Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar, de forma analítica, a efetivação do direito à saúde no Brasil, assegurada pelo ordenamento jurídico como um direito fundamental de todos e dever do Estado. Para tanto será analisado de que forma se dá a concretização desse direito fundamental, principalmente com o advento do Sistema Único de Saúde – SUS recepcionado pela Constituição Federal de 1988, cognominada Constituição Cidadã. Examinando o desenvolvimento, a estrutura, e, sobretudo o financiamento desse sistema de saúde que abarca todos os cidadãos sem qualquer tipo de distinção, de forma universal, integral, gratuito, e igualitário, fazendo uma ponderação entre o direito à saúde, assegurado pela Constituição Federal de 88, e o modo como esse direito é efetivado quando da omissão do Estado na sua prestação conforme a ordem constitucional brasileira.[1]
Palavras-chave: Direito à Saúde. Garantias Constitucionais. Efetivação. Omissão Estatal. Repercussão Jurídica.
Sumário: Introdução; 1. Da efetivação do direito à saúde no Brasil; 1.1. Direito de todos e Dever do Estado; 1.2. Financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS; 1.3. Da Emenda Constitucional nº 29; 2. O problema da efetivação do direito à saúde no Brasil; 2.1 Da omissão do Estado na prestação do direito à saúde; 3. Repercussão jurídica da omissão do Estado na prestação do direito à saúde; 3.1. Da Eficácia das Decisões; 4. Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
É irrefutável que à vida é o bem mais valioso e importante de todo e qualquer ser humano. E Para que todo e qualquer ser humano possa usufruir de uma melhor qualidade de vida, é sem duvida indispensável que este tenha acesso irrestrito à saúde, bem como também, a condições sanitárias dignas, no meio em que vive.
A Constituição Federal de 1988 trouxe um papel muito importante para o direito à saúde no Brasil, visto que, de acordo com a Constituição, o Estado tem à responsabilidade de promover o acesso para todos, sendo um direito universal que pertence aos brasileiros e estrangeiros, que assim necessitarem, podendo utilizar os serviços de saúde de forma gratuita, a fim de promover o seu direito.
Deste modo, a saúde foi reconhecida como um direito social fundamental pela Constituição da República Federativa do Brasil, que inclui como um dos princípios basilares a dignidade da pessoa humana, e por ser um Estado Democrático de Direito, visa superar desigualdades sociais com o fim de realizar justiça social.
Com a implementação do Sistema Único de Saúde, a efetivação do direito à saúde no Brasil, apresentou significativos progressos, garantindo a todos, do mais pobre ao mais rico, o direito a um tratamento de saúde integral e totalmente gratuito, cumprindo de certa forma a ordem esculpida na Constituição. Entretanto, para concretizar um sistema que visa efetivar o direito fundamental à saúde nestas condições é, sem duvida, imprescindível um aporte financeiro capaz, ou compatível, com as infinitas demandas verificadas nessa área, sendo a saúde um dos direitos humanos mais dispendiosos.
Fato é que os recursos públicos destinados à área da saúde, pelo Estado, são limitados e não compatíveis com tamanha demanda abrangida pelo Sistema de Saúde adotado, principalmente quando falamos de um país de dimensões continentais como o Brasil. O que torna de certa forma, a efetivação de tal direito extremamente complexo, tento em conta a probabilidade, nestas circunstancias, de ocorrência de omissões na prestação desse direito fundamental, por parte do Estado.
Ficam claros, portanto, os objetivos perseguidos no presente: numa ótica geral, busca-se analisar os meios empregados para a efetivação do direito a saúde no Brasil, passando pela história da saúde pública do país que é marcada por um movimento de reforma sanitária, que culminou na criação do Sistema Único de Saúde, que por sua vez deverá atender a todos de forma universal e gratuita, sem qualquer tipo de distinção. Elucidar que, com a implementação desse sistema de saúde, houve o reconhecimento de ganhos significativos que ocorreram com o advento de uma serie de políticas impactantes na atenção básica, média e alta complexidade, resultando assim, na melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro.
Vislumbra-se ainda, evidenciar que, apesar desses avanços, a luta pela efetivação do direito a saúde no Brasil ainda permanece, pois o financiamento deste sistema ainda se mostra insuficiente em face de tamanha demanda abarcada pelo sistema, o que vem acarretando a ocorrência de uma série de omissões por parte do Estado, que tem o dever constitucionalmente imposto de garantir esse direito fundamental a todos os cidadãos.
Demonstraremos que, não obstante, a efetivação do direito à saúde, mediante a implementação de políticas públicas, ser de competência do Poder Legislativo e do Poder Executivo, essa problemática vem repercutindo no Poder Judiciário, que por ser guardião da Lei Maior, vem compelindo religiosamente o Poder Público a cumprir com seu papel constitucionalmente imposto. Essa circunstância vem gerando uma série de decisões judiciais em todo o país, visando sempre garantir o direito fundamental à saúde de quem procurar o Judiciário, para ter seu direito efetivado, sem parâmetros ou critérios razoáveis, tendo em conta que, o direito à saúde não é só um direito individual de quem procura o Poder Judiciário, mas também um direito coletivo.
Finalizando analisaremos a eficácia da intervenção do Poder Judiciário, na efetivação desse direito fundamental, assim como as conseqüências desta intervenção, fazendo algumas considerações, e apontando possíveis soluções para que o Estado cumpra com seu papel constitucional e para que o direito fundamental à saúde seja realmente efetivado conforme a ordem constitucional brasileira.
A relevância da problemática circunscrita ao assunto, aliada a sua atualidade mostram-se como fatores de inegável estímulo ao presente trabalho, o qual, entretanto, não tem, e nem poderia ter a pretensão de esgotar o tema, e muito menos apresentar conclusões que sejam pacificamente aceitas. Nomeadamente porque evolve uma seria de outras questões que restaram fora do objetivo do presente trabalho.
Não obstante, procurou-se elaborar um estudo apto a ponderar e refletir as causas e implicações concernentes a tal matéria, sobretudo de forma a destacar seus principais enfoques, que são polêmicos, contemporâneos e instigantes.
A pesquisa desenvolvida baseou-se no método hipotético-dedutivo e o método de procedimento monográfico com consulta jurisprudencial e bibliográfico. Foram utilizadas, como instrumento de embasamento, algumas fontes de pesquisa tais como: livros jurídicos, revista, leis, artigos disponíveis na internet, entre outros, que tratam do objeto em estudo, posto que se pretenda travar uma discussão crítica em torno do tema.
1. DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
1.1. Direito de todos e Dever do Estado
Toda a sociedade precisa viver dignamente e o Estado tem papel primordial no cumprimento deste princípio constitucional tão importante. Sendo certo que, o direito à saúde integra o direito à vida, com o desígnio de proporcionar a cada cidadão o garantismo estatal da dignidade da pessoa humana.
A Constituição da República Federativa do Brasil, no caput do seu art. 5º, garante a todos os brasileiros e estrangeiros, sem distinção de qualquer natureza, à inviolabilidade do direito à vida, sendo este direito primário, garantindo-se a essência dos demais direitos e princípios constitucionais. De outra banda, à Constituição consagra, no seu art.1º, inc.III, à dignidade da pessoa humana como principio basilar e, como fundamento do Estado Democrático de Direito.
De acordo com o jurista Luis Roberto Barroso (2009, p.10):
“O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente identificada como o núcleo essencial de tais direitos”.
André da Silva Ordacgy defende que “a saúde encontra-se entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela protetiva estatal, pois se consubstancia em característica indissociável do direito à vida”.
Partindo do pressuposto que a saúde é condição indispensável à garantia da vida humana, e que valor maior terá à vida se ela for vivida com decência, outra não poderia ser a ponderação quanto à impossibilidade de se dissociarem os vetores da dignidade da pessoa humana do direito à vida e à saúde.
O embasamento constitucional a garantia do direito à saúde no Brasil, encontra-se no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, cujo rol, elenca os chamados direitos sociais de seguinte forma:
“São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição .”
Portanto, de acordo com o art. 6º da Constituição Federal, o direito à saúde é um direito social. Partindo deste pressuposto, o direito à saúde no Brasil, é um direito que exige do Estado prestações positivas no sentido de garantia, efetividade da saúde, sob pena de ineficácia de tal direito fundamental.
José Afonso da Silva (2002, p.285-286) conceitua os direitos sociais como sendo:
“[…] prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas nas normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização das situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade”.
É perceptível que a Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988, consagra o direito à saúde como algo fundamental ao cidadão, implicando assim, ao Estado o dever de promover este, através de políticas públicas[2], de forma que o garanta a todo o cidadão, indistintamente, tendo em vista sempre o objetivo maior de reduzir as desigualdades sociais, e como tema central à idéia de justiça social.[3]
A Constituição Federal de 1988 trata especificamente do direito à saúde como direito social, no artigo 196, proclamando que “[…] o direito á saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.
Logo, cabe ao Estado, este entendido em todas as suas dimensões federativas, ou seja, União Federal, Estados Membros e Municípios, não só a sua garantia, objetivando-se a minimização dos riscos e possíveis agravos à saúde pública, bem como a garantia do acesso universal e irrestrito de todos às ações essenciais voltadas à promoção, proteção e recuperação da saúde. Assim, o dever do Estado é pressuposto essencial na efetivação do direito à saúde, no sentido de o Estado-devedor estar obrigado a realizar a efetivação deste, para com o cidadão-credor, já que este direito lhe é inerente.
Nessa ótica, o direito à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível, sendo certo caber ao Poder Público o cumprimento desse dever, garantindo a todo o cidadão o acesso aos serviços de saúde. Esse aspecto assume extrema importância na medida em que a norma estabelecida pela Constituição aponta para a obrigação do Poder Público se responsabilizar pela cobertura e pelo atendimento na área de saúde, de forma, integral, gratuita, universal e igualitária, isto é, sem nenhum tipo de restrição.
Observa-se que a fundamentação jurídica do direito à saúde como direito social e fundamental, já se encontra consagrada e formalizada no direito interno brasileiro, porém, o obstáculo que surge como a preocupação mais importante a ser debatida é fazer com que esse direito fundamental, consagrada pela Lei Maior, seja efetivamente concretizado no mundo real a todos os cidadãos.
Nas palavras de Ingo Sarlet (2001, p.9):
“De modo especial no que diz com os direitos fundamentais sociais, e contrariamente ao que propugna ainda boa parte da doutrina, tais normas de direitos fundamentais não podem mais ser considerados meros enunciados sem força normativa, limitados a proclamações de boas intenções e veiculando projetos que poderão, ou não, ser objeto de concretização, dependendo única e exclusivamente da boa vontade do poder público”
Em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, principio basilar de todo ordenamento jurídico brasileiro e fundamento do Estado Democrático de Direito, não pode o Estado omitir-se no cumprimento de seu dever de prover o direito à saúde de forma eficaz e eficiente para todos. É obrigação das autoridades públicas assegurar a todos, indistintamente, o direito à saúde, conforme preconizado no dispositivo constitucional.
Como já explanado, há imprescindível relação entre o direito à saúde e os conceitos de direito à vida e dignidade da pessoa humana, assim sendo, cumpre observar que a efetividade daquele, desconsiderando ou mesmo enfraquecendo esses valores básicos fixados pela Constituição, torna-se, além de inadmissível, inconstitucional.
1.2. Financiamento do Sistema Único de Saúde – SUS
Que todos os cidadãos, brasileiros e estrangeiros, têm o direito à saúde garantido na Constituição Federal de 1988, ficou claro. Encontramos ainda, que o Estado tem o compromisso de assegurar o acesso às ações e serviços de saúde, a fim de oferecer uma assistência integral, universal e igualitária a todos os cidadãos, para promoção, prevenção e recuperação da saúde.
Com a Constituição Federal de 1988, várias iniciativas jurídico-institucionais foram criando às condições de viabilização plena do direito à saúde no Brasil. Ressalta-se, nesse sentido, a Lei nº 8.080/90, que organiza e estrutura o funcionamento dos serviços de saúde; a Lei nº 8.142/90 que garante a participação dos usuários do sistema na gestão desses serviços e a transferência de recursos financeiros intergovernamentais; a Portaria nº 3.916, que aprova a Política Nacional de Medicamentos; e a Norma Operacional da Assistência à Saúde, nº 01/2002 (NOAS-SUS 01/02), aprovada por Portaria do Ministério da Saúde e, vem a suceder a Norma Operacional Básica do SUS, nº 01/96.
A Política Nacional de Medicamentos tem como propósito garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos produtos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais. Com esse intuito, suas principais diretrizes são o estabelecimento da relação de medicamentos essenciais, a reorientação da assistência farmacêutica, o estímulo à produção de medicamentos e a sua regulamentação sanitária.
Essa Política observa e fortalece os princípios e as diretrizes constitucionais e legalmente estabelecidos, explicitando, além das diretrizes básicas, as prioridades a serem conferidas na sua implementação e as responsabilidades dos gestores do Sistema Único de Saúde na sua efetivação.
Já a Norma Operacional da Assistência à Saúde, nº 01/2002 (NOAS-SUS 01/02) amplia as responsabilidades dos municípios na atenção Básica; estabelece o processo de regionalização como estratégia de hierarquização dos serviços de saúde e de busca de maior equidade; cria mecanismos para o fortalecimento da capacidade de gestão do Sistema Único de Saúde e procede à atualização dos critérios de habilitação de estados e municípios. A habilitação pela NOAS 2002 pressupõe que estados e municípios organizem suas estruturas de controle, regulação e avaliação para garantir o acesso de seus cidadãos a todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus problemas de saúde, otimizando recursos disponíveis e reorganizando a assistência, buscando a melhor alternativa em termos de impacto na saúde da população.
A Constituição Federal[4], no seu art.198, dispõe sobre as ações e os serviços públicos de saúde, que devem ser garantidos a todos os cidadãos para a sua promoção, proteção e recuperação, isto é, dispõe sobre o Sistema Único de Saúde – SUS.
O SUS é um sistema que pertence à rede pública de saúde e tem como finalidade prestar o acesso à saúde de forma gratuita a todos, independente de crença, cor, classe social, já que, todos têm o mesmo direito. Esse sistema tem como atribuição garantir ao cidadão o acesso às ações e serviços públicos de saúde, conforme campo demarcado pelo art. 200 da Lei Maior[5] e leis específicas.
A Lei nº 8.080/90, com já mencionado, regulamenta o SUS, o responsável por garantir o acesso pleno da população brasileira à saúde. Entretanto, o SUS foi concebido como um sistema, isto é, como um conjunto cujas partes encontram-se coordenadas entre si, funcionando como uma estrutura organizada, submetida a princípios e diretrizes legalmente estabelecidos. Trata-se de uma rede regionalizada e hierarquizada de ações e serviços de saúde, através da qual o Poder Público cumpre seu dever na prestação do serviço público de atendimento à saúde.
Nesta ótica, a Administração Pública está diretamente ligada à promoção e efetivação do direito à saúde. O Governo Federal, os estados, os municípios e a iniciativa privada, esta com participação de forma complementar, administram os serviços realizados pelo Sistema Único de Saúde, com objetivo de garantir a prestação de serviços gratuitos a todos os brasileiros.
A Lei n º 8.080/90, no seu art. 5º, trata dos objetivos e atribuições do SUS[6]. Estes objetivos e atribuições não deixam de ser aperfeiçoados por um a série de ações e serviços através de políticas sociais e econômicas, sempre com o intuito de alcançar a efetivação da saúde como meio par a uma boa qualidade de vida, acatando o principio da dignidade da pessoa humana imposta constitucionalmente.
É importante salientar que as ações e serviços do SUS são abrigados por princípios e, inerentes ao sistema, que devem ser respeitadas para que haja realmente a materialização do direito à saúde. Estes princípios inerentes ao sistema foram estabelecidos legalmente, assim havendo a necessidade de que o SUS seja exalado de forma a respeitá-los e, sobretudo, garantir à população o acesso a um serviço de saúde com qualidade, contribuindo para manter a qualidade de vida e de saúde a população.
O Sistema Único de Saúde representa um direito social garantido constitucionalmente, pautado pelos princípios de universalidade, igualdade, integralidade, e participação popular, bem como pela defesa da saúde como um direito humano.
A universalidade do atendimento presente no ordenamento jurídico brasileiro está relacionada à gratuidade no acesso aos serviços, independentemente de nacionalidade, classe social ou contribuição para o Fundo Nacional de Saúde, para aqueles que precisarem de um serviço de atendimento a saúde. Ou seja, tem por finalidade modificar as desigualdades na assistência à saúde de toda a população, e este atendimento público torna-se obrigatório a qualquer pessoa, sem nenhuma discriminação, proibindo a cobrança em dinheiro, seja qual for à hipótese.
Assim sendo, o princípio da universalidade nada mais é do que o acesso aos serviços e assistência à saúde para toda a população, mesmos os que gozam dos planos particulares de saúde tem os mesmos direitos garantidos constitucionalmente de serem assistidos pelo Sistema Único de Saúde, sem nenhuma distinção, ou discriminação, podendo utilizar todos os níveis de assistência.
Entretanto, quando a discussão é o financiamento desse direito social fundamental, pelo Estado, é preciso indagar se à saúde é realmente um direito de todos ou apenas daqueles que têm condições de pagar.
Neste contexto, enfatiza Ingo Sarlet (2001, p.2) que:
“[…] bastou fossem contemplados nas Constituições os denominados direitos sociais, especialmente a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, enfim, todos os direitos fundamentais que dependem, para sua efetividade, do aporte de recursos materiais e humanos, para que se começasse a questionar até mesmo a própria condição de direitos fundamentais destas posições jurídicas”.
Vejamos, até a Constituição Federal de 1988 a saúde não era reconhecida como um direito de todos, assim sendo, à responsabilidade pelo atendimento à saúde era de cada indivíduo e, as políticas econômicas e sociais desenvolvidas pelo Estado eram limitadas e focalizadas. Neste contexto, não sendo a saúde considerada um direito de todos e nem alvo de políticas públicas, as pessoas que tinham como financiar a própria, procuravam o setor privado, já as que não dispunham de recursos, para tal, dependiam da caridade. Contudo, atualmente, a Constituição Federal de 1988 consolida a afirmação da saúde como direito de todos e dever do Estado, por conseguinte, o Estado é obrigado a garantir os recursos necessários para prover esse direito e gerenciar o sistema para que seja genuinamente efetivado o direito à saúde para todos.
O financiamento do Sistema Único de Saúde está previsto em lei, tanto na Constituição Federal como na Lei Orgânica da Saúde, composto pelas leis federais 8.080 e 8.142 de 1990. A Constituição Federal, no que diz respeito ao financiamento da saúde, dispõe no seu art.195, in verbis:
“A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre a aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
III – sobre a receita de concursos de prognósticos;
IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar”.
Destarte, a responsabilidade pelo financiamento do SUS, pertence às três esferas de governo, União, estados-membros e municípios.
A Lei Orgânica da Saúde, por sua vez, prevê as fontes de financiamento, os percentuais a serem gastos em saúde, bem como, a forma de divisão e repasse dos recursos financeiros entre as esferas do governo. Pela lei 8.080/90, no seu art.35, podemos verificar um conjunto de critérios que devem ser avaliados quando da distribuição e repasse dos recursos públicos destinados à saúde.
A mesma lei, no seu art. 31, dispõe, in verbis:
“Art. 31. O orçamento da seguridade social destinará ao Sistema Único de Saúde (SUS) de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, previstos em proposta elaborada pela sua direção nacional, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias”.
Quando questionamos sobre a definição do percentual mínimo a ser investido, pelos entes federados na área da saúde, deparamos com a luta travada para a regulamentação da Emenda Constitucional nº 29/2000, a chamada Emenda da Saúde.
1.3. Da Emenda Constitucional n º 29
Apesar de o Artigo 198 da Constituição Federal[7]] definir, em seu parágrafo 3º, a criação de Lei Complementar, a ser reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecendo percentuais, normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com a saúde nas esferas Federal, Estadual, Municipal e no Distrito Federal, o texto constitucional não contempla as fontes de recursos federais e a base de cálculo de forma adequada.
A falta de definição do processo de financiamento para a saúde faz necessária à luta pela regulamentação da Emenda Constitucional nº 29. A Emenda foi aprovada em 13 de setembro de 2000, ela obriga o governo federal, estadual e municipal a aplicarem porcentagem fixa na área da saúde.
O Conselho Nacional de Saúde (2009, p.1), em uma publicação, enfatiza que:
“Um dos principais problemas enfrentados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a partir de sua criação pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), refere-se à natureza instável do seu processo de financiamento. De acordo com o Conselho, a curta vigência da norma constitucional prevendo a alocação mínima de 30% do Orçamento da Seguridade Social para a Saúde, os empréstimos junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e a criação da CPMF (e a conseqüente redução de outras fontes) são exemplos da instabilidade e da insuficiência de recursos que caracterizam o financiamento do setor, inviabilizando o adequado cumprimento da norma constitucional. Diante do exposto os movimentos sociais lutaram bravamente na década de 80 pela criação de uma Lei que garantissem recursos para saúde. Surge então à luta pela PEC 169 e após a regulamentação vira Emenda Constitucional nº 29”.
Para o mesmo, a aprovação da Emenda Constitucional nº 29, em 2000, representou uma importante conquista da sociedade para a consolidação do SUS, pois estabeleceu a vinculação de recursos nas três esferas de governo para um processo de financiamento mais estável do SUS, além de regulamentar a progressividade do IPTU, de reforçar o papel do controle e fiscalização dos Conselhos de Saúde e de prever sanções para o caso de descumprimento dos limites mínimos de aplicação em saúde.
Hoje os maiores desafios do Sistema Único de Saúde estão ligados à luta pela regulamentação da Emenda Constitucional nº 29/2000. O Congresso Nacional editou essa Emenda visando garantir uma fatia do orçamento dos entes federados nas ações e serviços de saúde.
A Emenda Constitucional veio alterar os artigos 34, 35, 156, 160, 167, e 198 da Constituição Federal de 1988. Por se tratar de uma Emenda Constitucional, teve que passar pela aprovação do plenário do Congresso, contudo, os congressistas delegaram à lei ordinária a regulamentação deste dispositivo, o que até o momento não ocorreu.
Com a alteração trazida por essa Emenda, o art. 34 da Constituição Federal[8] passou a incluir além da educação, a saúde como política pública, na qual se deverá investir um percentual mínimo de recursos para a manutenção das ações e serviços públicos de saúde. A Emenda Constitucional nº 29/2000, portanto, deixa claro que a União, os Estados-Membros e os Municípios, deveriam investir recursos mínimos na área da saúde.
Neste diapasão, a regulamentação da EC nº 29 é de extrema importância, pois institucionaliza, ou seja, torna lei, questões fundamentais do financiamento da saúde, tendo em vista o aumento do investimento nesta área, o que será fundamental para a consolidação do SUS.
Segundo dados do Conselho Nacional da Saúde, atualmente a tramitação da regulamentação da EC n° 29 está em processo de votação na forma de uma Subemenda Global de Plenário (PLP nº. 306-B/2008).
De acordo com publicação do Conselho Nacional da Saúde (2009, p.1):
“A regulamentação da EC nº 29 permitirá que os recursos aplicados nas ações e serviços de saúde não sofram “desvio de finalidade”, visto que a lei definirá o que poderá ser considerado como tal […]. Ou seja, será introduzido um componente qualitativo na análise do gasto com ações e serviços de saúde, visto que, até o momento, o componente quantitativo (percentual de aplicação) não foi suficiente para garantir a eficácia dos serviços prestados, alocando-se, em muitos lugares, conforme denúncias recebidas pelo CNS, despesas de outra natureza para comprovar o cumprimento do percentual mínimo. Porém, isso tudo poderá ser perdido diante da emenda que retira da base de cálculo da aplicação mínima em saúde a dedução da receita oriunda do Fundo de Valorização dos Profissionais de Educação (FUNDEB). Trata-se de um artifício que desrespeita a proposta originalmente estabelecida na EC 29, visto que a vinculação deve ocorrer sobre a base “bruta”, antes dessa dedução e de qualquer outra dedução, como forma de priorizar a saúde tanto quanto a educação, nos termos da Constituição Federal. Com essa redução da base de cálculo, haverá menos recursos para o financiamento da saúde pública no âmbito dos Estados e Distrito Federal”.
A regulamentação da EC n º 29 assume, nestes termos, uma importância maior para o processo de reforma sanitária brasileira, particularmente no tocante a estabilidade do financiamento pelas três esferas de governo, possibilitando um aporte mais adequado de recursos para o SUS. A regulamentação poderá garantir recursos claros, permanentes e suficientes para o Sistema Único de Saúde e acabar com o subfinanciamento no setor. O que é inaceitável quando se trata de um setor que garante um direito social fundamental, intimamente atrelada ao direito à vida, ao mínimo existencial e a dignidade da pessoa humana.
2. O PROBLEMA DA EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL
A saúde, atualmente, é encarada como um verdadeiro produto comercializável entre os que tem poder aquisitivo para financiá-la, deixando grande parte da população, cerca de 70%, que depende única e exclusivamente do SUS, à margem deste direito fundamental, omitindo e negligenciando o direito á saúde.
De acordo com pesquisa mundial sobre saúde, desenvolvida pela OMS e coordenada no país pelo Centro de Informação Cientifica e Tecnológica (CICT) da Fiocruz, em estudo que avalia os sistemas de saúde de 71 nações, consigna que os brasileiros dispensam em média 19% da renda familiar com a saúde e, a parcela da população 25,8% que têm acesso aos planos de saúde privados, enquanto a maioria, 74,2%, conta com os serviços do SUS.
Em pesquisa mais recente da IBGE[9], foi revelado que esses números aumentaram, tendo em conta que o número de brasileiros com plano de saúde atingiu 49,1 milhões em 2008, o equivalente a 26,3% da população do país. Enquanto que, em 2003, segundo a pesquisa “Um panorama da saúde no Brasil”, eram 43 milhões de pessoas atendidas por planos de saúde, ou seja, 24,5% da população.
O portal da Globo, G1, destaca que em 2008 o IBGE divulgou uma pesquisa sobre a saúde no Brasil, no qual concluiu que os cidadãos brasileiros estão gastando mais com saúde do que o governo. Segundo a pesquisa as famílias brasileiras gastam muito mais do que os governos municipais, estaduais e federal com despesas com saúde. E que os mais pobres gastam principalmente com remédios, já os mais ricos, com planos de saúde. Segundo dados da pesquisa, em 2005, a despesa das famílias ficou em R$ 103 bilhões enquanto o poder público gastou R$ 66 bilhões. Para a pesquisadora da Fiocruz, Maria Angélica Santos, esse é um padrão de financiamento da saúde que se verifica em países em desenvolvimento como o Brasil, já em países mais desenvolvidos, o padrão de financiamento é um padrão com uma participação muito mais forte do setor governamental.
O Ministro da saúde cobrou a mudança do perfil do gasto com saúde no país, segundo ele, 60% desse custo no Brasil recai sobre as famílias e as empresas, com apenas 40% pagos pelo setor público. O ministro observou ainda que, na Inglaterra, onde segundo ele, tem uma filosofia de saúde parecida com a do Brasil, esse patamar de gasto público equivale a 80% do total. Neste sentido enfatizou:
“É impossível querer dar saúde universal de qualidade em todo o território nacional, do procedimento mais simples ao transplante de órgãos, numa base de financiamento onde 60% dos gastos são das famílias e das empresas […] sem resolver o gargalo do gasto, fica muito difícil chegar onde as pessoas querem […]”.
Ultimamente, em pesquisa divulgada pela BBC Brasil, foi demonstrado que a área da saúde tem pior nota em novo índice da ONU para o país. O novo índice de valores humanos, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), revela um desempenho mais baixo do Brasil em termos de saúde do que em trabalho e educação, que foram os três setores avaliados. Em uma escala de 0 a 1, sendo 1 o melhor resultado, o Brasil tem um IVH54 de 0,59. Quanto ao tema trabalho o resultado foi de 0,79, na educação o índice ficou em 0,54, porém na saúde o índice foi de 0,45.
Ainda, segundo a publicação, em vez de se concentrar em dados como expectativa de vida ao nascer e taxa de alfabetização, por exemplo, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que classifica todos os países membros das Nações Unidas, o novo indicador foi elaborado a partir das experiências da população brasileira em termos mais subjetivos, como tempo de espera para atendimento médico ou situações de prazer e sofrimento no trabalho. O IVH do Brasil em saúde foi de 0,45. A avaliação considerou o tempo de espera para atendimento médico ou hospitalar, a facilidade ou não de compreensão da linguagem usada pelos profissionais de saúde e o interesse da equipe médica percebido pelo paciente.
Os idealizadores do IVH também chegaram à conclusão de que a percepção dos valores humanos no Brasil depende do nível de renda individual, e, em geral, quanto maior a renda, melhor a avaliação dos valores.
Fica claro, nestes termos, que o financiamento público na área da saúde é insuficiente em relação à demanda social que o SUS abarca, já que, conforme dados, cerca de 70% da população brasileira depende única e exclusivamente do deste para ter o seu direito à saúde efetivado. Essa circunstância pode, conseqüentemente, afetar todo o desenvolvimento e estrutura do SUS, colocando em risco a efetivação das políticas de gestão e atenção à saúde.
A lei 8.142/90 trata especificamente da gestão do SUS, da transferência dos recursos para a saúde entre as esferas do governo, isto é, define em que devem ser investidos estes recursos. A referida lei dispõe sobre o Fundo Nacional de Saúde e diz como e onde os recursos desse fundo serão aplicados, impondo, que estes recursos só podem ser utilizados para financiar os custos próprios do Ministério da Saúde; os valores com ações previstas e, principalmente, os custos das transferências de recursos para os estados, o Distrito Federal e os municípios destinados à implementação de ações e serviços de saúde. Competindo a cada ente governamental assegurar o aporte regular de recursos ao respectivo fundo de saúde de acordo com a Emenda Constitucional nº 29/00.
Convém ressaltar que, à proposta de financiamento da saúde prevista constitucionalmente e na Lei Orgânica da Saúde, nem sempre é cumprida na sua integra pelos entes estatais responsáveis, conseqüentemente, o setor sofre graves problemas financeiros.
Conforme conclusão de auditoria realizada pela DENASUS[10] (Departamento Nacional de Auditoria do SUS) inúmeras são as irregularidades em vários estados do país, entre eles o Rio Grande do Sul, este que, de acordo com a auditoria, teria retido dinheiro federal no primeiro semestre de 2009, além de descumprir sistematicamente a EC-29 com aplicações mínimas dos recursos próprios em ações e serviços de saúde.
É inegável que o problema da efetivação do direito à saúde conforme a ordem constitucional, no Brasil, se deve, entre outros fatores, pelo mau uso dos recursos públicos destinados a esta área. E, a responsabilidade deste uso dos recursos públicos destinados à saúde, ou pelo desvio desses recursos, abrange desde o Estado, que tem a obrigação de prover a saúde, o gestor público que deixa de repassar e de investir esses recursos de acordo com as reais necessidades da população, o prestador do serviço público de saúde que cobra do SUS procedimentos não realizados, ao profissional de saúde que não cumpre com a sua obrigação como profissional da saúde, omitindo-se na prestação adequada do serviço médico-hospitalar.
É evidente que fazer saúde sem dinheiro é impossível, contudo, o recurso financeiro não resolve todos os problemas e, para que o direito fundamental à saúde se materialize, no sentido de efetivar o direito, é imprescindível, além do investimento financeiro, sua adequada aplicação e gerenciamento, o comprometimento de todos os envolvidos diretamente na área, desde os prestadores do serviço público, aos profissionais da saúde, bem como a sociedade em geral.
É imprescindível que seja garantido, para a área da saúde pública, recursos estruturais, suficientes, e definitivos, pois sem recursos financeiros satisfatórios o Sistema Único de Saúde não terá como cumprir, e nem como funcionar de acordo com o previsto na ordem constitucional brasileira: saúde universal, integral, igualitária, e gratuita, a todos.
É preciso perpetrar o que foi definido em lei, principalmente no que se refere aos percentuais a serem investidos pelos entes do Governo, sem desviar os recursos para outras ações que não sejam ações ou serviços de saúde. Para isso é indispensável apontar objetivamente os percentuais mínimos que devem ser investidos na área; como deve proceder a transferência desses recursos entre as esferas de governo, bem como a definição clara das fontes de arrecadação; e, sobretudo, no que pode ser gasto os recursos públicos destinados ao Sistema Único de Saúde, pois nada adiantará investir neste, quando as verbas não são repassadas e nem empregadas adequadamente.
2.1 Da Omissão do Estado na Prestação do Direito à Saúde
De acordo com a previsão contida no artigo 6º, caput, da Constituição, seguida de disposições específicas nos artigos 196 a 200, o direito a saúde constitui direito fundamental de todo e qualquer cidadão, que deve ser prestada de forma integral, gratuita, universal e igualitária, outorgando-lhes o direito público subjetivo de obter assistência à saúde por parte do Poder Público.
Portanto, como já elucidado, é manifesto constitucionalmente, que todos têm direito à saúde e o Estado o dever de prestá-la. Porém o reconhecimento deste fato como premissa válida não significa ipso facto, sua materialização efetiva.
Esporadicamente, os meios de comunicação divulgam noticias que evidenciam situações de omissão do Poder Público com quem necessita de atendimentos básicos de saúde, que vai desde aumento das filas[11] nos hospitais públicos até a recusa em prestar fornecimento de medicamentos e determinados tratamentos médicos, evidenciando a dificuldade do Estado no tocante ao cumprimento do dever para com esse direito dos cidadãos, conforme a ordem constitucional. Destacam-se, a propósito, o fornecimento de medicamentos de alto custo e uso continuo, e a fila de quem aguarda por procedimento médico-hospitalar.
A insegurança sobre a garantia desse direito, relacionados com cuidados e atenção essenciais à saúde é uma realidade. O sistema apresenta-se insuficiente frente à atual demanda, deparando-se com a falta de recursos suficientes para abarcar o direito a saúde conforme a ordem constitucional. Neste sentido, Marcus Vinícius Polignano elucida que:
“A crise do sistema de saúde no Brasil está presente no nosso dia a dia podendo ser constatada através de fatos amplamente conhecidos e divulgados pela mídia, como: filas freqüentes de pacientes nos serviços de saúde; falta de leitos hospitalares para atender a demanda da população; escassez de recursos financeiros, materiais e humanos para manter os serviços de saúde operando com eficácia e eficiência; atraso no repasse dos pagamentos do Ministério da Saúde para os serviços conveniados; baixos valores pagos pelo SUS aos diversos procedimentos médicos-hospitalares; aumento de incidência e o ressurgimento de diversas doenças transmissíveis; denúncias de abusos cometidos pelos planos privados e pelos seguros de saúde”.
O Desembargador Newton Carpe da Silva, citado pelo jurista Juliano Heinen (2010, p.3/4), ao analisar a realidade do país afirma que:
“Milhares de brasileiros bombam mortos todos os dias, pela fome, frio de desassistência do Poder Público. Milhões de tantos outros carecem com a falta de saneamento, infra-estrutura, moradia, água potável e energia […] e que no campo assistencial a situação nacional não é melhor, pois faltam leitos nos hospitais, faltam hospitais públicos, faltam remédios, médicos e estrutura as casas de saúde destinadas ao atendimento público […] conclui ser totalmente despida de razão o comando judicial que determinou o Estado a arcar com gastos improvados”.
Fato é que, a Constituição Federal impõe ao Estado uma enorme gama de obrigações, principalmente no tocante aos chamados direitos sociais fundamentais, todavia a implantação de políticas públicas sociais que concretizam os direitos desta natureza carecem de recursos que nem sempre o Estado consegue arcar, gerando uma enorme disparidade entre a realidade e o garantido constitucionalmente. Nesse diapasão entra a questão do custo dos direitos sociais, entre eles o direito à saúde, tendo em conta a ordem constitucional quanto ao modo que deve ser prestado esse direito pelo Estado.
Nesse diapasão Ingo Sarlet (2001, p.12):
“Talvez a primeira dificuldade que se revela aos que enfrentam o problema seja o fato de que a nossa Constituição não define em que consiste o objeto do direito à saúde, limitando-se, no que diz com este ponto, a uma referencia genérica. Em suma o direito constitucional positivo não se infere, ao menos não expressamente, se o direito à saúde como direito a prestações abrange todo e qualquer tipo de prestação relacionada à saúde humana (desde atendimento medico até fornecimento de óculos, aparelhos dentários, etc.), ou se este direito a saúde encontra-se limitado às prestações básicas e vitais em termos de saúde, isto em que pese os termos do que dispõe os artigos 196 a 200 da nossa Constituição”.
Em meio a uma série de omissões para com a saúde pública, ocorre um flagrante desrespeito à Lei Maior de 1988, notadamente ao art. 196, devido a sua não aplicação, o que conseqüentemente dá azo ao problema da efetivação do direito à saúde conforme a ordem constitucional brasileira.
Neste contexto, um Sistema de Saúde que foi instituída com a finalidade de abarcar, gratuitamente, integralmente, universalmente e de forma igualitária todos os cidadãos, dá lugar a um programa assistencial incompleto, por causa do estrangulamento financeiro, de um lado, e de outro por causa do aumento de demandas cada vez mais ilimitadas, deixando de responder a altura às necessidades de saúde de toda a sociedade.
Henrique Kujawa[12], em artigo publicado no CEAP/RS, ressalva:
“[…] historicamente não se desenvolveu no Brasil uma política pública de saúde que primasse pela universalidade do acesso e integralidade do atendimento a lógica predominante sempre foi “para quem tem dinheiro a atenção e aos demais a caridade” […] a construção do Sistema único de Saúde SUS com princípios de Universalidade, Integralidade e Equidade ocorreu e continua na contramão do modelo hegemônico, desde a década de 1960, que prima pela saúde privada de grupo (famosos planos de saúde) e a centralidade do modelo “hospitalocêntrico” que centra atenção à saúde nos procedimentos médicos, nos serviços de diagnóstico, prognóstico e hospitalares. Obviamente não se trata de ignorar ou menosprezar o papel destes profissionais e destes serviços para a saúde pública, contudo, é visível que se a política de saúde não qualificar a atenção básica e uma rede de atendimento que tenha resolutividade os hospitais vão sempre estar superlotados. A responsabilidade constitucional de garantir o direito à saúde é das três esferas de governo. Contudo, por mais que se tenha produzido regulamentação […] não há um comprometimento no empenho dos recursos devidos nem tão pouco na definição clara das responsabilidades de cada gestor. Enquanto isso o cidadão fica a mercê do deputado “fura fila”, ou então dos albergues fornecidos por outros deputados generosos”.
É notório que, a assistência à saúde hoje em dia, é proporcional principalmente ao volume de recursos financeiros possuídos pelo indivíduo e seus familiares, em termos particulares. É óbvio que, quanto mais poder aquisitivo a pessoa tiver, melhores serão suas condições de atendimento. Contudo, se o cidadão não tem condições financeiras para custear um plano de saúde privado, ele depende única e exclusivamente da assistência prestada pelo Estado.
De um modo geral, as pessoas, que podem, recorrem a empresas particulares, pagando estimáveis mensalidades, para tentar obter uma digna assistência à saúde, o que nem sempre, diga-se de passagem, conseguem alcançar totalmente, pois em alguns casos, o atendimento deixa a desejar nomeadamente no que diz respeito à cobertura total dos planos privados de saúde.
Muitas vezes esse paciente rejeitado pelo plano privado de saúde, é de alto custo, e quando tem renegado à cobertura, sobre determinados serviços de saúde, no privado, este procura, e tem direito de procurar, esses mesmos serviços de alto custo na rede pública, que é sujeitada a proporcionar ao associado tendo em vista a ordem constitucional, sendo a saúde direito de todos e dever do Estado, e pior sem que haja ressarcimento ao Estado dos custos do serviço de saúde prestado.
O portal do Globo, G-1, destaca que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador, que cuida dos planos de saúde de 56,1 milhões de brasileiros, admite que não tem conseguido fazer funcionar adequadamente o ressarcimento dos convênios ao Sistema Único de Saúde (SUS), e criticou as empresas por resistir à regulamentação dos planos via ações judiciais, inclusive contra o ressarcimento. Pela lei dos planos, de 98, as operadoras deveriam devolver aos cofres públicos os recursos gastos com o atendimento de seus usuários em hospitais do SUS.
Percebe-se claramente o progressivo sucateamento da rede pública, o que contribui e muito para o aumento do caos na saúde pública, refletindo diretamente no atendimento prestado ao mais necessitado, que não tenha como custear um plano privado e muito menos acionar o Estado exigindo a prestação de um serviço de saúde, quando omitido ou não prestado de forma eficiente e adequado. Essa situação se impõe, principalmente, porque na maioria das vezes as pessoas desprovidas de condições financeiras, não sabem como acionar o Estado em busca do direito, ou até nem sabem que têm o direito à saúde garantido constitucionalmente.
A ocorrência de omissões para com a saúde pública vem evidenciar que o Estado não está aparelhado suficientemente para atender todos os cidadãos que dependem de um serviço de saúde, de forma integral, gratuita, universal e igualitária. E essa problemática, conseqüentemente, obriga o Poder Judiciário, guardião da Lei Maior, a intervir, assim, compelindo Estado a cumprir com o seu dever constitucionalmente imposto.
Atualmente, doenças mais complexas como câncer, doenças cardiovasculares, que requerem medicamentos de última geração, transplantes e próteses, pressionam cada vez mais os custos do sistema público, visto que são tratamentos tão custosos que os planos de saúde simplesmente se recusem a custear, fugindo da integralidade da cobertura. E como a maioria da população brasileira não consegue custeá-los com recursos próprios, mesmo aqueles que têm o privilégio de ter como arcar com um plano privado, acabam acionando o Estado em busca da efetivação do direito à saúde, e o Poder Judiciário por sua vez, como guardião da Lei Maior, vem compelindo religiosamente o Poder Executivo a cumprir o seu dever constitucional, onerando cada vez mais o SUS e os cofres públicos, que são os provedores dos recursos.
3. REPERCUSSÃO JURÍDICA DA OMISSÃO DO ESTADO NA PRESTAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE
Para a hipótese de omissão ou lacuna do Estado no cumprimento do seu encargo assistencial para com a saúde, conforme a ordem constitucional, a pessoa prejudicada pela omissão, tem acesso ao Poder Judiciário, valendo-se do instrumento jurídico apto a compelir o Estado à prestação adequada do serviço de saúde e ao ressarcimento pelo eventual prejuízo sofrido.
Ingo Sarlet (2001, p.11-12) esclarece que:
“[…] a possibilidade do titular desse direito (em principio qualquer pessoa), com base nas normas constitucionais que lhe asseguram esse direito, exigir do poder público (e eventualmente de um particular) algum prestação material, tal como um tratamento medico determinado, um exame laboratorial, uma internação hospitalar, uma cirurgia, fornecimento de medicamentos, enfim, qualquer serviço ou beneficio ligado à saúde […] o direito à saúde […] é também (e acima de tudo) um direito a prestações, ao qual igualmente deverá ser outorgada a máxima eficácia e efetividade”.
Apesar de toda a tutela constitucional conferida ao direito fundamental a saúde, vem crescendo as situações de omissão do Estado na prestação dos serviços de saúde, levando a um aumento significativo de ações no judiciário que visam compelir o Estado à prestação adequada de determinado serviço. O autor Ingo Sarlet (2001, p.12) argumenta que:
“Permanece, todavia a indagação se o Poder Judiciário está autorizado a atender essas demandas e conceder aos particulares, via ação judicial, o direito à saúde como prestação positiva do Estado, compelindo o Estado ao fornecimento de medicamentos, leitos hospitalares, enfim toda e qualquer prestação na área da saúde. Na medida em que o poder público não tem logrado atender (e aqui não se está adentrando o mérito das razões invocadas) o compromisso básico com o direito à saúde, contata-se a existência de inúmeras ações judiciais tramitando nos Foros e Tribunais brasileiros […]”.
O portal da Globo, G-1, aponta que o governo está preocupado. O número de decisões judiciais que obrigam a União a garantir a distribuição de remédios aumentou muito. Por causa das ações em 2005, o Ministério da Saúde gastou R$ 2,4 milhões, já em 2008, foram R$ 52 milhões. O governo argumenta que, de todos os pacientes que recorrem à Justiça, pelo menos 60% poderiam ser tratados com outros remédios semelhantes e disponíveis no Sistema Único de Saúde.
O secretario de Ciência e Tecnologia do ministério da Saúde afirmou que esse é o motivo básico de preocupação do ministério, não o de tentar impedir que as pessoas que tenham um direito contestado vão à Justiça, devem ir, no entanto, o ministério não pode admitir é que haja uma epidemia, e está havendo uma epidemia de processos judiciais.
Em um ano, segundo o Ministério da Saúde, o gasto com essas ações triplicou, muitos pacientes que dependem de um medicamento para tratamento, para ter mais tempo e qualidade de vida, insistem que só entrando na Justiça conseguiram ter acesso a medicamentos receitados pelos médicos e que, às vezes, estes medicamentos estão fora das listas oficiais do Sistema Único de Saúde. Para eles, portanto, a saída tem sido recorrer à Justiça, de outro lado os processos se multiplicam e o governo reclama do tamanho do prejuízo e diz que há outras soluções.
Cabe ressalvar que, as limitações orçamentárias do Estado são repelidas como justificativa para o indeferimento dos pleitos relativos à saúde pública ao argumento de que prover receitas suficientes para a área da saúde também representa uma obrigação do Estado. Neste sentido afirma Luis Roberto Barroso (2009, p.3) que:
“[…] proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis […] não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União, Estado e Municípios – deve ser responsabilizado […] diante disso os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos […] tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional”.
Lúcia Léa Guimarães Tavares, citado por Barroso (2009, p.27), afirma:
“É comum que alguns magistrados determinem a entrega de remédios inexistentes no país, que devem ser importados, às vezes muito dispendiosos. Em geral, não são sensíveis aos argumentos de sua inexistência ou de seu alto custo, firmes na posição de que recursos existem, mas são mal aplicados pelo Poder Executivo. Não posso, nem quero entrar no mérito da questão do desperdício dos recursos públicos, desperdício este que, lamentavelmente, não é privilégio do Poder Executivo. Mas não há dúvida de que os recursos são escassos […]”.
Já que o direito a saúde é indiscutível, concedendo liminares à pacientes de risco, para a obtenção de tratamento de que necessita, o Poder Judiciário sujeita o Poder Executivo, em caso de descumprimento da decisão, ao pagamento de multa diária de valor bem significativo, como pena pecuniária. Posto isso, é de se afirmar que seria mais aplausível e menos custoso ao Estado, se este cumprisse o seu dever constitucional para com a saúde, sem coerção judicial e sem que o cidadão necessitasse fazer jus do seu direito subjetivo a saúde para efetivar o mesmo constitucionalmente assegurado, através do judiciário.
Toda essa circunstância seria bem mais simplificada se houvesse uma maior eficácia na organização na política de distribuição dos recursos públicos para a área da saúde. Não seria necessário, por conseguinte, esperar que o Estado fosse coibido para cumprir o seu dever constitucionalmente imposto, principalmente em se tratando de um direito que é caracterizado pela urgência na prestação, tendo em conta ser a saúde base essencial a existência de vida humana.
Ademais, não seria necessário compelir o Poder Judiciário a fazer escolhas, entre proteger a vida de um, em detrimento de se alocar recursos a muitos, sempre que o cidadão de direito é forçado a buscar a efetivação do seu direito à saúde na esfera judicial, principalmente quando esta em jogo direito fundamental, a vida e a saúde.
Nesta linha de pensamento enfatiza o doutrinador Ingo Sarlet (2001, p.14-15):
“[…] não haveria como desconsiderar a grave ameaça que paira sobre todos aqueles que necessitam bater as portas do Judiciário para a obtenção, via processo judicial, do reconhecimento e proteção de seu direito a saúde. Com efeito, tendo em conta o caráter
normalmente emergencial da prestação reclamada, impõe-se, em regra, a concessão de uma medida liminar, que, evitando o comprometimento grave e até mesmo irreversível da saúde do demandante, concede-lhe antecipadamente o direito reclamado em juízo […], pois bem considerando a existência de legislação proibitiva da concessão de tutela antecipada contra o poder publico e levando em conta, ainda, o fato de o Supremo Tribunal Federal ter se pronunciado pela constitucionalidade dessa legislação (embora não de forma definitiva), não se poderia mais, a prevalecer este entendimento, obter provisória e antecipadamente […] a prestação saúde constitucionalmente assegurada. Mesmo assim, constata-se que Juízes e Tribunais […] continuam, ao menos em sua maior parte, deferindo liminares, cientes de que negar a antecipação da tutela e relegar ao final do processo a concessão do direito reclamado, em muitos casos equivaleria […] condenar a pessoa a morte ou ao comprometimento grave e, por vezes, definitivo de sua saúde”.
As decisões judiciais são determinadas com alicerce na própria Constituição Federal que, além de enquadrar a saúde como direito fundamental, em seu artigo 6º, no art.196 estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas públicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. Em virtude dessas decisões, são concedidas liminares aos cidadãos, que buscam a efetividade do direito à saúde através do judiciário, o que tem provocado o bloqueio de recursos públicos, e conseqüentemente prejuízos aos cofres do governo. Para o autor Luis Roberto Barroso, tais excesso e inconsistência não são apenas problemáticos em si, eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos, o que pode impedir que políticas coletivas, dirigidas a promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas levando a não realização pratica da Constituição Federal.
Não obstante, ficaria bem mais satisfeito o cidadão carente e doente se não precisasse bater a porta do judiciário para fazer valer seus direitos assegurados na Constituição.
3.1. Da Eficácia das Decisões
O cidadão se sente, e tem o direito de buscar e de obter a efetivação de seu direito fundamental à saúde, de outro lado o Estado é obrigado constitucionalmente a prestar este, independentemente de ter ou sem cogitar a questão da escassez dos recursos financeiros disponibilizados a saúde pelo Poder Público.
Por mais que os poderes públicos, como destinatários precípuos de um direito à saúde, venham a opor – além da já clássica alegação de que o direito à saúde (a exemplo dos direitos sociais prestacionais em geral) foi positivado como norma de eficácia limitada – os habituais argumentos da ausência de recursos e da incompetência dos órgãos judiciários para decidirem sobre a alocação e destinação de recursos públicos, não nos parece que esta solução possa prevalecer, ainda mais nas hipóteses em que está em jogo a preservação do bem maior da vida humana. Não nos esqueçamos de que a mesma Constituição que consagrou o direito à saúde estabeleceu – evidenciando, assim, o lugar de destaque outorgado ao direito à vida – uma vedação praticamente absoluta (salvo em caso de guerra regularmente declarada) no sentido da aplicação da pena de morte (art.5°, inc. XLVII, alínea a). (SARLET, 2003. p 314 e ss).
Ainda, de acordo com doutrinador acima referido, não se pode sustentar, sob pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça, que com base em alegada e mesmo comprovada insuficiência de recursos públicos, se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa, cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e, o de não ter condições de obter com seus próprios recursos o atendimento necessário, diretamente deduzido da Constituição, e que constitui exigência inarredável de qualquer Estado que inclua nos seus pilares valores essenciais a humanidade e à justiça.
De tal modo, mesmo com escassez de recursos financeiros a máquina estatal é compelida pelo Poder Judiciário a prestar de forma integral serviços de saúde, a todo e qualquer cidadão, seja rico, seja pobre, independentemente de qualquer condicionante, gratuitamente. Sob pena de multa imposta pelo judiciário, que só estará cumprindo o seu papel de guardião da Constituição da República Federativa do Brasil.
Ressalva-se que, a interferência do judiciário nessas circunstancias tem se mostrado de certa forma eficiente, pois o Estado receoso de ser condenado a pagamento de multa diária pelo não cumprimento da obrigação, além da indenização por danos supervenientes, vem atendendo de pronto as determinações do judiciário, permitindo, assim, ao cidadão usufruir seu direito assegurado pela Constituição Federal. Entretanto, não se pode afirmar que seja a interferência do judiciário a medida mais eficaz, tendo em conta que a saúde não é só um direito individual daqueles que buscam a sua efetivação no judiciário, mas também é direito coletivo de todos. Neste entendimento, o jurista Rogério Gesta Leal (2006. p.71) complementa:
“[…] quando se fala em saúde pública e em mecanismos e instrumentos de atendê-la, mister é que se visualize a demanda social e universal existente, não somente a contingencial submetida à aferição administrativa ou jurisdicional, isto porque, atendendo-se somente aqueles que acorrem de pronto ao Poder Público (Executivo ou Judicial), pode-se correr o risco de esvaziar a possibilidade de atendimento de todos aqueles que ainda não tomaram a iniciativa de procurar o socorro público, por absoluta falta de informações ou recursos para fazê-lo”.
As políticas públicas de saúde devem seguir a diretriz de reduzir as desigualdades econômicas e sociais. Contudo, quando o Judiciário assume o papel de protagonista na implementação dessas políticas, privilegia aqueles que possuem acesso qualificado à Justiça, seja por conhecerem seus direitos, seja por poderem arcar com os custos do processo judicial. Por isso, a possibilidade de o Judiciário determinar a entrega gratuita de medicamentos mais serviria à classe média que aos pobres. Inclusive, a exclusão destes se aprofundaria pela circunstância de o Governo transferir os recursos que lhes dispensaria, em programas institucionalizados, para o cumprimento de decisões judiciais, proferidas, em sua grande maioria, em benefício da classe média (BARROSO, 2009, p.26).
Assim, quanto mais os cofres públicos sofrem com o cumprimento de medidas coercitivas que obrigam o Estado à prestação de determinados serviços de saúde de alto custo, e ao pagamento de indenizações por omissão na prestação do serviço, menos recursos financeiros terão os cofres públicos para custear o direito à saúde a todos conforme a ordem constitucional, de forma integral, gratuita, universal e igualitária, gerando assim, um aumento no grau de precariedade na saúde pública, que penaliza especialmente as pessoas com menos condições financeira e, que têm no Sistema Único de Saúde como a única forma de ver efetivado o direito fundamental à saúde.
Neste contexto, a doutrinadora Raquel Urbano Mello de Carvalho, apud Juliano Heinen (2010, p. 3):
“[…] o Estado, ao ser compelido, por decisão judicial a arcar com despesas que exorbitam seu âmbito regular de atuação em matéria de política pública, […] tem que destinar parte dos recursos, já escassos, para o atendimento específico das ações propostas, em detrimento de outros tantos cidadãos que necessitam de procedimentos e medidas cuja efetivação e/ou prestação também lhe compete […]”.
Marcos Maselli Gouvêa, citado por Luis Barroso (2009, p.26), enfatiza que:
“[…] certas prestações, uma vez determinadas pelo Judiciário em favor do postulante que ajuizasse ação neste sentido, poderiam canalizar tal aporte de recursos que se tornaria impossível estendê-las a outras pessoas, com evidente prejuízo ao princípio igualitário”.
Ora, o artigo 196 da Constituição Federal associa a garantia do direito à saúde as políticas sociais e econômicas, exatamente para que seja possível assegurar a universalidade do atendimento à saúde, e ainda preservar a isonomia no atendimento aos cidadãos, independentemente de seu acesso maior ou menor ao Poder Judiciário. Na apreciação de Luis Roberto Barroso (2009, p. 23):
“Atribuir-se ou não ao Judiciário a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o direito à saúde seria, antes, um problema de desenho institucional. […] Pode-se entender que a melhor forma de otimizar a eficiência dos gastos públicos com saúde é conferir a competência para tomar decisões nesse campo ao Poder Executivo, que possui visão global tanto dos recursos disponíveis quanto das necessidades a serem supridas. Esta teria sido a opção do constituinte originário, ao determinar que o direito à saúde fosse garantido através de políticas sociais e econômicas. As decisões judiciais que determinam a entrega gratuita de medicamentos pelo Poder Público levariam, portanto, à alteração do arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988”.
Ainda, segundo o jurista acima referido:
[…] vem se tornando recorrente a objeção de que as decisões judiciais em matéria de medicamentos provocam a desorganização da Administração Pública. São comuns, por exemplo, programas de atendimentos integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável. Tais decisões privariam a Administração da capacidade de se planejar, comprometendo a eficiência administrativa no atendimento ao cidadão. Cada uma das decisões pode atender às necessidades imediatas do jurisdicionado, mas, globalmente, impediria a otimização das possibilidades estatais no que toca à promoção da saúde pública (BARROSO, 2009, p. 25).
Nesse sentido, Maria Dallari Bacci (2006, p.25) esclarece:
“O efeito indesejado que pode decorrer […] é o deslocamento (e desorganização) do processo de seleção de prioridades e reserva de meios, cerne da construção de qualquer política pública, dos Poderes Executivos e Legislativo, onde se elabora o planejamento e se define como conseqüência, o orçamento público, segundo sua ótica global, para o contexto isolado de cada demanda judicial, cuja perspectiva, mesmo nas ações coletivas, é do individuo ou grupo de indivíduos (ou talvez de uma comunidade, mas nunca ou quase nunca com a mesma abrangência das leis orçamentárias, de âmbito municipal, estadual ou federal)”.
A jurisprudência brasileira sobre concessão de medicamentos se apoiaria numa abordagem individualista dos problemas sociais, quando uma gestão eficiente dos escassos recursos públicos deve ser concebida como política social, sempre orientada pela avaliação de custos e benefícios (BARROSO, 2009. p. 26).
Confira-se, a respeito, citado por Luis Barroso (2009. p. 27), a afirmação de Ana Paula de Barcellos:
“[…] o fato é que nem o jurista, e muito menos o juiz, dispõem de elementos ou condições de avaliar, sobretudo em demandas individuais, a realidade da ação estatal como um todo. Preocupado com a solução dos casos concretos – o que se poderia denominar de micro-justiça –, o juiz fatalmente ignora outras necessidades relevantes e a imposição inexorável de gerenciar recursos limitados para o atendimento de demandas ilimitadas: a macro-justiça”.
O jurista Juliano Heinen assevera que “[…] se a escassez é notória, (não há recursos públicos para atender a todos), a decisão judicial nada mais faz do que escolher quem será ou não atendido e quem será ou não excluído, criando um privilégio jamais encontrado na Constituição Federal”.
De tal modo, se faz mister que as decisões judiciais sejam proferidas com bom senso, levando em conta, por um lado, os valores fundamentais envolvidos, à realidade em que se insere o país e a existência de escassez de recursos destinados a área da saúde. Ou seja, os custos e as possibilidades reais precisam ser sopesados nas decisões judiciais que visem efetivar o direito fundamental à saúde de um em detrimento ao direito a mesma de tantos outros igualmente assegurados pela Constituição brasileira, sob pena da não efetivação do direito à saúde conforme a ordem constitucional.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo realizado evidenciou que com a Constituição Federal de 1988, o direito à saúde ganhou lugar de destaque no ordenamento jurídico brasileiro.
Assegurado como direito fundamental comum a todos sem qualquer tipo de distinção, tendo o Estado o dever de assegurá-lo por ser condição vital a existência de vida humana e tendo em conta o princípio da dignidade da pessoa humana alicerce do Estado Democrático de Direito.
Baseado na noção de justiça social, e no combate as desigualdades sociais existentes no país, ao longo da história da saúde no Brasil, muitas lutas foram travadas a fim de implementar um sistema que abrangesse todos os cidadãos, sem discriminação, de forma integral, universal, gratuito e igualitário.
Neste contexto surgiu em 1990, o Sistema Único de Saúde, considerado atualmente um dos maiores sistemas de saúde do mundo, modelo referenciado internacionalmente. Com isso, à saúde pública brasileira deu um passo muito importante, já que os direitos antes ausentes passaram a ser reconhecidos e cumpridos, abarcando toda a população, oferecendo serviços tanto de atenção primaria como aqueles de maior complexidade e de alto custo.
Entretanto um Estado que chama para si o dever de promover o direito fundamental à saúde, a todos os cidadãos, garantindo constitucionalmente o acesso integral, gratuito, universal e igualitária as ações e serviços que visam à proteção, recuperação e promoção da saúde, mas que, por omissão estatal, deixe em desamparo os que mais padecem da prestação efetiva dos serviços de saúde, demonstra ser incoerente.
Por isso, torna-se imperioso exigir do Estado, entendido nas suas três esferas, que cumpra com o seu papel constitucional de garantir o acesso ao direito à saúde conforme a ordem constitucional, não permitindo, desta feita, diferenciação de classes, aumentando cada vez mais as desigualdades sociais existentes. Isso depõe não só contra a Constituição Federal brasileira, mas também contra as Declarações, Pactos e Tratados Internacionais de direitos humanos assinados pelo Brasil, e, sobretudo, contra todos os esforços da cidadania brasileira de construir um país mais justo, democrático e com menos desigualdades sociais.
Nos dizeres de Ingo Sarlet (2001, p.16):
“[…] apenas mediante uma convergência de vontades e esforços (do Poder Público e da sociedade), bem como especialmente com a superação do tradicional jogo de “empurra-empurra” que se estabeleceu em nosso País (entre Estado e iniciativa privada, entre União e Estados, entre estes e os Municípios, entre Executivo e Legislativo, entre estes e o Judiciário, etc) é que se poderá chegar a uma solução satisfatória e que venha a resgatar a dignidade da pessoa humana para todos os brasileiros, notadamente no que diz com a efetiva possibilidade de usufruir das condições mínimas para a existência digna”.
Para o referido autor, sem solidariedade e responsabilidade por parte de todos, do Poder Público e da comunidade, o direito à saúde, cada vez mais, não passará de uma mera promessa insculpida no texto da Constituição brasileira.
Pode-se afirmar que, se mostra imprescindível determinar, com base nos recursos disponíveis, os procedimentos e tratamentos que devem, e que podem ser garantidos pelo Sistema Único de Saúde, ou seja, a necessidade de determinação de prioridades no gasto dos recursos públicos nesta área, bem como, quem necessariamente precisa da ajuda estatal para a efetivação do direito à saúde.
Diante da realidade que se apresenta, faz-se necessário, estabelecer parâmetros de mudanças na prestação desse direito fundamental, para que seja ele um real instrumento de justiça social. É indispensável harmonizar a garantia do direito à saúde com o princípio constitucional do acesso universal e igualitário.
Todavia, é inegável que o sistema vem se aperfeiçoando ao longo dos anos, porém o Sistema Único de Saúde proposto na Constituição Federal de 1988, ainda é algo a ser perseguido e alcançado, principalmente no que se refere à universalidade, igualdade de acesso e a qualidade do atendimento ao direito fundamental à saúde.
Igualmente, observa-se que, todo o processo de assistência à saúde pública é fator da maior relevância quando se trata de garantir o direito à saúde constitucionalmente previsto. Tal afirmação justifica-se não só pela prestação da saúde com enfoque no sujeito de direito, ou seja, credor do dever constitucionalmente imposto ao Estado, mas também porque a demora no atendimento a esse direito tem conseqüências relevantes e, sendo omissa a prestação, acarreta para o Poder Público um aumento desnecessário nos custos para o tratamento e/ou ressarcimento das complicações decorrentes.
Bacharel em Direito pela FURG/RS
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