Direito à sucessão na inseminação artificial assistida post mortem

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar os direitos sucessórios, disciplinados na parte especial do Código Civil, em especial, a possibilidade de garantir esses direitos aos filhos provenientes de inseminação artificial homóloga post mortem. Utilizou-se o método de abordagem dedutivo, uma vez que e partiu para análise do tema de forma ampla, discorrendo sobre as possíveis correntes doutrinárias. Como nível de pesquisa caracteriza-se exploratória, e como procedimento de coleta de dados foi utilizado a pesquisa bibliográfica, tendo em vista a utilização de doutrinas, legislação, artigos científicos e periódicos. O estudo foi realizado com intuito de verificar se existem garantias constitucionais que amparem o direito sucessório à prole concebida através da reprodução assistida post mortem, uma vez que o Código Civil reconhece a filiação, ainda que de forma presumida, do filho concebido de inseminação artificial, conforme prevê o artigo 1.597, inciso III. Contudo, no que se refere à reprodução após a morte, não existe legislação específica no Brasil que regulamente sobre a matéria, apenas a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.957/2010 que dispõe sobre a colheita do material através do consentimento do doador.[1][i]

Palavras-chave: Herança e sucessão. Reprodução assistida. Inseminação artificial humana post mortem.

Abstract: This article aims to analyze the inheritance, disciplined in the special part of the Civil Code, in particular, the possibility of securing these rights for children from homologous artificial insemination post mortem. We used the method of deductive approach, once and left for analysis of the topic broadly, discussing the possible doctrinal currents. As the level of exploratory research is characterized, and how data collection procedure was used literature search in order to use doctrines, laws, scientific papers and journals. The study was conducted in order to verify whether there are constitutional guarantees that protect the right of succession to offspring conceived through assisted reproduction postmortem, since the Civil Code recognizes the membership, albeit presumed the child conceived from artificial insemination as provided in Article 1.597, paragraph III. However, with regard to reproduction after death, there is no specific legislation in Brazil to regulate on the subject, only a resolution of the Federal Medical Council nº 1.957/2010 which regulates the collection of the material through the consent of the donor.

Keywords: Heritage and succession. Reproduction Assisted. Human artificial insemination post mortem

Sumário: Introdução. 1. A evolução histórica das relações familiares. 1.1 O conceito de família pós 1988. 1.2. Direito à procriação. 2. Reprodução humana medicamente assistida. 2.1. Formas de reprodução assistida prevista no Código Civil de 2002. 2.2. Inseminação artificial homóloga e heteróloga. 3. Entendimentos doutrinários acerca do direito a suceder por meio da técnica de inseminação artificial post mortem. 3.1. Direito a sucessão na inseminação assistida homóloga post mortem. Conclusão.

Introdução

No presente artigo, serão abordados a questão da problemática do filho concebido por intermédio da técnica de reprodução assistida através de inseminação artificial homóloga post mortem ter ou não seu direito resguardado à herança deixada pelo de cujus.

Para o desenvolvimento do trabalho foi utilizado o método de abordagem dedutivo, uma vez que partiu-se de uma análise geral do estudo das correntes divergentes para então atingirmos um ponto específico que seria a criação de legislação específica para regulamentar o direito ou não a herança para o filho concebido por meio da técnica de inseminação assistida após o falecimento de seu genitor. Quanto ao nível de pesquisa utilizou-se a pesquisa exploratória e ainda como fonte de coleta de dados o estudo se deu com base na pesquisa bibliográfica, tendo em vista, a utilização de doutrinas, periódicos, artigos científicos e ainda trabalhos acadêmicos.

A escolha deste tema, justifica-se pelo fato de que diante das inovações apresentadas pelo meio científico, como por exemplo no campo da biomedicina e da biótica, o direito não tem conseguindo total proteção em ampará-las e prever toda normatização jurídica ao seu redor.

Entretanto, procura-se, no decorrer deste estudo, apresentar a seguinte indagação: o direito à sucessão na inseminação artificial humana post mortem, encontra ou não amparo legal, devendo o filho concebido por esta técnica ter ou não direito à herança, ainda que decorrente da sucessão testamentária?

1 A evolução histórica das relações familiares

O complexo de normas que estuda as relações familiares em relação aos seus aspectos patrimoniais, sociais, morais e jurídicos denomina-se Direito de Família. Este instituto se vale de uma relação afetiva que gera efeitos jurídicos, patrimoniais e sociais, por isso são relações complexas, pois não estão taxadas no Código Civil, seu vínculo constrói laços imensuráveis que são impossíveis de serem totalmente regulados dentro de um ordenamento.

A família tem suas origens no modelo romano-germânica (judaico-cristão), onde vigia o sistema patriarcal, religioso, ou seja, pelo sistema do pátrio-poder[ii], em que o pai não tinha limites, comandava a família e era quem sustentava a mulher e sua prole. A mulher tinha apenas a missão de cuidar da casa, jamais se pensava que a mulher pudesse manter o sustento da família, pois, segundo o Código Civil de 1916, o papel da mulher era somente o de cuidar do lar, do marido e de seus filhos[iii].

Com as mudanças mundiais e a falta de mão de obra, a mulher foi ganhando espaço no mercado de trabalho e houve uma grande mudança, culminando hoje na igualdade entre homens e mulheres perante a lei. Essas alterações foram advindas pela religião, tendo como resultado uma nova mudança na estrutura familiar.

Notadamente na França, em 1970, suprimiu-se a expressão “chefe de família”. No Brasil, essa mudança só ocorreu ao longo de muito tempo, mais precisamente, após ter sido promulgada a atual Constituição Federal de 1988, em que as mulheres foram ganhando espaço na sociedade[iv].

Embora o atual Código Civil de 2002 tenha sido projetado à década de 1970 e sancionado apenas em 10 de janeiro de 2002, sob a óptica da ordem cronológica, é com base na Constituição Federal de 1988 que o tratamento dado à nova filiação sofreu profundas modificações, não acarretando mais em qualquer tipo de distinção entre os filhos, tampouco aos havidos ou não do casamento (SCALQUETTE, 2010, p. 40).

Assim, para acompanhar a gradual mudança em relação à nova legislação, poder-se-ia afirmar que a família, atualmente, está mais ligada pelo vínculo do afeto do que pelos próprios laços consanguíneos.

Durante séculos o Estado somente reconhecia uma instituição familiar se esta fosse provida de matrimônio (ROCHA, 2009, p. 9).

Com advento da Constituição Federal de 1988, houve uma inovação com relação a três aspectos: igualaram-se os direitos entre o homem e a mulher, instituiu-se a igualdade entre os filhos, sejam estes havidos ou não na constância do matrimônio, e ainda consagrou o pluralismo familiar, qual seja, reconhecendo como entidades familiares a união estável e a família monoparental (SCALQUETTE, 2010, p. 40).

Para Wald (2005, p. 9) a evolução histórica das relações familiares conteve três momentos históricos que compreende a família no direito romano, direito canônico e a família germânica.

Na perspectiva de Nicolau (2006, p. 41) pode-se afirmar que estamos vivenciando um mundo de incertezas onde o avanço das novas técnicas e as mudanças no instituto familiar requerem que sejam normativamente regulados: “No início do século XXI, vivencia-se o dilema da incerteza e da complexidade, similar, talvez, àquele experimentado no período romano, quando se entendia que o homem, pela sua vontade, era o condutor e único propiciador da existência de filhos, para, posteriormente, no período cristão, atribuir isso unicamente a Deus. Convive-se, agora, com a possibilidade de ver a criação de pessoas e filhos depender da vontade já não mais de Deus ou dos pais, mas de terceiros, servindo-se de conhecimentos científicos que, obviamente, não são acessíveis à maioria da população, carreando sérios e fundados temores quanto ao futuro e à própria existência da raça humana como hoje ela é conhecida”. (NICOLAU, 2006, p. 41).

No entanto, a certeza que se pode ter é que a relação com os filhos também evoluiu, afastando o tratamento de diferenciação entre eles, uma vez que a atual Constituição Federal de 1988 instituiu o princípio da igualdade entre filhos, adotando como justificativa o novo modelo de família composta após 1988, conforme veremos no item a seguir.

1.1. O conceito de família pós 1988

Desde o Direito Romano até o Código Civil atual a família sofreu mudanças significativas em sua estrutura basilar.

Antes vista como um instituto que fazia reunir o homem e a mulher perante o matrimônio no qual se constituíam os filhos, hoje este conceito já não é mais adequado à nova estrutura da sociedade formada no século XXI. O conceito de família, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, tornou-se muito mais extenso que a junção entre o homem e a mulher e a geração de filhos. Com base nesses e outros marcos históricos, o Código Civil de 2002 reformulou seu ordenamento, saindo de uma visão patriarcal e autocrática, começando a remodelar numa nova estrutura baseada nos anseios da sociedade. 

É importante ressaltar as considerações feitas por Cachapuz (2006, p. 99), quanto entende que a família é constituída em sua base estrutural: “Várias denominações foram sendo criadas ao redor da família, entretanto, ela representa a célula máxima da sociedade organizada onde o embrião da vida se produz”.

Desta forma, o conceito de família pós 1988, partindo de uma visão contemporânea, ganhou nova roupagem e, atualmente, outros atributos são concedidos a ela. Após essas considerações feitas, passemos a analisar sob quais fundamentos o conceito de família do século XXI encontra-se abarcado.

1.2 Direito à procriação

Procriar, segundo Queiroz (ano 11, n. 943) é gerar filhos, significa perpetuar a espécie. O direito à procriação encontra fundamento jurídico no princípio do planejamento familiar previsto no artigo 226, § 7º da Constituição Federal de 1988 e artigo 1.565, § 2º do Código Civil de 2002, que dispõe acerca da liberdade da entidade familiar em construir sua família de forma responsável e consciente, cabendo tão somente ao estado estabelecer políticas concernentes à responsabilidade que acarreta para o ato de reproduzir.

Com efeito, Celeste citada por Filho (2001, p. 373), entende que o direito a procriação constitui um direito maior, devendo ser assegurado a todo ser humano, in verbis: “A ética médica ou científica não se reduz à aplicação de uma lei”. A procriação é uma aspiração legítima de todo indivíduo.

Convém destacar que a procriação assistida provém dos avanços recentes da biotecnologia, trazendo enormes benefícios à humanidade, na tentativa de solucionar a esterilidade e infertilidade humana, sendo técnica utilizada tanto na inseminação artificial como na fecundação in vitro.

Entretanto, a procriação segundo Queiroz (ano 11, n. 943) revela-se como fato essencial à espécie humana, ligado à ideia de família. Como visto anteriormente, é na família que os filhos nascem e é com o nascimento dos filhos que as famílias se perpetuam. Assim são estabelecidas as relações jurídicas mais fundamentais para o ser humano.

Nesse contexto, ligado ao direito à procriação, passamos a discorrer sobre o que constitui a reprodução humana assistida e quais suas principais técnicas e formas, tendo em vista que este instituto se define como uma das formas de reprodução humana não natural, tornando-se capaz de procriar a espécie com ajuda da engenharia genética.

2 Reprodução humana medicamente assistida

Para melhor compreensão do tema, neste capítulo serão abordadas o que vem a ser a técnica de reprodução humana artificial, uma vez que o direito à proteção da família, disposto no artigo 226, caput, da Constituição Federal de 1988[v], vista no capítulo anterior, contempla também o direito ao uso das técnicas de reprodução humana assistida, enquanto direito de constituir família seja por meio natural ou artificialmente (KRELL, 2006, p.105).

A Constituição Federal de 1988 não faz menção, de forma expressa, quanto à possibilidade de originar uma família por meio da técnica de reprodução assistida. Contudo, é possível buscar, nas fontes formais do direito, a interpretação analógica, aplicando a técnica de inseminação artificial, mas, não significa dizer que esta interpretação deve ser estendida a qualquer técnica de reprodução humana. Para isso, serão apresentados posteriormente as técnicas existentes e qual merece amparo jurídico pelo legislador para serem aplicadas às entidades familiares em busca de sua procriação de forma artificial, isto é, por não conseguir, de forma natural, atingir a concepção.

Com efeito Romeu (2002, p. 100) entende que o desejo de procriação é algo antigo e que vem sendo regrado desde as antigas leis civis.  Por conta disso, a reprodução humana assistida serviu como procedimento para possibilitar a criação de prole aos casais que possuem algum problema de infertilidade ou esterilidade. Assim, deixou de ser algo novo para se tornar um instituto cada vez mais conhecido, embora traga alguns problemas, tanto éticos como jurídicos, a serem enfrentados.

Sobre inseminação artificial, destaca Machado (2003, p. 32) que: “[…] é o primeiro exemplo de procriação medicamente assistida, de intervenção do médico na reprodução humana. Trata-se de uma verdadeira revolução biológica, ética e social. A reprodução humana, sempre considerada como o elo mais íntimo do casal, com a procriação artificial, foi trazida para um ambiente de ampla participação, uma vez que tanto os óvulos quanto os espermatozoides, passaram a ser tratados fora do corpo humano”.

Com o rápido desenvolvimento das novas técnicas de reprodução assistida, os casais inférteis[vi] ou estéreis[vii] já dispõem de diversas formas para resolver o problema da incapacidade de procriar, tanto masculina quanto feminina, não mais sendo prevista tal discriminação para as mulheres, o que era realidade em determinado momento histórico. (MACHADO, 2003, p. 32).

Não sendo possível atingir esse ciclo natural, o casal poderá optar em reproduzir de forma assistida, observando o que regulamenta a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.957/10, que dispõe das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução artificial.

Diniz (2009, p. 546) adverte para a criação de lei que regulamente as técnicas de reprodução humana, uma vez que a procura por estes métodos cada vez mais os está vulgarizando. Contudo, a autora faz uma ressalva: “Dever-se-á, em nosso entender, coibir a inseminação artificial heteróloga, a fertilização in vitro e a gestação por conta de terceiro, ante os possíveis riscos de origem física e psíquica para a descendência e a incerteza sobre a identidade”.

Todavia, no entender de Dias (2010, p. 361), a reprodução humana artificial constitui em “[…] técnicas de reprodução assistida que permitem a geração da vida, independentemente do ato sexual, por método artificial, científico ou técnico. A fecundação resultante da reprodução medicamente assistida é utilizada em substituição à concepção natural, quando houver dificuldade ou impossibilidade de um ou de ambos de gerar. São técnicas de interferência no processo natural, daí o nome de reprodução assistida”. (grifo do autor).

Dada a compreensão do que venha a ser a reprodução humana assistida, passamos a análise das principais formas de reprodução assistida prevista no Código Civil de 2002.

2.1 Formas de reprodução assistida prevista no Código Civil de 2002

Embora ausente legislação específica a fim de normatizar várias questões que envolvem a reprodução humana assistida, como por exemplo, a possibilidade ou não de conceder herança ao filho oriundo da técnica de inseminação post mortem, o atual Código Civil de 2002 prevê, em apenas um artigo, três novas hipóteses de presunção da filiação no que diz respeito às técnicas de reprodução humana assistida.

O artigo 1.597, inciso III, admite como presunção os filhos que foram concebidos da união do espermatozoide com óvulo de seus pais, tendo essa reunião ocorrida dentro ou fora do corpo da mãe, ou seja, de fecundação homóloga. Vejamos: “Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; […]” (BRASIL, 2002).

Para Scalquette (2010, p. 74) no inciso IV do artigo supracitado estima-se como presunção de serem filhos os embriões excedentários decorrentes de inseminação artificial homóloga, isto é, somente aqueles que restaram da fecundação feita com material genético dos próprios genitores: “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […] IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; […]” (BRASIL, 2002).

Já no inciso V, considera como presunção os filhos havidos de fecundação heteróloga, isto é, aqueles decorrentes do uso do espermatozoide de um terceiro doador inserido para gestar no ventre da mãe.

Em suma, para admitir esta presunção, passamos à análise da inseminação artificial homóloga e heteróloga e, em capítulo posterior, serão analisados os aspectos jurídicos que envolvem, em especial, o inciso III[viii] do artigo 1.597 do atual Código Civil de 2002.

2.2 Inseminação artificial homóloga e heteróloga

Considerando as várias técnicas existentes de reprodução assistida, o presente trabalho procurou tratar especificamente o conceito da técnica de inseminação artificial heteróloga e, em especial a homóloga, uma vez que essa última tem por objeto de estudo a problemática em desencadear se é possível ou não estender os direitos sucessórios ao filho oriundo da técnica de inseminação homóloga post mortem.

A inseminação artificial será homóloga quando for utilizado o material genético do próprio casal. Ocorrendo a concepção na constância do casamento, são presumidos os filhos havidos por esta técnica, ainda que falecido o marido, conforme dispõe o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil de 2002; não havendo necessidade de autorização do marido, ou seja, a parte final deste mesmo dispositivo legal ao prever “mesmo que falecido o marido”, deve ser interpretada tão somente para fins de reconhecimento da paternidade, observado o prazo limite de 300 dias da morte do de cujus.

Para Welter (2003, p. 213 e 213) este tipo de técnica “[…] diz respeito à coleta de material genético dos cônjuges ou conviventes. […] o material genético (sêmen ou óvulo) pertence ao casal”.

No entanto, não significa dizer que, mesmo sem a autorização do marido seja permitido que a mulher possa realizar a inseminação artificial post mortem, ao contrário, ainda que o cônjuge tenha fornecido o sêmen, não há como presumir o consentimento para realizar a inseminação post mortem (DIAS, 2010, p. 362).

Já a inseminação artificial heteróloga ocorre quando da utilização de material genético de terceiro doador, estranho ao casal, contando com a autorização do marido para que esta técnica seja realizada. Este consentimento não precisa ser por escrito, bastando ser prévio e sendo obrigatório o sigilo sobre a identidade do doador e dos receptores[ix].

No entanto, as consequências jurídicas advindas da utilização desta técnica, conhecida como heteróloga, acarretam diversos efeitos sociais e jurídicos, tornando-se prejudiciais para a segurança das relações jurídicas que envolvem o Direito de Família, que no presente trabalho não é alvo de estudo.

Passado à análise das formas existentes de reprodução humana assistida, com maior importância ao estudo da inseminação homóloga, na subseção seguinte, será objeto de estudo a inseminação artificial homóloga post mortem e seus aspectos que despertam inúmeras omissões na legislação civil brasileira, em especial no que diz respeito à questão sucessória, tendo em vista que o emprego deste tipo de técnica constitui grande relevância para que possamos compreender os direitos a tal técnica estendidos.

3 Entendimentos doutrinários acerca do direito a suceder por meio da técnica de inseminação artificial post mortem

Em decorrência da falta de regulamentação específica acerca da problematização da técnica de inseminação artificial post mortem, existem três correntes que dividem o posicionamento dos doutrinadores do Direito de Família e Sucessório.

A primeira corrente entende que não são aplicáveis os direitos à herança para o filho inseminado após o falecimento do seu genitor, sendo este incapaz de suceder de forma legítima quanto testamentária, uma vez que o Direito Civil Brasileiro deveria dispor de forma expressa a proibição da técnica de inseminação artificial humana post mortem, assim não possibilitando que o interpretador do direito crie lacunas sujeitando tal aplicação. É o que defende Gama (2003, p. 1000):

No estágio atual do direito brasileiro não há como se admitir a legitimidade do acesso da viúva ou da ex-companheira (por morte do ex-companheiro) à técnica de reprodução assistida homóloga post mortem, diante do princípio da igualdade de direitos entre os filhos. Contudo, se a técnica for empregada, a paternidade poderá ser estabelecida com base no fundamento biológico e no pressuposto do risco, mas não para fins sucessórios, o que pode conduzir a criança prejudicada a pleitear reparação dos danos materiais que eventualmente sofrer. Nos casos das técnicas de reprodução assistida heteróloga (unilateral), os fundamentos relacionados à paternidade-filiação e à maternidade-filiação são diferentes, porquanto apenas um dos cônjuges (ou companheiros) contribui com seu gameta, normalmente a mulher. O critério do vínculo que se estabelece entre a pessoa do casal que contribui com o seu material fecundante é o biológico, havendo origem na consanguinidade. […]. Os pressupostos variam de acordo com a presença (ou não) do consentimento do marido (ou companheiro) no acesso da sua consorte à técnica de reprodução assistida heteróloga.

A segunda corrente defende a possibilidade de conceder herança ao filho inseminado post mortem, resguardando direitos na sucessão legítima quanto testamentária.

De fato, compreende Almeida (2003, p. 104): “Os filhos nascido de inseminação artificial homóloga post mortem são sucessores legítimos. Quando o legislador atual tratou do tema, apenas quis repetir o contido no Código Civil anterior, beneficiando o concepturo apenas na sucessão testamentária porque era impossível, com os conhecimentos de então, imaginar-se que um morto pudesse ter filhos. Entretanto, hoje a possibilidade existe. O legislador, ao reconhecer efeitos pessoais ao concepturo (relação de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos patrimoniais, especialmente o hereditário. Essa sistemática é reminiscência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no nascimento. Nem todos os ilegítimos ficavam sem direitos sucessórios. Mas aos privados desse direito também não nascia relação de filiação. Agora, quando a lei garante o vínculo, não se justifica privar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso mais se justifica quando o testamento tem aptidão para ser herdeiro”.

A terceira e última corrente considera que é possível estender os efeitos patrimoniais ao filho inseminado post mortem. No entanto, esses efeitos somente serão válidos a título de herança testamentária, se observado o prazo válido para concebê-lo que dispõe o artigo 1.800 do Código Civil de 2002, devendo o legislador prever prazo para que essa implantação do sêmen do marido falecido ocorra, evitando, assim, a possibilidade de interpretação diversa e, ainda, para preservar a segurança jurídica dos herdeiros existentes ao tempo da abertura da sucessão.

Diniz (2009, p. 550) entende que somente via testamentária se poderá conceder efeitos patrimoniais ao filho proveniente de inseminação artificial homóloga post mortem. A autora destaca: “[…] a solução dada pelo art. 1.597, III, do novo Código Civil, admitindo a presunção de filiação, será preciso não olvidar que o morto não mais exerce direitos nem tem deveres a cumprir. Não há como aplicar a presunção de paternidade, uma vez que o casamento se extingue com a morte, nem como conferir direitos sucessórios ao que nascer por inseminação post mortem, já que não estava gerado por ocasião da morte de seu pai genético (CC, art. 1.798)”.

Na concepção de Cateb (2007, p. 179), os filhos ainda não concebidos possuem capacidade testamentária passiva, desde que estejam vivos ao abrir-se a sucessão. Vejamos:

Os filhos, ainda não concebidos, de pessoas nomeadas pelo testador, têm capacidade testamentária passiva, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão. A lei atende não à falta de personalidade, mas à não-existência do indivíduo, fazendo contudo, exceção à prole eventual de pessoas designadas pelo testador e existentes na data da abertura da sucessão; […].

No entanto, seguindo a disposição contida no artigo 1.800, § 4º, decorrido dois anos após abertura da sucessão, não sendo concebido o filho esperado, os bens reservados caberão aos herdeiros legítimos.

Neste contexto, diante dos três entendimentos apontados pela doutrina, é possível perceber que o legislador terá um grande impasse a enfrentar, uma vez que, além de autorizar a técnica de inseminação artificial post mortem, terá que regrar as consequências futuras dela advindas. Logo, a questão deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais apresentados no capítulo anterior, levando em consideração o bem estar da futura prole a ser concebida.

Destarte, cumpre ressaltar a importância de fixação de prazos para permissão de tal técnica, com base na segurança jurídica e o melhor interesse para criança, e ainda a importância da autorização expressa concedida para que a mãe possa realizar a possível inseminação homóloga post mortem, além de que o pai deixe, a título de testamento, que a prole eventual venha a ter seus direitos sucessórios resguardados, observado o prazo razoável de dois anos, senão menor, estabelecido no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.800, § 4º. (BRASIL, 2002).

3.1 Direito a sucessão na inseminação assistida homóloga post mortem

Segundo o Código Civil de 2002, quanto à possibilidade de se realizar a inseminação homóloga post mortem, não há que se questionar quanto aos efeitos estendidos à filiação, se a concepção já tiver ocorrido no momento da morte de um dos genitores ou, até mesmo, se o nascimento ocorrer 300 dias após o falecimento de um deles, conforme dispõe no artigo 1.597, inciso II[x].

Na prática, as partes podem se valer do teste de paternidade ou até mesmo maternidade, realizados em laboratório para obtenção do resultado pretendido.

Todavia, no que diz respeito aos efeitos da herança para esse futuro ser, poderão ocasionar sérios problemas, tanto éticos quanto jurídicos.

Contudo, vale ressaltar que o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597, inciso III, reconhece a filiação, ainda que de forma presumida, do filho concebido por meio da técnica de inseminação artificial, em especial, a homóloga post mortem, conforme dispõe: Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido”. (BRASIL, 2002)

Para Scalquette (2010, p.86) os incisos III, IV e V foram uma inovação frente aos avanços científicos trazidos pela nova edição do Código Civil e 2002, tendo em vista que, na legislação anterior sequer havia menção.

Conforme observado, sob a óptica desses dois artigos supracitados, podemos compreender que há choque de interesses, uma vez que, no âmbito do direito de família, é previsível o reconhecimento da filiação por meio da concepção assistida, através de inseminação homóloga post mortem. Porém, na esfera do direito sucessório, até o presente momento, nada foi regulamentado. Neste caso, vindo o magistrado a deparar-se com um caso específico como este, deverá socorrer-se aos princípios, à analogia e às demais fontes que o direito proporciona.

É possível perceber, com base na terceira corrente apontada no item anterior do presente artigo, que os direitos à herança para o filho inseminado por meio da técnica de inseminação post mortem, só será possível se o testador vier a deixar em testamento a parte da herança que caberá à possível prole eventual, preservando o princípio da segurança jurídica, isto é, para não prejudicar os demais herdeiros existentes à época da abertura da sucessão. Em contrapartida, não há que se admitir a inseminação artificial homóloga post mortem se não existirem critérios a serem respeitados.

Ademais, é de se concluir que, se for permitida a possibilidade em conceder herança ao filho inseminado após a morte de seu genitor, primeiramente, é necessária expressa concordância em vida para a realização de tal técnica pelo cônjuge sobrevivente, que os bens a eles estendidos sejam testados, pois é inadmissível serem considerados como herdeiros necessários ou legatários, por ter sido a concepção efetivada após a morte do genitor. Neste caso, não há que se falar em direitos sucessórios daquele que vai nascer.

Contudo, apesar dessas ponderações, nada se aplica se o legislador não estabelecer critérios para limitar que a realização da inseminação ocorra após o falecimento de um dos cônjuges.

Na mesma linha, entende Leite (2003, p. 110) que a criança concebida artificialmente após a morte de um dos cônjuges é uma situação anômala, tanto no direito de família quanto no direito das sucessões. O autor ainda acrescenta que a criança não herdará do genitor falecido porque não estava concebida no momento da abertura da sucessão, ainda que o material genético implantado para gerá-lo tenha sido de ambos os cônjuges. Somente se houvesse previsão expressa na legislação favorecendo a criança, fruto da inseminação artificial post mortem, seria possível de cogitar os efeitos sucessórios.

De qualquer maneira, enquanto o Código Civil não avançar no sentido de estabelecer disposição para regulamentar a matéria, a doutrina e a jurisprudência encontrarão uma série de dificuldades quanto a sua aplicação real, não limitando a pacificação do assunto, visto que cada caso será tradado de acordo com o pensamento de cada julgador que venha a se deparar com a situação apresentada.

Conclusão

Com advento das mudanças ocorridas no meio social, o Direito de Família e o Direito das Sucessões sofreram profundas modificações para se adaptarem aos costumes e às regras da sociedade vigente. Algumas dessas mudanças encontram fundamento na Constituição Federal de 1988, que inovou no sentido de resguardar maior proteção, estabelecendo o direito de igualdade entre os filhos.

Nessa perspectiva, podemos dizer que o legislador, ao editar o Código Civil de 2002, sentiu a necessidade de acompanhar o processo tecnológico que diz respeito à nova geração de reprodução humana, estabelecendo algumas das técnicas de reprodução medicamente assistida como, por exemplo, a inseminação artificial homóloga e heteróloga.

Esses avanços justificam-se pela rapidez da ciência e da tecnologia apresentada pela biomedicina e a engenharia genética em conjunto com o biodireito. Não obstante, a Resolução nº 1.957/10 veio revogar a antiga Resolução nº 1.358/92, após 18 anos de vigência, recebendo várias modificações referentes à reprodução medicamente assistida. Inclusive, fez inserir o item VIII, que trata da reprodução assistida post mortem, possibilitando sua técnica de acordo com a legislação vigente e desde que haja prévia autorização específica do falecido para a permissão de uso do material biológico para conceber uma futura prole.

No entanto, ao prever a possibilidade de fertilização após a morte por meio da criopreservação, surgiram vários questionamentos pelos doutrinadores, juristas e demais operadores do direito com relação à situação jurídica desse futuro ser que seria concebido.

Quanto ao reconhecimento da filiação, não há dúvidas, tendo em vista que o próprio Código Civil dispõe, em seu artigo 1.597, inciso III, que se presume filho os “havidos por fecundação artificial homóloga mesmo que falecido o marido”. Em contrapartida, no que se refere à questão dos direitos patrimoniais, estendidos a herança, existem várias implicações de serem ou não considerados herdeiros do de cujus.

Não há regramento específico no ordenamento jurídico brasileiro para tratar sobre as implicações jurídicas decorrentes dos direitos patrimoniais para o filho concebido por meio da técnica post mortem, apenas três posicionamentos que divergem sobre a sua aplicabilidade ou não, conforme elucidado no presente trabalho.

Enfim, diante da inexistência de legislação específica que regulamente o uso das técnicas de reprodução humana, bem como os efeitos jurídicos a elas estendidos, o presente trabalho não pretende esgotar a discussão acerca do tema, mas sim, enfatizar uma possível solução enquanto não advier legislação para pacificar os diversos entendimentos apontados.

 

Referências
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Notas
[i] Trabalho orientado pela Profa. Keila Comelli Alterton, Especialista
[ii] Paterno de pai; próprio de pai. Cf. INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS DE LEXICOGRAFIA, 2001, p. 2151.
[iii] Art. 240. A mulher assume, com o casamento, os apelidos do marido e a condição de sua companheira, consorte e colaboradora dos encargos da família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral desta. Cf. BRASIL, 1916.
[iv] Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; Cf. BRASIL, 1988.
[v] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Cf. BRASIL, 1988.
[vi] […] é a incapacidade de ter filhos vivos, sendo possível a fecundação e o desenvolvimento do embrião ou feto, equivalendo à hipofertilidade. Cf. MACHADO, 2003, p. 21.
[vii] Impossibilidade de ocorrer a fecundação numa situação irreversível. É a incapacidade definitiva para conceber”. Cf. MACHADO, 2003, p. 20.
[viii] Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: […] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; Cf. BRASIL, 2002.
[ix] Item IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador. Cf. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2010.
[x] Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; Cf. BRASIL, 2002.

Informações Sobre o Autor

Bruna R. Corrêa

Graduada em Direito na Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL


Equipe Âmbito Jurídico

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