Direito Civil

Direito autoral e Inteligência Artificial: uma análise acerca da tutela jurídica brasileira em composições musicais

Autora: Rebecca Maria Nogueira de Sousa[1]

Orientador: Dr. Rodrigo Vieira Costa[2]

Resumo: Na Sociedade Informacional contemporânea, há uma aplicação incrementada de tecnologias para a obtenção de um crescimento exponencial de dados ou, mesmo, para um fornecimento diferenciado de produtos e serviços. Nessa perspectiva, este artigo visa debater acerca da tutela jurídica brasileira em composições musicais feitas por intermédio da Inteligência Artificial; na medida em que existe uma utilização progressiva dessa nova Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) no mercado da música. Para o entendimento dessa questão, discute-se o conceito de Inteligência Artificial, a Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira, as vigentes aplicações realizadas no ramo musical e, principalmente, a adequabilidade da LDA na regulação de tal temática. Por fim, propõe-se a instigar, por meio de ideias doutrinárias e legislações internacionais, possíveis caminhos a serem traçados pela LDA brasileira, a fim de resolver esse impasse.

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Palavras-chave: Inteligência Artificial. Sociedade Informacional. Direitos Autorais. Composições Musicais.

 

Abstract: In the contemporary Information Society, there is an increased application of technologies to obtain an exponential growth of data or, even, for a differentiated supply of products and services. In this perspective, this article aims to debate about the Brazilian legal protection in musical compositions made through Artificial Intelligence; as there is a progressive use of this new Information and Communication Technology (ICT) in the music market. In order to understand this issue, the concept of Artificial Intelligence, the Brazilian Copyright Law (LDA), the current applications in the musical field and, mainly, the adequacy of the LDA in the regulation of such theme are discussed. Finally, it proposes to instigate, through doctrinal ideas and international legislation, possible paths to be traced by the Brazilian LDA, in order to resolve this impasse.

Keywords: Artificial intelligence. Information Society. Copyright. Musical Compositions.

 

Sumário: Introdução. 1 A Inteligência Artificial na Sociedade Informacional. 1.1 Definição de Inteligência Artificial. 1.2 O uso da Inteligência Artificial como uma nova ferramenta para o sistema de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). 1.2.1 Áreas de aplicação da Inteligência Artificial na Sociedade Informacional. 1.3 As implicações jurídicas causadas pela expansão do uso de sistemas de Inteligência Artificial. 2 Os limites da Lei de Direitos Autorais frente à Inteligência Artificial. 2.1 Os principais elementos da Lei de Direitos Autorais brasileira. 2.2 Os sistemas de Inteligência Artificial e a produção intelectual. 3 A tutela de composições musicais feitas por meio da Inteligência Artificial. 3.1 Aplicações de Inteligência Artificial para a produção de composições musicais. 3.1.1 A criatividade de músicas feitas por Inteligência Artificial em evidência. 3.1.2 A meta-autoria. 3.2 A tutela de composições musicais feitas por Inteligência Artificial. 3.2.1 Possíveis caminhos traçados pela Lei de Direitos Autorais brasileira. 3.2.1.1 Obras em Domínio Público. 3.2.1.2 Titularidade para pessoas envolvidas no processo de criação. 3.2.1.3 A atribuição de personalidade eletrônica e a consequente modificação da Lei nº 9610/98. Conclusão. Referências.

 

Introdução

                        É dever de o cidadão ético e democrático debater acerca da tutela jurídica brasileira em composições musicais de Inteligência Artificial (IA); já que, com a expansão dos estudos em prol de algoritmos de inteligência progressiva, de um hardware mais rápido ou de uma coleta de dados eficientes, tem-se um cenário de uma crescente aplicação dessas tecnologias e, consequentemente, de embates em torno da questão autoral. A simplificação – ou, até, automação – de trabalhos musicais, demandadores de grande exigência cognitiva e criativa, intermediada pelo uso de sistemas de IA, proporciona a possibilidade de uma diversificação das formações musicais e de um atendimento especializado ao público, fomentando uma indústria competitiva e ainda mais lucrativa. Nesse enfoque, há a precisão de uma análise da existência de um asseguramento da propriedade intelectual para obras musicais de IA, com o intuito de atender essas novas demandas sociais, que reverberam em uma primordialidade de entendimento e de uma explicitação das vigentes garantias proporcionadas pela Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira.

A princípio, com o propósito de entender como se posiciona a LDA brasileira sobre as composições musicais criadas por meio da IA, identificar-se-á a Inteligência Artificial na Sociedade da Informação e como uma nova Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), a fim de levantar os problemas jurídicos causados pela expansão do uso de IA. Além disso, descrever-se-á os principais elementos da LDA brasileira e os seus limites frente à IA para avaliar as aplicações de IA em composições musicais e, respectivamente, mostrar as possibilidades de tutela de tais obras. A metodologia usada para compreender esses impasses autorais é de natureza exploratória, detendo-se a usar uma ampla bibliografia relacionada, como a de Manuel Castells (1999), Russell e Norvig (2013), Lukas Ruthes Gonçalves (2019) e Guilherme Carboni (2010).

Assim, este artigo – dividido em três capítulos – é um convite para instigar uma discussão primária a respeito da determinação e das possíveis perspectivas autorais, no território nacional, sobre composições musicais de IA.

 

1 A Inteligência Artificial na Sociedade Informacional

As sociedades contemporâneas passam por uma revolução tecnológica que, diferentemente da primeira e da segunda fase da Revolução Industrial, centra-se não mais apenas na obtenção de conhecimento e informação, mas na “aplicação desses conhecimentos e dessa informação para a geração de conhecimentos, dispositivos de processamento/comunicação da inovação, em um ciclo de realimentação cumulativo entre a inovação e o seu uso” (CASTELLS, 1999, p. 69). Em termos análogos, a partir dos anos 50, depois da Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma tendência de remodelamento dos aspectos sociais para a adequação com as evoluções tecnológicas e com o constante processo de obtenção de informação, o que se denominou como “Revolução Técnico-Científica-Informacional”. O auge originário desse processo se deu na década de 1970, no qual muitos centros norte-americanos – como o Vale do Silício, localizado ao sul de São Francisco – participaram do processo de estudos voltados, exemplificando-se, à engenharia genética, aos softwares e à internet.

A partir desse novo estágio de interação entre tecnologia e sociedade, houve um impulso de um outro paradigma tecnológico, tendo em vista que a informação passou a ser considerada como “matéria-prima” e participante-ativa de uma “rede” complexa, na qual existe uma “convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado” (CASTELLS, 1999, p. 109). Assim, a Terceira Revolução Tecnológica, marcada por uma utilização crescente e intensiva das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), contribuiu diretamente para uma redefinição global da dinâmica da sociedade, impactando até o processo econômico, seja em termos de aumento de produtividade ou de competitividade.

Nessa lógica, é indiscutível que, em tempos de passagem para uma Quarta Revolução Industrial (SCHWAB, 2016), há uma aplicação incrementada de tecnologias pelo Estado e até por empresas, em busca, por exemplo, de melhorias em processos operacionais ou de investimentos mais eficientes. Como consequência disso, várias áreas de estudos contribuintes, como a voltada para a análise da implementação de algoritmos de Inteligência Artificial (IA), ganham destaque, já que, em uma fase de crescimento exponencial de dados, existe a possibilidade de usar a tecnologia de IA para inovar na produção e no fornecimento de serviços e produtos.

Portanto, este capítulo visa definir o conceito de Inteligência Artificial, identificando-a, na Sociedade da Informação, como uma nova Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Por fim, dever-se-á suscitar as problemáticas jurídicas causadas pela expansão do uso do sistema de IA.

 

1.1 Definição de Inteligência Artificial

Conceituar a Inteligência Artificial (IA) não é uma tarefa fácil, na medida em que a própria definição do que seria “inteligência” é passível de discordância. O Dicionário Aurélio, por exemplo, define “inteligência” como a faculdade de conhecer, de aprender e de compreender; sendo uma característica intrínseca aos seres humanos. Apesar de tal definição ser restritiva e, até em algum momento, problemática, usar-se-á essa descrição como base para sintetizar a designação de “Inteligência Artificial” como um “ramo da ciência da computação que se ocupa com a automação do comportamento inteligente” (LUGER, 2007, p. 23).  De outro modo, a Inteligência Artificial poderia ser tida como um campo em que os pesquisadores formulam uma linguagem para programas computacionais, a partir do entendimento da mente humana, a fim de que se consiga solucionar problemas.

Alan Turing, em sua obra “Maquinário computacional e inteligência” (2010), já se questionava sobre a possibilidade de se criar uma máquina inteligente, a qual conseguisse ter um comportamento e, consequentemente, um desempenho semelhante ao dos humanos. Para tanto, realizou o chamado “Jogo de imitação” – ou Teste de Turing –, no qual um participante humano e uma máquina deviam desempenhar as mesmas respostas, sem a descoberta da verdadeira natureza de cada um. Como forma de conseguir passar nesse Teste, devia-se ter uma máquina que conseguisse desenvolver as seguintes habilidades: processamento de linguagem natural; representação de conhecimento; raciocínio automatizado; aprendizado de máquina; visão computacional; e robótica para manipular e movimentar objetos (NORVIG; RUSSELL, 2013). Tais ideias da computação de Turing foram essenciais para o nascimento do âmbito da Inteligência Artificial, pois influenciaram no sucesso de programas – como o General Prover Solver ou GPS (solucionador de problemas gerais), desenvolvido por Newell e Simon – e, respectivamente, na propagação do termo, a princípio, por McCarthy. McCarthy (apud GONÇALVES, 2019, p. 32) reforça a definição de IA mostrada, definindo-a como a “teoria e o desenvolvimento de sistemas de computador capazes de realizar tarefas que normalmente requereriam inteligência humana, como percepção visual, reconhecimento de fala, tomada de decisões e tradução entre línguas”.

Nessa perspectiva, para explicitar de forma mais compreensível o conceito geral de IA abordado, faz-se essencial discorrer sobre os principais elementos de um sistema de Inteligência Artificial, que interagem em prol de cumprir certas operações. A tecnologia de IA é formada por um hardware: a parte física de um micro, ou seja, a junção dos vários componentes – seja os de fácil visualização, ou o contrário –, tais como o processador, a memória, os discos rígidos e os monitores; por um software: um programa de computador – ou, até, um algoritmo – criado para determinar instruções e comandos; e por uma base de dados, composta por informações essenciais para a realização de tarefas particulares.

De modo mais específico, há o uso de modalidades de algoritmos (softwares) em hardwares, a partir de um input de valores de entrada (dados), para fins de aplicações da tecnologia de IA. Os métodos de programações mais utilizados, na contemporaneidade, são os seguintes: o Machine Learning que, consoante Roos (apud GONÇALVES, 2019, p. 45), é constituído por “sistemas que melhoram sua performance em dada atividade com cada vez mais experiência ou dados”; e o Deep Learning, o qual analisa os dados para conseguir um padrão mais conciso, baseado em redes neurais emuladoras do pensamento humano. Em outros termos, o Deep Learning é definido a partir da seguinte ideia:

O caso das redes neurais em geral, como uma abordagem da IA, baseia-se em um argumento semelhante ao das abordagens baseadas em lógica. Neste último caso, pensava-se que, para alcançar a inteligência em nível humano, precisamos simular processos de pensamento de nível superior e, em particular, a manipulação de símbolos que representam certos conceitos concretos ou abstratos usando regras lógicas. (ROOS apud GONÇALVES, 2019, p. 46)

Nesse enfoque, o uso de tais sistemas de IA – sejam os autodidatas (ou Machine Learning) ou outros – são importantes para a sociedade informacional atual, pois possibilitam a criação de várias tecnologias que otimizam tarefas cotidianas e empresariais, à exemplo das assistentes de vozes (Siri e Google Assistant), dos carros autônomos e do famoso computador Deep Blue da IBM.

 

1.2 O uso da Inteligência Artificial como uma nova ferramenta para o sistema de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC)

A “Comissão Stevenson”, criada para avaliar a importância do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) no ensino primário e secundário das escolas inglesas, introduziu o termo TIC; a partir da publicação, em 1997, do “Information and communications technology in UK Schools: an independent inquiry” (STEVENSON, 1997). Tal denominação se referia às tecnologias de manipulação da informação e da comunicação – em especial, aos computadores –, as quais poderiam ser usadas para diversas finalidades, seja para o treinamento de professores ou para o aprimoramento do processo de aprendizagem.

Para além dessa definição precípua da TIC, focada na tecnologia computacional e no seu respectivo uso para a área educativa, a Quarta Revolução Industrial trouxe novas categorias de tecnologias e de aplicações, a partir da fusão das tecnologias físicas (robótica avançada, veículo autônomo e impressão digital), biológicas (biologia sintética e engenharia genética) e digitais (SCHWAB, 2016). Com relação à categoria digital, deve-se destacar a presença de elementos como a computação em nuvem, a Big Data e a Inteligência Artificial, que podem ser usados como Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), ao, exemplificando-se, atuarem na “transformação e reconfiguração de elementos organizacionais, como: estratégia, processos, cultura e estruturas” (HESS et al. apud MENDONÇA, ANDRADE, NETO, 2018, p. 133).

A Inteligência Artificial, a título de exemplo, por ter uma vasta área de aplicação, – intermediada por redes neurais e árvores de decisões –, consegue ser uma ferramenta imprescindível para a Sociedade Informacional, já que pode adquirir diversas abordagens através do processo de produção de dados, a fim de executar decisões pré-programadas ou um sistema de aprendizagem automática (MAKRIDAKIS apud MENDONÇA, ANDRADE, NETO, 2018). A informação, pelo fato de ser um componente central da tecnologia de IA e, respectivamente, por ter sido popularizada a partir da internet, conseguiu disseminar o conhecimento e o uso da tecnologia de IA, desenvolvendo novas tecnologias, produtos e, em especial, mais dados para o aprimoramento dos sistemas.

 

1.2.1 Áreas de aplicação da Inteligência Artificial na Sociedade Informacional

A gama de possibilidades de aplicação da tecnologia de Inteligência Artificial é enorme, pois existem muitas atividades em vários subcampos em que se há a perspectiva de utilização. De acordo com o Norvig e o Russell (2013), pode-se dividir os seus usos em algumas principais áreas, como: a da produção de veículos robóticos e jogos; reconhecimento de voz; planejamento autônomo e escalonamento; combate de spam; planejamento logístico; e tradução automática.

A fabricação de carros robóticos que não necessitam de motoristas, como o Stanley – um Touareg Volkswagen – ou de programas de planejamento autônomo de bordo, a exemplo do programa Remote Agent da Nasa, são modelos de sistemas de Inteligência Artificial que existem na contemporaneidade (NORVIG; RUSSELL, 2013). Acrescenta-se, ainda, o emprego de IA para a produção artística, exemplificando-se para a criação do quadro “Retrato de Edmond de Belamy” – composto pelo grupo de arte francês Obvius, a partir de um conjunto de dados de quinze mil retratos pintados entre os séculos XIV e XX – ou o “About a Theory of ‘Graffiti’”, formado a partir de um computador “treinado” com técnicas de grafitagem (MAPELLI; GIONGO; CARNEVALE, 2018).

Para além da seara das artes plásticas, no campo da música, destaca-se a composição de partituras com a ajuda de máquinas, como a “Suíte Illiac”, de 1957 – inspirada nos corais de Bach – (NOGUEIRA, 2018); a produção de códigos de músicas de geração automática ou colaborativa, exemplificando-se o Flow Machine Composer, desenvolvido pela Sony em parceria com a Universidade Pierre e Marie Curie de Paris (TEIXEIRA, 2018); e a formação da música “Neural” com o auxílio de IA, lançada pelo Spotify, depois de treze anos da morte e em homenagem ao rapper Sabotage (CARBONI apud MAPELLI; GIONGO; CARNEVALE, 2018).

 

1.3 As implicações jurídicas causadas pela expansão do uso de sistemas de Inteligência Artificial

Ao se analisar o atual cenário dos direitos autorais, faz-se perceptível que a literatura jurídica brasileira não trata acerca, de forma específica, da tutela de criações desenvolvidas por intermédio de Inteligência Artificial, as quais estão evoluindo e se tornando cada vez mais complexas (TEIXEIRA, 2018). A falta de proteção autoral para a máquina, instigada pela Lei nº 9610/1998, no artigo 11, é um exemplo de uma implicação jurídica a ser analisada, na medida em que concede autoria, de modo geral, apenas para pessoas físicas.

Assim, torna-se essencial desenvolver diversas problemáticas relacionadas com o concedimento autoral, como: a do processo criativo, a da meta-autoria, a da possibilidade de obras de IA pertencerem ao domínio público e a da personalidade jurídica de robôs; com o intuito de compreender os principais elementos do Direito Autoral brasileiro – percebendo os seus limites frente à IA – e, respectivamente, de traçar os possíveis caminhos de titularidade de produções, em específico, musicais compostas com o auxílio da IA.

 

2 Os limites da Lei de Direitos Autorais brasileira frente à Inteligência Artificial

                        Com o surgimento da imprensa no século XV e, respectivamente, a percepção, por exemplo, de que as palavras poderiam ser objeto da propriedade privada, há o desenvolvimento do fundamento para o direito autoral, o qual se vinculava com as noções de “originalidade” e “criatividade” de uma obra (CARBONI, 2010). A concepção moderna de autoria tem relação com a necessidade de reconhecimento de um “gênio criador individual” ou de um “ser inspirado e divino”, na medida em que veio juntamente com a precisão de defender pensamentos de “texto como capital” e de “autor como proprietário” (WORDSWORTH apud CARBONI, 2010). Atributos de propriedade, autonomia, originalidade e moralidade seriam creditados a um indivíduo-autor, pelo fato de uma obra ser uma manifestação da personalidade de um autor.

Nessa perspectiva, vale mostrar que, diferentemente de uma tentativa inicial preservacionista de imutabilidade do saber e do conhecimento, a partir de instituições autorais definidas, na cultura digital, tem-se uma “transformação do saber em novos conhecimentos e obras do espírito, impulsionada pela tecnologia digital, que confere maior liberdade à criatividade humana e maior originalidade ao processo de criação intelectual” (CARBONI, 2010, p. 79); afetando, a título de exemplo, a forma de produção das obras, seja de maneira direta ou indireta, e, consequentemente, a definição de uma autoria.

Um modelo da influência da tecnologia no modo de elaboração e, de modo respectivo, na definição de um “autor” é quando, em um momento de passagem para a Quarta Revolução Industrial, tem-se a utilização de máquinas de Inteligência Artificial para a criação de diversas obras artísticas. Desse modo, nesse novo paradigma, o tradicional conceito de autoria passa a ser questionado, por causa, exemplificando-se, das novas tecnologias possibilitarem criações colaborativas, as quais desafiam e propõem a superação, por intermédio de reformas em leis autorais, de limites anteriormente propostos e já ultrapassados ou, ainda, estimulam a necessidade de haver uma reinterpretação de leis postas.

Sendo assim, enfocando no contexto brasileiro, faz-se imprescindível descrever os principais elementos da Lei de Direitos Autorais brasileira, a fim de que se possa instigar uma meditação quanto algumas disposições estabelecidas e o seu possível posicionamento quanto à produção intelectual de Inteligência Artificial.

 

2.1 Os principais elementos da Lei de Direitos Autorais brasileira

O Direito Autoral brasileiro é regulado, atualmente, pela Lei 9610/98, a qual trata sobre o direito do autor e os que lhe são convexos, ao disciplinar o conceito e a abrangência das obras protegidas e especificar os direitos morais e patrimoniais do autor. Por ser oriundo do sistema francês Droit d’ auteur, em que a proteção recai principalmente sobre o autor ou criador da obra, deve-se explicitar a preponderância da dimensão dos direitos morais em tal Lei (PANZOLINI; DEMARTINI, 2017). O artigo 24, da Lei 9610/98, elenca alguns dos direitos morais do autor propostos, podendo citar: a da possibilidade de reivindicação, a qualquer tempo, da autoria; o direito de retirar a obra de circulação e a do asseguramento da conservação da obra.

O objeto de proteção da Lei de Direitos Autorais (LDA) são as obras intelectuais, que podem ser definidas como:

Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:

I – os textos de obras literárias, artísticas ou científicas;

II – as conferências, alocuções, sermões e outras obras da mesma natureza;

III – as obras dramáticas e dramático-musicais;

IV – as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma;

V – as composições musicais, tenham ou não letra;

VI – as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas;

VII – as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia;

VIII – as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética;

IX – as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza;

X – os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência;

XI – as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova;

XII – os programas de computador;

XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

  • 1º Os programas de computador são objeto de legislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam aplicáveis.
  • 2º A proteção concedida no inciso XIII não abarca os dados ou materiais em si mesmos e se entende sem prejuízo de quaisquer direitos autorais que subsistam a respeito dos dados ou materiais contidos nas obras.
  • 3º No domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico, sem prejuízo dos direitos que protegem os demais campos da propriedade imaterial. (Grifos meu)

Em outros termos, pode-se depreender que as obras, para serem amparadas pela LDA, devem ser exteriorizadas, possuindo traços de criatividade (ou seja, esforço criativo que demonstre a personalidade do autor), e originais (não tendo a necessidade de serem inéditas), constituindo-se, portanto, em “criações de espírito”.

A autoria da obra é vinculada, no geral, às pessoas físicas e independe da capacidade civil da pessoa – indivíduos menores de idade ou com limitação intelectual podem ser, de forma direta ou por meio de representação, tidos como autores. Outras características relativas à autoria devem ser mostradas, exemplificando-se: a de que o autor pode se identificar pelo seu nome verdadeiro, por seu pseudônimo ou por uma marca em determinada obra; os direitos patrimoniais do autor podem ser transferíveis, diferentemente dos morais, que são inalienáveis, imprescritíveis e intransferíveis; e a de que a titularidade derivada nunca pode abarcar a totalidade dos direitos do autor.

De forma sistematizada, ainda, pode-se resumir a autoria das obras de acordo com as seguintes categorias, divididas em: obras inéditas, psicografadas, anônimas e coletivas. Nas obras inéditas, dar-se-á para quem publicá-las pela primeira vez; já, nas psicografadas, o direito seria para o médium, pelo fato de ele ter escrito. Quanto às anônimas, para o indivíduo que publicar a obra, sendo o exercício dos seus direitos contados a partir da data de publicação. E, por fim, nas obras coletivas, a autoria deve ser dada em nome de uma pessoa física ou jurídica, aplicando-se o último caso quando se tiver, por exemplo, um grupo de pessoas ou uma comissão organizadora (PANZOLINI; DEMARTINI, 2017).

 

2.2 Os sistemas de Inteligência Artificial e a produção intelectual

                        A despeito da Lei 9609/98 – que é uma legislação específica acerca de programas de computador – garantir proteção aos softwares, as criações advindas a partir de instruções naturais ou codificadas (em outros termos, de programas de computador) não são reguladas por essa Lei, a qual se submete diretamente a Lei de Direitos Autorais. A lacuna legislativa referente a regulação dos produtos provenientes de máquinas, como os procedentes de sistemas de Inteligência Artificial, traz uma reflexão quanto à necessidade de se debater acerca da tutela de tais obras de IA.

Os sistemas de Inteligência Artificial funcionam, principalmente, na contemporaneidade, por meio de dois métodos: o Machine Learning (também chamado de autodidata e com aprendizagem progressiva) e o Deep Learning. O entendimento dessas formas de processamento se faz necessário, já que, pela diferenciação na maneira de operar, há uma variedade no modo de produção de trabalhos e, consequentemente, na atribuição de “criatividade” e de autoria. A interferência humana no processo de produção intelectual, como “gênio criador”, é decisiva para a definição se uma tecnologia de IA foi utilizada apenas como uma ferramenta humana ou como uma criadora autônoma – ou seja, como um sistema que produz resultados aleatórios, imprevisíveis e não-condicionados a atuação de um ser humano, por intermédio de um método matemático que consegue agir praticamente sem mediação humana, a partir de decisões próprias.  A ultrapassagem, em alguns casos, de comandos iniciais e algoritmos originais dados a tecnologia de IA faz com que esse sistema consiga produzir obras inesperadas, sem previsão dos seus resultados pelos programadores, provocando vários impasses na definição da propriedade intelectual de um produto.

Nesse enfoque, extraindo alguns conceitos básicos da LDA brasileira, precisamente do artigo 11, tem-se que a autoria seria dada para os agentes que cumprissem os seguintes requisitos: serem pessoas físicas; criassem obras literárias, artísticas ou científicas; e desenvolvessem “criações de espírito”. Por intermédio de tais fundamentos propagados pela LDA e seguindo uma forte tendência doutrinária, seguir-se-á dois caminhos diferentes para a autoria de produtos feitos por Inteligência Artificial, a depender do grau de interferência humana e da previsibilidade da obra obtida. O primeiro caminho se trata de quando se tem uma determinação do resultado pelo programador, o qual usa a tecnologia de IA como mera ferramenta; sendo que, nessas circunstâncias, a autoria seria concedida para os indivíduos que utilizaram o sistema como um instrumento para a realização de um fim pretendido – considera-se isso por meio de uma interpretação do Art 7º, inciso VII. Em relação ao segundo caminho, tem-se uma referida doutrina que crê que os produtos de IA, advindos de imprevisibilidade, estariam em domínio público, já que não se poderia sequer atribuir às pessoas físicas uma proteção autoral, por causa da autonomia do sistema. Com relação a esse último caminho não-consensual pela doutrina, o qual é suscetível de diversos questionamentos, existe a precisão de se discutir as problemáticas advindas dessa posição. Far-se-á isso por meio de uma análise acerca da tutela de composições musicais produzidas pela tecnologia de IA, ao colocar em evidência questões de “criatividade”, “criações de espírito” e muitas vertentes adotadas, para esse assunto, por outros países.

 

3 A tutela de composições musicais feitas por meio de Inteligência Artificial

A junção de sons – ou vibrações que podem ser apreendidas pelo ouvido humano – e de silêncios harmônicos constituem o que se conhece como música. A música é composta por uma melodia (sequência de notas musicais), por um ritmo (que determina o tempo e o estilo da música) e por uma harmonia (sons simultâneos), os quais, geralmente, recebem a atribuição de um texto ou de uma letra (MED, 1996). Participando ativamente do cotidiano social, as músicas evocam sentimentos, prazeres e bem-estar aos indivíduos, contribuindo com a concentração, com o equilíbrio e com o desenvolvimento do raciocínio das pessoas.

Para além de considerar os benefícios e a importância das produções musicais, deve-se destacar a atual massificação e o grande interesse, do sistema econômico vigente, em lucrar e produzir composições musicais diversas, de modo mais fácil, rápido, atrativo e, consequentemente, mais econômico. Em razão disso, não trazendo um teor negativo acerca do avanço e da revolução tecnológica sob a música, surgem novos modos de produção musical, como o que é feito intermediado pelo sistema de Inteligência Artificial. O mercado musical teve uma abertura para que, com baixos investimentos, muitas pessoas conseguissem adentrar nesse setor, a partir do lançamento de variados “hits” e de composições diversas, sejam autorais ou não.

É indiscutível a urgência de saber se o campo jurídico estar adaptado para as mudanças tecnológicas que impactam o ramo musical. Dessa forma, reconhecer se a tutela de composições musicais de IA – sejam as produzidas com ou sem grande interferência humana – já é prevista no Brasil se faz necessário, ao avaliar as aplicações de IA em músicas e, respectivamente, trazer perspectivas sobre possíveis posições a serem tomadas no território nacional.

 

3.1 Aplicações de Inteligência Artificial para a produção de composições musicais

O desenvolvimento de estudos em prol de entender como realizar composições algorítmicas de músicas influenciou nas formas de edições e de criações musicais em todo o mundo. Em 1957, Lejaren Hiller e Leonard Isaacson, da Universidade de Illinois, em Urbana, programaram o “Illiac Suit for String Quartet”: o primeiro trabalho completamente composto por Inteligência Artificial. Outras pesquisas foram feitas ao longo do século XX, as quais conseguiram avanços significativos na modelagem generativa, na análise do som inteligente, na relação entre a ciência cognitiva e a música e no modo de composição musical, a exemplo do que foi desenvolvido por N. Rowe (do MIT Experimental Music Studio) e por David Cope (Universidade da Califórnia, em Santa Cruz) (LI, 2019).

A possibilidade dos modelos de IA lidarem, por exemplo, com o reconhecimento dos instrumentos, das emoções, da transcrição de músicas e da separação de fontes revolucionou o mercado dos negócios. Aplicativos de músicas, intermediados pela IA, que compõem trilhas sonoras e letras musicais de forma praticamente autônoma, que funcionam como ferramentas de composições para músicos e produtores e que ajudam a músicos a aprenderem mais sobre o próprio campo de trabalho é uma realidade presente. A startup “Amper Music” é um modelo de um meio que permite vários indivíduos, mesmo sem ser músicos, compor músicas personalizadas em questões de segundos e, caso desejem, podem até editar de forma fácil e intuitiva.

Nesse sentido, quando se analisa sobre a utilização da tecnologia de IA no território brasileiro, pode-se perceber que o manuseio desses sistemas não é uma irrealidade e, até, tem um avanço progressivo de uso. Em 2019, a Dell Technologies comemorou seus 20 anos de atuação no Brasil com a produção de uma música de IA, que converteu, intermediado por um algoritmo, depoimentos de funcionários para a geração de melodias, usadas pelo maestro Adriano Machado para compor uma canção final (MARTINEZ, 2019).

À vista disso, tem-se uma imprescindibilidade em discutir sobre possíveis implicações jurídicas que a aplicação de IA para compor músicas podem gerar. Abordar sobre a “criatividade” e a possibilidade de “meta-autoria” são pilares para apresentar tal debate.

 

3.1.1 A criatividade de músicas feitas por Inteligência Artificial em evidência

Definir se uma obra, advinda de Inteligência Artificial, é criativa se faz preciso para compreender o processo de disposição de autoria. Retomar discussões sobre o uso da IA como mera ferramenta ou como um meio autônomo de produção de obras inesperadas tem uma importância basilar para traçar as possibilidades de caminhos que a LDA brasileira encaminha. Nesse momento, discutir-se-á os tipos de obras feitas pela Inteligência Artificial, colocando em evidência o conceito de autoria e, principalmente, o de criatividade, por intermédio de elucidações explicativas e da apresentação de exemplos.

A princípio, antes de começar a discussão acerca da criatividade de um produto de IA, torna-se essencial deixar claro que existe uma variedade de possibilidades de intervenção humana em um produto feito pela tecnologia de IA, sendo possível ter uma maior determinação e previsibilidade de resultado ou, até, o contrário, em muitos níveis. Ainda, deve-se especificar que, por fins de escolha, deter-se-á a três tipos de discussões, ou seja, àquelas vinculadas com a utilização do sistema de IA como uma ferramenta, com a de sistemas de IA praticamente autônomos e a de um produto feito de forma colaborativa entre tecnologia de IA e intervenção humana.

Relembrando o que foi estabelecido no capítulo 3, as obras, para serem reguladas pela LDA, têm de serem “criações de espírito” ou, ainda, devem apresentar sinais de criatividade. A autoria de produtos feitos em situações que a IA funciona como uma mera ferramenta já foi discutida, chegando-se a conclusão de que a tutela jurídica seria dada para o programador – o indivíduo que interferiu diretamente em todo o percurso para chegar a um resultado já previsto. A problematização do conceito de criatividade, portanto, deve ser dada para entender se seria possível que produtos inesperados –os quais foram gerados de forma quase que sem interferência humana, apenas por um sistema de inteligência progressiva – ou os produzidos de modo colaborativo poderiam ser regulados pela LDA; sem se preocupar, nesse instante, para quem seria dada a autoria, seja para a máquina ou para uma pessoa física, como é prevista em Lei.

Runco e Jaeger (2012) definem a criatividade como sinônimo de originalidade e efetividade. Consoante esses autores, uma obra para ser criativa deve ultrapassar a questão da originalidade, necessitando ser efetiva – ou ter uma “utilidade”, “encaixe” ou “adequação”, juntamente com uma possibilidade de valoração econômica no mercado. “This label is quite clear in the economic research on creativity; it describes how original and valuable products and ideas depend on the current market, and more specifically on the costs and benefits of contrarianism.” (RUNCO; JAEGER, 2012, p. 92). O Morris Stein também apresenta um conceito de obra criativa, mostrando-a como

um trabalho novo que é aceito como sustentável ou útil ou satisfatório por um grupo em algum momento no tempo (…). Por “novo” quero dizer que o produto criativo não existia anteriormente precisamente da mesma forma (…). O grau de novidade de uma obra depende do grau do desvio do tradicional ou do status quo. Isto pode muito bem depender da natureza do problema que é atacado, do fundo de conhecimento ou experiência que existe no campo no momento, e das características do indivíduo criativo e dos indivíduos com quem ele [ou ela] está se comunicando (apud GONÇALVES, 2019, p. 26).

Reunindo as descrições feitas, pode-se estabelecer que um trabalho criativo depende da originalidade, da efetividade e da aceitação social da obra criada. Ser uma mera cópia de algo que já existe e não ter uma utilidade e relevância social são elementos que impossibilitam uma obra ser passível de proteção autoral.

O “These Lyrics Do Not Exist” é um exemplo de uma inovação nos métodos tradicionais de criação de músicas, no caso, da produção de letras musicais. Tal Inteligência Artificial gera refrãos e versos originais apenas pela definição de um tema, que pode ser relacionado com sentimentos, humores e dentre outros. Sem a reciclagem de versos anteriormente criados, cada nova frase é totalmente original. Nesse caso, em que se tem uma autonomia – sem grandes determinações de input de dados por humanos –, deve-se definir que a Inteligência Artificial tem a capacidade de fazer obras criativas. A originalidade, como bem mostrada, é perceptível, pelo motivo de resultados imprevisíveis, independentemente de eles não terem sido criados por humanos, serem presentes, com claros elementos de inspiração em um banco de dados próprio, mas sem reproduzir obras já existentes, através de traços inovadores. Quanto à efetividade e à apreciação pelo público, existe uma grande receptividade pelas produções de IA, como as de músicas, pois há um amplo sucesso comercial com vista a essas obras, que são consideradas como artes, incentivando a indústria a produzir cada vez mais e obter lucros expressivos.

Assim sendo, considerar-se-á que as produções musicais de Inteligência Artificial, nesse exemplo em que se tem autonomia e mesmo no caso de obra colaborativa, se seguirem os elementos propostos para serem criativos, podem ser objetos de tutela jurídica e não devem, sem uma análise prévia, cair em domínio público.

 

3.1.2 A meta-autoria

Antes de trazer a questão da tutela de composições musicais de forma estruturada, há a importância de se discutir acerca da meta-autoria. Trata-se, de acordo com a ideia de Pamela McCorduck (apud CARBONI, 2010, p. 89), de um “sistema capaz de gerar significados inusitados, que nos reporta ao que se passa na cabeça de seu criador”. Em outros termos, a obra seria produzida em parceria do programador com a tecnologia de IA, mediante um mecanismo em que a máquina interpõe o circuito emissor-receptor, tornando-o uma relação comunicativa indireta.

Nesse mecanismo cibernético, a máquina se torna aberta, não se limitando a um único ato de input de dados ou informações, mas a tecnologia possui um papel que pode ter uma grande amplitude reativa e de interação, a depender do programa em que foi inserido nesse computador. A nova proposta de dinâmica sugerida por esse sistema tecnológico reinventa as formas de interação entre seres humanos e sistemas de IA e afeta a noção de autoria, pelo fato de o produto feito poder ser inovador, mas, ao mesmo tempo, ter inspiração em noções estabelecidas pelo programador. “A figura do autor emerge de uma ecologia das mídias e de uma configuração econômica, jurídica e social particular. Não é, portanto, surpreendente que possa passar para o segundo plano quando o sistema das comunicações e das relações sociais se transformar (…).” (LÉVY apud CARBONI, 2010, p. 91).

Aplicações meta-autorais são bastante presentes no setor musical. O álbum “I am AI”, da cantora Taryn Southern, foi criado a partir da Amper Music, de modo colaborativo, já que as estruturas de cordas e a instrumentação foram delegadas pela própria Amper, sistema de IA, enquanto o estilo e o ritmo da música tiveram determinação por comandos manuais humanos; o que gerou um “single” criativo e ousado (MAES, 2017). Outro exemplo é o do “Orb-Composer”, que cria temas, subtemas, perguntas e respostas para os humanos, com o intuito de conseguir modificar a harmonia e a tonalidade, a fim de gerar solos e encadeamentos harmônicos conforme certas informações-base repassadas para o sistema de IA (BILLY, 2018).

 

3.2 A tutela de composições musicais produzidas por Inteligência Artificial

                        O impasse da tutela de composições musicais, produtos de Inteligência Artificial, é uma problemática recente. A complexidade de determinação de autoria e, até, de titularidade, por causa da variedade de formas de produção de obras, torna-se um desafio para o campo dos Direitos Autorais. O vácuo normativo brasileiro acerca dessa questão faz com que juristas tentem encontrar possibilidades de determinação de caminhos a partir de interpretações analógicas ou por meio de regulações já feitas em outros países.

Deve-se esclarecer algumas conclusões: (i) obras de IA, feitas usando o sistema como ferramenta, seguirá o disposto na LDA, art. 7º, inciso VII; (ii) obras praticamente autônomas possuem conflito se são objetos de titularidade, no geral, a doutrina crê que são de domínio público; mas, em alguns casos, é questionável esse parecer devido a elementos de criatividade perceptíveis, bem como a presença de outras adequações básicas para a proteção autoral; (iii) obras meta-autorais não têm sequer uma perspectiva do que se faria em termo de autoria, devido ser uma produção colaborativa.

A partir dessa conjuntura mostrada, demonstrar-se-á alguns possíveis caminhos – em algumas circunstâncias, problematizando-os – com relação à autoria e à titularidade de composições musicais de IA, traçados pela LDA brasileira ou pela legislação estrangeira comparada.

 

3.2.1 Possíveis caminhos traçados pela Lei de Direitos Autorais brasileira

Tratar da distinção entre autoria e titularidade é importante, antes de demonstrar alguns entendimentos. A titularidade é estabelecida quando um terceiro, que não esteja relacionado com a criação de uma determinada obra, pode exercer os direitos sobre ela, apesar de não ter tido influência no processo de elaboração de tal produto. Já a autoria tem vínculo com traços de individualidade ou, ainda, com a influência – seja com elementos de inspiração, de desenvolvimento de uma lógica, da seleção ou de contribuições materiais (ULMER apud GONÇALVES, 2010, p. 28) –  na concepção de uma obra.

 

3.2.1.1 Obras em Domínio Público

O artigo 45 da LDA brasileira estabelece alguns casos em que obras estariam em domínio público, dentre elas, quando há o desconhecimento do referido autor da obra.

Art. 45º Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:

I – as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;

II – as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais.

A entrada de uma obra em domínio público não indica que tal obra tem liberdade total quanto as suas obrigações e a sua reprodução, bem como sobre a sua posterior utilização; mas reverbera que o recaimento de direitos patrimoniais não existe mais (PANZOLINI; DEMARTINI, 2017).

Consoante entendimentos de Branco (2011), Ascensão (2008) e Barbosa (2005), as hipóteses elencadas não seriam as únicas em que obras devem estar em domínio público, incluem-se também as situações de obras que jamais gozaram de proteção nos termos da lei (apud SCHIRRU, 2018). Pelo fato de existir correntes doutrinárias que mostram a falta de previsão legal e, respectivamente, de proteção autoral para com produtos advindos de tecnologia de Inteligência Artificial, esse questionamento de domínio público se torna, ao se analisar superficialmente essa questão, plausível.

Em princípio, estariam no domínio público todos os elementos da criação humana não cobertos por direitos de exclusiva: por exemplo, o listado sob o art. 8º. Da LDA, que não se veja protegido por outro sistema de direitos exclusivos. (BARBOSA apud SCHIRRU, 2018).

Porém, a discussão acerca do domínio público deve ser mais profunda, ao, por exemplo, debater interesses de mercado e sociais e, até, em muitas vezes, o cumprimento de “pré-requisitos” básicos – como o da criatividade, já mostrado – que concedem a tutela jurídica de obras, mesmo sem indicar para quem seria a autoria ou a titularidade em situações específicas, como nos casos de IA.

Evidenciar o possível desestímulo ao desenvolvimento de sistemas tecnológicos de IA, ao adotar a posição de domínio público, como a que os Estados Unidos, a Austrália e a União Europeia seguem – em que apenas obras criadas por seres humanos poderiam ser protegidas pelo direito autoral –, faz-se importante para principiar essa deliberação de autoria (OLIVEIRA, 2018). Obviamente, caso se seguisse o estabelecimento feito nesses países, haveria uma desmotivação de muitas entidades no investimento nessa área, já que ter direito à proteção intelectual de uma obra representa economicamente um benefício para certas empresas; em decorrência da possibilidade de se ceder direitos reprodutivos, exemplificando-se, em casos da produção de música de IA, para empresas interessadas. Outro ponto a ser posto é o de que, como já foi introduzido anteriormente, existem situações em que produtos decorrentes de IA podem ser tidos criativos – por intermédio do cumprimento de “características-base” do conceito de criatividade –, e, por serem obras exteriorizadas, estariam adequadas com os dispositivos propostos pela LDA.

Não se pode, destarte, deixar de destacar aspectos positivos que adotar a posição de domínio público traria, em especial, para a sociedade. O Schirru (2018) aborda bem essa problemática, ao mostrar que o acesso à cultura, à educação e ao conhecimento em geral, direitos e garantias constitucionais, estariam assegurados, caso se tomasse essa decisão. O interesse social – mediante o uso de produtos de IA, em domínio público, como fonte de acesso à informação e ao conhecimento – seria prontamente atendido, junto com as funções sociais do direito autoral, na medida em que obras em domínio público, não desconsiderando o alcance proporcionado quando essas estão em monopólio particular, têm maior abrangência para a população; difundindo um superior avanço cultural e educacional para os indivíduos.

 

3.2.1.2 Titularidade para as pessoas envolvidas no processo de criação

Torna-se importante mostrar outros caminhos possíveis que a legislação autoral brasileira poderia seguir. Em países, como a Inglaterra, há a previsão de proteção autoral para obras de IA; sendo atribuída a autoria para pessoas físicas – individual ou coletivamente – envolvidas no processo de criação do produto, em específico, àquelas que foram capazes de criar códigos que coordenam as ações da tecnologia (MAPELLI; GIONGO; CARNEVALE, 2018).    Ou, ainda, em consonância com o Copyright, Designs Patents Act (CDPA), “nos casos de criação de trabalhos literários, dramáticos, musicais ou artísticos por computadores, o autor será a pessoa que fez os arranjos necessários para a criação da obra em questão” (OLIVEIRA, 2017, n.p.).

Apesar de, na Inglaterra, ser estabelecida a autoria para os programadores do sistema computacional, se o Brasil – por intermédio do uso de uma legislação comparada – resolvesse adotar tal posição; dever-se-á, paralelamente, discutir acerca da atribuição de uma autoria não apenas para o programador em si, já que, nas situações de produções de IA, existe o envolvimento de outros indivíduos, seja na imputação de dados ou, mesmo, na definição de diretrizes para a atuação do sistema.

 

3.2.1.3 A atribuição de personalidade eletrônica e a consequente modificação da Lei nº 9610/98

Outra direção que a Lei de Direitos Autorais brasileira tem como perspectiva é a de modificar os entendimentos vigentes acerca da proteção autoral e, respectivamente, definir personalidade jurídica para robôs. O Parlamento Europeu, no início de 2017, editou uma resolução de direito civil, visando reconhecer às máquinas autônomas como sujeitos de direitos e deveres, de modo a aplicá-las o “status” de “pessoa eletrônica” (MARTINS; GUARIENTO, 2019). Questões relacionadas com a responsabilidade civil e com princípios éticos e de privacidade, e as implicações sociais, foram analisadas pela União Europeia (EU), a fim de que, ao se atribuir tal personalidade, houvesse a possibilidade de se ter uma segurança jurídica e uma máxima exploração do potencial econômico do setor da robótica, em associação com o da Inteligência Artificial.

Deve-se esclarecer que tal discussão, consoante Carlos Affonso de Souza (2017), foi impulsionada por indagações sobre responsabilidade – tentativas de reparação de danos feitos por máquinas –, não tendo como enfoque direto a regulação da tutela jurídica de produções feitas por meio de IA.

 

Conclusão

                        Frente ao atual panorama da Lei de Direitos Autorais brasileira, portanto, faz-se visível a inexistência de uma regulação específica sobre a tutela jurídica de composições musicais produzidas por intermédio de Inteligência Artificial. Como decorrência disso, a partir da verificação da importância da regulamentação dessa matéria, tem-se a proposição de que existe a precisão de disciplinar essa questão da autoria ou da titularidade, seja por meio de alterações legislativas ou, ainda, através da explicitação de novas interpretações da LDA.

Propor-se-á, intermediada pelas discussões já feitas – que ainda são incipientes e, obviamente, ainda precisam ser aprofundadas – o seguinte método, que perpassa pela verificação de alguns questionamentos básicos, com o intuito de saber quais composições musicais podem ser alvos de tutelas e, mesmo, quais as possibilidades de caminhos que a legislação autoral brasileira futuramente pode adotar. Esquematizar-se-á as conclusões feitas em forma de uma representação mental, objetivando demonstrar tal resultado obtido e, de forma respectiva, reduzir a complexidade de entendimento (Anexo A).

Explicitando-se as percepções realizadas, pode-se mostrar que para a análise da viabilidade da tutela jurídica de obras musicais de IA se deve fazer o seguinte raciocínio: (i) determinar se a música pode ser considerada como uma “criação de espírito”, ou, ainda, se há a existência de criatividade; (ii) examinar a forma como o sistema de Inteligência Artificial foi usado e qual o grau de interferência humana no resultado da obra; (iii) intermediado de um raciocínio doutrinário ou de entendimentos de legislações comparadas, visualizar os possíveis rumos que a LDA pode adotar. Logo, o Brasil pode seguir a vertente do Domínio Público para todas as obras musicais de IA ou adotar a posição de que, dependendo do grau de interferência humana no resultado final – bem como no processo criativo –, a autoria pode ser vinculada a uma “personalidade eletrônica” ou a algumas pessoas envolvidas no processo de criação.

Espera-se que este trabalho tenha alentado a refletir diversas questões acerca da temática dos direitos autorais brasileiro e a composição musical de Inteligência Artificial, apesar da ciência da sua complexidade e da necessidade de uma maior investigação.

 

Referências

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ANEXOS

 

Anexo A – Esquema conceitual para demonstrar algumas compreensões feitas sobre a tutela de composições musicais de Inteligência Artificial. Fonte: Autoria própria.

 

 

 

 

 

 

[1] Estudante em Direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), campus Mossoró. Rebeccamaria11@hotmail.com.

[2] Professor de Direito Público da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA), campus Mossoró.

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