencial das competências legislativas que não podem ser exercidas por outros órgãos, para além do Parlamento, sob pena de esvazionamento das suas funções materiais”.

Por outro lado, não me parece bem afirmar que “… o Parlamento autorize as limitações ou restrições aos direitos fundamentais”. Na verdade, são os ilustres Professores (2018, pág. 269) que, em anotação às alíneas o) e p) do artigo 119.º da Constituição que afirmam “A Constituição de 2010 abandonou este conceito de partilha de competências atribuindo ao Presidente da República, na sua qualidade de Chefe de Estado, a competência para decidir sobre a declaração do estado de sítio”.   

Pode-se argumentar que, uma coisa é a Assembleia Nacional autorizar a declaração do estado de emergência e outra é autorizar a restrição de direitos fundamentais.

Primeiro é que a Constituição de 2010 não permite à Assembleia Nacional fazer nenhuma das duas coisas. Por outro lado, a separação entre autorizar a declaração e autorizar a restrição não é tão linear assim quanto parece, já que, tal como se afirmou ao longo do presente artigo, o conteúdo essencial da declaração do estado de emergência é a suspensão do exercício de direitos.

Ora bem, se o conteúdo essencial é a suspensão do exercício de direitos, parece coerente afimar que a não autorização do conteúdo essencial equivale a uma não autorização para a declaração do estado de emergência, de tal sorte que, se a Assembleia Nacional nega “autorizar” a restrição de direitos fundamentais, equivale a dizer que não autoriza a declaração do estado de emergência, na medida em que não faz sentido nenhum declarar o estado de emergência sem o seu conteúdo essencial.

Segundo os ilustres Professores, “A Constituição de 2010 abandonou este conceito de partilha de competências …” para a declaração do estado de emergência. Porém, afirmam que a Assembleia Nacional “… autoriza as limitações ou restrições aos direitos fundamentais”.

Pergunta-se o seguinte: A Constituição abandonou ou não o conceito de partilha de competências entre o Presidente da República e a Assembleia Nacional no processo de declaração do estado de emergência?

Considera-se que, se o legislador constituinte pretendesse que a Assembleia Nacional autorizasse o Presidente da República a restringir direitos fundamentais seria mais claro e, quiça, mantinha parcialmente o enunciado linguístico previsto na Lei Constitucional de 1992.

Por outro lado, se assim fosse, o legislador constituinte não colocaria o regime dos direitos, liberdades e garantias como sendo de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional, na medida em que, tal regime não é conciliável com a ideia de o Parlamento autorizar algo que só ele pode legislar.

Na Lei Constitucional de 1992 o regime dos direitos, liberdades e garantias era também de reserva absoluta de competência legislativa (vide alínea b) do artigo 89.º) e por isso é fácil compreender que era a Assembleia Nacional que definia a “extensão, a suspensão das garantias constituicionais”. Significa que na Lei Constitucional de 1992 já era suficientemente claro que, em matéria de reserva absoluta de competência legislativa só o Parlamento podia legislar.

Relativamente à segunda categoria das críticas, deve-se sublinhar que concordo parcialmente quando se afirma que se deveria colocar o problema em termos do poder constituinte, já que alguns aspectos na nossa Constituição são causadores de confusão, como é o caso objecto do presente artigo.

A ideia de antinomia das normas constitucionais relativas ao estado de emergência é muito forte e pode fazer-nos construir argumentos muito interessantes para defender a mesma tese.

Contudo, a ideia de antinomia das normas constitucionais relativas ao estado de emergência é meramente aparente. A Constituição atribui competência ao PR para a declaração do estado de emergência (vide alínea p) do art.119.º) e por outro lado determina que só a Assembleia Nacional pode legislar sobre restrições aos direitos, liberdades e garantias (vide alínea c) do art. 164.º).

Entretanto, o facto de a Constituição atribuir ao PR competência para declarar o estado de emergência não atribui, necessariamente, competência para legislar sobre matérias que estão constitucionalmente atribuídas a outros órgãos de soberania, de modo que, nos termos da alínea a) do artigo 58.º da Constituição é claro em afirmar que em momento algum a declaração do estado de emergência poderá afectar “A aplicação de regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania”.

Desta disposição resulta que a declaração do estado de emergência pelo PR deve ser feito com respeito às competências dos outros órgãos de soberania, o que, desde já, limita a fixação de qualquer sentido do poder de declarar o estado de emergência que pressupõe o exercício pelo PR de competências constitucionais de outros órgãos de soberania.

Significa que, não se pode fixar um sentido que permite depreender que o PR, ao decretar o estado de emergência, pode exercer competências constitucionais de outros órgãos de soberania. Este entendimento não tem acolhimento no nº 5 do artigo 58.º.

Entretanto, se se aceitar este entendimento, deve-se aceitar também o entendimento que determina que o decreto sobre o estado de emergência pode afectar a não retroactividade da lei penal, a liberdade de consciência, o direito à vida, integridade pessoal, o direito de defesa dos arguidos bem como os direitos e imunidades dos membros dos órgãos de soberania, já que, todos eles, juntamente com a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e funcionamento dos órgãos de sobernia, constituem, na esteira de Bárbara e Santos (2015, pág. 360) os “direitos invioláveis ou inderrogáveis”.

Um entendimento coerente é aquele que considera como não conformidade qualquer declaração de estado de emergência que viole quaisquer das limitações impostas pelo nº 5 do artigo 58.º, sendo incoerente o entendimento que só considera por exemplo a violação do direito à vida e não dá a mesma relevância a outros valores constitucionais previstos no mesmo dispositivo.

Qualquer que seja o conteúdo da declaração do estado de emergência, não estará em conformidade com a Constituição se não respeitar os limites que ela enumera de forma taxativa no nº 5 do artigo 58.º.

Note-se que, se a Constituição determina que mesmo no estado de emergência as competências de todos os órgãos de soberania mantêm-se intactas e, na nossa declaração não se respeitou as competências da Assembleia Nacional, a conclusão a que podemos razoavelmente chegar é que a referida declaração não está em conformidade com a Constiuição.

Nestes termos, acredita-se que o argumento da antinomia das normas constitucionais é aparente, na medida em que, se se interpretar corretamente as várias disposições constitucionais, veremos que o legislador constituinte não pretendeu que o Presidente da República legislasse sobre matérias que são da competência de outros órgãos de soberania, nem mesmo em situações de excepção constitucional.

Por último, argumentar-se-á sobre a terceira categoria das críticas.

Começa-se por afirmar que por vezes é crucial que estejamos dispostos a pagar um preço muito alto para a manutenção das regras e princípios do Estado de direito. Só a partir desse momento é que nos podemos considerar como sendo efetivamente um estado de direito.

Segundo Dworkin (2017, pág. 314) “O governo não irá restabelecer o respeito pelo direito se não conferir à lei alguma possibilidade de ser respeitada”. 

Como afirma e bem Maximiliano (2017, 285-286) “Os tribunais só declaram a inconstitucionalidade das leis quando esta é evidente, não deixa margem à séria objeção em contrário. Portanto, se entre duas interpretações mais ou menos defensáveis, apoiadas por jurisconsultos de valor, o congresso adotou uma, o seu ato prevalece”.  Neste sentido, o tribunal poderá não concordar necessariamente com a presente tese.

Porém, Constituição de 2010 é clara que os atos do Estado só são válidos se estiverem em conformidade com ela e, neste sentido, não se pode defender a manutenção de supostas inconstitucionalidades por não se saber as consequências que podem advir para o Estado se a inconstitucionalidade for formalmente declarada pelos órgãos competentes.

Assim, deve-se defender energicamente que, sempre que houver um ato supostamente inconstitucional do Estado, deve-se requerer sempre que possível a fiscalização da constitucionalidade, cabendo aos órgãos competentes avaliar o impacto que pode advir da sua decisão.

De contrário, estaríamos a defender a tese de que em determinadas situações é aceitável a não aplicabilidade das normas constitucionais devido aos seus efeitos, o que não parece correto. Aceitar-se-ia a ideia de manter um arguido preso, mesmo que os prazos de prisão preventiva já foram ultrapassados, porque achamos que a sua saída pode ter consequências negativas para o Estado.

Neste aspecto, é importante distinguir a declaração da inconstitucionalidade de uma norma e os efeitos da declaração da inconstitucionalidade. O problema não está na declaração da inconstitucionalidade em si mesma, mas sim nos efeitos da declaração da inconstitucionalidade.

Em situações normais, nos termos do nº 1 do artigo 231.º da CRA “A declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional …”.

Contudo, como afirma Canotilho (2003, pág. 957) “À inequívoca inconstitucionalidade de uma norma podem não se associar, de modo automático, todos os efeitos da nulidade absoluta” continua dizendo que “É possível, por exemplo, fixar a inconstitucionalidade mas com efeitos prospectivos ou pro futuro e não com efeitos retroactivos… É o que a doutrina designa por simples fixação de inconstitucionalidade”.

Ora bem, nos termos do nº 4 do artigo 231.º da Constituição “Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deve ser fundamentado, o exigirem, pode o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos nº 1 e 2 do presente artigo”.

Na verdade, não é um exercício novo que o Tribunal Constitucional faria. Embora não concorde com os termos em que foi feito, no Acordão nº 467/17 o TC declarou a inconstitucionalidade das normas da Lei das medidas cautelares em processo penal que atribuia competência ao Magistrado do Ministério Público para aplicação de medidas de coação.

Porém, o Tribunal afirmou que “A ser assim poderiam advir consequências graves para a segurança jurídica e ordem pública na medida em que não existem de facto, em funções disponíveis, o número suficiente de magistrados judiciais para poderem, a nível de todo o país, atender as necessidades mínimas de presença de um juiz de garantia junto dos órgãos responsáveis pela instrução instrução preparatória. Seguramente a marcha processual estaria muito afectada e, quiça, paralisada”.

Rematou o TC que “Com este fundamento entende o Tribunal Constitucional, que, transitoriamente e até que as competentes autoridades providenciem, com a urgência requerida, a admissão e colocação de juízes de garantia junto dos órgãos de instrução preparatória, devem os Magistrados do Ministério Público continuar a ordenar as supramencionadas medidas restritivas da liberdade …”.

Supondo que o TC declarasse a inconstitucionalidade dos diplomas referidos, concordarímos todos que não seria razoável determinar por exemplo o fim da cerca sanitária nacional, as restrições à liberdade de circulação e outras medidas necessárias para impedir a propagação do Covid-19.

Os juízes do TC são humanos e, como tal são dotados de bom senso. Aliás, como afirma Descartes (2001) “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: pois cada um pensa estar tão bem provido dele, que mesmo aqueles mais difíceis de se satisfazerem com qualquer outra coisa não costumam desejar mais bom senso do que têm”.

Deste modo, a ideia que se tem não é de requerer a fiscalizada para o TC declarar a inconstitucionalidade com todos os seus efeitos. A ideia é apenas que o tribunal fixe a inconstitucionalidade para que, quando dentro de dez, vinte, ou cinquenta anos apareça uma crise semelhante e teremos uma jurisprudência que oriente como deverão ser as coisas.

 

Considerações finais

Conforme foi visto, o regime jurídico do estado de necessidade constitucional é bastante complexo e, se combinado com todas as disposições constitucionais, depreende-se que o Chefe de Estado, não obstante ter competência para declarar o estado de emergência, não se pode deduzir, de per si, que pode legislar sobre matérias de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia Nacional, na medida em que a própria Constituição proíbe expressamente situação nos termos da alínea a) do artigo 58.º.

Neste sentido, considera-se que são inconstitucionais as disposições de todos os decretos presidenciais que restringem direitos fundamentais.

Espera-se, assim, da Ordem dos Advogados de Angola e à Procuradoria Geral da República que, no âmbito de suas competências, requeiram a fiscalização da constitucionalidade dos diplomas referidos.

Por outro lado, espera-se que, quando houver revisão constitucional, que pode ocorrer por iniciativa do Presidente da República ou dos Deputados, que se melhore a redação dos dispositivos constitucionais sobre a declaração do estado de emergência e adote-se um regime partilhado de competências para a respectiva declaração.

Por último, dos advogados estagiários que concordam o presente artigo espera-se, nos julgamentos sumários cujo objecto é a violação dos dispositivos sobre o estado de emergência, que suscitem a constitucionalidade dos diplomas que se aplicará aos arguidos.

 

REFERÊNCIAS

Declaração de Inconstitucionalidade de alguns artigos da Lei 25/15, de 18 de Setembro – Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal. Disponível em «https://www.oaang.org/content/declaracao-inconstitucionalidade-alguns-artigos-lei-2515-18-setembro-lei-medidas-cautelares-».

 

Acórdão do Tribunal Constitucional nº 447/2017 Processo de Fiscalização Sucessiva sobre Decreto Presidencial 74/2015, requerente Ordem dos Advogados de Angola. Disponível em «http://oaang.org/content/acordao-do-tribunal-constitucional-n%C2%BA-4472017-processo-fiscalizacao-sucessiva-sobre-decreto-».

 

ALEXANDRINO, José Melo. O Discurso dos Direitos. 1ª edição, Coimbra editora, 2011.

 

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.

 

ARAÚJO, Raúl Vasques; NUNES, Elisa Rangel. Constituição da República de Angola Anotada, Tomo I, 2014.

 

ARAÚJO, Raúl Vasques; NUNES, Elisa Rangel; LOPES, Marcy. Constituição da República de Angola Anotada, Tomo II, 2018, Luanda.

 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, Portugal.

 

CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol I, 4ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007.

 

CORREIA, Adérito. A Constituição Angolana. Temas e Debates. Editora Universidade Católica de Angola, Faculdade de Direito, 2002.

 

DESCARTES, René. Discurso do Método, 2ª edição, 3ª tiragem, Martins Fontes, São Paulo, 2001.

 

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, 3.ª ed. Martins Fontes, 2017, São Paulo.

 

HOBBES, Thomas. Do Cidadão, Tradução de Frasmar Costa Lima, 2ª reimpressão, Editora Martin Claret, 2013, São Paulo.

 

MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 18ª Reimpressão, Editora Almedina, 2010.

 

MACHADO, Jónatas E.M; COSTA, Paulo Nogueira Da; HILÁRIO, Esteves Carlos. Direito Constitucional Angolano, 4ª Edição, Petrony Editora, 2017.

 

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 21ª Edição, Editora Forense, 2017, Rio de Janeiro.

 

OLIVEIRA, Bárbara Nazareth; GOMES, Carla de Marcelino; SANTOS, Rita Pascoa Dos. Os Direitos Fundamentais em Timor-Leste: Teoria e Prática, 1ª Edição, Coimbra Editora, 2015.

 

Âmbito Jurídico

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