Cleiton M. I. dos Santos[1]
Resumo: O presente artigo busca elucidar alguns aspectos valorativos do conceito da dignidade da pessoa humana numa perspectiva jurídica. O estudo faz-se necessário pela abrangência conceitua no plano constitucional e no papel precípuo de norte hermenêutico que o valor possui. Busca-se esclarecer os meios pelos quais a dignidade humana se mostra no estudo jurídico, ora como valor normativo, ora como princípio fundamental. Cumpre ressaltar a condição constitucional positivada que a dignidade ocupa como um dos fundamentos da República. No entanto, seu valor não exaure apenas de modo taxativo, seu valor irradia normatividade para toda fonte legislativa, seja infraconstitucional, seja constitucional.
Palavra-chave: Filosofia do Direito. Dignidade humana. Direito Constitucional.
Abstract: The present article tries to elucidate some evaluative aspects of the concept of the dignity of the human person in a legal perspective. The study becomes necessary by the conceptual scope at the constitutional level and the main role of hermeneutic north that the value has. It seeks to explain the the means by which the human dignity is shown in the legal study, sometimes as a normative value, sometimes as a fundamental principle. It’s worth to highlight the positive constitutional condition that the dignity occupies as one of the fundamentals of the Repubic. However, its value does not deplete only as a taxative mode, it radiates normativity for the entire legislative source, whether infraconstitutional or constitutional.
Keywords: Philosophy of law; Human dignity; Constitutional Right.
Sumário: Introdução; 1. A positivação do princípio da dignidade humana – Direito comparado; 2. Dignidade da pessoa humana – Fundamento da República e do Estado democrático de direito; Considerações finais; Referências.
Introdução
O fundamento de legitimidade legislativa deve permanecer entre os tópicos de necessária discussão na filosofia do Direito. A base jurídica brasileira, nascente da Constituição de 1988, elenca cinco fundamentos para a República, são eles: Soberania; Cidadania; Dignidade da pessoa humana; Valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Pluralismo político.
Dentre os fundamentos mencionados, a dignidade da pessoa humana assume um papel de destaque na hermenêutica constitucional. Além do valor de fundamento republicano, agrega-se à dignidade humano o status de princípio e valor fonte de todo sistema Constitucional.
Analisar cada aspecto do valor humano num ambiente jurídico político se faz necessário, visto que sua presença não é exclusiva apenas ao Estado brasileiro. Muito além da Magna Carta do Brasil, a dignidade humana assume destaque em outros textos constitucionais, entre eles: Alemanha, Israel e Portugal.
O papel do princípio humano no texto republicano é o de emanar fonte moral legislativa, isto é, ser o valor irradiador para todas leis no espectro jurídico, seja infraconstitucional, quanto constitucional. Além de ser fundamento legislativo, a dignidade humana agrega a qualidade de ser elemento hermenêutico jurídico, ou seja, deve ser utilizado como base da interpretação jurídica.
Assim, far-se-á ademais uma análise dos inúmeros aspectos que gravitam em torno do conceito de dignidade humana. Seu valor como norma, sua utilidade principiológica e a inegável função de valor fonte do sistema constitucional.
A positivação do princípio da dignidade da pessoa humana é relativamente recente. Apenas ao longo do século XX que o valor humano passou a ser reconhecido nas Constituições Republicanas (SARLET, 2001, p. 63).
A primeira referência constitucional à dignidade da pessoa humana encontra-se na Constituição do México, de 1917 (ALVES, 2001, p. 129). Além do texto magno mexicano, o valor humano foi apresentado na Constituição alemã da República de Weimar, de 1919 (BARROSO, 2014, p. 19-20).
Somente após o trágico episódio da Segunda Guerra Mundial é que a dignidade humana foi incorporada a importantes documentos internacionais. “A dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente nas Constituições, notadamente após ter sido consagrada pela Declaração Universal da ONU de 1948” (SARLET, 2001, p. 63).
O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio constitucional deve-se à Constituição da Alemanha, de 23 de maio de 1949 (MARTINS, 2003, p. 34). A Magna Carta alemã expressa em seu artigo 1º, nº1, que: “A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público” (CARVELLI, 2011, p. 18). A partir de seu expresso conhecimento pela Lei alemã, o valor humano como princípio fundamental se espalhou por diversas Constituições do mundo (MARTINS, 2003, p. 31). A inserção do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico representa “um valor supremo, um bem absoluto, à luz do qual cada um dos outros dispositivos deve ser interpretado” (BARROSO, 2014, p. 21).
Alguns países incorporam a dignidade humana em seu Preâmbulo, como exemplo Irlanda, Índia e Canadá. Em outras nações, como Estados Unidos e França, não há referência textual do princípio, o que não impede a Suprema Corte e o Conselho Constitucional de invocarem tal valor nas decisões que proferem (BARROSO, 2014, p. 20-21).
Em Israel, a dignidade humana se tornou parte do texto magno em 1992. Ao longo dos anos, a norma tem sido aceita como um valor supremo, embora não absoluto. A Lei protege a dignidade do homem como um membro de sua comunidade. Algumas decisões da Suprema Corte invocam a dignidade da pessoa humana em suas fundamentações, como o direito da família poder realizar o funeral para um parente falecido (BARROSO, 2014, p. 27).
É inegável a importância do constitucionalismo português para o ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição de Portugal, promulgada em 25 de abril de 1976, estabelece em seu artigo 1º a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. O constituinte ao se referir à dignidade humana buscou elevar tal princípio como um valor que transcende a vontade política do Estado. A pessoa seria o fundamento e o fim da sociedade e do Estado (MARTINS, 2003, p. 38).
Na França, a dignidade humana não está expressa no texto constitucional de 1958. “Foi apenas em 1994 que o Conselho Constitucional, combinando diferentes passagens do Preâmbulo da Constituição de 1946, proclamou que a dignidade era um princípio com status constitucional” (BARROSO, 2014, p. 23). A diferença entre outros países, reside no fato de o princípio ser uma criação jurisprudencial, já que não consta no ordenamento jurídico francês (ROUSSEAU, 1998, p. 62-63).
A primeira aparição do princípio da dignidade humana na jurisprudência francesa foi em uma decisão que reconheceu a constitucionalidade de duas leis, que regiam a de órgãos humanos e fertilização in vitro (FRANÇA, Decisão nº 94-323/344). Desde então, o valor foi invocado em diferentes contextos.
Várias foram as Constituições a adotar o princípio da dignidade humana em seu ordenamento jurídico. Porém, a Constituição brasileira de 1988 avançou significativamente na normatividade do princípio humano, transformando-o em valor supremo da ordem jurídica, declarando-o em seu art. 1º, inciso III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (MARTINS, 2003, p. 50). Além de elencá-lo como fundamento da República, os constituintes de 1988 dedicaram algumas passagens da Constituição para abordar o valor humano, seja quando estabeleceu que a ordem econômica tem por finalidade assegurar a todos uma existência digna (artigo 170, caput), seja quando, na esfera da ordem social, fundou o planejamento familiar nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (artigo 226, § 6º), além de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade (artigo 227, caput).
Antes de avaliar o papel da dignidade humana como fundamento democrático, é pertinente ressaltar a dupla dimensão do valor humano. Desse modo, há uma dimensão interna, expressão do valor intrínseco do indivíduo; outra externa, representação dos direitos, aspirações e responsabilidades. A primeira dimensão é por si só inviolável, por outro lado, a segunda pode sofrer ofensas e violações (BARROSO, 2014, p. 62-63). Os dois olhares frente ao conceito do valor humano ajudam a elucidar algumas questões jurídicas e éticas, visto que, apenas a dimensão externa pode vir a sofrer restrições.
Ao analisar o conceito referente à dignidade humana, deve-se voltar a atenção em qual posição o princípio se encontra no ordenamento jurídico. Revisando o histórico do pensamento ocidental a respeito da dignus, é necessário deixar claro que a dignidade da pessoa humana assume no primeiro momento um papel de valor[2] (dimensão interna), conceito vinculado à moralidade, ao bem, à conduta correta e à vida boa (BARROSO, 2014, p. 62); noutro momento assume a função de objetivo máximo (dimensão externa) a ser alcançado pelo Estado e pela sociedade (BARROS, 1996, p. 88-89).
Miguel Reale arroga um conceito de valor que procura elucidar o local da dignidade humana como valor constitucional, segundo o autor: “os valores não possuem uma existência em si, ontológica, mas se manifestam nas coisas valiosas. Trata-se de algo que se revela na experiência humana, através da História. Os valores não são uma realidade ideal que o homem contempla como se fosse um modelo definitivo, ou que se possa realizar de maneira indireta, como quem faz uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo que o homem realiza em sua própria experiência e que vai assumindo expressões diversas e exemplares, através do tempo” (2002, p. 204).
A positivação do princípio humanístico na Constituição de 1988 traz ao plano jurídico brasileiro “um vetor que agrega em torno de si a unanimidade dos direitos e garantias fundamentais” (BULOS, 2014, p. 502). Como afirma Martins: “o constituinte poderia sequer ter mencionado o princípio, o que não afastaria, contudo, a circunstância de que sempre se poderia reconhecer a sua existência implícita a partir do catálogo de direitos reconhecidos no texto” (2003, p. 51).
Barroso discorre que a positivação do princípio humano necessita de uma perspectiva laica, neutra e universalista (2014, p. 72-74). A laicidade dispõe que a Igreja e o Estado devem ser separados, os dogmas religiosos são deixados de lado na esfera pública sem serem traduzidos em argumentos políticos. A neutralidade indica que o valor humano possa ser aceito por conservadores, liberais, assim como por pessoas que professam diferentes concepções razoáveis de bem e vida boa. Por fim, o universalismo implica no respeito e apreço pela diversidade étnica, religiosa e cultural.
É necessário ressaltar a importância do valor da dignus na concretização dos Direitos Humanos. Em seu Preâmbulo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 já havia colocado o princípio como fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (CASADO FILHO, 2012, p. 68). A união perfeita desses princípios com o valor humano confere aos direitos fundamentais inelegibilidade, coesão e unidade, tornando possível, nessa conexão interpretativa, um sentido e um alcance (MARTINS, 2003, p. 68). Todavia, cumpre relembrar que o princípio da dignidade da pessoa humana também serve como justificativa para delimitar restrições a direitos fundamentais, atuando como elemento limitador destes (SARLET, 2001, p. 119-120).
Dessa forma, pode-se mencionar os dizeres de Napoleão Casado Filho na intenção de reafirmar a importância da dignidade da pessoa humana na concretização dos Direitos Humanos: Direitos Humanos são um conjunto de direitos, positivados ou não, cuja finalidade é assegurar o respeito à dignidade da pessoa humana, por meio da limitação do arbítrio estatal e do estabelecimento da igualdade nos pontos de partida dos indivíduos, em um dado momento histórico (2012, p. 20).
É importante ressaltar que embora os direitos fundamentais – entre eles a dignidade da pessoa humana – sejam, originalmente, direitos humanos, a diferenciação terminológica se justifica em função de que estes são entendidos como pautas ético-políticas, enquanto aqueles correspondem a manifestação positivada em determinado ordenamento jurídico (MARTINS, 2003, p. 65). O constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guiando-a, pela primeira vez como princípio fundamental da República (SARLET, 2001, p. 68). No entanto, mesmo estando em patamares diferentes uma violação de um direito fundamental estará sempre vinculada com uma ofensa à dignidade da pessoa humana, visto que a mesma assume simultaneamente a função de elemento e medida dos direitos fundamentais (SARLET, 2001, p. 103-104).
Manoel Gonçalves Ferreira Filho esboça a importância dos princípios para formação de uma Constituição, estabelecendo a oposição entre constituições dogmáticas e históricas (2012, p. 321). Diante disso, ao verificar as normas constitucionais pode-se dividi-las em ao menos duas grandes partes: a orgânica e a dogmática. Segundo Gilmar Mendes, na parte orgânica o constituinte busca normatizar aspectos essenciais à estrutura do Estado. Em contrapartida na parte dogmática o constituinte proclama direitos fundamentais, norteando a ação do Estado (2012, p. 99). Alinhado à mesma temática Bobbio expõe uma dupla análise acerca da democracia, dividindo-a em um ponto de vista formal, na qual a preocupação central é a forma de governo e outro ponto de vista substancial que diz respeito ao conteúdo desta forma de governo, buscando identificar se o poder estatal está ou não funcionalizado à preservação e à promoção dos valores acolhidos pela Constituição (2000, p. 157).
Conhecidos os papéis da Constituição em prol do Estado, é necessário recair o olhar para uma de suas inúmeras características no constitucionalismo contemporâneo[3], como ordem objetiva de valores. Isto significa que a Constituição é a concretização dos valores de uma comunidade (MARTINS, 2003, p. 54). Gisele Cittadino traduz o papel da Constituição como uma “ordem concreta de valores partilhada pela comunidade que, através dos mais diversos mecanismos de participação político-jurídica, deve buscar realiza-la” (2000, p. 227).
A ideia de Constituição como ordem objetiva de valores se afasta, tanto do objetivismo axiológico, onde os objetos possuem seus valores considerados em si mesmos, quanto do subjetivismo axiológico onde os objetos possuem seus valores considerados no sujeito (MARTINS, 2003, p. 54-55). Portanto, a objetividade dos valores constitucionais assenta no fato de que são algo realizado pelo homem em sua própria experiência, num processo em que todos os membros da comunidade participam, conscientes ou inconscientes de sua significação universal.
Ao conceituar o axioma principiológico é recomendado realizar uma distinção entre princípio e regras. “A palavra princípio tem origem no latim principium, possui o significado de início, começo, base, ponto de partida. Os princípios sempre estiveram relacionados às verdades fundamentais e orientações de caráter geral” (LIMA JUNIOR, 2012, p. 316). Sob a óptica de Canotilho, princípios são “normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas” (2003, p. 1255).
Acrescenta-se a definição de Celso Antônio Bandeira de Melo ao rol de conceituações já formuladas: “princípio é por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tônica e lhe dá sentido harmônico” (MELLO, 1986, p. 230).
Das inúmeras conceituações acerca do termo é importante acrescentar a do filósofo do direito Ronald Myles Dworkin citado por Barroso, no qual preleciona que “princípios são normas que contêm exigências de justiça ou equidade ou alguma outra exigência de moralidade” (2014, p. 64-65).
Em um enfoque qualitativo, no ponto de vista material, os princípios constituem expressões de valores fundamentais do ordenamento jurídico, no qual seriam superiores às demais regras constitucionais. Martins disserta que os princípios são dotados de vagueza e generalidade. Destas características resulta a capacidade de serem aplicados a diferentes situações, acompanhando a evolução social sem provocar rupturas constitucionais (2003, p. 101).
O jurista Paulo Bonavides aprofunda no estudo dos princípios analisando a juridicidade atribuindo-os três fases distintas: a jusnaturalista[4], a positivista e a pós-positivista. Segundo o emérito professor em sua primeira fase, os princípios ainda abstratos e com normatividade basicamente nula ou duvidosa contrasta com o reconhecimento de uma dimensão ético-valorativa que inspira ideais de justiça. Na fase positivista[5] a teorização dos princípios entra nos Códigos como fonte normativa subsidiária ou uma válvula de segurança que garante o reinado absoluto da lei. Em sua última fase, a análise adentra no campo pós-positivista[6], onde as novas Constituições acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em um manual normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais (2011, p. 259-264).
Para preencher o arcabouço conceitual em volta do termo princípio, acrescenta-se o conhecimento de Lammêgo Bulos que explana várias noções correlatas à conceituação do assunto. Dentre os inúmeros conceitos, é preciso mencionar em primeiro lugar o princípio jurídico, que segundo o autor é o mandamento nuclear do sistema constitucional, pedra de toque do ordenamento jurídico podendo ser expresso e implícito. Em outro momento evidencia o princípio constitucional, um enunciado jurídico que serve de vetor de interpretação, quando examinado com uma visão de conjunto confere coerência geral ao sistema. Não se esgotando o assunto Bulos demonstra a norma-princípio, no qual reconhece a normatividade que os princípios possuem, propondo a construção de um Direito Constitucional principialista em que as normas e os princípios não sejam antagônicos (2014, p. 506-507).
Realizado um fundamental estudo acerca de um dos termos, o princípio, recomenda-se empreender o mesmo caminho na tentativa de elucidar o outro ponto dessa distinção, a regra. Ao iniciar essa conceituação é necessário utilizar as palavras do grande jurista português Canotilho, o qual disserta que regras “são normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer exceção” (2003, p. 1255). Em harmonia com o pensamento do jurista, Manoel Filho acrescenta às regras o status de normas jurídicas, cuja hipótese é restrita e cujo dispositivo é preciso (2012, p. 420).
Ao utilizar o princípio como base de comparação para uma melhor compreensão da regra, verifica-se que ambos não se confundem. “As regras veiculam mandados de definição, aplicando se mediante subsunção, sob a forma de tudo ou nada. Por isso, não comportam meio termo” (BULOS, 2014, p. 507). Nesses termos, cai por terra a máxima “toda regra tem sua exceção”, pois regras são válidas ou inválidas, ao contrário dos princípios que são mandados de otimização. Fica claro que há um limiar entre dois extremos, de um lado a generalidade máxima (princípios) e do outro a generalidade mínima (regras), de modo que, separando ambos, há uma zona cinzenta, onde cabe hesitações (FERREIRA FILHO, 2012, p. 420). Em um ponto de vista formal, enquanto os princípios são dotados de um alto grau de abstração, as regras possuem um menor grau abstrativo resultando em uma maior densidade normativa. Assim, vislumbra-se que a diferença entre ambos é, basicamente, de grau.
Essa diferenciação entre os termos fica mais clara quando se verifica a busca por uma forma de solução do chamado conflito de princípios e do conflito de regras. Martins exemplifica essas hipóteses de maneira a elucidar seu entendimento: “na colisão de princípios, um princípio cede, no caso concreto, ante o outro (relação de procedência condicionada). Entretanto, isto não significa que o princípio afastado seja considerado inválido ou que se introduza uma cláusula de exceção. Na prática, ele é apenas afastado, circunstancialmente, da aplicação no caso concreto (…). Já no conflito de regras, este só pode ser solucionado com a declaração de invalidade de uma regra ou com a introdução de uma cláusula de exceção. Na prática, em geral, a incidência de uma regra significa a exclusão das demais regras” (2003, p. 102-103).
Baseado nessas considerações a respeito das divergências conceituais dos termos empregados é notório a posição privilegiada que os princípios assumem, com grau de superioridade e hegemonia material no âmbito do sistema normativo.
Terminada a distinção entre princípios e regras, deve-se agora voltar o olhar no papel normativo do valor humano na Constituição brasileira de 1988. Em seu artigo 1º o constituinte revela o quadro dos princípios fundamentais da República, o qual segundo Bulos, são “diretrizes imprescindíveis à configuração do Estado, determinando-lhe o modo e a forma de ser” (2014, p. 506). Entre os vários princípios elencados o presente no inciso III comporta a dignidade da pessoa humana, positivado em lugar prestigiado em nossa Carta Magna. Nesse ponto, nossa Constituição reconheceu que “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal” (SARLET, 2001, p. 66).
Evidenciado o lugar de destaque do valor humano na Constituição de 1988, é recomendando o aprofundamento nas finalidades dos princípios fundamentais para o Estado. O entendimento dos princípios fundamentais se baseia naqueles que contêm as decisões políticas estruturais do Estado, constituindo, o núcleo imodificável do sistema (BARROSO, 2001, p. 153). Em um outro olhar acerca do conceito situa-se o de Farias, no qual considera os princípios como aqueles que expressam as decisões fundamentais quanto à estrutura do Estado e às ideias e valores. Tais princípios não podem ser alvo de reforma ou revisão sob pena de destruir a própria identidade constitucional (2000, p. 66-67).
Seguindo as conceituações encontra-se a de Canotilho e Vital Moreira, citados por José Afonso da Silva “princípios fundamentais visam essencialmente definir e caracterizar a coletividade política e o Estado e enumerar as principais opções político-constitucionais” (2010, p. 31). Tais dizeres encontram-se entrelaçados com os de Bulos, no qual disserta que os princípios: “refletem os valores abrigados pelo ordenamento jurídico, espelhando a ideologia do constituinte, os postulados básicos e os fins da sociedade. São qualificados de fundamentais, portanto constitui o alicerce, a base, o suporte, a pedra de toque do suntuoso edifício constitucional” (2014, p. 506).
Normatizados os valores objetivos da comunidade em um documento constitucional – entre eles a dignidade da pessoa humana – verifica-se os princípios fundamentais da Constituição. Cármen Lúcia Antunes Rocha, expõe uma boa amostra sobre a pretensão normativa dos valores na constituição: “os princípios constitucionais são os conteúdos intelectivos dos valores superiores adotados em dada sociedade política, materializados e formalizados juridicamente para produzir uma regulação política no Estado. Aqueles valores superiores encarnam-se nos princípios que formam a própria essência do sistema constitucional, dotando-o, assim, para cumprimento de suas funções, de normatividade jurídica. A sua opção ético-social antecede a sua caracterização normativo-jurídica. Quanto mais coerência guardar a principiologia constitucional com aquela opção, mais legítimo será o sistema jurídico e melhores condições de ter efetividade jurídica e social” (1994, p. 23).
Dentre suas inúmeras peculiaridades, os princípios fundamentais admitem que o Estado brasileiro se construa a partir da pessoa humana, e para servi-la. Reconhecendo que o fim último do Estado deve ser o de propiciar as condições materiais mínimas para que as pessoas tenham dignidade (MARTINS, 2003, p. 72). Além disso, possuem “força expansiva, agregando, em torno de si, direitos inalienáveis, básicos e imprescritíveis, como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, o pluralismo político etc” (BULOS, 2014, p. 506). Os valores constitucionais possuem uma tríplice dimensão: fundamentadora do conjunto de disposições e instituições constitucionais; orientadora da ordem jurídico-política para metas ou fins determinados e crítica, pois seu valor reside em sua idoneidade para servir de critério ou parâmetro de valoração para avaliar fatos ou condutas (MARTINS, 2003, p. 58). Dado tais características, os princípios constitucionais buscam: garantir a unidade da Constituição brasileira; orientar a ação do intérprete e preservar o Estado Democrático de Direito (BULOS, 2014, p. 506).
Ante as várias facetas dos princípios constitucionais, há a necessidade de visualizar sua aplicação direta no mundo jurídico. Existe a possibilidade de uma aplicação direto dos princípios apenas quando houver uma lacuna legislativa, ou seja, falta de regras a aplicar, por ser omissa a legislação (Lei de Introdução, art. 4º). Nessa situação, pode o juiz aplicar a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, e, em casos excepcionais, os princípios constitucionais (FERREIRA FILHO, 2012, p. 422).
A proteção à dignidade da pessoa humana é o fundamento de todo o ordenamento jurídico e também a finalidade última do Direito. Nos ensinamentos de Sarlet: “onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para a existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta, por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças (2001, p. 59).
Esboçados conceitos relativos aos princípios fundamentais, há a necessidade de estabelecer uma hierarquia entre os valores constitucionalmente reconhecidos. A ideia de valor fonte[7] deve conduzir a um valor do qual se extrai todos os demais valores.
Considerações finais
Fica evidente a multiplicidade de qualidades empregado num só conceito. Além disso, elucida a necessidade de uma leitura constitucional pautada no princípio base e fundamental do todo aparelho jurídico, ou seja, a dignidade humana.
A devida pesquisa delineia o princípio humano como valor fonte constitucional brasileiro, sendo assim, determina a necessária vinculação legislativa ao referente valor. Onde não houver respeito ao ente humano não há justiça, autonomia e igualdade. Deste modo, deve-se zelar pela permanência e a eficiência em sua utilização.
Cumpre ressaltar que a dignidade da pessoa humana não exaure todo seu potencial apenas no que foi exposto, muito além disso, seus aspectos valorativos são fonte irradiadora de toda conduta moral, jurídico e político.
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[1] Bacharel em Direito pela Universidade Norte do Paraná, Especialização em Direito Constitucional e Filosofia Política Jurídica. E-mail: cleiton327@hotmail.com.
[2] Valor é um conceito axiológico sendo denotado como “um juízo segundo o qual uma conduta real é tal como deve ser, de acordo com uma norma objetivamente válida” (KELSEN, 2009, p.19).
[3] O constitucionalismo contemporâneo é a fase de documentos constitucionais amplos, analíticos, extensos, a exemplo da Constituição brasileira de 1988 (BULOS, 2014, p. 76).
[4] A noção de jusnaturalismo ou direito natural se refere a uma ordem jurídica ideal, fundamentada no bom senso, na equidade e no pragmatismo (SALDANHA, 1998, p. 170).
[5] O positivismo ou juspositivismo é uma corrente filosófica que procura reduzir o direito apenas aos limites da sua manifestação e elaboração estatal (MASCARO, 2012, p. 311).
[6] O pós-positivismo é uma corrente filosófica que pretende aperfeiçoar o positivismo, sua base de pensamento está na relatividade do conhecimento humano. Segundo os pós-positivistas o saber humano é hipotético e suas afirmações estão asseguradas por uma série de garantias nas quais podem ser descartadas com o tempo (REALE, 2002, p. 18-22).
[7] A ideia de valor fonte é extraída do entendimento de Miguel Reale, o qual disserta que a dignidade humana é o valor fonte de todos os valores (REALE, 2002, p. 209).
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