Apresentação
Trata-se de breve bosquejo sobre os
chamados procedimentos verificatórios, ainda
admitidos pela praxe forense de alguns Estados, analisando-se sua possibilidade
jurídica e sua incompatibilidade com o sistema constitucional de proteção
integral previsto com as diretrizes da descentralização político-administrativa
e de participação popular (CF, art. 227, § 7º c/c art. 204).
O que são os procedimentos verificatórios?
Alguns Estados tem admitido a existência de autos iniciados por notícia de
repartição policial ou entidade de atendimento em que a Autoridade Judiciária
da Infância e da Juventude determina o processamento como procedimentos verificatórios, com o fito de “verificar”
situação de risco (ECA, art. 98), decidindo pela aplicação de medidas protetivas, como as previstas pelos art. 101 e 129 da Lei
8.069/90.
Antecedentes do procedimento verificatório e sua visão atual
Assim, a peça inaugural, lastreada em
despacho judicial, inicia ex officio,
procedimento investigatório. Tal medida ressucita
providência extinta junto com o antigo Código de Menores, que permitia ao
Juiz Menorista a aplicação de medidas tutelares, ora
substituídas pelas medidas protetivas a serem
adotadas somente nos casos de situação de risco, expressos no art. 98 do ECA, cabendo-lhe o ditar apenas pelo Conselho
Tutelar, órgão não-jurisdicional, autônomo, escolhido pela sociedade para
garantia dos interesses infanto-juvenis (art. 131 C/C 136, Ida Lei 8.069/90),
pelo que “fica claro que o Conselho Tutelar assumirá as
funções anteriormente exercidas pela Justiça da Infância e da Juventude e
pela Polícia Judiciária, relacionadas com os aspectos do atendimento
social das crianças e dos adolescentes”1
.
Com efeito, somente em duas situações
pode o Juiz aplicar as medidas protetivas: 1) na
ocorrência do art. 262 do ECA, ante a não implantação
do Conselho Tutelar2; e, 2) como medida
sócio-educativa imprópria, na forma do art. 112, inciso VII da Lei Estatutária,
o que significa dizer que somente poderá assim agir o Juízo em face do
cometimento de ato infracional, matéria estranha às
providências da maioria dos documentos de instauração dos ditos procedimentos verificatórios.
Por outro lado, quando o Estatuto
quis ressalvar o princípio dispositivo da jurisdição infanto-juvenil,
assim expressamente o fez, na forma do art. 191 do Diploma de Regência,
descabendo qualquer outra forma de instauração procedimental ex officio. O alcance do art. 153 do
ECA, invocado como base legal do caderno procedimental em referência, é
de que , de moto próprio, pode a Autoridade Judiciária determinar
providências necessárias à prestação da jurisdição, como quando
determina a produção de provas, ou o próprio interrogatório ad clarificandum3, pois,
não se olvide, o esgrimir da possibilidade de o magistrado agir sem
provocação apenas ocorre para atingimento de medida
jurisdicional estrita, já tendo se explicitado que as medidas protetivas assim o são apenas em caráter
subsidiário, não em sua generalidade.
Repita-se: A atividade de ofício do
magistrado estará vinculada à ação investigativa restrita dos fatos objeto da
prestação jurisdicional estrita, abrangendo a jurisdição contenciosa e
voluntária4, como anota Tânia da Silva Pereira5:
“Essas faculdades atribuídas ao
Juiz da Infância e da Juventude estão presentes no Código de Processo
Civil, seja no art. 130, quando autoriza o juiz a determinar as
provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as
providências inúteis ou meramente protelatórias, seja no art. 1.107, quando
permite ao magistrado investigar livremente os fatos e ordenar de
ofício a realização de quaisquer provas nos procedimentos especiais de
jurisdição voluntária”.
A mesma autora comunga do
entendimento de que o órgão competente para a aplicação das medidas
numeradas nos itens I a VI do art. 101 do ECA são
previstas como atribuição do Conselho Tutelar, excetuada a
colocação familiar, exclusiva da autoridade judiciária (arts.
148, III e 148, § 2º, alínea “a” da Lei 8.069/90) 6.
É essa, ainda, a conclusão de
atualizada jurisprudência:
“Quaisquer providências em
favor de crianças e do adolescentes devem ser
providas através de procedimentos próprios e não por meio de
infindável ‘acompanhamento’ , sem forma ou figura de Juízo. Desse modo, ou os
menores necessitam de correção ou proteção efetiva, através de alguma das
providências preconizadas na lei de regência, ou a situação é regular, sendo
inaplicável o Estatuto. Na primeira hipótese, há o MP de ingressar
com a media judicial tendente à solução da questão, até porque mero
acompanhamento da situação de criança e adolescente independe de
providências judiciais, considerando as prerrogativas que o art. 201 do
Estatuto lhe atribuiu, Nesse sentido acórdão desta E. Câmara Especial, no AI
19.236-0” (TJSP – C. Esp. – Ap. 23.547-0 Rel. Yussef Cahali
– j. 25.5.95).
De fato, como já anotado no texto
“Melhor interesse da criança: do subjetivismo ao garantismo”7,
hodiernamente, por força mesmo de uma nova normativa internacional8, se desjurisdicionalizou
o problema, estabelecendo um regime de co-responsabilidade entre a Sociedade, a
Família e o Estado, em caráter de prioridade absoluta, com o fim de garantir a
proteção integral de crianças e adolescentes, pugnando pela concreção de seus
direitos e colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227 da CR), surgindo um novo
sistema, assim admitido pelo Desembargador Antonio
Fernado do Amaral e Silva:
“No novo modelo, a cada ator o seu papel.
Nada de eufemismos ou mitos. O juiz surge como o magistrado que previne e
compõe litígios. O Ministério Público é o fiscal da lei, titular da ação
de pretensão sócio-educativa. O advogado aparece como causídico, defensor do
jovem. As questões de pobreza e assistência social deixam os juizados e
passam à responsabilidade das administrações locais, com os Conselhos Tutelares”
(O Judiciário e os novos paradigmas conceituais e normativos da infância e da
juventude in Ensaios jurídicos: o direito em revista, obra coletiva coordenada
por Ricardo Bustamante e Paulo César Sodré. Rio de Janeiro, IBAJ, 1.996.pág.
446).
Mesmo as atividades administrativas
desta nova Justiça devem obedecer a regras claras, precisas e previamente
conhecidas, com parâmetros definidos em lei, assegurado
sempre o devido processo legal, fazendo valer o princípio de isonomia
pela norma estatal positivada (art. 5º da CR), assegurando-se-lhes
a aplicação do princípio da legalidade, id est, o de
que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei (art. 5º, II da Carta Federal), pelo que, na hipótese,
inadmissível o prosseguir na aplicação de medidas de proteção por órgão
não legitimado ordinariamente para tanto, mormente por ser esse mesmo órgão
desviado de sua função primeira; – o Juizado – ; aquele encarregado da sublime
missão de prestar a tutela jurisdicional de reexame destas
medidas, na forma do art. 137 do ECA.
Discorrendo sobre esse novo papel do
Judiciário, Edson Sêda9, prêmio Criança e Paz do UNICEF (1.995), assim comenta a
imperiosidade de se retomar para o órgão julgador sua mais nobre missão, qual seja, a de dirimir conflitos, notadamente aqueles que
envolvem interesse muito além do plano subjetivo, individual, mas aqueles
relativos aos reclames coletivos e difusos da população infanto-juvenil:
“O Poder Judiciário se habituou, desde a década de vinte (quando foi
criada na América Latina a Doutrina da Situação Irregular), a
exercer uma forma discricionária de autoridade, porque a velha
doutrina da situação irregular abolira princípios gerais de
Direito na aplicação do que se chamava de Direito do menor.
Isso quer dizer o seguinte: Princípios
que todo juiz deve acatar no julgamento de conflitos de outras
áreas do Direito (conflitos civis, comerciais, penais, administrativos,
constitucionais) passaram a não valer na área de ação dos antigos Juízes
de menores.
O novo Direito restaurou os
princípios gerais. Três são os aspectos alterativos
a serem considerados para que as novas funções sejam plenamente
cumpridas. O primeiro é que se encontra restaurado o princípio
segundo o qual o juiz não vai à procura de causa para julgar, conforme
sua vontade e seu arbítrio pessoal. Não. O juiz somente pode julgar as
causas que são a ele levadas pela família, pela sociedade ou pelo Estado na
forma prevista pela Legislação em vigor.
Em outras palavras, o juiz só pode
exercer suas funções jurisdicionais se for devidamente provocado em sua
jurisdição. Provoca a jurisdição quem a lei diz ter competência para
isso. Esse juiz não tem mais competência legal para provocar a
própria jurisdição.
O segundo aspecto alterativo
é que, na apreciação das causas em que estejam em jogo a ameaça ou violação de direitos de ou por crianças e
adolescentes, não cabe ao juiz, de forma discricionária, dizer qual é o
melhor interesse da criança ou do adolescente. A lei vinculou a vontade
do juiz a critérios rígidos presentes na lei para evitar arbitrariedades.
O terceiro aspecto alterativo é o que vincula as
decisões do juiz ao direito de defesa dos acusados, segundo
procedimentos objetivamente descritos na lei para a apuração dos fato que envolvem a imputação de um ato infracional a qualquer adolescente.
A segunda providência para alterar a antiga
forma de atuação judicial , é deixar o
juiz de editar portarias como se fosse um legislador.
……………………………………………………………………………………………………….
A terceira providência é deixar o
Judiciário de executar programas. O Estatuto é claro,
os programas são de proteção para as vítimas e
sócio-educativos para os vitimadores. E
ambos são executados por entidades governamentais ( do âmbito do Executivo) ou não-governamentais ( do âmbito
da sociedade civil). O juiz apenas decide e suas decisões são
cumpridas pelas entidades que planejam, executam e mantém os programas (artigo
90 do Estatuto)”.
Conclusões
Ante todo o exposto, inegável que há
insanáveis vícios em relação à instauração desse procedimento verificatório: 1) A impossibilidade jurídica do pedido, id est, da aplicação de medida protetiva
pela Vara da Infância, em estando instalado o Conselho Tutelar local, a quem
compete, de ordinário, essa atribuição; 2) A ilegitimidade ativa, in casu, a não previsão legal de instauração ex officio de procedimento, à exceção daquela descrito pelo
art. 191 do ECA, de hipótese diversa desta espécie
de autos; e, 3) A base legal invocada, o art. 153 do ECA, não se presta
ao fim proposto na portaria inaugural.
Notas
1 LIBERATI,
Wilson Donizeti Liberati CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e
fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo, Malheiros, 1.997. p. 144
2 “A
competência originária para as atribuições do ECA é do
Conselho Tutelar; a subsidiária é da Justiça da Infância e da Juventude, por
determinação do art. 262 do Estatuto que dispõe: ‘Enquanto não instalados
os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela
autoridade judiciária”” (LIBERATI & CYRINO. op. cit. p. 178)
3 A figura é citada na obra “Dever de
Esclarecimento e Complementação no Processo Civil”, de Elício
de Cresci Sobrinho (Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editora, 1988),
consistindo na possibilidade judicial de se interrogar os
litigantes, na hipótese dos artigos 340, I e 342
do CPC, em que o magistrado lhes solicita que exponham
“oralmente, seus pontos de vista sobre a causa, seus argumentos
elucidativos”, sem interferência direta de seus advogados, não se
tratando da fase conciliatória, mas da condução ativa de
debates esclarecedores, quando o “juiz modula a oralidade pelo parâmetro
da eqüidade rompendo com o formalismo estrito, impondo os deveres processuais
com justo equilíbrio”, pois é lícito ao julgador atuar “in
suplementum especialmente se lhe cabe conhecer de
ofício certas matérias”, como as nulidades absolutas, v.g. (op.cit. p. 116/117).
4 Se se entende a jurisdição voluntária como a constituição
jurídica de atos particulares por órgão jurisdicional, para a segurança
dos interessados, exemplo para a aplicação do art. 153 estaria no procedimento
para a autorização de viagem por longo período (art. 83, § 2º do ECA).
5 Direito da
criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de Janeiro,
Renovar, 1996.p. 423
6 id.ibid. p. 555
7 MARQUES,
Márcio Thadeu. O melhor interesse da criança: do
subjetivismo ao garantismo in PEREIRA, Tânia da Silva
(org.). O Melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de
Janeiro, Renovar, 2000. p. 469/470.
8Como, e.g., a
CONVENÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
9 A proteção integral: um relato sobre o
cumprimento do novo direito da criança e do adolescente na América Latina. São
Paulo, Adês, 1997. p.
126/127.
1º Secretário da ABMP,
Membro do Centro de Apoio Operacional da Infância e da Juventude (MP/MA)
Associação de Magistrados e Promotores de Justiça
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