Graciele Gomes Magalhães[1]
Resumo: Observa-se que, o indivíduo possui direitos fundamentais, consagrados pela Carta Maior, um deles é o de liberdade de expressão. Há normas gerais e normas especiais, a exemplo do desacato, que está previsto como crime tanto no Código Penal comum, quanto no Código Penal Militar. Nesse sentido, em termos de casos concretos, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tomou decisão considerando que o desacato não deveria mais ser considerado crime, por ser incompatível com o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que protege a liberdade de pensamento e de expressão, contudo, na sequência o Superior Tribunal Militar (STM) foi chamado a se manifestar sobre tal descriminalização ser extensível ao desacato previsto como crime militar, ocorre que, oportunamente, o STM se posicionou no sentido de que o desacato subsistia no âmbito militar, em virtude de ser uma afronta às forças armadas, que são estruturadas com base na hierarquia e disciplina. Passado isso, o STJ em decisão mais atual e superando o anterior posicionamento, voltou a considerar que desacato é crime.
Palavras chave: Desacato. Descriminalização. Não extensível ao previsto como crime militar.
Abstract: It is observed that the individual has fundamental rights, enshrined by the Greater Charter, one of them is that of freedom of expression. There are general norms and special rules, such as contempt, which is foreseen as a crime both in the Common Penal Code and in the Military Penal Code. In this regard, in terms of concrete cases, it appears that the Superior Court of Justice (STJ) has taken a decision considering that contempt should no longer be considered a crime, since it is incompatible with Article 13 of the Pact of San José, Costa Rica, which The Supreme Military Court (STM) has been called upon to express its opinion on whether such decriminalization can be extended to contempt of military offense, and that, in due course, the STM has positioned itself in the sense that the contempt remained in the military sphere, because it is an affront to the armed forces, which are structured on the basis of hierarchy and discipline. After this, the STJ in a more current decision and overcoming the previous position, again considered that contempt is a crime.
Keywords: Desacato. Decriminalization. Not extendable to that predicted as a military crime.
Sumário: Introdução – 1. Da liberdade de expressão e seus limites – 2. Dos princípios básicos que regem o direito penal militar – 3. Da decisão proferida pelo STJ, considerando o crime de desacato inválido – 4. Paralelamente, o desacato subsistiu como crime militar, segundo o STM – 5. Nova decisão do STJ que supera a anterior: desacato continua sendo crime – Conclusão – Referências.
Introdução
A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas tal preceito deve levar em consideração um tratamento respeitoso, para tanto, demanda a invocação de proteção a bens jurídicos alheios.
As relações sociais estão mais dinâmicas, com isso, surgem conflitos de diversas formas, o que impõe a atualização da legislação e a descriminalização de algumas condutas, que passam a ser socialmente aceitas, o que é analisado pelo princípio da adequação social.
Ademais, a comunicação se tornou ampla e globalizada, o que, inevitavelmente influencia na mudança de culturas, sendo necessário conscientizar as pessoas acerca da necessidade de, desde cedo, conversar de forma sensata e tentar resolver seus conflitos com liberdade de se expressar, contudo, com respeito.
Ocorre que, o que se tem visto é um individualismo exacerbado, pessoas se sentindo donas da razão e que não querem ser contrariadas. Neste sentido, possível ressaltar que atualmente o hedonismo impera, vê-se que a busca pelo prazer está sendo um propósito maior na vida humana, de modo que, há uma crise de valores, que torna as pessoas cada vez mais egoístas e agindo como se tudo fosse descartável, inclusive as pessoas.
Eis que, o Estado tem dificuldades de coibir os excessos, em que pese o direito comum indicar que certas condutas não devem mais ser consideradas criminosas, em certos casos o direito penal militar não terá a mesma conclusão.
À despeito do desacato, vê se que ele foi tido, por meio de decisão emblemática do STJ, como inaplicável no direito penal comum, porém, em termos de estar configurado também como crime militar, a decisão não foi extensiva a tal ramo do direito, haja vista que o STM ressaltou que ele seria uma afronta não apenas aos militares, mas sim as forças armadas como um todo.
Aspecto em que, vale observar, a Constituição permite que as instituições militares sejam mais rigorosas, elas estão cobertas pelas premissas da hierarquia e disciplina.
Este trabalho busca realizar um comparativo, com observância das decisões destes tribunais superiores, exatamente para demostrar que pela especificidade da área militar é possível maior rigor.
1 – Da liberdade de expressão e seus limites
A Constituição Federal de 1988 positivou a liberdade de expressão como direito fundamental, previsão contida no artigo 5º, inciso IV, sendo uma garantia que o indivíduo possui para se manifestar livremente, exercer sua autonomia, em consonância à própria dignidade da pessoa humana.
Os direitos fundamentais são aqueles que o Estado tem obrigação de assegurar, contudo, há obstáculos de serem assegurados plenamente, a exemplo do conflito entre direito fundamentais, assim, necessário se faz uma ponderação de interesses, a ser observada no caso concreto.
A dignidade da pessoa humana é um valor social, que corresponde à ideia de proteção e justiça. Quando se menciona tal preceito, recorda-se que um dos primeiros direitos pleiteados foi o da liberdade.
Ter liberdade é fundamental, para poder ir e vir, se autodeterminar, realizar seus objetivos, manifestar desejos e opiniões, enfim, a liberdade de expressão é um desdobramento disso.
Cumpre, contudo, vislumbrar a necessidade de impor limites ao exercício da liberdade, que não poderá ser exercida de forma ilimitada. Assim, a liberdade de expressão não autoriza que se ofenda o outro, podendo resultar em responsabilização pelos excessos, como crimes, de calúnia, difamação e injúria.
De igual modo, quando os excessos na liberdade de expressão levam a ofensa ao servidor público no exercício de suas funções ou em razão delas, poderá o indivíduo responder pelo crime de desacato.
Em uma perspectiva moral e ética, percebe-se que a busca pelo prazer tem sido um propósito maior do ser humano, o que se identifica como hedonismo. Com isso, o individualismo, o egoísmo, a coisificação das pessoas, numa cultura do descartável, demonstra que há uma crise de valores.
Nesse ínterim, os contornos da liberdade de expressão acabam esbarrando no discurso do ódio, que se estende por uma manifestação do pensamento que humilha e inferioriza outros indivíduos.
Por consequência, o discurso do ódio não pode ser tolerado, na medida em que inviabiliza o caráter comunicativo, desrespeitando direitos alheios, comprometendo o Estado Democrático de Direito.
Cabe citar uma vedação ao discurso do ódio, expressa na Lei 7.716/1989, que em seu artigo 20, menciona que praticar, induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, é crime.
Assim, a manifestação do pensamento de forma ofensiva não pode ser aceita. De modo que, ofender funcionário público no exercício de suas funções ou em razão delas é crime tipificado no artigo 331 do Código Penal. Ao passo que, quando essa ofensa é dirigida ao militar, o crime ganha uma roupagem específica, conforme artigo 299 do Código Penal Militar.
2 – Dos princípios básicos que regem o Direito Penal Militar
Pertinente mencionar que o princípio da especialidade indica que entre uma norma geral e uma norma especial, irá prevalecer a norma especial. Ela será especial quando contiver elementos da norma geral, acrescida de alguns detalhes. Oportunamente, observa-se a norma geral do desacato, no Código Penal e a norma especial contida no Código Penal Militar:
Código Penal
Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.
(Brasil, 1940).
Código Penal Militar
Art. 299. Desacatar militar no exercício da função militar ou em razão dela:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui outro crime.
Art. 300. Desacatar assemelhado ou funcionário civil no exercício de função ou em razão dela, em lugar sujeito à administração militar:
Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui outro crime.
(BRASIL, 1969).
Posto isso, a Constituição Federal de 1988 se preocupou em conferir um destaque aos princípios da hierarquia e disciplina, inclusive, mantém o Ministério Público da Militar, como fiscal dos bens e valores tutelados pelo âmbito da justiça militar.
A Carta Maior frisa que as instituições militares estão organizadas com base na hierarquia e disciplina, sendo tal aspecto mencionado no caput do artigo 142, in verbis:
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988).
Até porque, as forças armadas protegem a soberania do Estado Democrático de Direito, assim, por mais que a dignidade da pessoa humana e valores como da livre manifestação do pensamento sejam essenciais, justifica-se um sistema rígido e um direito penal diferenciado, que venha a tipificar condutas que afrontem os bens jurídicos amparados pela tutela da justiça militar.
Oportunamente, cumpre salientar que a justiça militar é o meio pelo qual o Estado aplica o direito penal militar, que é regido pelos princípios base, que são da hierarquia e da disciplina, além de utilizar também outros, que regem o direito penal comum, tais como da legalidade, do devido processo legal, da taxatividade, ampla defesa e contraditório, da presunção de não culpabilidade, entre outros.
3- Da decisão proferida pelo STJ, considerando o crime de desacato inválido
No Brasil, percebe-se que há uma frequente mudança de entendimentos, a doutrina e a jurisprudência muitas vezes são divergentes, entretanto, a justiça militar é um ramo que se destina a preservar a hierarquia e disciplina no âmbito das forças armadas, assim, nem tudo que for atualizado será extensível ao âmbito militar.
A doutrina muito já cogitou sobre a pertinência da abolitio criminis do desacato, nessa vereda, o judiciário proferiu decisão bastante significativa, emanada do STJ por meio de sua Quinta Turma, em 15 de dezembro de 2016, pertinente ao REsp 1640.084-SP, considerando que desacato não poderia ser mantido como crime, por exaltar a preponderância do Estado sobre o indivíduo, sendo contrário ao humanismo. Segundo relator, o Ministro Ribeiro Dantas, em seu voto:
Dessarte, ao contrário do que entenderam as instâncias ordinárias, a ausência de lei veiculadora de abolitio criminis não inibe a atuação do Poder Judiciário na verificação de possível inconformidade do art. 331 do CP, que prevê a figura típica do desacato, com o art. 13 do Pacto de São José da Costa Rica, que estipula mecanismos de proteção à liberdade de pensamento e de expressão.
Em face de tais considerações, passo ao exame dos dispositivos em confronto, cujo teor é o seguinte:
Convenção Americana de Direitos Humanos
“Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão
(STJ, 2016).
Citar dignidade da pessoa humana, no que tange à liberdade de expressão não é nada inédito, contudo, muito pertinente e até inevitável, considerando que buscar garantir que as pessoas possam expor suas ideias mostra-se uma das formas de preservar o respeito aos indivíduos.
Nessa vereda, viu-se que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, sustentou que a criminalização do desacato estava na contra mão do humanismo, eis então, a ementa do REsp 1640.084-SP, em destaque:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO, DESACATO E RESISTÊNCIA. APELAÇÃO CRIMINAL. EFEITO DEVOLUTIVO AMPLO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. ROUBO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. DESCLASSIFICAÇÃO DO CRIME DE ROUBO PARA O DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. TEMA NÃO PREQUESTIONADO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. DESACATO. INCOMPATIBILIDADE DO TIPO PENAL COM A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE.
Desse modo, afastou-se a condenação pelo crime de desacato, ao argumento de que ele é incompatível com o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), ressaltando que, não houve revogação do tipo penal, mas ele foi tido como inválido de aplicação.
4- Paralelamente, o desacato subsistiu como crime militar, segundo o STM
Relembrando que, a decisão do STJ no sentido de descriminalizar o desacato ocorreu em 15 de dezembro de 2016. Em seguida, ficou bastante noticiado de que o Superior Tribunal Militar havia se posicionado mantendo o desacato como crime militar.
Trata-se de um réu que fora condenado por desacato em sentença proferida pelo Conselho Permanente de Justiça da 2ª Auditoria da 11ª CJM, por ter respondido a um sargento do Batalhão da Guarda presidencial de Brasília com a frase “não estou falando com você, palhaço”, manejou um com recurso perante o Superior Tribunal Militar, pleiteando absolvição.
Em sua defesa, o réu mencionou que não agia com dolo de menosprezar a função militar, o Plenário do STM ao analisar a apelação nº 3-46.2016.7.11.0211/DF interposta, concluiu que houve dolo, que o apelante possuía capacidade de entender o caráter ilícito do fato, motivo pelo qual, a sentença foi mantida por seus próprios fundamentos. Tal acórdão foi de relatoria do Ministro Artur Vidigal de Oliveira, proferido em 02 de fevereiro de 2017, conforme ementa a seguir:
EMENTA: APELAÇÃO. MPM. DEFESA. DESACATO. PRELIMINAR DE NULIDADE DO JULGAMENTO. DOLO CARACTERIZADO.
Preliminar de nulidade do julgamento rejeitada. Decisão unânime.
Recursos conhecidos e não providos. Decisão unânime.
(STM, 2017).
Pela numeração única do processo, sob o nº 0000003-46.2016.7.11.0211, torna-se possível verificar o teor da sentença, bem como do acórdão proferido pelo STM, inclusive, verifica-se que, após isso, foi manejado Recurso Extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal, ou seja, o réu ainda não se conformou com a condenação.
Desse modo, enquanto o crime de desacato foi considerado inválido perante o direito penal comum, subsistiu como crime militar, eis que, a decisão do STJ não foi extensível a tal ramo, em virtude dos postulados da hierarquia e disciplina.
Ressalta-se que, a disciplina militar é um bem jurídico que pertence à coletividade, de interesse social, que se dedica a manter a manter a paz interna no país e a soberania nacional.
Como já bastante frisado, existe um direito militar que prescinde de normatização diferenciada e que permite mais rigor, pois tem como base os princípios da hierarquia e disciplina, haja vista que, as forças armadas são instituições que visam resguardar a soberania do Estado democrático de Direito.
Ademais, essa hierarquia e disciplina contribuem para que seja mantido o propósito pelo qual as forças armadas foram criadas, sendo um deles o de manter a ordem, além de trazer segurança, tanto para o Estado, quanto para a sociedade.
Ademais, enquanto o crime de desacato é mantido para proteger às forças armadas, o indivíduo também possui proteção, em caso de arbítrios cometidos pelos membros das forças armadas, por exemplo, se um militar realiza ato com excesso injustificável em sua atividade militar ele poderá responder por isso, a exemplo do abuso de autoridade.
No que se refere ao caso em comento, vislumbra-se que justiça militar da União está autorizada a julgar civis, de forma excepcional, mas amparada em princípios que regem o Estado Democrático de Direito, assim, em termos de desacato, em que um civil se volta contra um militar de serviço ou em razão da atividade militar, ela poderá ser chamada a se pronunciar, com base nos postulados que mantém a ordem das instituições militares.
5 – Nova decisão do STJ que supera a anterior: desacato continua sendo crime
Em posição mais recente, o STJ proferiu nova decisão, que superou a anterior, que havia afastado a tipicidade do desacato, novamente voltando a considerar que desacato é crime.
Desta vez, a terceira seção do STJ, decidiu que desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela, continua crime, conforme previsto no artigo 331 do Código Penal.
Importante esclarecer que, para pacificar o assunto o colegiado puxou um recurso para análise, dessa vez trata-se do HC 379.269-MS, discutido pela terceira seção.
A título de observação, cumpre relembrar que o STJ possui três seções, cada uma relativa a um tema, primeira seção para direito público, segunda seção para direito privado e terceira para direito penal.
Cada seção é composta por duas turmas (com reunião de cinco ministros em cada turma), de modo que, no tocante ao direito penal, a terceira seção é a junção da quinta e sexta turma.
Frisou-se que, o direito à liberdade de expressão não é absoluto, portanto, pode haver restrições e no caso do desacato faz-se mister, essencial e proporcional resguardar a ordem pública. Nesse sentido, é a ementa da decisão proferida no HC 379.269-MS:
HABEAS CORPUS. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO E DOS ARTS. 330 E 331 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE DESACATO NO ORDENAMENTO JURÍDICO. DIREITOS HUMANOS. PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (PSJCR). DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO QUE NÃO SE REVELA ABSOLUTO. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. INEXISTÊNCIA DE DECISÃO PROFERIDA PELA CORTE (IDH). ATOS EXPEDIDOS PELA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). AUSÊNCIA DE FORÇA VINCULANTE. TESTE TRIPARTITE. VETORES DE HERMENÊUTICA DOS DIREITOS TUTELADOS NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO. PREENCHIMENTO DAS CONDIÇÕES ANTEVISTAS NO ART. 13.2. DO PSJCR. SOBERANIA DO ESTADO. TEORIA DA MARGEM DE APRECIAÇÃO NACIONAL (MARGIN OF APPRECIATION). INCOLUMIDADE DO CRIME DE DESACATO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO, NOS TERMOS EM QUE ENTALHADO NO ART. 331 DO CÓDIGO PENAL. INAPLICABILIDADE, IN CASU, DO PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO TÃO LOGO QUANDO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. WRIT NÃO CONHECIDO.
(STJ, 2017).
Pois bem, o desacato foi retratado como uma especial forma de injúria, consubstanciado como uma ofensa à honra dos órgãos que integram a Administração Pública. Portanto, o desacato não pode ser tido como inválido de aplicação, vez que, se perfaz por condutas que violam o prestígio das instituições estatais.
Conclusão
Todo cidadão tem o direito à liberdade de expressão e tal garantia também representa um direito humano e um elemento imprescindível para o exercício da cidadania, eis que, se torna necessário a invocação de mecanismos capazes de efetivar seus direitos.
Como padrão de referencia, a Constituição Federal de 1988 positivou a liberdade de expressão como direito fundamental, previsão contida no artigo 5º, inciso IV, sendo uma garantia que o indivíduo possui para se manifestar livremente, exercer sua autonomia, em consonância à própria dignidade da pessoa humana.
Cumpre, contudo, vislumbrar a necessidade de impor limites ao exercício da liberdade, que não poderá ser exercida de forma ilimitada. Assim, a liberdade de expressão não autoriza que se ofendam bens jurídicos alheios.
O desacato mostra-se uma ofensa às instituições estatais, entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão polêmica, pertinente ao REsp 1640.084-SP, considerou que desacato não poderia ser mantido como crime, por exaltar a preponderância do Estado sobre o indivíduo, sendo contrário ao humanismo.
Seguidamente, houve dúvida, quanto a tal decisão ser ou não extensível ao direito penal militar, de modo que, o Superior Tribunal Militar manteve o crime de desacato como um injusto passível de penalização em sua seara. Caso que foi objeto de análise, relativo a apelação nº 3-46.2016.7.11.0211/DF, em que se manteve a condenação do réu por ofender um militar chamando-o de palhaço.
Nisso, vislumbra-se que, as forças armadas são instituições regidas pela hierarquia e disciplina, elas protegem a soberania do Estado Democrático de Direito, assim, por mais que a dignidade da pessoa humana e valores como da livre manifestação do pensamento sejam essenciais, justifica-se um sistema rígido e um direito penal diferenciado, que venha a tipificar condutas que afrontem os bens jurídicos amparados pela tutela da justiça militar.
Desse modo, enquanto o crime de desacato foi considerado inválido perante o direito penal comum, subsistiu como crime militar, eis que, a decisão do STJ não foi extensível a tal ramo, em virtude dos postulados da hierarquia e disciplina.
Importante esclarecer que, para pacificar o assunto o colegiado puxou um recurso para análise, qual seja, o HC 379.269-MS, discutido pela terceira seção, que proferiu nova decisão, superando a anterior. De sorte que, o crime de desacato voltou a ser considerado crime no direito penal comum, assim, não há, por hora, que se falar em sua afastabilidade.
Referências
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988. Disponível em < http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 2 mai. 2019.
BRASIL, Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, 1960. Disponível em < http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm >. Acesso em: 4 mai. 2019.
BRASIL, Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 1940. Disponível em < http:// http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em: 4 mai. 2019.
BRASIL, Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Brasília, 1989. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm>. Acesso em: 5 jun. 2019.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 379.269/MS. Impetrante: Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Paciente: Magno Leandro Santos Angelico. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Brasília, 24 de maio de 2017. Disponível em < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/474450253/habeas-corpus-hc-379269-ms-2016-0303542-3/inteiro-teor-474450262>. Acesso em: 9 mai. 2019.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1640.084/SP. Recorrente: Alex Carlos Gomes. Recorrido Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Brasília, 15 de dezembro de 2016. Disponível em <http://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/RECURSO%20ESPECIAL%20N%C2%BA%201640084.pdf>. Acesso em: 9 mai. 2019.
BRASIL, Superior Tribunal Militar. Apelação nº 3-46.2016.7.11.0211/DF. Apelantes: Ministério Público Militar e Admys Francisco de Sousa Gomes. Apelado: Ministério Público Militar. Relator: Ministro Artur Vidigal de Oliveira. Brasília, 2 de fevereiro de 2017. Disponível em <https://www2.stm.jus.br/pesquisa/acordao/2016/50/10029123/10029123.pdf>. Acesso em: 11 mai. 2019.
Revista do Ministério Público Militar. – Ano 1, n.1 (1974) – ano 39, n. 24 (nov. 2014). – Brasília: Procuradoria-Geral de Justiça Militar, 1974. Disponível em < http://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2015/01/revista-24.pdf>. Acesso em: 29 jun. 2019.
[1] Graduada em Direito pelas Faculdades Integradas Iesgo. Especialista em Direito Penal Militar pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci, em Direito Penal e Processual Penal pela AVM Faculdade Integrada, em Ensino Interdisciplinar sobre Infância e Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás e em Direito Ambiental pela Faculdade Alfa América. Advogada. E-mail: gracielegms@hotmail.com
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