Direito Administrativo

Direito à Alimentação: a efetivação dos Direitos Fundamentais sob a perspectiva da sustentabilidade

Right to Food: the effectiveness of Fundamental Rights from a sustainability perspective.

Lindomar Rodrigues de Oliveira

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar a possibilidade de inserção como critérios de escolhas da administração público os produtos advindos de um determinado tipo de produção que prime pela as técnicas produtivas que conduzem a uma sustentabilidade das cadeias produtivas. Nesse sentido, o presente analítico, apresenta algumas soluções e direções adotadas na União Europeia e Brasil sobre o tema. Também serão destacados o tratamento Constitucional e dogmático jurídico dado ao Direto à Alimentação no contexto europeu, português e brasileiro, fato importante para o desenvolvimento racional desse direito. Nesse sentido, são apresentadas algumas ferramentas e princípios necessárias ao desenvolvimento das políticas públicas para efetivação do Direito à Alimentação (art. 6º., CRFB). Estas possibilidades de implementação das políticas sob o prisma da sustentabilidade é uma necessidade do nosso Estado Social de Direito Democrático.

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Palavras chave: Contratação pública. Direito à Alimentação. Aspectos Constitucional e administrativos. Produção alimentícia. Sustentabilidade.

 

Abstract: The present study aims to analyze the possibility of insertion as products of choice of the public administration the goods coming from a certain type of production that excels at the productive techniques that lead to a sustainability of the productive chains. In this sense, the present analytic, presents some solutions and directions adopted in the European Union on the subject. The Constitutional and dogmatic legal treatment given to the Right to Food in the European, Portuguese and Brazilian context will also be highlighted, an important fact for the rational development of this right. In this sense, some tools and principles necessary for the development of public policies for the realization of the Right to Food (art. 6º., CRFB) are presented. These possibilities for implementing policies from the perspective of sustainability are a necessity of our Social State under Democratic Law.

Keywords: Public procurement. Right to food. Constitutional and Administrative aspects. Food production. Sustainability.

 

Sumário: Introdução. 1. Questões e problemas relacionados à alimentação aos direitos conexos a produção de bens alimentícios. 2. A contratação pública e os novos desafios transnacionais. 3. O que é o Comércio Justo, seus fundamentos e seus princípios norteadores. 3.1. 3.1. O comércio justo e a Agricultura Biológica: duas realidades diferentes?.  3.2. Avaliação da Conformidade e Certificação dos produtos Fair Trade. 3.3. 3.3. Organismos de avaliação de conformidade. 4. A alimentação como um direito fundamental. 4.1. panorama internacional do Direito à alimentação. 4.2. Panorama português. 4.3. Panorama brasileiro. 5. Desenvolvimento sustentável: vista sobre a lente de as várias dimensões abrangidas pela Diretiva/2014/24/EU. 6. Portugal e União Europeia. 7. O Sistema Brasileiro de Comércio Justo e Solidário (SCJS). 8. A economia social na adjudicação dos Contratos Públicos. Conclusão. Bibliografia.

 

Introdução

O presente estudo tem como objetivo analisar a possibilidade de inserção como critérios de escolhas da administração público os produtos advindos de um determinado tipo de produção que prime pela as técnicas produtivas que conduzem a uma sustentabilidade das cadeias produtivas. Nesse sentido, o presente analítico, apresenta algumas soluções e direções adotadas na União Europeia e Brasil sobre o tema. Também serão destacados o tratamento Constitucional e dogmático jurídico dado ao Direto à Alimentação no contexto europeu, português e brasileiro, fato importante para o desenvolvimento racional desse direito.

Para tanto, parte-se da ideia do valor fundamental da alimentação, como um Direito Fundamental de subsistência. Nesse sentido, devemos ter em destaque que, embora a alimentação seja um ato voluntário e consciente de cada pessoa, reveste-se de caráter social, e devido a sua importância, esse direito deve permear todas as políticas sociais para sua implementação. Quando se refere à “implementação” do direito à alimentação, deve-se remetê-lo para a seara dos direitos constitucionais, dando-lhe, assim, o tratamento do direito à alimentação como um direito fundamental.

Nesse campo, coloca-se a grande questão, sobre o direito à alimentação e a sustentabilidade em suas diversas dimensões, pois antes de se ter o alimento finalizado para o consumo, ele percorreu um grande caminho “do campo à nossa mesa”. Esse caminho é de suma importância, pois envolve uma participação enorme de pessoas, empresas, organismos de controle, dentre outros.

É justamente, nesses caminhos que se deve ter observância, para que o direito à alimentação em suas vertentes, “food safety e food security”, não sejam um fim em si mesmo, deixando de lado outras dimensões dos direitos fundamentais que são igualmente importantes, tais como o direito à saúde, direito ao trabalho digno, salários dignos, bem-estar da sociedade em que produzo alimento e na sociedade de destino dos mesmos.

Nessa toada, é que se descortina a sustentabilidade em suas diversas vertentes, pois, para que se tenha direito à alimentação é preciso observar que a produção dos alimentos, também se deve observar outras normas que satisfaçam critérios sociais, ambientais, sanitárias e bem-estar de todos os envolvidos. Sob esse ponto de vista, busca-se, apresentar um modo de produção que melhor se adéque às necessidades de um Estado que se preocupa com as diversas dimensões dos direitos fundamentais. Dessa forma, o Estado tem o dever de buscar políticas de aquisição de produtos que mais se ajustem à realidade atual, ou seja, mais sustentável do ponto de vista econômico, social, ambiental, dentre outros objetivos.

 

1.      Questões e problemas relacionados à alimentação aos direitos conexos a produção de bens alimentícios

A alimentação está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento do homem, portanto, encontra-se vincada à saúde e ao bem-estar das pessoas, sejam elas produtoras ou consumidoras dos bens alimentícios, por isso a preocupação com os meios de produção e com a qualidade dos alimentos que chegam ao mercado são fatores de suma importância para os Estados.

Não podemos olvidar que o Homem vivencia uma revolução que acabou por conduzir a sociedade a um ritmo de transformação cada vez mais acelerado e isso tem implicações diretas nas relações humanas, pois a globalização fez chegar ao Homem novas tecnologias de comunicação, novas formas de socialidade, novas técnicas de produção, de comercialização de bens e de concepção das relações entre Estado e cidadãos. Esse mundo em transformação ou “metamorfoseado” (BECK, 2017, p. 15) tem gerado um grande aumento na capacidade da produção de alimentos, não obstante, a capacidade de produção e de criação de riqueza, sendo que essa última não acompanha o desenvolvimento da capacidade produtiva, ou seja, a capacidade de criar riqueza [renda] é enorme, mas a de distribuí-la é mínima. Daí se coloca a questão de como gerar renda para os participantes no processo de produção, principalmente, para os trabalhadores e Estados menos favorecidos economicamente, essa distribuição de renda também se insere dentro das características do contrato como fundamento de prossecução de políticas públicas (RAIMUNDO, 2013, 395)

A preocupação com as questões relacionadas aos tipos de produção e da forma como os alimentos são produzidos, não é de somenos importância, se observar os dados fornecidos por instituições transnacionais ou mesmo nacionais, pode-se aferir que há uma grande desigualdade entre diversos países, e que, muitas das vezes, os mercados consumidores como a União Europeia, os Estados Unidos da Américas, a Índia, a Rússia, a China e o Brasil dentre outros, muitas das vezes, não respeitam os direitos das pessoas que trabalham na produção de alimentos, submetendo tais trabalhadores a uma jornada de trabalho exaustiva e humilhante, ou seja, a um trabalho escravo.[1] Sublinha-se que os Estados mais desenvolvidos [Europeus e América do Norte] participam desse processo, não diretamente, mas reflexamente quando compram produtos de produtores que não observam os direitos básicos estabelecidos por organismos internacionais como ONU e OIT.

O desrespeito aos direitos fundamentais do Homem se faz notar pelo fato de que ainda há muitas pessoas que não tem acesso à alimentação adequada, fatos que corroboram tal fenômeno se pode verificar em vários instrumentos internacionais, dentre eles destacamos os documentos emitidos pela FAO. De acordo com a FAO (2015), cerca de 795 milhões de pessoas estão a passar no mundo, e muitos dos países arrolados nesse relatório, são países produtores, portanto, como é possível um país produtor não assegurar uma boa alimentação aos seus trabalhadores?

Embora, tenha-se conseguido erradicar um número sensível de pessoas que viviam em situação de fome (216 milhões a menos em relação aos anos de 1990-1992), tomando em conta que o estudo analisou 129 países, sendo que 72 deles cumpriram com a meta traçada pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que seria diminuir pela metade a desnutrição até 2015. Ainda existe um número alarmante de pessoas que sofrem por falta de alimentação ou com um déficit no consumo de alimentos adequados às suas necessidades.

O declínio da fome é mais pronunciado nas regiões em desenvolvimento, apesar do crescimento populacional significativo. Nos últimos anos, os progressos foram dificultados pelo crescimento econômico mais lento e menos inclusivo, bem como pela instabilidade política em algumas regiões em desenvolvimento, como a África Central e a Ásia Ocidental, hoje caso semelhante passa a Venezuela, na América do Sul.

Embora a produção de alimentos no mundo tenha aumentado, ela foi de forma desigual no âmbito mundial, pois as produções que mais cresceram foram a dos países desenvolvidos, impulsionados pelo uso de técnicas mais avançadas e uso de maquinário, o que acabam por levar a um efeito negativo nas comunidades mais carentes, devido à aquisição de terras por grandes conglomerados agroindustriais que acabam por empurrar os pequenos produtores para a periferia do setor agrícola e acabam por engrossar o número de pessoas que correm riscos de fome.

Sob essa perspectiva, coloca-se a questão da necessidade do crescimento econômico democrático e inclusivo [sustentável] (SACHS, 2004, p. 25) como fonte de efetivar o direito fundamental à alimentação (NUNES, 2008, p. 52 e ss) e contribuir cada vez mais para diminuir a subnutrição[2] no mundo, tendo como fito a construção de políticas públicas de incremento às atividades produtivas que respeitem o Homem nas suas dimensões mais amplas possível, para tanto, é necessário proporcionar oportunidades para melhorar os meios de subsistência dos mais necessitados, pois a produção de alimentos e as compras governamentais não podem estar desvinculadas da realidade social e dos cidadãos.

Aumentar a produtividade e os rendimentos dos trabalhadores e dos pequenos agricultores familiares é fundamental para alavancar a luta na erradicação da fome e efetivação de direitos [fundamentais] básicos. Para colocar essas questões no centro do presente trabalho, busca-se situar uma das questões que vem tomando, cada dia mais, o debate no âmbito das contratações públicas (sejam no Brasil ou na Europa), o comércio justo / “Fazer Trade” /comércio solidário, como forma de efetivação dos direitos fundamentais, preocupação essa manifestada nos “Considerados” da Diretiva 24 de 2014, da União Europeia, a qual sublinha a importância da contração pública como ferramenta para o desenvolvimento estratégico da Europa, no sentido de alcançar o crescimento “inteligente, sustentável e inclusivo” (COMISSÃO EUROPEIA, 2014). Para efetivação dessa política desenvolvimentista e sustentável foram celebrados acordos, no âmbito da União Europeia, com intuito de utilizar os gastos públicos como vetor de inclusão e de promoção da sustentabilidade (OTERO, 2016, p. 260-265), do desenvolvimento inteligente e da qualidade de vida e dos cidadãos pertencentes a essa comunidade.

Já em relação ao Brasil, a efetivação dos direitos fundamentais, apesar da política de distribuição de renda estabelecido pelo programa bolsa família, Lei n. 10.836 (BRASIL, 2004), e outros mecanismos de fomentação à erradicação da fome como leis de valorização da economia familiar e do comércio justo e solidário. Essas [políticas] se esbatem com um problema endêmico no país, que é a corrupção e mau uso dos recursos públicos e da contratação como ferramenta útil ao desenvolvimento sustentável e inclusivo e inteligente. Nesse contexto, surge o problema de como efetivar os direitos fundamentais através da contratação pública?

Nesse contexto, é preciso repensar em modos de produção que sejam sustentáveis, e, sobretudo, que consigam abarcar o ser humano em suas múltiplas dimensões, pois não se pode ter em conta, quando o contrato com determinadas empresas, tão somente, o produto finalizado, mas também tomar em conta as várias dimensões dos direitos envolvidos na produção. É preciso verificar se são respeitados os direitos à alimentação saudável, educação, igualdade entre os gêneros, não discriminação do trabalho em razão da idade e da cor, dentre outros direitos das pessoas envolvidas no processo de produção.

 

2.      A contratação pública e os novos desafios transnacionais

Diante do quadro acima destacado, coloca-se a necessidade de buscar novos meios de efetivação dos direitos fundamentais e, a contratação pública (MELLO, 2010, P. 614 e ss.; RAIMUNDO, 2013, P. 38 e ss.) tem uma função imprescindível como agente de promoção desses direitos. Nesse sentido, a desenvolvimento do próprio direito administrativo e em especial, a contratação pública, como ferramenta de promoção da sustentabilidade e de implementação de direitos sociais tem uma enorme importância (ESTORNINHO, 2014, p. 415). Fato esse devido à percepção de que “Às finalidades tradicionais da contratação pública foram-se somando novas preocupações.” (ESTORNINHO, 2014, p. 417), ou seja, no decorrer da atividade do Estado como participante do mercado, “Aos poucos, foi-se tomando consciência de que a contração pública, a par dos seus objetivos imediatos, pode servir como instrumentos de realização das mais variadas políticas públicas, nomeadamente ambientais e sociais.” (ESTORNINHO, 2014, p. 417).

É justamente dentro dessa nova ótica que os contratos públicos se inserem, agora, o Estado, não somente, busca a obtenção de um bem em si, mas também, tem o “dever” (Estorninho, 2014, p. 418) de implementar políticas públicas que assegurem a efetivação de direitos fundamentais. Esse pensamento do contrato como forma de efetivação de direitos [fundamentais], ultrapassa a fronteira do Estado nacional (BECK, 2017, p. 57), pois a efetivação dos direitos deve também ser perseguida no local de produção [outros países], pois não se pode cair na falácia do nacionalismo, que defende a fomentação dos direitos dos cidadãos de determinado país [compradores] e se esquecem da forma como os produtos adquiridos pela Administração nacional ou, em nível de bloco econômico são produzidos [formas de produção transnacionais]. Sob esse aspecto, é preciso “repensar questões fundamentais de ordem social e política na era dos riscos globais” (BECK, 2017, 54), esse “repensar”, não passa, tão somente, pelo questionamento de “como comprar”, mas também, “o que comprar” (ESTORNINHO, 2014, p. 420). levando-se em conta o custo benefício do produto e o melhor valor social da aquisição (ESTORNINHO, 2014, p. 418).

O valor social deve estar ligado, não somente aos benefícios que o bem adquirido pela Administração Pública causa na comunidade local [nacional], mas também os impactos positivos ou negativos que serão sentidos no local da produção, quando o bem é produzido em outros países. Isso se deve a importância da qual

 “A temática da viabilidade jurídica das licitações sustentáveis transpassa o direito internacional ambiental e há necessidade de contextualizar as contratações verdes e com critérios sociais para além do ordenamento pátrio, com foco nos compromissos assumidos internacionalmente […] em prol da sustentabilidade global e, especificamente, da adoção de políticas públicas nacionais que reduzem os padrões insustentáveis de produção, consumo e descarte.” (VILLAC, 2015, p. 43).

No caso do comércio justo (Fair Trade), as compras governamentais afetam sociedades para além do Estado nacional. Para tanto, deve-se preocupar com efeitos sociais e ambientais (VAZ, 2016, p. 21-24) originados com a produção dos bens, vez que esses têm reflexo direto na economia e na sustentabilidade dos países produtores, mormente quando esses países são mais pobres e com pouco desenvolvimento tecnológico (PAARLBERG, 2013, p. 116-117).

Deve-se ter a percepção que a “mundivisão nacional” (BECK, 2017, p. 94) não se encontra deslocada da visão transnacional, ou seja, nessa lógica de visão da contratação pública, não se toma em conta, tão somente, o desenvolvimento sustentável “baseado na mobilização dos recursos internos” (SACKS, 2004, p. 17), mas, sobretudo na participação cooperativa com outras economias [Estados] transnacionais, e é, justamente, nesse contexto que o comércio justo e solidário se insere, pois assim o governo usa os seus recursos, para implementação de direitos, dos cidadãos nacionais e de outros países envolvidos na negociação, permitindo que todos ganhem.

 

3.      O que é o Comércio Justo, seus fundamentos e seus princípios norteadores.

Os meios de trocas comerciais são formas eficazes de se buscar a integração do ser humano ao meio em que ele vive, com a tônica no desenvolvimento do Homem, o comércio justo e solidário, é uma nova forma de se libertar das garras do comércio predatório, baseado na maximização dos lucros [dos compradores] e minimização dos gastos [com os produtos adquiridos]. Nessa lógica, o comércio convencional, acaba por deixar de lado, ou pelo menos, ter como fator imediato a sustentabilidade como fator motivador das trocas, o que acaba por levar a uma escassez de matérias primas e secundarizarão de outras dimensões dos direitos fundamentais, igualmente, importante para a vida do ser humano.

São justamente, o embasamento do comércio como um vetor de mudança social e efetivação da sustentabilidade que surge, em meados dos anos XX, nos Estados Unidos (EFTA, 2006), e ganha mais destaque na década de 60, na Holanda, com discurso sobre o papel do comércio na vida da sociedade. A partir dessa ideia, vem à primeira noção real de Comércio Justo e Solidário, entretanto, é hoje que se tem a maior mobilização, seja da sociedade, seja de governo, a favor desse ideal de comercialização. No ano de 2000, aconteceu a formação da FINE [uma associação informal das quatro principais redes de Comércio Justo] que reuniu FLO, IFAT, NEWS e EFTA as quais se manifestaram a vontade de trabalharem conjuntamente nas questões comuns e desenvolverem termos de referência para colaboração futura, principalmente em um sistema de monitoramento harmonizado e integrado para Comércio Justo e Solidário.

Na Conferência de Arusha, no ano de 2001, foi adotada uma definição do seria o Comércio Justo, nos termos dessa conferência o Comércio Justo e Solidário seria:

“uma parceria comercial, baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior equidade no comércio internacional. Contribui para o desenvolvimento sustentável, oferecendo melhores condições comerciais e garantindo os direitos dos produtores e trabalhadores marginalizados, especialmente no Sul. As organizações de comércio justo (apoiadas pelos consumidores) estão ativamente envolvidas no apoio aos produtores, na conscientização e na campanha por mudanças nas regras e nas práticas do comércio internacional convencional” (WFTO, 2001).

Em matéria jurídica, o debate ainda era incipiente, entretanto ganha mais força com a Diretiva 2014/24/EU, que traz a ideia de estabelecer padrões sociais e ambientais nas aquisições de produtos pelos Estados membros, e militando em favor da sustentabilidade em suas diversas dimensões [social, cultural, ambiental], não que esses ainda não fossem utilizado como critério de escolha, mas é através dessa Diretiva, que esses critérios se tornam mais evidentes, segundo destaca o Acórdão C-368/10 do Tribunal de Justiça Europeu (TJUE, 2010).

Também se sublinha que no Brasil os critérios que levam em conta a sustentabilidade nas aquisições públicas são frutos de várias legislações federais que serão arroladas oportunamente infra, e também, com a inserção na Lei n. 8.666/1993, Lei das Licitações, no art. 3º (BRASIL, 1993); na Lei que institui a Política Nacional de Mudança Climática [PMNC], Lei n.º 12.187/2009 (BRASIL, 2009), art. 3º. inc. IV c/c art. 6º, inc. XVI; Lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305, art. 30, incisos IV – VII (BRASIL, 2010). Todas essas legislações trazem políticas que devem ser observadas o quesito sustentabilidade, por isso, é preciso ter em conta que as compras governamentais são ferramentas para efetivação de direitos [fundamentais] do ser humano e que “Igualdade, equidade e solidariedade estão, por assim, embutidas no conceito de desenvolvimento, com consequências de longo alcance para que o pensamento econômico sobre o desenvolvimento se diferencie do economicismo redutor” (SACKS, 2004, p.14). Dessa forma, o Estado como instituição responsável por desenvolver políticas públicas que abarque o bem-estar econômico e social dos Homens, deve exercitar o seu poder de compra, tomando em considerações a dimensão social (ESTORNINHO, 2014, p. 418) que ele abarca.

Com base nas disposições preliminares, que abrem esse tópico, releva destacar que a escolha por um comércio justo e solidário, sustentável e includente, deve ser um objetivo a ser perseguido pelas entidades públicas (ESTORNINHO, 2014, p. 420). Nesse sentido, o “Comércio Justo” como uma parceria comercial, baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior equidade no comércio internacional, contribuindo para que o desenvolvimento sustentável alcance a todos os que participam da cadeia produtiva, por meio de melhores condições de troca e garantia dos direitos para produtores e trabalhadores à margem do mercado (FTAO, 2009), é um conceito que deve ser priorizado pelos Estados, como uma forma de contratação a ser analisada, pois ele atende dadas as devidas proporções, aos critérios de sustentabilidade que melhor se amoldam a um Estado que busca na contratação pública uma forma de se efetivar os direitos fundamentais em todas as suas dimensões.

Portanto, o Comércio Justo e Solidário surge da necessidade de se buscar novos meios de comercialização, num mundo que parece ter se esquecido de que vetores como desenvolvimento social e sustentável assumem grande importância, para o bem do mundo, principalmente, nos países menos desenvolvidos, onde ainda existe um número alarmante de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza (CRUZ, 2015). Nesse âmbito de atuação, o Comércio Justo e Solidário tem como alvo principal, o auxílio às pessoas mais necessitadas, ajudando-as a conseguirem, por meio do comércio, formas de efetivação dos direitos básicos, afastando-as, dessa maneira, da marginalidade, e assegurando a elas uma melhor qualidade de vida (FTAO, 2009), deixando, assim, de se ter nas “considerações sociais e ambientais” uma função “meramente de aspectos secundários” (ESTORNINHO, 2014, p. 420). Nesse sentido, alguns Estados já desenvolvem o seu estilo de contratação pública [Public Procurament] com base em princípio de sustentabilidade e utiliza Comércio Justo Solidário como critério de adjudicação (FORUM, 2013)

A tônica do Comércio Justo e Solidário coloca-se no objetivo, a procura por estabelecer contato direto entre os pequenos produtores e compradores, desburocratizando o comércio internacional e poupando os produtores da dependência de atravessadores e das instabilidades do comércio global. Portanto deve-se ter em mente que

“A “razão de ser” de todas as iniciativas do Comércio Justo, se baseia em uma diversa gama de atividades e programas práticos para responder melhor às necessidades e circunstâncias particulares das pessoas beneficiárias do comércio justo. Está claro que um só modo de operação não pode tratar todos os problemas experimentados em diferentes setores de produção (desde o café até as formas artesanais), localizações geográficas (desde Mali até o México) ou as etapas de produção (desde o agricultor até o trabalhador de uma fábrica).” (FTAO, 2009)

Nesse aspecto, o Comércio Justo e Solidário não fica mais atado à noção de sustentabilidade, a priori, defendida pelas ciências da ecologia e economia, mas perpassa por todos os campos dos saberes [incluindo o direito], pois a sustentabilidade deve ser entendida em sua forma mais abrangente possível (VEIGA, 2010, p. 17). Portanto, para que o comércio seja justo e solidário, são observados os seguintes princípios:

 

 

  1. Transparência e corresponsabilidade na gestão da cadeia produtiva.

Este princípio chama a atenção para a responsabilidade que todo o agente envolvido na cadeia produtiva deve observar na gestão dos recursos naturais e no desenvolvimento dos produtos, ou seja, todos, desde os produtores distribuidores e tomadores de serviços ou produtos que sustentam o selo Fair Trade, devem observar as regras afetas ao comércio justo e procurar implementá-las. Isso é uma forma de fortalecer o “Fair Trade” e proporcionar aos consumidores e governantes, clareza quanto à origem dos produtos e o respeito aos vários propósitos dimensionados pelo selo e pelas políticas adotadas pelos Estados. Nesse sentido pode-se aferir que a possibilidade de rastreabilidade (traceability) deve ser uma ferramenta disponível a todos que utilizam produtos advindos desse tipo de comércio.

Este princípio está diretamente ligado ao conceito de “food safety”, pois a origem e o manuseio dos produtos, também são fundamentais para uma cadeia de propósitos perseguidos pela administração pública aquando da contratação, sublinhando a multifacetada dimensão que o direito à alimentação traz embutido em si, trazendo aqui, as questões relacionadas à “higiene, salubridade e inocuidade dos alimentos” (ESTORNINHO, 2013, p. 40), para a fase de produção dos bens. Isso quer significar, que o processo de produção dos bens/produtos, desde a escolha das matérias primas [sementes] a serem utilizadas até o destinatário final, deve dispor de padrões adotados pelo comércio justo e disponibilizados para os governantes e entidades interessadas nesses produtos como forma de assegurar que os bens alimentares são seguros, e foram produzidos de forma sustentável. Nesse ponto o comércio justo desempenha um grande papel, para a efetivação da política adotada por muitos países dos programas chamados de “farme-to-table” ou do campo à mesa. Esse ponto muito bem destacado pelo Regulamento (CE), n. 178/2002, da Comunidade Europeia e a criação da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar com a sigla em inglês – EFSA – European Food Safety Authority (COMISSÃO EUROPEIA, 2002).

  1. Relação duradoura que ofereça treinamento e apoio aos produtores e acesso às informações do mercado.

Nesse aspecto, o Comércio Justo trabalha sobre a base da confiança, ou seja, busca-se instituições, para desenvolverem uma parceria duradoira, como forma de melhorar a vida de todos que estão envolvidos na atividade produtiva, e, consequentemente, oferecer produtos mais adequados ao consumo humano. Isso poderá ser feito por meio de ajuda técnica [consultoria] e o desenvolvimento de novas técnicas de cultivo de alimentos ou de criação de animais destinados ao consumo, fato que tem como efeito direto, a resiliência dos produtores, para aprender novas práticas produtivas e superação dos efeitos ocasionados pelos riscos advindos da mudança global, nesse incluso, mudanças ambientais (ANTUNES, 2003, p. 9; SANTOS, 2012, p. 21-25) e fatores patogênicos [vírus e pragas].

Tais treinamentos podem ser direcionados ao planejamento de controle da atividade produtiva, como meio de se entregar um produto o mais próximo do seu estado natural. Isso pode ser feito por meio de agências como a EFSA [âmbito europeu], ASAE e APA [Portugal] e Embrapa [Brasil], todas agencias governamentais que podem contribuir para melhoria dos produtos e da segurança quanto produção e manuseio desde o campo à mesa.

  • Pagamento de preço justo no recebimento do produto, além de um bônus que deve beneficiar toda a comunidade.

O princípio de um pagamento mínimo (FAIRTRADE, 2017) pelos produtos Fair Trade é uma forma de preservar os trabalhadores a uma renda mínima para o fruto de seu trabalho, e protegê-los das oscilações e das leis predatórias do mercado. Nesse ponto, o Fair Trade tem um papel fundamental, pois assegura aos produtores que seus produtos não serão vendidos abaixo do preço mínimo estabelecido, e que as cadeias de distribuição [distribuidores] pagarão um preço justo, que possibilitarão o desenvolvimento da atividade produtiva. Entretanto, os “Standards” mínimos de preços, devem ser suficientes para cobrir a produção sustentável do bem, não obstante, seja estabelecido esse preço mínimo, se no mercado o preço for maior do que o preço mínimo estabelecido pelo Fair Trade, os produtores deverão receber o preço de mercado.

Além do preço mínimo, os cooperados são contemplados por prêmios que “deverão” ser usados em favor da comunidade, ou seja, serão revertidos em favor da efetivação de outros direitos que beneficiem a comunidade, exemplos muito efetivos são: a construção de escolas, creches, postos de saúde, oficinas profissionalizantes, assegurando dessa forma que outras pessoas tenham acesso a direitos básicos, portanto, a contratação baseada nos critérios de um Comércio Justo, é a participação do Estado na efetivação de outros direitos fundamentais [renda mínima, educação, trabalho].

  1. Organização democrática dos produtores em cooperativas ou associações.

A organização democrática dos produtores em cooperativas destaca a efetivação dos direitos da igualdade, insculpido na art. 13º, da CRP. (PORTUGAL, 1976); no art. 5º, inc. I, da CRFB (BRASIL, 1988) e na Diretiva 2000/78/CE (COMISSÃO EUROPEIA, 2000) pois homens e mulheres têm os mesmos direitos e, inclusive, podem concorrer em pé de igualdade aos cargos mais altos dentro das cooperativas ou associações, sem nenhuma distinção entre eles. Esses tipos de organizações fazem com que os produtores tenham maior poder de negociação, aquando da venda de seus produtos, e permitem aos mesmos explorarem nichos de comercialização de produtos, para consumidores que buscam produtos produzidos de forma ética, consciente e sustentável. Esse fato pode ser reforçado pelo fato de cooperativas ou associações podem alcançar mais pessoas, e, consequentemente, chamar a atenção para os problemas da produção e do consumo sustentável. Isso pode ser aproveitado como um efeito positivo, pois num mundo cada vez mais globalizado e interdependente (SANTOS, 2012, p. 53) precisa de produtos e modos de produção que causem cada vez menos impacto ambiental, pois o pensamento quanto à segurança alimentar deve ser observado sob o prisma de um ciclo mais amplo (SANTOS, 2012, p. 102).

  1. Respeito à legislação e às normas (trabalhistas, ambientais, nacionais e internacionais).

Outro fator de suma importância para que o produto ou Comércio sejam acreditados como Comércio Justo e Solidário, é fato de que não se pode ter exploração do trabalho do ser humano, além de observar normas de segurança como objetivo de proteção à saúde do trabalhador. As normas trabalhistas devem ser respeitadas, sendo oferecidas condições de trabalho justas, para todos que estão envolvidos na atividade produtiva. Sob esse aspecto as Convenções e Recomendações internacionais [OIT], Diretiva 2000/78/CE, os direitos constitucionais (art. 9º., da CRP; art. 7º., da CRFB) e infraconstitucionais devem ser respeitadas para que o Comércio seja justo.

Ainda, é mister, que os meios de produção atendam a sustentabilidade ambiental, pois o ambiente é um fator muito importante para o desenvolvimento do ser humano. Nesse sentido, faz-se necessário colocar no centro da cadeia produtiva “insegurança criada pelos seres humanos” (BECK, 2015, p. 158), pois não é dubitável que o sistema produtivo influencie o meio-ambiente, essas alterações “globais cumulativas” (SANTOS, 2012, p. 39) que são provocadas pelo tipo de produção, “embora se manifestem apenas à escala local ou regional, adquirem uma expressão global, porque surgem de forma significativa por todo planeta” (SANTOS, 2012, p. 39), portanto, a preocupação com o ambiente sustentável (SILVA, 1999, p. 137), como forma de garantir os recursos para o futuro são imprescindíveis na atividade produtiva do Comércio Justo e Solidário, pois não se pode pensar no Comércio como um fim em si mesmo, mas, sobretudo no seu papel integrador e ratificador de melhores condições para a geração presente e futura.

 

  1. Educação infantil obrigatória

Além do respeito às leis internacionais do trabalho, os produtores devem respeitar os direitos fundamentais das crianças à Educação, não sendo estas utilizadas como mão de obras, devendo estarem matriculadas em escolas ou frequentando algum tipo de educação adequada às suas necessidades.

Esse princípio apresenta estreita ligação com a proteção deferida às crianças na esfera internacional, disposto na Convenção sobre os Direitos das Crianças ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990 e pelo Brasil, sendo o Decreto Legislativo de n. 99.910, de 21 de novembro de 1990, , que define o início de sua vigência (BRASIL, 1990) e, nas esferas nacionais através de leis específicas e nas Constituições, como é o caso do Art. 227, da CRFB e art. 43º., da CRP (BRASIL, 1988; PORUGAL, 1976). Tal iniciativa visa à proteção das crianças diante de uma ordem globalizada que muitas das vezes não são observadas pelas grandes multinacionais, a responsabilidade com a educação deve ser um direito a efetivar para aqueles [produtores, cooperativas e Associações] que querem ser acreditadas pelos órgãos de acreditação do selo Comércio Justo e Solidário.

Proibição de culturas de OGM

As proibições do uso de Organismos GM (WHO, 2014) estão diretamente ligadas à sustentabilidade das espécies, pois os impactos negativos dos OGM, sobre a biodiversidade são tamanhos que podem extinguir várias espécies animais e vegetais. Tal fato de relevância, para o efeito das diretivas de 20014/24/CE (COMISSÃO EUROPEIA, 2014), deixa consignado em seu Considerando n. 41, a necessidade da “preservação da vida vegetal, ou outras medidas ambientais, especialmente do ponto de vista do desenvolvimento sustentável, desde que tais medidas estejam em conformidade do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE).”. Além do efeito danoso que pode ocasionar o uso de OGM na produção de alimentos, quanto ao consumo, também são apresentados os perigos de esses produtos causarem efeitos secundários na própria alimentação, como o desenvolvimento de alergias e desenvolvimentos de novas infecções (ROCHA, 2008, p. 127; ESTORNINHO, 2013, 29).

Nesse sentido a proibição dos produtos OGM na produção de alimentos do Comércio Justo e solidário, leva em consideração o princípio da precaução (WINGSPREAD, 1998), vez que tão somente os meios de avaliação de risco não são suficientes para a proteção dos seres viventes, plantas, animais, microrganismos e o próprio homem. A problemática envolvendo o uso de OGM não é uma exclusividade do Comércio Justo e Solidário (PAARLBERG, 2013, p. 64-67), pois “O tema dos Organismos Geneticamente Modificados confronta o ser humano com as suas convicções mais profundas, os seus hábitos milenares e os seus medos, racionais e irracionais. A verdadeira revolução que a produção industrial de OGM provocou veio pôr em causas técnicas e hábitos arraigados dos agricultores, tais como os de guardar e reutilizar semente.” (ESTORNINHO, 2013, p. 33), dessa forma, o Comércio Justo acredita na possibilidade de uma sustentabilidade baseada numa produção mais próxima do natural.

 

3.1.            O comércio justo e a Agricultura Biológica: duas realidades diferentes?

No âmbito desse trabalho se delineará uma linha que muitos que procuram elucidar algumas diferenças, que muitos pensam ter entre Comércio Justo e Solidário e Agricultura biológica(INDRIO, 2009, p. 11 e ss.; FERREIRA, 2009, P. 14 E ss.) que, no Brasil, é chamada de “Agricultura Orgânica” e tem suas bases assentadas na Lei 10.831/2003 (BRASIL, 2003), atendendo esse tipo de cultura produtiva, a diversos outras nomenclatura, a depender do país (FERREIRA, 2009, p. 14), entretanto, mutatis muntandis, existe semelhanças quanto à prática desses tipos de cultura na forma de se conceber a produção, sendo que o Comércio Justo, busca uma produção mais próxima do que defende a agricultura biológica, não obstante, essa [Agricultura Biológica] não é o principal objetivo do Comércio Justo. O ponto de comunhão dessas culturas está na base de produção sustentável.

A agricultura biológica vem “sendo” definida por organismos de caráter privado, que integram a Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Biológica que redefiniu, em 2005, de forma simples o que é a agricultura biológica. Para a comissão reunida na Austrália em setembro de 2005, ficou estatuído que

“A agricultura orgânica é um sistema de produção que conserva a saúde dos solos, dos ecossistemas e das pessoas. Baseia-se em processos ecológicos, na biodiversidade e ciclos adaptados às condições locais, ao invés de insumos com efeitos adversos. A agricultura orgânica combina tradição, inovação e ciência para o compartilhamento benéfico do meio ambiente e promove relacionamentos justos e uma boa qualidade de vida para todos os envolvidos”. (IFOAM, 2005)

A agricultura biológica esteia-se em quatro princípios básicos: princípio da saúde, do solo, das plantas, dos animais e do Homem, portanto, para que haja um planeta saudável, mister que a saúde dos seres viventes seja a melhor possível; princípio da ecologia baseia-se na imitação dos ciclos naturais proporcionado pela própria natureza; princípio da justiça defende que a natureza e os seres viventes devem ser tratados dentro de uma relação de respeito e responsabilidade pelo mundo compartilhado. Dentro desse princípio estão contidos muitos outros princípios que direcionam a vida do Homem em relação aos outros seres viventes, e principalmente, a relação com outras pessoas [produtores, trabalhadores, distribuidores e comerciantes]; princípio da precaução, a agricultura biológica deve ser conduzida de forma responsável e com a devida cautela, respeitando o meio ambiente e a saúde e o bem-estar das pessoas no presente sem esquecerem os direitos das gerações futuras (FERREIRA, 2009, p. 21).

Como bem destaca Francesco INDRIO “A agricultura biológica representa, sobretudo uma maneira de enfrentar o problema, antes ainda de se estruturar nas várias técnicas e operações.” (2009, p. 21) Dessa forma, assim como o Comércio Justo a Agricultura Biológica, trabalha no sentido de tornar sustentáveis os meios de produção, pois parte do ponto de que a ligação entre todos os seres viventes, quando vivem numa cadeia de interpendência (INDRIO, 2009, p. 22) e que se a agricultura não for feita de forma sustentável, esse processo de produção acaba por conduzir a efeitos danosos todos os seres vivos (FERREIRA, 2009, p. 15).

Com essa filosofia de interdependência entre as espécies e a relação intrínseca entre Homem, sustentabilidade e outras espécies de seres viventes, os países têm se preocupado cada dia mais com a produção biológica, sendo essa uma realidade em continentes diversos (WILLER e KILCHER, 2010, p. 28), e mais uma vez os países com maiores áreas de produção biológica são os países de economia sub ou media desenvolvida, com destaque para Índia, Uganda e México com os maiores números de produtores (WILLER e KILCHER, 2010, p. 30).

As estatísticas mundiais mostram que, dos cerca de 154 países onde a produção de Agricultura Biológica é registrada, muitos já possuem legislação interna para o setor. No Brasil, como já referida supra, a Lei 10.831 de 2003, já regulamenta a produção biológica (orgânica), além de decretos, Instruções Normativas, Portarias se encontra disponíveis no sítio do Ministério do Meio Ambiente Brasileiro (MMA).

Em Portugal, diversas leis regulamentam a atividade de forma direta ou indireta, dentre elas o Decreto-Lei n.º 69 de 3 de maio de 2000, alterado pelo Decreto-Lei de oito de novembro 197 de 2005, este último trazendo a obrigatoriedade da realização da Avaliação de Impactos Ambientais (AIA), também entrou em pauta a relevância da Agricultura biológica, para tal foi lançada a Estratégia Nacional para a Agricultura Biológica, nesse sentido é a Resolução do Conselho de Ministros n. 110/2017, sublinhando a necessidade de os produtos biológicos  serem objetos de disseminação através das contratações “públicas ecológicas” (PORTUGAL, 2017).

Na Europa, embora, a Agricultura Biológica seja uma prática sedimentada desde há muito tempo (FERREIRA, 2009, p. 23), é a partir do final dos anos oitenta que ela começa a tornar-se uma preocupação da Comissão. Na intenção de criar um mecanismo estandardizado, ao nível do continente, a Comissão apresenta em 1991 o Regulamento 2092/91(CEE). Tal regulamento sofreu várias alterações no decorrer do tempo tendente a elucidar algumas questões relacionadas à dinâmica do processo de produção até o consumo final. Esses regulamentos abrangem uma panóplia de atividades dentro da Agricultura Biológica, desde importação, aquisições de materiais para alimentação de animais criados sob essa concepção agrícola, aquisição de sementes, fertilizantes, fitofarmacêutico.

A evolução verificada no decorrer dos anos por meio de aprofundamento e conhecimento no campo da produção Agrícola Biológica levou a Conselho da Europa e editar um novo Regulamento, o de n. 834/07, estruturalmente bem diferenciado do anterior [2092/91/CEE], mais lógico e de fácil compreensão. Nesse âmbito, o Regulamento CE n.º 834/07 (COMISSÃO EUROPEIA, 2007) do Conselho chama a atenção para o desenvolvimento da produção biológica e os benefícios dela, para a sociedade de forma geral, mormente, por ser um meio de produção que se coaduna com as melhores práticas ambientais, de acordo com a definição do Considerando de n. 1, deste instrumento normativo (COMISSÃO EUROPEIA, 2007). Também, o Regulamento 834/07, destaca que ele deverá ser a base orientadora de todo o desenvolvimento da produção agrícola biológica e estabelece os princípios e objetivos a serem observados pelos produtores da União Europeia (art. 1º.). Com fito à dinamicidade do setor Agrícola Biológico, as medidas que facilitarão a execução do Regulamento em pauta deverá ser aprovadas pelo Conselho e, em atendimento ao exposto pelo Considerando n.º 38 do Regulamento, foi editado o Regulamento (CE) n.º 889/2008 de 5 de setembro de 2008 como forma de estabelecer as normas de execução do Regulamento (CE) n.º 834/2007 (COMISSÃO EUROPEIA, 2008). Nesse sentido também são salutares as disposições do Regulamento 1235/2008 de dezembro de 2008 o qual detalha as normas concernentes à Importação de produtos biológicos originados de países de fora [terceiros] da União Europeia (COMISSÃO EUROPEIA, 2008).

Em suma, tanto a Agricultura Biológica quanto o Comércio Justo, trabalham na base de que os bens disponíveis devem ser manejados sobre o prisma da sustentabilidade e com baliza na preservação da biodiversidade endêmica das regiões onde se desenvolvem, fato esse, também trabalhado, como fator de preocupação, pelos críticos da “revolução verde” (PAARLBERG, 2013, p. 66) e também com manifestações a favor desta cultura agrícola (SWAMINATHAN, 2015, p. 1-14). Ainda, nesse sentido, sublinhamos a proibição do uso de OGM fato de proximidade com o princípio do Comércio Justo que também proíbe tais práticas (item 3, VII, supra).

 

3.2.            Avaliação da Conformidade e Certificação dos produtos do sistema do Comercio Justo e solidário

A certificação, como meio propício para aferir a origem dos produtos ou serviços, é de suma importância para um mercado como a União Europeia e o Brasil, pois num mundo cada vez mais globalizado, esse instrumento da avaliação da conformidade[3] serve para conduzir a decisões mais conformes com os fins das políticas de contratação pública inclusiva e sustentável em todos os seus níveis.

Nesse sentido os alimentos com certificação do Comércio Justo e Solidário [Fair Trade], atende às demandas da comunidade internacional, pois reafirma a preocupação com as diversas dimensões que a produção dos produtos oriundos desse tipo Comércio, no nosso caso a alimentação, possa abarcar. Portanto, o Comércio Justo e Solidário, trabalha dentro dos padrões exigidos pela comunidade internacional, principalmente os estatuídos pela “Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial” que preconiza a erradicação da pobreza, o aumento da renda, o papel importante que a mulher desempenha para segurança alimentar, principalmente nos países em desenvolvimento, a necessidade de promoção da igualdade entre homens e mulheres. (FOA, 1996).

Não é menos visível, que o Comércio Justo e Solidário, trabalha sobre uma base que busca o nível mais abrangente de implementação dos direitos fundamentais em suas várias dimensões, para tanto, todos os produtores, distribuidores, envolvidos nesse tipo de comércio devem respeitar as normas e regulamentos estatuídos como requisitos imprescindíveis, pelos Organismos de Acreditação e Avaliação da Conformidade, para que se consiga a certificação de que seus produtos são provenientes do Comércio Justo e Solidário. Com vista a que se cumpra um dos requisitos importante para a circulação e, principalmente, para que sejam aptos a entrarem numa disputa para fornecimento de alimentos para os setores da administração pública, faz-se necessário que os produtos sejam acreditados com base no disposto no Regulamento (CE) 765/2008.

Já no Considerando de n.º 1 desse Regulamento fica estabelecido que os produtos que se beneficiem da livre circulação de mercadorias na União Europeia, devem atender “os requisitos que assegurem um elevado nível de proteção do interesse público em domínio como a saúde e a segurança em geral, a saúde e segurança no local de trabalho, a defesa do consumidor, a proteção do ambiente e a segurança” (COMISSÃO EUROPEIA, 2008), todos esses princípios que também se inserem no âmbito do Comércio Justo e Solidário, tais requisitos também é aplicável no ordenamento brasileiro através da regulamentação do INMETRO.

A certificação como exigência da atestação, feita por organismos de Acreditação, da origem dos produtos como oriundos do Comércio Justo e Solidário, dá maior segurança ao Estado contratante da Origem do produto e assegura o cumprimento dos seus objetivos sociais que é assegurar o maior grau de efetividade aos direitos fundamentais através da contratação. Portanto, visto de um ponto de vista interno “a avaliação da conformidade deve ser disseminada pelos setores nacionais, governamental e privado, incentivando a percepção da sociedade para a importância do tema e para as oportunidades a serem conquistadas” (INMETRO). Essa cultura, ou mesmo compulsoriedade, das certificações dos produtos como provenientes do Comércio Justo e Solidário, é uma ferramenta indispensável para se conseguir assegurar direitos, como saúde, trabalho, proteção ao meio ambiente e facilitam a contratação pública, quando precisam utilizar determinados requisitos especiais conforme defere aduz o Considerando n.º 75 da Diretiva 2014/24/EU (COMISSÃO EUROPEIA, 2014).

 

3.3.            Organismos de avaliação de conformidade

Com intuito de dar maior transparência e se adequar aos critérios estabelecidos nas legislações, nacionais [Brasil] e transnacionais [EU] foram criados vários organismos de avaliação de conformidade e certificação dos produtos oriundos do Comércio Justo e Solidário. A seguir arrolar-se-ão os principais organismos que trabalham no sentido de implementar o Comércio Justo e Solidário, entretanto, o número de organismos de Avaliação da Conformidade e certificação são inúmeros, e a validade dos mesmos irão depender de eles atenderem aos regulamentos ou normas nacionais, regionais ou internacionais, no caso do trabalho em apreço, Brasil, Portugal ou União Europeia e os seus respectivos Regulamentos para a Avaliação da Conformidade e certificação por eles exigidas.

FLOCERT, em 2007, primeiro organismo de certificação para o Comércio Justo e Solidário a adquirir a acreditação ISO 65 para os serviços de certificação Fair Trade. Já no ano de 2015, foi acreditada com o ISO 17065.

FLO – Fair Trade Labelling Organizations internacional: sediada em Bonn, na Alemanha, e tem hoje 20 membros: os 15 países europeus mais o Canadá, os EUA o Japão, a Austrália e a Nova Zelândia. A FLO regularmente inspeciona e certifica organizações de produtores em mais de 50 países – na África, Ásia, e América Latina (envolvendo um milhão de família).

WFTO – World Fair Trade Organization (antigo IFAT) – Federação Mundial para Comércio Alternativo (70 países, formam a base de sua rede), essa instituição cuida para que os produtos e cadeia produtiva sejam desenvolvidos dentro dos padrões do Comércio Justo e Solidário.

EFTA – European Fair Trade Association (Congrega 12 centrais de importação em 9 países Europeus). O principal trabalho da EFTA é facilitar as trocas de informação através da partilha de documentos e organizações de reuniões, e ajudas aos seus membros na harmonização de documentação com regulamentos Europeus. Também tem um papel político junto ao parlamento europeu como forma de influenciar os decisores comerciais e políticos a favor de um Comércio Justo e Solidário.

NEWS! – Network of European world Shops (15 associações nacionais de 13 países); criada em 1994, é uma rede de associações nacionais de lojas globais, que representa mais de 2.700 lojas em 13 países. A NEWS! é uma associação que facilita todas as formas de cooperação e a formação de redes entre membros, trabalha na organização de conferência mundial a cada dois. Trabalha na conscientização e no desenvolvimento de campanhas em prol do consumo consciente a nível europeu.

No Brasil, em nível de organismos de certificação, acreditado pelo INMETRO, destaca-se a ECOCERT BRASIL CERTIFICADORA LTDA – fornece a certificação ESR – Comércio Justo Solidário e responsável – é uma cerificação de grande respeitabilidade no comércio internacional, principalmente na Europa. IBD CERTIFICAÇÕES Ltda. – Desenvolve atividade de inspeção e certificação agropecuária, de processamento e de produtos extrativistas, orgânicos, biodinâmicos e de mercado justo.

 

4.         A alimentação como um direito fundamental

Segundo José Afonso da SILVA, os Direitos fundamentais do homem constituem expressão mais adequada aos estudos tanto no campo administrativo quanto constitucionais que,

“além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível de direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que concretizam em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.” (2011, p. 178)

portanto, faz-se necessária a análise do direito à alimentação sob o viés, não só da necessidade de implementação do direito à alimentação, mas, sobretudo sob a ótica de todos os outros direitos que envolvem a produção dos produtos destinados à alimentação. Pois, o que se coloca sob a ótica do direito administrativo e constitucional é a defesa do homem como ser destinatário da norma constitucional que merece proteção, partindo do ponto de vista “que a raiz antropológica se reconduz ao homem como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado.” (CANOTILHO, 2008, p. 1)

Sob outra perspectiva, mas também relacionada à sustentabilidade, o professor Vasco Pereira da SILVA, destaca que a norma garantidora dos direitos fundamentais decorre da lógica da proteção individual, se considerar que as normas que visem assegurar um ambiente adequado também se destinam a proteção dos interesses particulares, “ao fazer radicar a proteção da ecologia na dignidade da pessoa humana, mediante a consagração de direitos fundamentais” (1999, p. 136-137), impondo ao Estado a proteção dos bens e da realização de política ambiental em suas vertentes objetivas e subjetivas. Ainda destaca que os direitos imprescindíveis do homem, nos oferecem o acesso para compreender as relações públicas, bem como as relações privadas no domínio socioambiental, permitindo “reconduzir os problemas jurídicos do ambiente em geral, a uma unidade de referência normativa e de construção dogmática, possibilitando o seu tratamento em termos de “sistema”” (SILVA, 1999, p. 139-140).

Para que haja o asseguramento do direito fundamental à alimentação [art. 6º., CRFB], aqui entendido, como “food safety” e o “food security”(ESTORNINHO, 2013, p. 40), é preciso conjugar esforços para o desenvolvimento de uma responsabilidade presente e orientada para o futuro (CANOTILHO, 2008, p. 2) que por sua vez inclui dentre outros o desenvolvimento sustentável (art. 66º., 2 da CRP, art. 170 da CRFB, art. 37º. Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia [Carta]), racionalidade nos usos dos recursos (art. 66º., 2, alínea “b”, da CRP;  art. 225 da CRFB), o que estariam em total acordo com os princípios que regem a atividade do Comércio Justo e Solidário, que por sua vez, desenvolveria a sua função social apregoada pelas constituições brasileiras e portuguesas, pois estes ordenamentos preveem uma determinadas abertura (CANOTILHO, 2008, p. 3) para que as atividades comerciais atendam um desiderato funcional social conforme dispõem o art. 170, VI, da CRFB (BRASIL, 1988).

 

4.1.            Panorama Internacional do Direito à Alimentação

A alimentação como direito do Homem [fundamental] está disposto em vários mecanismos de proteção aos direitos do Homem na ordem internacional. A DUDH, já seu Preâmbulo assegura que a dignidade é inerente a todos os seres humanos, que os Estados devem trabalhar para implementação da igualdade entre mulheres e homens e no favorecimento do progresso social e melhores condições de vida. No artigo 25.º, preceitua que “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem estar, inclusive, alimentação […]” (DUDH, 1948).

Também nesse sentido, o PIDESC afirma, em seu artigo 11, § 1.º, que os Estados signatários do Pacto devem reconhecer o direito de todas as pessoas “a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria contínua de suas condições de vida” (PIDESC, 1966) e vai mais além ao estatuir que “Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento”. Ainda destaca, no seu § 2.º, que a proteção contra a fome, deve ser reconhecida como um direito fundamental do Homem, e que os Estados deverão adotar, sozinhos, ou por cooperação, medidas adequadas que possam:

“melhorar os métodos de produção, conservação e distribuição de gêneros alimentícios pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo aperfeiçoamento ou reforma dos regimes agrários, de maneira que se assegurem a exploração e a utilização mais eficazes dos recursos naturais;” (alínea “a”); assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentícios mundiais em relação às necessidades, levando-se em conta os problemas tanto dos países importadores quanto dos exportadores de gêneros alimentícios.” (alínea “b”). (PIDESC, 1966)

A Carta não dispõe, explicitamente, em nenhum dos seus dispositivos sobre o direito à alimentação, entretanto, tal direito se pode extrair por uma interpretação, conforme o âmbito mais alargado que ele preceitua no sentido de conferir maior amplitude aos direitos fundamentais na ordem jurídica da União Europeia. Como preceitua o art. 53.º, a Carta deve ser interpretada de forma a alargar o âmbito de proteção dos direitos fundamentais, e não pode nenhuma de suas disposições restringir direitos ou liberdades fundamentais advindas de obrigações assumidas dentro do contexto de aplicação do direito da união, em virtude de compromissos assumidos internacionalmente por seus Estados-Membros, bem como os dispostos por qualquer das Constituições desses Estados, segundo dispõe o art. 53 da Carta Europeia de Direitos Humanos (COMISSÃO EUROPEIA, 2010).

 

4.2.            Panorama português

Num panorama geral, pode-se verificar que “A insegurança alimentar da população é uma consequência da não-realização do direito à alimentação” (FAO, 2013), esse direito ainda se encontra mais ameaçado em contexto de crise (ESTORNINHO, 2013, p. 44). A crise mundial, especialmente, em Portugal, se fez sentir de uma forma muito grave, com um índice de desemprego atingindo 10% [2011] com um agravamento em 2013 (FAO, 2013), chegando, a taxa de desemprego, a 16,3%, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística português (INE), divulgado pelo Observatório das Desigualdades. Nesse contexto de agravamento das condições sociais, a preocupação com a população que fica mais vulnerável é uma constante, devido à redução do poder de compra (FAO, 2013).

Portanto, como consequência do primado da dignidade da pessoa humana, o Estado deve estar atento a tais efeitos para poder assegurar o direito à alimentação, tanto na vertente “food security, quanto na food security”, (ESTORNINHO, 2013, p. 44) por meio de políticas públicas, pois estas constituem uma das tarefas fundamentais do Estado, conforme dispõe a CRP, em seu art. 9.º, alínea “d”:

“São tarefas fundamentais do Estado [português]:

  1. d) Promover o bem-estar e qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas econômicas e sociais;” (PORTUGAL, 1976)

A questão relacionada à alimentação tem sido alvo de preocupação de governos do mundo todo, em Portugal, não é diferente, partindo de um panorama de proteção sistemática da CRP ao indivíduo, pode se aferir, embora, ainda não se tenha dispositivo explicito sobre o direito fundamental à alimentação, que a constituição protege o direito das pessoas a uma alimentação saudável. Isso decorre segundo Maria João ESTORNINHO, pelo fato de o direito à alimentação, “está intimamente ligado ao direito à vida (art. 24º.) e ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º)” (2013, p. 52). Além dessa interpretação em conformidade com esses princípios, para se chegar à proteção do direito fundamental à alimentação, pode-se aferir da interpretação do art. 8.º da própria CRP que as normas internacionais (art. 25º. da DUDH e art. 11º. do PIDESC) integraria o direito português e vigorariam na ordem interna do Estado português por força do art. 8º., da CRP. Essa visão se coadunaria com a lição do professor Jorge Miranda, que ensina que os direitos fundamentais dispostos na CRP não são estanques, mas abertos, e que essa numeração estaria “sempre pronta a ser preenchida ou completada por meio de novos direitos ou de novas faculdades de direitos para lá daquelas que se encontrem definidas ou especificadas em cada momento.” (MIRANDA, 2016, p. 262).

Essa textura permeável da CRP seria corolário da obrigação assumida na efetivação de políticas econômicas, sociais, culturais (arts. 58 – 59). Nessa toada, o direito à alimentação se apresentaria como uma das dimensões de asseguração ou prossecução de uma boa saúde (art. 64), nas suas dimensões negativas tanto como na positivas (ESTORNINHO e MACIEIRA, 2014, p. 46). Esse direito, visto do ponto de vista social, deve ser implementado por políticas transversais como (emprego, condições de trabalho, igualdade entre os indivíduos). O direito à saúde está diretamente ligado aos “fins buscados pelo direito à alimentação”, ou seja, que os alimentos sejam inócuos à saúde ou ao meio ambiente (ESTORNINHO, 2013, p. 38).

A relação do direito a uma alimentação saudável, também se faz notar, mesmo que indiretamente em outros dispositivos da CRP, como na organização econômica em prol do desenvolvimento econômico e social (art. 80º., alínea “e”); na promoção do bem estar social e qualidade de vida para todas as pessoas, especialmente, as menos desfavorecidas, incumbência essa que faz parte de uma estratégia para o desenvolvimento sustentável (art. 81º., alínea “a”); no objetivo das políticas de produção de bens agrícolas, mormente, na promoção da qualidade de vida social e econômica e cultural das pessoas diretamente ligadas a essa atividade (at. 93º., alínea “b”); também se faz notar a preocupação com a asseguração do direito à alimentação, no estimulo ao associativismo e formação de cooperativas (art. 97º.) ligada à atividade agrícola do pequeno produtor, esse um dos maiores objetivos do Comércio Justo e Solidário.

 

4.3.            Panorama brasileiro do Sistema de Comércio Solidário – SCSN

O direito social como um direito constitucional (SALES e PACHÚ, 2015, p. 27-46), foi inserido como uma norma no âmbito da Constituição, a partir de 1934 (SILVA, 2011, p. 466). No início, os direitos sociais, tinham tão somente, um caráter programático, o que vem sendo mudado no decorrer dos anos. “E nessa configuração crescente da eficácia e da aplicabilidade das normas constitucionais reconhecedoras de direitos sociais é que se manifesta a sua principal garantia.” (SILVA, 2011, p. 466). Nesse sentido, pode-se afirmar que como direitos básicos do Homem, eles buscam a promoção da justiça social, “exigindo do estado atuação positiva como forma de atenuar as desigualdades existentes e proporcionar vida digna aos indivíduos […]” (SALES e PACHÚ, 2015, p. 28). No direito brasileiro, a alimentação foi elevada ao grau de direito fundamental social somente em 2010 com a Emenda Constitucional n.º 64. Essa Emenda Constitucional foi fruto do trabalho e campanha social no sentido de estabelecer uma política social para a erradicação da fome. Portanto, a sua inserção no ordenamento brasileiro, “começou com a luta pela implantação de políticas públicas de combate à insegurança alimentar.” (SILVA, 2011, p. 310) Além disso, a ideia de autonomizar esse direito (SILVA, 2011, p. 310), acaba por conduzir ao enfrentamento frontal do Estado a uma questão de vergonha nacional, pois o Brasil é um dos países que mais produz bens alimentícios, não obstante, uma grande parcela da população sofria com a fome.

Pelo esforço da sociedade civil e a luta por implementação dos tratados ratificados pelo Brasil, principalmente, Declaração Universal dos Direitos do Homem, PIDESC e tendo em conta o que ficou decidido na Cúpula Mundial sobre Segurança Alimentar, realizada pela FAO, que ocorreu em Roma em 1996, o direito à alimentação entra para a ordem constitucional brasileira como um direito social fundamental, inserido no art. 6º. da CRFB. O direito à alimentação, em suas vertentes, “food safety e food security”, vem ratificar outros princípios constitucionais em sua plenitude, pois não se concebe uma vida digna para o ser humano (art. 1º., III) sem uma alimentação adequada, esse fundamento da República brasileira, “propicia adoção do entendimento de que a pessoa humana só terá vida digna se, e quando atendidas as condições existenciais, mínimas e indispensáveis, como à moradia, alimentação, saúde, vestimenta, educação, dentre outros.” (NUNES, 2008, p. 54).

Outrossim, a alimentação é um direito fundamental, para que o país alcance os seus objetivos que é “a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais” (art. 3º., III, da CRFB), vez que o acesso a alimentação em determinadas regiões do país ainda é escassa, também esse direito [alimentação] está, imbricada mente, ligado à promoção do bem de todos os cidadãos (art. 3º., IV, da CFRB), pois para que haja um elevado padrão de vida das pessoas, e acesso aos alimentos é preciso que o Estado avoque a si “providências efetivas voltadas para o combate à pobreza e à marginalização, pois enquanto aquela [pobreza] é representativa da manutenção das piores condições  de alimentação, de vida, e do próprio desenvolvimento mental […]”, (NUNES, 2008, p. 54) tão necessário ao bem estar da pessoa, “esta [marginalização] conduz ao isolamento e à exclusão do indivíduo, apartando-o do todo, tanto pela redução das possibilidades de participação do crescimento social como pelas dificuldades de superação dos inúmeros obstáculos opostos ao desenvolvimento de suas potencialidades […]”(NUNES, 2008, p. 54), portanto, a alimentação é um fator importante para que o ser humano alcance suas metas na vida e sua inserção na sociedade.

A Constituição brasileira, em consonância com princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º., II, da CRFB), orienta a sua ordem social para que todos possam ter direito a melhoria das condições de vida social, estabelecendo que o trabalho deva ser um vetor importante e suficiente para dar ao indivíduo um mínimo existencial, inclusive a uma alimentação digna (art. 7º., IV, da CRFB). Além de incluir nos róis de deveres do Estado, a obrigação da efetivação do direito à educação em todas as suas etapas inclusive com programas de alimentação e assistência à saúde (art. 208, VII, da CRFB).

 

5.       Desenvolvimento sustentável: vista sobre a lente das várias dimensões abrangidas pela Diretiva/2014/24/UE

Se olharmos o desenvolvimento na esfera mundial, geralmente, ele está relacionado à elevação da força de trabalho, e com a satisfação das necessidades do Homem. Tanto em uma quanto na outra, a sustentabilidade está sempre atrelada à capacidade do Homem produzir riquezas para satisfação dos seus próprios interesses econômicos, sob a perspectiva político-econômica, isso se relaciona com o PIB de um determinado país, mas medir a sustentabilidade de um país pelo PIB, pode ser uma grande falha, pois nem sempre o a aumento do PIB revela-se efetivador de outros direitos como a distribuição de renda, consumo efetivo (VEIGA, 2010, p. 137-143). Já sobre uma nova perspectiva, o desenvolvimento sustentável começa a ser trabalhado de uma forma holística que permitissem a ampliação da efetivação dos direitos, isso devida uma percepção que o desenvolvimento conjuga uma panóplia de outros vetores, como bem dispõe Manuela da SILVA,

“Nos anos setenta, foi cada vez mais reconhecido que o crescimento económico só por si não reduziria a pobreza absoluta com rapidez aceitável. Assim, os organismos envolvidos no desenvolvimento – incluindo a OIT e o Banco Mundial – Deram atenção a quatro estratégias diferentes embora complementares: aumento do emprego, satisfação das necessidades básicas, redução das desigualdades em rendimento e riqueza e elevação da produtividade dos pobres.” (1983, p. 169)

Sob o aspecto que, aqui se propõe, não se pode relegar o desenvolvimento social sustentável, apenas ao campo econômico, mas deverá sobretudo analisá-lo sob outros aspectos igualmente importantes para a sociedade como um todo em suas várias dimensões, seja no campo, social, ecológico, ambiental, econômico, dentre outros (SACHS, 2004, passim). Ao que se pode aferir dessas dimensões, pode-se vislumbrar um cenário de fatores que devem ser conjugados para que o ser humano alcance uma independência de forma integral. Essa independência está relacionada na forma como se gerem os recursos da humanidade dispostos, pois, para que se possa

“seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio da (sic) uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz.” (MMA, 2000)

Nesse ponto, pode-se vislumbrar que tanto as diretivas quanto o comércio justo, trabalham sob essa perspectiva, de asseguração das igualdades, do acesso aos bens econômicos e, nesse sentido, a contratação pública tem um peso importantíssimo nessa viragem de entendimento, ao nível Europeu. Veja-se o que aduz a Diretiva/24/EU (COMISSÃO EUROPEIA, 2014), sobre o papel da contração pública. Já seu Considerando n.º 2, estabelece as bases nas quais se inserem a estratégia Europa 2020, sublinhando o papel fundamental dos contratos públicos como “instrumentos de mercado a utilizar para alcançar um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo” para a consecução do interesse social comum à Comunidade. Também as Diretivas dispõem sobre a implementação de outros direitos fundamentais, definindo que “O emprego e trabalho contribuem para a inserção na sociedade e são elementos essenciais para garantir a igualdade de oportunidades a todos. ”Sublinha o papel fundamental das entidades públicas ou privadas que apoiam a integração social das pessoas na sociedade, principalmente, aquelas que possuem algum tipo de deficiência, membros de minorias desfavorecidas ou marginalizadas (Considerando n.º 37); também, dispõe que os Estados devem tomar todas as providencias para assegurar o respeito em matéria de “direito ambiental, social e laboral aplicáveis” nos locais de prestação ou execução dos serviços contratados pelo Estado parte (Considerando n.º 37). Ainda destaca que nenhuma das disposições constantes da Diretiva [2014/24/UE], poderá impedir ou impor obstáculos de mecanismos que possam ser necessários à “proteção da ordem pública, da moralidade e segurança públicas, da saúde e da vida humana e animal”, bem como meios que visem “à preservação da vida vegetal ou outras medidas ambientais, especialmente do ponto de vista do desenvolvimento sustentável”, sendo que estas que devem estar em conformidade com Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE. (Considerando n.º 41).

Para a consecução das políticas de sustentabilidade para a Europa [Estratégia Europa 2020], colocam no centro das preocupações da União a investigação e inovação, principalmente, aquelas que preceituam inovações no campo ecoinovativo e a inovatividade social (Considerando n.º 47); estabelece que no campo das especificações técnicas, além da abertura à concorrência, no campo da contração, ainda deve-se levar em conta a “consecução dos objetivos de sustentabilidade” observando, nesse aspecto, “critérios de desempenho ligados ao ciclo de vida e à sustentabilidade do processo de produção das obras, fornecimentos e serviços.” (Considerando 74), nesse caso especifico, é muito importante que a contratação, por exemplo, na aquisição de bens alimentícios, não somente, leve em conta a durabilidade bem como a qualidade e a sustentabilidade do processo que o produziu, pois como se defende aqui, a sustentabilidade deve estar presente em toda a fase de produção dos bens, desde a contratação da mão de obra com preços justos, respeito ao meio ambiente e as regras fitossanitárias. Isso se deve ao fato de que

“Às finalidades e preocupações tradicionais da contratação pública foram-se somando novas preocupações e novas finalidades. A contratação pública, a par dos seus objetivos imediatos, nomeadamente de aquisição de bens, construção de obras públicas ou aquisição de serviços, pode e deve servir como instrumento de realização de outras e variadas políticas públicas, nomeadamente ambientais e sociais.” (ESTORNINHO, 2016, P. 10)

Ao abarcar as diferentes dimensões da sustentabilidade, a Diretiva deixa clara a possibilidade de diálogos entre os diversos agentes de transformações no meio social, pois se torna cada vez mais imperativo que os governos ajam conjuntamente para a implementação dos direitos num mundo globalizado, pois como nunca, a frase “pensar globalmente e agir localmente” esteve em fase tão agudizada, pois o que se consome em determinado país tem influência de uma forma direta em outros, portanto, a sustentabilidade, está relacionada à “responsabilidade de longa duração”, essa responsabilidade no direito ambiental, “pressupõe a obrigatoriedade não apenas do Estado adotar medidas de proteção adequadas, mas também o dever de observar o princípio de nível de proteção elevado quanto à defesa dos componentes ambientais naturais.” (CANOTILHO, 2008, P. 7) Essa proteção deferida, ao meio ambiente, também acaba por conduzir a outras vertentes de proteção aos seres humanos, como a preservação das biodiversidades, dos meios de trabalho, possibilidade de renda futura. Dessa forma, a preocupação da Diretiva é uma preocupação holística, e por isso, “É extremamente importante tirar o máximo proveito do potencial dos contratos públicos para cumprir os objetivos da Estratégia Europa 2020 para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo. […]” (Considerando 95).

Outra dimensão levada a sério, é a segurança, pois como ela [Diretiva] dispõe em seu Considerando n.º 97, a administração pode estabelecer critérios e condições, por exemplo, não utilização de produtos químicos, o uso de máquinas mais eficientes como forma de preservar fontes energéticas. Nessa mesma toada, poderiam os mesmos requisitos ser utilizados como “critérios de adjudicação ou as condições de execução dos contratos relacionados com o fornecimento ou a utilização de produtos do comércio justo no decurso da execução do contrato a adjudicar.” Ainda se pode referir que “os critérios e condições podem,  por exemplo, remeter para o fato de o produto em causa ter origem no comércio justo, incluindo o requisito de se pagar aos produtores um preço mínimo e mais elevado.”, tal situação já foi referida no item 3, III, supra, além de poder adotar medidas de promoção da igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho (Considerando 98, § 2), fato totalmente em conformidade com os princípios do Fair Trade, disposto no item 3, IV, supra.

Quanto à execução, ou como critérios de adjudicação, a Diretiva também se preocupou com a inserção das pessoas desfavorecidas, inclusive chamando a atenção para o fato de que o adjudicante possa oferecer qualificação para que as pessoas possam adquirir habilidades necessárias para executar o contrato, inclusive constar  como critérios ou condições, por exemplo, referir-se ao fato de que a execução será feita por pessoas que já estão a muito desempregadas,  além da proteção à saúde das pessoas envolvidas no processo de produção (Considerando n.º 99).

Outro fator que se coaduna com os princípios do Comercio Justo e Solidário, é o respeito que o adjudicatário deverá observar na execução do contrato, pois as obrigações deverão ser cumpridas, observando as normas em “matéria ambiental, social e laboral, estabelecidas pelo direitos da União, por legislação nacional, por convenções coletivas ou pelas disposições de direito internacional em matéria ambiental, social e laboral constantes da presente diretiva – desde que tais regras e a respectiva aplicação sejam conformes com o direito da União – […]” (Considerando n.º 105, § 3º.). Além dessas dimensões estabelecidas nas áreas do Direito ambiental, do social, da saúde, do trabalho, da igualdade, as Diretivas também se preocuparam com a sustentabilidade financeira e a transparências nos processos adjudicatórios no qual participam os Estados-Membros.

 

6.      Portugal e a União Europeia

A constituição portuguesa como uma Constituição cooperativa e aberta para o mundo, nas palavras do professor Jorge Miranda, “jus-universalista” (MIRANDA, 2014, p. 91-106), tem bem a tônica desse novo Estado que se preocupa com os direitos fundamentais, e está preocupado com a promoção do ser humano em todas as suas dimensões. Para tanto, é importante destacar o papel de Portugal na participação da efetivação dos direitos fundamentais dentro da União. Nesse sentido, destaca-se que as instituições públicas portuguesas, também se orientam pelas leis nacionais e pela legislação europeia (MAURER, 2006, p. 33), além de acordos internacionais celebrados individualmente.

No campo da estratégia Europa 2020, foi criado o PO ISE – Plano Operacional: Inclusão Social e Emprego (guia da contratação pública). O programa Portugal 2020, é operacionalizado por dezesseis Programas Operacionais (PO) a que acrescem os Programas de Cooperação Territorial nos quais Portugal participará a par com outros Estados membros da União no sentido de programar uma Europa mais sustentável e includente.

Nesse sentido, o programa destaca a necessidade de se obter pela contratação pública, a maior efetividade dos direitos fundamentais, como bem assegurar que todo o processo de negociação e execução seja delimitado pelos critérios de sustentabilidade e suas diversas dimensões. Portanto faz-se necessário o cumprimento da norma ambiental, social e laboral; aplicação ambiental, social e laboral; adoção de medidas necessárias a alcançar o desenvolvimento sustentável; ecoinovação e inovação social; a desnecessidade de um procedimento de concurso em caso de aquisição direta de fornecedores de matérias-primas, dentro do rol exemplificativo configura produtos agrícolas; liberdade para as entidades públicas adquirem produtos e serviços com características específicas do ponto de vista ambiental, social ou outro, […] podem utilizar determinados rótulos, por exemplo, os rótulos ecológicos, nacionais ou plurinacionais.

Todos os contratos, salvo algumas restrições ou exclusões, (quando houver e for de acordo com o direito da União), devem observar as normas europeias (MAURER, 2006, p. 96-99) sobre a adjudicação no setor público, isso quer dizer que as entidades adjudicantes devem respeitar as liberdades estatuídas no Tratado de Lisboa, dentre elas o respeito pelos direitos fundamentais, liberdade de movimentação dentro do espaço europeu, livre circulação de bens, prestação de serviços, igualdade no tratamento, não discriminação, transparência e respeito pelas tradições jurídicas dos Estados-membros.

No nível interno, a há uma regulação direta para as compras públicas ecológicas, Regulação do Conselho de Ministros n.º 38/2016 (PORTUGAL, 2016), entretanto, as questões relacionadas às aquisições sustentáveis ficarão mais ao alvedrio do  entendimento a ser dado ao Código dos Contratos Públicos (CCP) após a transposição, através do Decreto-Lei n. 111-B/2017, de 31 de agosto, com os princípios estabelecidos na Diretiva/24/EU, vez que essa abre à Administração Pública as possibilidade de utilizarem considerações de cariz ambiental, social e inovativos, especificamente, o título III, arts. 74º. e seguintes da Diretiva.

Dessa forma com a transposição da Diretiva, o Código dos Contratos Públicos (CCP) estabelece no seu art. 42º. – Caderno de encargos, a fixação de critérios sociais e outras dimensões relacionadas à sustentabilidade e suas diversas dimensões. As dimensões destacadas supra sobre “natureza social, ambiental ou que destinem a favorecer: a) igualdade de género e da igualdade salarial no trabalho; b) aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho; […]; d) inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.”, estão bem delineadas no inciso 6, do art. 42º., do CCP (PORTUGAL, 2008).

Outra questão de suma importância para implementação dos preceitos constitucionais, é o atendimento ao princípio da não discriminação, como forma de se abrir à concorrência ao maior número de participantes possíveis (art. 49º./4, do CCP). Nesse ponto específico, é importante o disposto no art. 49º., do CCP, que aduz no seu inciso n.º 2:

“As características exigidas para as obras, bens móveis e serviços podem também incluir uma referência ao processo ou método específico de produção ou execução das obras, bens móveis ou serviços solicitados ou a um processo específico para outra fase do seu ciclo de vida, mesmo que tais fatores não façam parte da sua substância material, desde que estejam ligados ao objeto do contrato e sejam proporcionais ao seu valor e seus objetivos.” (PORTUGAL, 2008)

Ainda cabe destacar que para aferir a procedência de determinados produtos ou bens a ser adquiridos a Administração Pública pode exigir a apresentação de Rótulos, Certificação de que os produtos são originários de um determinado modo de produção que atendam aos requisitos sociais, ambientais, laborais, dentre outros (art. 49.º-A e incisos).

Em termos legislativos, a transposição da Diretiva 2014/24/UE para o ordenamento interno português, através do Decreto-Lei 111-B/2017, conjugado com a Resolução 38/2016 do Conselho de Ministros, as compras sustentáveis ganham um grande impulso, em termos práticos, busca-se a integração das diversas dimensões da sustentabilidade no campo da contratação pública, e, o Comércio Justo e Solidário pode desempenhar uma grande função, para a consecução das políticas de cariz sociais, ambientais e inclusivo.

 

7.      O Sistema Brasileiro de Comércio Justo e Solidário (SCJS)

No Brasil, existe um complexo de normas que asseguram o funcionamento de um Sistema de Comércio Justo e Solidário (SCJS) e de Segurança Alimentar, com intuito de fortalecer as economias locais e incrementar a permanência do produtor no campo foi criado pela Lei Federal n.10.696/03, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a partir de uma articulação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) com o governo federal brasileiro, no âmbito das discussões pertinentes ao Programa Fome Zero. Essa Lei estabelece os critérios de aquisições, sob isenção de licitação, a preços compatíveis com o mercado regional, dos produtos adquiridos de pequenos produtores ou produtores familiares, destinados a hospitais, a escolas, presídios, dentre outros. No âmbito SCJS, a Lei Orgânica da Segurança Alimentar e Nutricional, Lei 11.346/06 [LOSAN], antes mesmo da Constituição estabelece que “a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população” (art. 2º.). Também estabelece o direito à segurança alimentar e nutricional definindo-a como “Acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, promoção de práticas alimentares promotoras da saúde” (art. 3º.); dispõe que a segurança alimentar, dentre outras inclui a “conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos”; garantias nutricionais dos alimentos; “a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País” (art. 4º. incisos); Também no âmbito dessa Lei, foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar (SISAN) – onde são fixados os marcos orientadores das políticas públicas na área da alimentação e nutrição (arts. 7º. – 10º.). Na mesma toada, a Lei nº 12.512/11, institui o Programa de Apoio à Conservação Ambiental e o Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais. Altera as Leis n.º 10.696/03, 10.836/04, e 11.326/06. Esta Lei é regulamentada no seu Capítulo III da Lei no 12.512/11, pelo Decreto no. 7.775, de 4 de julho de 2012.

Também fator importante para a melhoria de vida das pessoas no Brasil é o papel da Agricultura Familiar que responde por mais de 84% da maior parte dos alimentos produzidos no Brasil num espaço de 24,3% de terras disponíveis, ou seja, a maior concentração de terra está nas mãos das agroindústrias (monoculturas). Enquanto os recursos aos produtores de mercadorias mais sustentáveis são excluídos dos programas de financiamento ou limitado a um pequeno valor, um fator que chama atenção no Brasil, é que, enquanto a agricultura familiar que se apoia em técnicas mais sustentáveis, obteve um implemento de 4,1 bilhões em 2002/2003 para 18 bilhões de 2012/2013, a agroindústria passou de 20,5 para 115 bilhões no mesmo período, mesmo elas respondendo por métodos não sustentáveis, haja serem os maiores usuários de produtos tóxicos na produção de alimentos. Fato que contribui para alçar o Brasil como maior consumidor de agrotóxicos do mundo, respondendo por quase 1/5 (um quinto) do consumo mundial segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA).

 

8.      A economia social na adjudicação dos contratos públicos

Em uma sociedade de risco na qual as políticas climáticas demandam por uma nova visão de mundo (BECK, 2015, p. 18-19), tanto as empresas quanto os governos, precisam definir novas balizas para contratação. No setor público, isso é mais evidente, pois, como o Estado tem um grande poder de aquisição de bens e serviço, deve através desse poder, buscar implementar políticas que sejam mais sustentáveis, ou na designação da Comissão Europeia, contratos que sejam “melhores para o meio ambiente”. Isso respeitando um limiar de valores estabelecidos pelas Diretivas de 2014. O enquadramento jurídico dos Contratos Sustentáveis e Ecológicos está diluído em normas das Diretivas, TFUE, OMC e Código dos Contratos Públicos (CCP).

Essa nova visão do contrato como forma branda de o Estado chamar a atenção para políticas públicas (RAIMUNDO, 2013, p. 394-405) que beneficiem a todos, isso estaria diretamente ligado à função do Direito Administrativo e à concretização dos direitos fundamentais, pois embora muitos não consigam distinguir, mas “[…] de forma quase insensível para os menos atentos, o direito administrativo regula diretamente grande parte dos aspectos essenciais da vida em comunidade: […]” (SOUSA E MATOS, 2008, p. 35). Nesse sentido, o Estado tem uma obrigação de direcionar suas atividades no intuito de alcançar a “realização ou concretização” dos direitos constitucionais dos indivíduos, e “a contratação pública é um instrumento formidável de atuação das entidades públicas e de afetação de recursos públicos. As entidades públicas, na sua veste de entidades adjudicantes, têm a obrigação de exercer o seu poder de compra de forma ética, social e ambientalmente responsável” (ESTORNINHO, 2016, p. 7). Tais atitudes do ente administrativo fazem-se necessárias, como afirmação do primado constitucional em relação aos direitos fundamentais, pois uma ordem constitucional existe para realização ou tentativa de implementação de um Estado Constitucional sustentável em todas suas vertentes.

Tal ideia vem sendo defendida como uma forma de realocação das prioridades do Estado (ESTORNINHO, 2016, p. 7), para tanto, é mister que se realize uma mudança paradigmática de velhas crenças, pois como defende Maria João ESTORNINHO,

“Ao contrário do que se quis fazer crer nas últimas décadas, os contratos públicos não são oportunidade de negócio para as entidades públicas (negócios que acabam por se revelar, em tantos casos, ruinosos para o erário público e para os cidadãos), mas sim instrumentos de realização de tarefas públicas, ao serviço das mais variadas políticas públicas.” (ESTORNINHO, 2016, p. 7)

Essas políticas públicas devem ser norteadas pela efetivação dos direitos fundamentais, se forem tomados, com exemplo, os direitos sociais, nesse caso, como bem destaca o professor Jorge MIRANDA deve-se ter como partida: “A atenção prestada às situações de facto (não só económicas, mas também mentais, físicas, culturais e ambientais) em que se encontram os indivíduos titulares de direitos; A consideração da necessidade e da possibilidade de agir sobre tais situações de facto, conformando-as, corrigindo-as ou superando-as.” (2006, p. 48)

Sob essa perspectiva, o Estado tem a obrigação de usar a sua força de compra para criar um ambiente sadio que conjugue a criação de políticas de modo a que se efetivem os direitos sociais (fundamentais) como consequência. Nesse sentido, o procedimento administrativo, como destaca o professor Paulo Otero, “[…] revelou-se “local” de satisfação de direitos fundamentais de natureza procedimental e, simultaneamente, instrumento de realização de direitos fundamentais substantivos: o procedimento tornou-se a “antecâmara” de realização de posições jurídicas materiais;” (OTERO, 2017, p. 37), sob essa perspectiva, o Estado tem o dever de buscar através dos seus processos de adjudicação, a efetivação de direitos estabelecidos para os cidadãos. Isso se deve à viragem dogmática de uma administração que era pautada em uma “lógica racionalizadora e dinamizadora da eficiência” para uma administração permeada por propósitos garantísticos, embasado nos direitos fundamentais (ESTORNINHO, 2016, p. 7).

 

Conclusão

Na sociedade atual, é preciso estar atento às mudanças das necessidades humanas. Não se pode descurar do papel do Estado como vetor de transformação da realidade dos seus cidadãos. Nesse ponto, a contratação pública tem um papel fundamental, pois como grande poder de compra que a Administração possui, pode influenciar em muito nas condutas dos parceiros com que contratam com ela, pois, requisitar produtos ou serviços que contribuam para melhorar a vida da comunidade não deve ser algo lateral à contratação, pelo contrário, deve ser um objetivo a ser afirmado cada dia pelas entidades públicas, tais objetivos estão expressos, na Diretiva 2014/24/EU, nas Comunicações do Conselho de Ministros (Portugal), no Código dos Contratação Públicos, nos Acordo da OMC sobre Compras Governamentais [Agreement on Government Procurement] (GPA), e nas Leis brasileiras.

Nesse sentido, pode-se vislumbrar um futuro mais sustentável, entretanto, esse desenvolvimento, agora, deverá ser pautado pela conduta responsável dos agentes públicos em todas as suas etapas. Tanto as Leis brasileiras, quanto a Diretiva europeia e o CCP, abrem as portas a potenciais inovações na área da contratação pública, não sendo a adjudicação de contratos um mero agir administrativo, mais um agir orientado para a busca da sustentabilidade em todas as suas dimensões, ambientais, sociais e econômica. A responsabilidade social, agora, é um objetivo fundante da contratação pública.

Isso se pode aferir das disposições das Leis e da Diretiva, quando defere ao poder público a possibilidade de se buscar uma contratação que seja, mais amiga do ambiente e da sociedade. Nesse sentido, é possível que a administração pública na sua atividade contratual, não busque tão somente a contratação baseada nos custos diretos, mas ao contrário, que se busque uma contratação que seja baseada em princípios de justiça e solidariedade, inclusive, podem exigir dos fornecedores que forneçam produtos de origem do Comercio Justo e Solidário.

 

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[1] Nesse sentido cf. relatório 169/11, Caso 12.066, O caso diz respeito à responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violações da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em um contexto no qual dezenas de milhares de trabalhadores foram submetidas anualmente ao trabalho escravo. Disponível em http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/corte/2015/12066FondoPt.pdf, acessado em 30 de agosto de 2017.

[2]A subnutrição pode ser causada por dois fatores: a alimentação deficiente ou a falta de alimentos (geralmente são indissociáveis). A alimentação deficiente (está relacionada ao tipo de escolha do indivíduo – escolha do cardápio – alimentos pobres). Essa alimentação deficiente mata a fome, mas não fornece os elementos essenciais, como vitaminas e sais minerais, necessários para o bom funcionamento do organismo.

[3] Nesse sentido INMETRO – Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia [Brasil], acreditador oficial do Estado Brasileiro, define a Avaliação de Conformidade como um “exame sistemático do grau de atendimento por parte de um produto, processo ou serviço a requisitos especificados.”, Avaliação da Conformidade, 6ª. Edição, disponível em: www.inmetro.gov.br/infotec/publicacoes/acpq.pdf, acessado em 14 de setembro de 2017; também nesse sentido é a Law on Technical Requirements and Conformity Assesment of Products With Prescribed Requiremnet, art, 1 e ss, disponível em: https://www.wto.org/english/thewto_e/acc_e/cgr_e/WTACCCGR30A2_LEG_6.pdf, acessado em 15 de setembro de 2017; em Portugal, o Instituto Português de Acreditação, I.P. (IPAC), é o organismo oficial do Estado Português, regido pelo DRC001 [Regulamento Geral], de 18 de junho de 2012, disponível em: http://www.ipac.pt/docs/publicdocs/regulamentos/DRC001.pdf, acessado em 15 de setembro de 2017. Esse Instituto segue o regulamento da União Europeia [Reg. 765/2008] em matéria de Acreditação, do qual é parte integrante da infraestrutura da União Europeia de Acreditação, a European cooperation for Accreditation (EA), disponível em: www.european-accreditation.org, bem como das estruturas mundiais de acreditação, a International Laboratory Accreditation Cooperation (ILAC), disponível em:  www.ilac.org, e o International Accreditation Forum (IAF), disponível em: www.iaf.nu. .

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