Resumo: em muitos casos os médicos se recusam a aceitar a opção dos pacientes ou seus representantes por tratamento diverso da transfusão sanguínea recomendada. Esse comportamento, porém, não pode prevalecer. As escolhas existenciais, notadamente as decorrentes de convicções religiosas, sobressaem-se. A opção por um tratamento decorre da autonomia de vontade, expressão da liberdade que é inerente a todo ser humano (dignidade humana). No caso das Testemunhas de Jeová, essa autonomia expressa a autodeterminação pessoal, advinda de escolhas individuais, a partir da liberdade de religião. E nenhuma espécie normativa pode atentar contra essa manifestação da liberdade. O caso das Testemunhas de Jeová, assim colocado, permite, então, uma análise dedutiva mais precisa sobre parte do conteúdo da liberdade inerente à condição humana, e seu cotejo com as delimitações da bioética. É o que se pretende neste trabalho. *
Palavras-chave: Testemunhas de Jeová. Transfusão de sangue. Liberdade. Dignidade humana. Autodeterminação.
Abstract: in many cases doctors refuse to accept the choice of the patients or their representatives for different treatment than the recommended blood transfusion. This behavior, however, can not prevail. The existential choices, especially due to religious beliefs, stand out. The choice of treatment results from the freedom of choice, an expression of freedom that is inherent to every human being (human dignity). In the case of Jehovah's Witnesses, this autonomy expresses personal self-determination, arising from individual choices, from the freedom of religion. And no rules may undermine this manifestation of freedom. The case of Jehovah's Witnesses, so placed, then allows more precise analysis on some of the content of libertyinherent to the human condition, and its comparison with the delimitations of bioethics. Is what we want in this work.
Key-words: Jehovah's Witnesses. Blood transfusion. Freedom. Dignity of the human person. Self-determination.
Sumário: Notas iniciais: aproximação com a bioética; 1. A liberdade do art. 5º, II, da Constituição; 2. A liberdade religiosa e/ou liberdade de crença; 2.1. O papel cotramajoritário; 2.2. Há limites à liberdade de religião? O falso problema da ponderação e a prevalência da dignidade humana; 3. A autonomia como expressão da dignidade humana; 3.1. Autonomia, beneficência e não-maleficência; 3.2. A liberdade como autodeterminação; 3.2.1. Livre consentimento informado, formalizado ou inegável; 3.2.2. Teoria do menor amadurecido e representação; 4. Conclusão; 5. Notas. Referências.
Notas iniciais: aproximação com a bioética.
Não há um consenso sobre o conceito ou o que vem a ser liberdade e, maiormente, o conceito de direito à liberdade. A liberdade pode ser vista por diferentes prismas, como o político, o sociológico, o filosófico, o jurídico-constitucional, etc.[1]
Talvez mais importante do que conceituar liberdade seja buscar sua aplicação prática, identificando seu conteúdo, ainda que parcialmente, o que permitiria seu exercício.
Para o caso daqueles que professam a religião Testemunhas de Jeová, cuja interpretação do texto bíblico impede que recebam a transfusão de sangue (Gênesis 9:3-6 e Atos 15: 19-21), essa última afirmação parece ter muito sentido. Independentemente da definição que se dê à liberdade, interessa a essa parcela da população extrair seu conteúdo e sua amplitude quando eles recusam ou querem recusar a transfusão sanguínea considerada como adequada pelos médicos que os assistem.
O escopo deste artigo, justamente, é delimitar a liberdade em seu sentido prático, a partir do caso das Testemunhas de Jeová. Obviamente que não se fará isso prescindindo-se das formulações sobre liberdade que já se acumularam ao longo dos anos. A abordagem, por isso, dar-se-á a partir do raciocínio indutivo-dedutivo: dedutivo a partir da doutrina escrita sobre o tema (premissas); indutivo porque se analisará o caso dos adeptos da religião Testemunhas de Jeová que optam por tratamento outro que não a hemotransfusão para se estabelecer parte do conteúdo da liberdade.
Especialmente, enfrentar-se-á a temática proposta no campo da bioética e do Biodireito, muito com fulcro no que se acredita ser o fio condutor entre Direito e Medicina, a dignidade da pessoa humana.[2]
E isso porque a bioética “representa um vetor do conhecimento que procura conciliar a vida interdisciplinarmente, com o avanço técnico-científico” (NAMBA, 2015, p. 11). Tendo-se assim, como consequência, um fértil campo para tomada de posições dentro do Biodireito.
É o diálogo dentro do Direito e sua composição com a (bio)ética,[3] “ocupando-se da formulação das regras jurídicas em relação à problemática emergente do progresso técnico-científico da Biomedicina”. Afinal, “O Biodireito questiona sobre os limites jurídicos da licissitude da intervenção técnico-científica possível”(BARACHO, 2004, p.14, online).
1. A liberdade do art. 5º, II, da Constituição Federal.
A primeira perspectiva em que a liberdade pode ser enquadrada refere-se ao princípio constitucional da legalidade, estampado logo no inc. II do art. 5 º da Constituição.
Segundo esse dispositivo, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. “Vale dizer, o princípio é o de que todos têm a liberdade de fazer e de não fazer o que bem entenderem, salvo quando a lei determine em contrário” (SILVA, 2007, p. 82, item 2).
A norma que daí se extrai assume muita importância na seara penal, com repercussão nos incisos XXXIX e XL do art. 5º da Constituição. Com base nela (nullum crimen nulla poena sine lege), para fins penais, todo ser humano pode fazer aquilo que não está tipificado na lei penal como crime.[4] No Direito Penal não existem lacunas; existem espaços jurídicos vazios, ou normas gerais exclusivas, obstando-se a analogia:[5] ou o comportamento está expressamente proibido ou está permitido.
A norma também tem extrema relevância na (clássica) summa divisio entre Direito Público e Direito Privado: na seara privada se pode fazer tudo aquilo que não se encontra vedado em lei; na seara pública só se pode fazer aquilo que a lei autoriza/determina.
Nessa perspectiva, as Testemunhas de Jeová poderiam optar por tratamento médico alternativo à hemotransfusão, porque essa atitude não consistiria num ato vedado pela lei. Da mesma forma, um hospital público não poderia desrespeitar a vontade de um praticante dessa religião à mingua de lei impositiva, enquanto um hospital privado não poderia desrespeitar a vontade dum praticante dessa religião porque a autonomia negocialregeria a conduta deambas as partes (instituição médica e paciente-contratante), que teriam de ser concordes no tratamento.
A toda evidência, a questão não se apresenta assim simples.
Nesta perspectiva que se analisa, bastaria um lei ou outro ato normativo (como uma resolução do Conselho Federal de Medicina, por exemplo) para que aquilo que fosse permitido passasse a ser proibido e/ou obrigatório: o médico (do setor público ou do privado) poderia ser compelido, por lei (gênero), a atuar contra a vontade do praticante da religião Testemunhas de Jeová, sob pena de responsabilização (criminal ou outra), assim como o próprio paciente (por exemplo se uma norma penal punisse a autolesão em razão de opção desconforme à indicação médica).
Aliás, se mal interpretados, os artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica (Res. 1.931/09 do CFM) podem expressar a aludida obrigação do médico em realizar a hemotransfusão, ainda contra a vontade do paciente, desde que interprete haver “iminente risco de morte”. Assim também a Res. 1.021/80 do CFM.[6]
Como se vê, então, essa perspectiva, na prática, é limitada para atender aos anseios dos praticantes da religião Testemunhas de Jeová. A liberdade que decorre do dispositivo constitucional que consagra o princípio da legalidade cede à obediência formal, a priori, bastando a edição válida de uma norma para limitar escolhas existenciais, manifestações pessoais e religiosas, convicções, etc.
Daí que um fundamento maior deve ser buscado para fazer valer a liberdade daqueles que professam e querem por em prática um determinada fé.O conteúdo, a materialidade, e a fundamentalidade do direito à liberdade devem ser buscados como forma de impedir a restrição à liberdade aludida. E alguns outros desdobramentos da liberdade se colocam como relevantes instrumentos para assegurar o exercício dessa fé.
2.A liberdade religiosa e/ou liberdade de crença.
O primeiro que vem a lume no caso dos praticantes da religião Testemunhas de Jeová, claro, é a liberdade religiosa.
Como se posiciona Nelson Nery, não poderia o Estado, por meio de lei, portaria ou regulamento, obrigar a transfusão de sangue em contrariedade ao exercício da liberdade, “até porque essa conduta seria, no mínimo, contraditória, afinal, de nada valeria assegurar o direito à liberdade religiosa no texto constitucional e o negá-lo na prática” (NERY JUNIOR, 2012, p. 398).
Nesse sentido, sobre a liberdade religiosa, Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1994, p. 20)pontificou que “Realmente, é ele a principal especificação da naturezahumana, que se distingue dos demaisseresanimaispelacapacidade de autodeterminaçãoconsciente de suavontade”.
O conteúdo da liberdade religiosa (e não só seu conceito) abrange não só a liberdade de crença, de acreditar, mas, mais importante, também a liberdade de colocar em prática a fé que se professa, mediante atos que não prejudiquem terceiros.[7]
Dessa maneira, o Estado e o particular não podem criar empecilhos ao exercício da crença religiosa (ou mesmo não religiosa), inviabilizando ações práticas. Pelo contrário, ao Estado cabe a promoção e proteção dessa manifestação da liberdade humana, abstendo-se de qualquer medida embaraçante (viés negativo) e assegurando o exercício contra particulares (eficácia horizontal dos direitos fundamentais)[8] e com medidas de incentivo (viés positivo), tais como responsabilização administrativa, civil e até criminal de quem discrimina por motivos religiosos (L. 7.716/89),[9] e a imunidade tributária a templos e cultos, por exemplo (art. 150, VI, b, da Constituição).
Impor aos médicos, em âmbito público ou privado, legalmente, ou por dever deontológico da profissão, a obrigação de realizar a transfusão de sangue contra a vontade do paciente não se sustenta à luz da liberdade religiosa, faceta da liberdade (ampla). A espécie normativa (resolução, lei, portaria, etc.) formalmente válida não resistiria ao conteúdo (fundamental) do direito à liberdade, manifestada na liberdade religiosa e/ou de crença.
Vale dizer, não há nem pode haver lei, regulamento, portaria ou Resolução que obrigue o paciente a se sujeitar a abrir mão de suas convicções religiosas, impedir de colocá-las em prática, mediante a invocação de que existe uma lei ou outra espécie normativa, porque essa espécie normativa afrontaria a mais não poder preceito constitucional cujo conteúdo material não cede ao formalismo (à simples reserva de lei).
2.1.O papel contramajoritário.
Usar do art. 5º, II, da Constituição para impor obrigações aos médicos para desconsiderarem a vontade do paciente, ou mesmo impor o dever de o paciente se submeter a determinado tratamento médico contra sua vontade reflete a mentalidade discriminatória da maioria frente a uma minoria cujos ideais não são os mesmos.
Na contramão, é objetivo da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisqueroutrasformas de discriminação” (art. 3º, IV, da Constituição). Ou seja, é próprio do Estado (Socioambiental) Democrático de Direito a defesa das minorias éticas, religiosas, ideológicas, etc.
Na esteira das lições de Barroso, é papel incontornável da Constituição fundante de um Estado Democrático de Direito proteger direitos e valores fundamentais ainda que contra o interesse, vontade ou mentalidade da maioria (BARROSO, 2009, p. 8, online), que é sempre circunstancial.
E com Nery, sob pena de descaracterizar o Estado Democrático de Direito, “Os praticantes da religião Testemunhas de Jeová, enquanto minoria, devem ter seus direitos constitucionais preservados, sendo-lhes assegurada sua dignidade e liberdade religiosa”, de modo que o Estado não pode se substituir a atuação do cidadão (NERY JUNIOR, 2012, p. 399-400).
Os direitos fundamentais justamente podem assumir estrutura jurídica de direito-liberdade, pela qual ao titular o exercício “gera a ausência de direito de qualquer outro ente ou pessoa”, como na liberdade de religião, “não possuindo o Estado (ou terceiros) nenhum direito (ausência de direitos) de exigir que essa pessoa tenha determinada religião”(RAMOS, 2015, p. 27), ou mesmo adote suas práticas.
O fundamento da liberdade religiosa, de crença e de convicção é justamente o respeito das fés e práticas desconformes entre diversas religiões efilosofias de vida. A liberdade no exercício da religião escolhida exige que o Estado respeite essa opção e impõe-lhe a obrigação de protegê-la contra terceiros.
E essa faceta do direito à liberdade, por si só, faz-se óbice à intromissão estatal e/ou particular, ainda que suscitada pela vontade da maioria, ainda que por lei (ou regulamento, ou provimento, ou portaria, ou resolução), a qual, se viesse ao mundo jurídico, seria materialmente inconstitucional, materialmente contrária à liberdade de religião e/ou crença.
Dessa forma, as Testemunhas de Jeová têm protegida contra o Estado e terceiros sua crença religiosa e o exercício desta, mesmo que os demais concidadãos discordem de suas práticas.
2.2.Há limites à liberdade de religião? O falso problema da ponderação e a prevalência da dignidade humana.
A liberdade de religião, como qualquer outro direito fundamental, sofre restrições.[10] Não há dificuldade em se responder a uma indagação nesse sentido. Agora, há de se perquirir em que hipóteses são legítimas essas restrições.
Os direitos fundamentais podem sofrer restrições em razão da promoção de outros direitos fundamentais. Como critério para legitimar a restrição, erigiu-se o da proporcionalidade como critério aplicável (seja qual for sua natureza: princípio, regra, postulado, máxima).[11]
Nessa toada, muitos sustentam que a vida, dentro do critério da proporcionalidade, como direito fundamental, prevalece sobre a liberdade. Como se a questão resolvesse-se com a eleição duma escala abstrata de valores: vida prepondera sobre crença.
Mas essa visão não resiste a duas constatações.
Em primeiro lugar, há de se enfatizar que o caso das Testemunha de Jeová escapa à chamada ponderação de princípios.
Essa técnica, na sua fonte de construção (Robert Alexy), só tem cabimento quando o exercício de um direito fundamental prejudica direito fundamental alheio, de terceiro.[12] Ao revés, quando da recusa pelo tratamento que envolve transfusão de sangue, a Testemunha de Jeová não prejudica direito alheio, de tal modo que o “conflito de princípios” se mostra como um falso problema.
Como sustenta Nelson Nery Júnior (2012, p. 394): “quando o praticante dessa religião exerce seu consentimento informado e se recusa a realizar qualquer procedimento médico ou cirúrgico que envolva transfusão de sangue, em hipótese alguma está atentando ou pondo em risco direito fundamental de outrem”. Situação que seria diferentemente interpretada se a doença, por exemplo, fosse contagiosa e atingisse direito fundamental alheio (tal qual a saúde)
Em segundo lugar, se houvesse a necessidade de ponderação, não se poderia abstrativizar o valor dos direitos fundamentais numa escala (vida prepondera sobre crença). A ponderação se dá no caso concreto e, principalmente, a partir da dignidade da pessoa humana.
Como salienta Cármen Lúcia Antunes Rocha (2004, p. 70), a dignidade humana é fundamento para os demais direitos e estrutura para o Estado Democrático, ela vem antes, é pressuposto,[13] de tal modo que, na ponderação, a balança deverá sempre pender em favor do direito fundamental que realize a dignidade humana em maior medida.
Claro que a definição do conteúdo da dignidade humana suscita dúvidas e embates, especialmente o normativo. Sem embargo, aos poucos se vem chegando a um mínimo de consenso com relação a alguns pontos.
No que pertine, então, ao caso das Testemunhas de Jeová e o exercício de sua liberdade, deve-se compreender a dignidade humana em seu aspecto existencial,[14] como se mostrará mais a frente.
Na dignidade da pessoa humana, pilar estruturante do Estado Democrático de Direito e inspiração única para os demais direitos fundamentais, a vida não só é constituída de elementos biológicos como também morais, emocionais e espirituais, os quais fatalmente serão atingidos com a transfusão indesejada pelo praticante da religião Testemunhas de Jeová (MARTINS; VIEIRA, 2009,p. 83).
Dessa forma, “ao recursar tratamento envolvendo hemotransfusão, o paciente [Testemunhas de Jeová] está a invocar o direito à própria vida, o qual engloba os direitos da personalidade, que se vinculam aos valores inerentes à pessoa e, portanto, à sua dignidade” (Id., Ib., p. 83 e 86). Caso o paciente recebesse a transfusão contra sua vontade, passaria a ser considerado impuro por ele próprio e pelas pessoas de sua relação íntima, ferindo-o de morte em sua essência. O paciente praticante da religião sobreviveria, mas não mais viveria, então.
Sem esses atributos imateriais o ser humano não se diferenciaria do animal. Por isso o constituinte originário, ao erigir a dignidade humana como fundamento do Estado Democrático, cravou-a como fonte normativa dos demais direitos. Dele emergem os demais; a partir dele se extrai coerência e unidade entre todos os direitos. Nesse caso, em havendo ponderação (supondo-se não ser um falso problema), deve-se privilegiar o direito fundamental mais consentâneo com a dignidade humana, que, na espécie, consistente na liberdade de religião (Id. Ib., p. 84).[15]
Vale dizer, sequer há conflito entre direitos fundamentais (na ausência de lesão direito alheio), e se houvesse, as escolhas existenciais ainda assim prevaleceriam, porque por elas realizam a dignidade humana.[16]
3.A autonomia como expressão da dignidade humana.
A liberdade em muitas ocasiões é equiparada à autonomia, ao livre arbítrio, à livre escolha. Mas mais do que isso, como autonomia, ela representa expressão da dignidade humana.[17]
Tem-se por claro da exposição até aqui que a liberdade religiosa é manifestação da autonomia na perspectiva dos direitos individuais. Aliás, consiste em direito da personalidade (AZEVEDO, 2012, p. 278-9).
Justamente, “Autonomia refere-se ao poder que tem a pessoa de tomar decisões com base em valores, crenças, expectativas e prioridades, de forma livre, esclarecida, dentre as alternativas que se apresentam (…)” (MARTINS; VIEIRA, 2008, p. 87).
Por isso é que Barroso, em parecer sobre o tema, quando da análise da dignidade da pessoa humana afirma que, “no plano dos direitos individuais, ela se expressa na autonomia privada, que decorre da liberdade e igualdade das pessoas”. E vai mais longe, afirmando que “integram o conteúdo da dignidade a autodeterminação individual e o direito ao igual respeito e consideração”, porque as “pessoas têm o direito de eleger seus projetos existenciais e de não sofrer discriminações em razão de sua identidade e de suas escolhas”(BARROSO, 2012, p. 349).
Nessa linha, prevalece a dignidade da pessoa humana como autonomia privada nos casos em que as pessoas optam por determinados tratamentos médicos por suas convicções (filosóficas, políticas, econômicas, etc.), maiormente religiosas. E para tanto se superou o paternalismo médico, pelo qual o médico podia, antes, substituir-se à vontade do paciente e impor qualquer espécie de procedimento médico (Id., Ib., passim).
3.1.Autonomia, beneficência e não-maleficência.
Já na seara do Biodireito, ao lado da autonomia, são princípios básicos da bioética a beneficência e não-maleficência.
Conforme a definição de Maria Helena Diniz (2014, p. 38-40), pelo princípio da autonomia, requer-se do profissional de saúde o respeito da vontade do paciente ou de seu representante legal, “levando em conta, em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas”, isso a partir de sua capacidade de autogovernar-se, de sua intimidade, e do domínio de sua vida.
Já o princípio da beneficência expressa o dever de o médico só poder usar o tratamento para o bem do paciente, na conformidade de sua capacidade. E o princípio da não maleficência “é um desdobramento do da beneficência, por conter a obrigação de não acarretar dano intencional”.
Esses princípios (além do princípio da justiça ou da equidade) fincam as bases jurídico-éticas para o desenvolvimento de toda e qualquer atividade científica (biomédica, biogenética, de pesquisa em humanos e animais, etc.), sem hierarquia pré-estabelecida.
A partir da visão segundo a qual a dignidade humana tem em si, como conteúdo, as aspirações existenciais, um médico não pode mais isolar o tratamento curativo da pessoa e suas escolhas morais. Não se faz bem à saúde fisiológica/biológica fazendo mal à saúde espiritual, emocional, moral, existencial.[18]
Por isso que um tratamento não pode ser imposto à força. A proteção da integridade física como direito da personalidade do art. 15 do Código Civil não possui outro fundamento senão este. A questão não se reduz à escolha na autorização para a intervenção sobre o corpo, porquanto a pessoa constitui-se não só dele (matéria), mas de alma, sentimento, ideologias, etc.
O que se tem de perceber é que o princípio da autonomia na relação médico-paciente assegura a expressão do ser humano a ser assistido in totum, em corpo e alma, mediante o respeito a suas escolhas e convicções pessoais (sejam filosóficas, religiosas, políticas, etc.), e que, muitas vezes, fazer-lhe o bem (beneficência) ou não lhe fazer o mal (não maleficência), como prática médica, consiste no respeito à autonomia privada do paciente.
O médico não mais trata o corpo mediante relação de autoridade, mas trata a pessoa, mediante relação de respeito e confiança mútuos. Por isso que Cláudio da Silva Leiria afirma que “Deve-se deixar bem claro que o princípio da beneficência requer que o médico faça o que beneficiará o paciente, mas de acordo com a visão deste, e não com a do médico”(LEIRIA, 2012, p. 323).
Enfim, a beneficência e a não maleficência, para as Testemunhas de Jeová, realizam-se pelo respeito à autonomia, expressão da liberdade, notadamente a liberdade de religião e de crença, que, por sua vez, é expressão da dignidade humana.[19]
3.2.A liberdade como autodeterminação.
Partindo-se do pressuposto acima alinhavado de que a dignidade da pessoa humana tem como conteúdo as escolhas morais, existenciais, sentimentais, e isso como exercício da autonomia, não há como não se reconhecer a manifestação da liberdade como autodeterminação (individual).
Partindo do conceito de Alexandre de Morais sobre dignidade humana como um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida, Álvaro Villaça pondera que “a autonomia e a liberdade integram a dignidade”, de modo que, para ele, a vida assegurada na Constituição “é a vida com autonomia e liberdade” (AZEVEDO, 2012, p. 272).[20]
Os praticantes da religião Testemunhas de Jeová precisamente reconhecem-se como pessoas por suas práticas e crenças. Eles possuem suas convicções e traçam suas normas morais cujo descumprimento levam-nos à punição mais severa: a desgraça pessoal, o não conseguir aceitar-se, não conseguir viver consigo próprio e com as pessoas que prezam.
A adoção dessa religião, sua aceitação com seus dogmas, consiste numa escolha de vida, uma parte da formação do caráter, da pessoa individualizada, em sua complexidade.
Ou seja, o exercício da liberdade, a manifestação da liberdade religiosa ou de crença, implica uma escolha de como viver a vida, a autodeterminação, aquela faceta da dignidade humana que autoriza ao homem o desenvolvimento de sua autonomia (sem prejudicar terceiros).
As escolhas existenciais caracterizam o ser humano (autodeterminação), qualificam-no como tal, e seu desprezo o torna um objeto de intervenção, e como todo objeto, escravo da manipulação, sem liberdade, sem dignidade, sem escolhas, na melhor acepção do pensamento kantiano.
3.2.1.Livre consentimento informado, formalizado ou inegável.
O chamado livre consentimento informado, também princípio básico da bioética, caracteriza-se como instrumento do exercício da autonomia, do exercício da liberdade de religião ou crença a ser declarado ao médico, revelando, com ela, a autodeterminação pessoal do paciente.
A partir do consentimento informado o paciente divulga ao médico sua vontade,a qual pode ser baseada em preceitos filosóficos, econômicos, religiosos, sentimentais, não importa.
Para o caso das Testemunhas de Jeová, na iminência do recebimento de uma hemotransfusão, o médico deve advertir sobre os riscos do tratamento e os perigos de sua recusa e colher a manifestação de vontade do paciente.
Essa colheita pode ser formal, mediante assinatura do termo de consentimento (livre e) informado, ou mesmo mediante o que aqui se chamou “livre consentimento inegável”; afinal, como manifestação de vontade sem forma prescrita ou proscrita em lei (art. 104, III, do Código Civil), a colheita da vontade pode se dar por inúmeras formas. O importante é que, como ato jurídico que materializa a autonomia, produz efeitos jurídicos sobre a conduta médica.
A forma documental (formal), suscita menos dúvidas. As dúvidas concentram-se na sua aceitação/obediência em razão do risco de morte (já tratadas acima). Outras manifestação, que aqui se tem por inegáveis, inequívocas, merecem alguma ponderação mais específica.
Estando o paciente consciente, a recomendação e explicação do tratamento deve lhe ser feita pelo médico. Estando ele capacitado, assina o termo médico pela escolha do tratamento (escolha que pode implicar, claro, negação de tratamento).Após a reflexão, a escolha do paciente (ao que se sustenta) tem de ser aceita como expressão da liberdade (religiosa e de crença), como exercício da autonomia, como cumprimento dos princípios da beneficência e não-maleficência.[21]
Caso o paciente não esteja consciente, ao médico se impõe o dever de investigar a manifestação do paciente dada quando do gozo das faculdades cognitivas.
As Testemunhas de Jeová comumente carregam consigo um documento, chamado Instruções e Procuração para Tratamento de Saúde, pelo qual comunicam aos médicos que optaram (quando conscientes) por não receber a transfusão de sangue dentre as opções possíveis de tratamento médico, bem como nomeiam um ou mais procuradores para tomar outras decisões por si enquanto inconscientes.
E esse tipo de expediente não causa espécie (ou, pelo menos, não deveria), porquanto já se vem aceitando os chamados testamentos vitais (diretrizes antecipadas de vontade)[22] e, com muito mais força, vem-se aceitando como manifestação de vontade vinculante a doação de órgãos para depois da morte, substituindo o texto literal da L. 9.439/97 que transmitiria essa autorização para a família.[23] Essa discrepância de tratamento da manifestação da vontade em estado de consciência só revela a não aceitação de uma minoria religiosa, ora. A opção em não se submeter a quimioterapia por motivos pessoais, ainda que econômicos, gera menos celeuma do que a opção do paciente por não receber a hemotransfusão manifestando sua religião.
Na inexistência desse documento, cabe ao médico contatar a família ou quem é do círculo próximo de convivência do paciente para descobrir sua vontade, dentro do tempo que lhe é disponível.
Claro que, se não for possível ao médico tomar contato com a vontade expressa anteriormente ao estado clínico de inconsciência, especialmente naqueles casos emergenciais (o chamado “risco de morte”), o médico deve agir segundo seu dever deontológico baseado no juramento de Hipócrates, sem que isso possa lhe acarretar qualquer responsabilização (civil ou criminal). Mas essa é a última hipótese.
3.2..2.Teoria do menor amadurecido[24] e representação.
No que pertine ao consentimento como expressão da autonomia, que, por tabela, reflete a autodeterminação do paciente, causa alarido a questão dos menores púberes e impúberes. Comumente se alega que os pais que optam por tratamentos diversos à hemotransfusão agridem direito alheio e descumprem seus deveres para com seus filhos. Ou seja, nesse caso, haveria conflito entre a liberdade religiosa dos pais (ou imposta pelos pais) e o direito a vida do menor.
Há de se distinguir três situações.
Por primeiro, para nortear o tema, há de se rememorar que a transfusão de sangue não é tratamento isento de riscos.[25] Dessa forma, a opção por outras formas de tratamento não importam em prejuízo à saúde ou atentado contra a vida.
Em segundo lugar, a capacidade de titularizar e, principalmente, de exercer direitos não pode ser confundida com a capacidade para expressar uma escolha existencial individual. Vale dizer, não é a idade de mais de 18 ou menos de 18 anos que pode segregar aqueles que podem escolher seu projeto de vida daqueles que não podem.[26]
Sobre o ponto, há de se destacar, por exemplo, que o menor de 18 e maior de 16 votam e legitimam-se a ação popular. Podem fazer escolhas políticas, mas não existenciais, então? E outra: os maiores de 16 e menores de 18 possuem capacidade de testar, e, por exemplo, poderiam fazer um testamento para doar órgãos, sem aprovação dos pais.
Independentemente da idade, mas com base na maturidade, vem surgindo a teoria do menor amadurecido.[27] A capacidade de expressar a vontade deve ser aferida das circunstâncias concretas, da maturidade apresentada pela criança/adolescente (ou do deficiente mental), pela capacidade de compreensão da situação que lhe cerca. Se menor de 18 anos, mas com total consciência de sua escolha de vida, de sua religião, seus dogmas e suas práticas, deve ser sua manifestação de vontade (o exercício de sua autonomia) respeitada como expressão da liberdade.
Assim porque o ECA prevê que a criança e o adolescente gozam de liberdade de opinião, expressão, crença e culto (art. 15 e 16, II e III). Assim porque o ECA prevê que acima dos 12 anos a manifestação de vontade vincula a decisão de adoção (art. 28, §§ 1º e 2º).No mesmo sentido está a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança, nos artigos 12.1 e 12.2.[28]
Com base nesses dados é que Álvaro Villaça anota que, “Sendo o direito de escolha de tratamento médico uma materialização da dignidade da pessoa humana, os menores de idade com capacidade de discernimento têm legitimidade para prestar seu consentimento informado”(AZEVEDO, 2012, p. 301).
Tudo para se verificar que, com maturidade emocional, é perfeitamente possível a manifestação sobre o desejo em receber determinado tratamento médico (MARTINS; VIEIRA, 2009, p. 91).
E em terceiro, para aqueles que ainda não podem fazer escolhas existenciais, aplica-se, ainda, o tradicional instituto civil da representação.
Compete aos pais representar os filhos até os 16 anos (art. 1.634 do Código Civil) e assisti-los entre os 16 e os 18 anos. Então, caso não se queira que a criança ou adolescente expresse sua vontade, sua autonomia, coloque em prática sua fé, aos pais caberá a decisão pelo tratamento que julgarem adequado.
E se isso causa espanto ou indique restrição da liberdade, há de se rememorar que essa foi a medida encontrada para legitimar todos os atos praticados pelos menores púberes e impúberes, não havendo questionamento sobre a substituição de vontade em outras situações, como doação de órgãos post mortem ou doação de medula em vida (art. 9º, §6º, da L. 9.434/97) ou mesmo autotransplante (art. 9º-A do mesmo diploma).
As crianças e adolescente Testemunhas de Jeová recebem educação familiar e social, a qual pode incluir a religiosa, e isso passa a constituir sua cultura, sua convicção, sua filosofia de vida. “Por isso mesmo, forçá-los a aceitar o procedimento significa invadir todo o seu ser, pela supressão da capacidade moral que se afigura indispensável para o enfrentamento da provação, independentemente do seu desfecho” (MARTINS; VIEIRA,2009, p. 92).
E nem se diga que a “influência externa”dos familiares pode justificar a transfusão de sangue não aceita por convicções religiosas, afinal, ninguém é criado/educado longe de referenciais culturais, religiosos, filosóficos, e sociais,os quais vêm especialmente dos pais. O contrário seria utopia. E ninguém questiona convicções (religiosas, econômicas, culturais) em outras situações como a opção por tratamento diversos ao quimioterápico, decorrentes ou não do meio social.[29]
Enfim, a hemotransfusão, em si, sabidamente não é tratamento isento de riscos, e (especialmente hoje em dia) as crianças e adolescente, na condição de sujeito de direitos, na condição de seres humanos, possuem total aptidão de autodeterminarem-se, de escolherem religiões e perseguirem seus dogmas, merecendo respeito pelos adultos em suas manifestações de vontade na qualidade de pacientes (e em outros momentos da vida), afastando-se qualquer nota paternalista. E caso as crianças e/ou adolescentes não sejam capazes de manifestar vontade, seus pais, como em todas as situações da vida civil, passam a expressá-la por eles.
4.Conclusão.
Do exposto, tem-se que a liberdade se manifesta na prática cotidiana, a despeito de sua teorização (necessária). Especificamente sobre o caso das Testemunhas de Jeová, no tocante a opção pelo não recebimento da transfusão de sangue como tratamento médico, vê-se o ensejo para a análise do conceito de liberdade, suas formas de expressão e conteúdo (parcial), ainda que por meio do mundo prático.
A liberdade, na sua forma mais simplificada, manifesta-se na ausência de espécie normativa que discipline o comportamento humano proibindo ou impondo um comportamento. Mas é a forma mais facilmente superada, bastando a edição de uma lei, de um decreto, de uma portaria, de um provimento, de uma resolução para que se possa sustentar a restrição da liberdade.
Daí porque, no caso das Testemunhas de Jeová, verifica-se a necessidade de ir mais a fundo no conteúdo da liberdade para que ela, como elemento integrante da liberdade pessoal que decorre da própria condição humana,[30] imponha-se contra a intervenção alheia, pública ou particular.
Nesse passo, esmiuçando algumas das manifestações da liberdade, expressão da dignidade humana, tem-se que a autonomia e a autodeterminação mostram-se como conceitos jurídicos que materializam/instrumentalizam essa condição humana.
Autonomia e autodeterminação que não se limitam aos adultos, aos maiores de 18 anos, uma vez que a liberdade decorre da própria condição humana, e não dependem da idade. A expressão da liberdade vem com a capacidade de discernimento e cognição para a individualidade.
Como corolário, tanto adultos como crianças e adolescentes devem ter respeitadas suas escolhas existenciais, ainda que essas culminem com a opção por tratamento médico diverso daquele indicado por médicos, enfermeiros, cirurgiões, equipe de enfermagem, etc. E na impossibilidade de manifestação de vontade por parte de crianças em tenra idade ou outro motivo impeditivo, a substituição da vontade passa ao representante legal, seja qual for sua religião.
A fase médica paternalista de desrespeito à vontade individual do paciente passou.[31] Agora, na bioética, como expressão da liberdade, dá-se importância à autonomia,[32] cujo respeito pelos médicos, nos casos das Testemunhas de Jeová, representa o próprio benefício à pessoa humana, ao paciente (beneficência e não maleficência).
A liberdade se alarga em conteúdo ao longo da história, representado vitória da pessoa contra o desrespeito à sua individualidade, especialmente se suas escolhas pessoas não prejudicarem direito alheio (autodeterminação). Por isso é que, como manifestação da liberdade, inerente à condição humana (dignidade), atualmente, vem-se dando prevalência à autonomia do paciente na opção dentre os tratamentos médicos possíveis, tal qual na recusa da transfusão de sangue, sobrelevando-se o instituto do livre consentimento motivado na bioética, instituto jurídico de expressão última da liberdade ínsita a qualquer ser humano.
Enfim, respeita-se a vida digna mediante o respeito à pessoa e suas escolhas existenciais, e não mediante imposições que lhe tragam sofrimento íntimo, em contrariedade a suas opções existenciais, as quais materializam a liberdade e, por isso, cada vez mais ganham força jurídica.
Claro que todo esse debate, como outros temas desafiantes da bioética (eutanásia/ortotanásia, suicídio assistido, xenotransplantação, aborto, etc.) exigem reflexão e reinterpretação acerca do conteúdo e importância que se dá à vida ou ao direito à vida. Tema que exige outra abordagem, talvez, até, mais profunda.
Mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Defensor Público do Estado de São Paulo
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