Séculos de debate sobre a origem do direito ( e da ética) se reduzem a isto: ou bem os preceitos éticos e jurídicos , tais como a justiça e os direitos humanos, aparecem graças a natureza humana ( de que há uma regra inata sobre os comportamentos e universais morais determinados por nossa natureza), ou bem são invenções humanas socialmente construídas (no sentido de que nada existe independente do acordo ou do desacordo humano). A distinção , como se verá mais adiante , é algo mais que um mero exercício mental para os juristas e filósofos acadêmicos. A eleição entre as duas hipóteses supõe toda a diferença no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, mede a legitimidade e a autoridade do direito e dos enunciados normativos , e determina, em última instância, a conduta e o sentido do raciocínio prático ético-jurídico.
Esse mistério, de todo não resolvido , em torno do direito, apresenta em aparência um problema pouco agradável : o de que a busca de uma “outra via” entre o direito natural e o positivismo jurídico, ou mais além destes, tem gerado uma explosão de produtiva criatividade em áreas de investigação inteiras ( como a filosofia ou a ciência do direito, a argumentação jurídica, a sociologia e a hermenêutica jurídica, etc.) que, durante décadas escassa ou rotinariamente cultivadas, conseguiram atrair a atenção de um número crescente de investigadores entusiastas e de reconhecido prestígio, que acabaram por remover os outrora apáticos cimentos de suas respectivas disciplinas.
E como sói ocorrer quando uma área de trabalho altera súbita e radicalmente sua face – como ocorre agora mesmo, por exemplo, na revolução intelectual que estão provocando as ciências cognitivas -, o estalido inovador em filosofia e ciência do direito, igual que um campo imantado de fascinação, acabou por gerar um pouco de desconcerto e desorientação: proliferam os conceitos e os argumentos a tal ponto que, de um lado, tornam por momentos difícil, senão impossível, manter uma perspectiva global e informada ; do outro, tornam fluxos os critérios de avaliação gerais que permitem julgar esses conceitos e esses argumentos.
Por outro lado, e no meio dessa tormenta de produçao acadêmica, a extraordinária proliferaçao de investigaçoes e publicaçoes que nas duas últimas décadas dirigem seus interesses a refletir sobre as relaçoes entre a ciência cognitiva e a sociologia, a ciência cognitiva e a filosofia social normativa, a ciência cognitiva e a antropologia, a ciência cognitiva e a evoluçao cultural, ou a biologia evolutiva e a psicologia evolucionista com todas elas, acabaram por contribuir também para por em sério aperto a defesa teórica de uma inexorável fragmentaçao do território da ciência e de que nao existe uma realidade independente de causas sociais , senao que toda ela está socialmente construída.
E ainda que a esta nova realidade multidisciplinar permaneçam alheios boa parte dos cientistas sociais e dos operadores do direito, ela começa nao somente a pôr em cheque uma grande porçao dos logros teóricos tradicionais das ciências sociais normativas e da própria ciência jurídica, senao que também está possibilitando a proposiçao ( e mesmo a exigência) de novos critérios para que essas áreas de conhecimento sejam revisadas à luz dos recentes estudos provenientes da psicologia evolucionista, da biologia evolutiva, da primatologia, da neurociência, entre outras.
A idéia – da qual estamos convencidos- reside no fato de que as ciências jurídicas, sociais e humanas obterao mais benefícios partindo de uma visao biologicamente vinculada à natureza humana, da transformaçao da filosofia da mente e das ciências cognitivas em sua base conceitual, do que permanecer incólume no seu isolamente teórico e metodológico, desde o qual os operadores jurídicos vêm prestando pouca atençao aos fundamentos da natureza humana e praticamente nenhum interesse por suas origens mais profundas. Dito de outro modo, de que os perversos defeitos teóricos de que ainda padecem decorre do desprezo ao fato de que o comportamento individual se origina a partir da intercessao de nosso sofisticado programa ontogenético cognitivo e do entorno sócio-cultural em que movemos nossa existência, ou seja, de que o comportamento moral e social está guiado, fundamentalmente, por nossa arquitetura cogntiva inata, que tem uma estrutura homogênea e funcionalmente integrada, a par de regimentada em módulos ou domínios específicos.
Afinal, se parece seguro que nossa evolução se deu por mecanismos darwinianos e de acordo com limitações darwinianas, o tipo de natureza humana implicado em uma determinada proposta teórica define e circunscreve não somente as condiçoes de possibilidade das sociedades humanas como, e muito particularmente , o desenho do conjunto institucional e normativo que regulará as relaçoes sociais, assim como o carater das normas e dos valores produzidos pelo homem no percurso do incessante processo de adaptação (darwiniana) ao complicado e cotidiano mundo em que plasma sua secular existência. Com efeito, e a menos que aceitemos, segundo algumas propostas teológicas que os seres humanos estao somente um pouco por debaixo dos anjos, um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana deve subjacer a qualquer teoria social normativa (ou jurídica) que, na atualidade, pretenda ser digna de algum crédito (Rose,2000).
Sob essa perspectiva, parece razoável ponderar que uma forma operativa ( que não mate o pensamento nem enerve a ação) para avaliar o problema do fenômeno jurídico é começar por perguntar , em última instância , “como o direito se tornou e é possível?”, ou seja, “qual é a função do direito no contexto da existência humana?” Uma explicação “convencional neodarwinista” pressupõe que dispor de normas de conduta representa uma vantagem genética , com o qual a pergunta original sobre por que “criamos” o direito , transforma-se em “que constituiu (ou que constitui) a vantagem seletiva ou adaptativa?” De não ser possível responder a esta questão, a presença do direito no universo do existir humano seguirá sendo um enigma, sempre aberto as mais disparatadas suposiçoes acadêmicas.
Para começar, persiste a incógnita que afeta aos humanos e somente a eles, e que nenhuma teoria parece ser capaz de despejar : a de averiguar por que motivos desenvolvemos uma solução tão custosa e tão tremendamente complexa em termos neurológicos para resolver os contratempos que puderam apresentar nossa existência secular e o mútuo relacionamento da vida social. Os lobos e os leões, por exemplo, resolvem estes problemas com estratégias muito hábeis, tais como a agrupação, sem que medeie nenhum tipo de norma ou linguagem gramatical. As formigas e as abelhas efetuam um exercício de dança ( e bioquímico) específico para se transmitirem informações sobre a localização e a qualidade de seus manjares. Os monos ( e especialmente os primatas modernos) dispõem de uma variada gama de gestos , gritos e outras condutas para manifestar ( esconder ou dissimular) medo e agressividade, sentido de justiça, submissão e prazer, desejo de congraçar-se e ter apetências sexuais etc. , mas jamais usam estruturas normativas proposicionais nem gramaticais.
É de se supor que a capacidade linguística, tão própria de nossa espécie e a ferramenta mais importante para a transmissao da cultura , aporta-nos vantagens que os sistemas de comunicação mais simples não sao capazes de transmitir. Sem embargo, seguimos sem conhecer por que a vantagem é tão enorme que chega ao ponto de permitir-nos conhecer “quem fez que a quem” , de predizer em normas de conduta bem definidas as conquências das açoes de nossos congêneres, mas que, por outro lado, também nos impede de acudir a uma definiçao mais precisa de justiça ou de delimitar em que aspecto a teoria do direito natural é preferível a de um positivismo mais sossegado.
Nesse sentido, e para tentar entender e superar a obscuridade do tema, parece ser que a perspectiva mais fecunda na análise do direito seja a funcional[1], quer dizer, aquela que não se fixa em uma suposta ( e por vezes reducionista e/ou eclética) perspectiva axiológica, sociológica ou estrutural do mesmo, mas que intenta dilucidar para que serve no âmbito da evolucionada existência humana , sem que para isso, ponhamos o caso, seja necessário recorrer ao expediente retórico ( relativista ou tradicional) de condicioná-lo aos escuros limites da revelação de teorias que ultrapassam a compreensão e a própria experiência humana , de verdades independentes que nossa inteligência não consegue processar e entender, ou seja, de dissimular ou desconhecer os motivos e as razões que suscitam e justificam a sua (evolucionada) existência como um dos aspectos essenciais da vida em grupo.
E uma vez redimensionado e situado este tipo de análise sobre o direito a uma dimensao propriamente evolucionista e funcional, é possível conjecturar que se o direito foi criado pelo homem, para os propósitos do homem , então todos os propósitos que porventura possamos encontrar e extrair dele devem ser devidos, em última instância, aos propósitos do homem . Mas , “quais são estes propósitos?”, é algo assim como um mistério.
Sem embargo, e porque os humanos sao sempre um problema tao sensível, parece razoável partir da hipótese (empiricamente rica) de que a resposta se encontre ( como sucede com as teorias que relacionam o tamanho do cérebro com a inteligência social) na necessidade para competir com êxito na complexidade de nosso estilo de vida social, isto é, na forma pela qual nossos antepassados homínidos resolveram um problema adaptativo associado aos múltiplos e incessantes relacionamentos derivados de uma vida substancialmente grupal : nossos ancestrais homínidos , em algum momento de nosso passado evolutivo, necessitaram (por pressoes seletivas) gerar um desenho, melhor que as alternativas entao existentes, que permitisse uma otimização funcional e adaptativa do mecanismo de funcionamento das quatro formas elementares de sociabilidade que parecem estar arraigadas na estrutura de nossa arquitetura mental : as relações de comunidade , de igualdade, de proporcionalidade e de domínio hierárquico [2].
Nesse sentido , uma explicação darwiniana sobre a evolução do direito supõe que as normas de conduta ( no caso, de natureza jurídica) representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar biologicamente : plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade inata de inferir os estados mentais e de predizer o comportamento dos indivíduos e , dessa forma, ampliar o conhecimento social sobre os membros de nossa espécie e desenvolver nossa também inata capacidade de resolver conflitos sociais sem necessidade de recorrer à agressividade[3] ; isto é, de oferecer soluções a problemas adaptativos práticos , separando (mais do que compondo conflitos ) os campos em que os interesses individuais, sempre a partir das reaçoes do outro, possam ser válida e socialmente exercidos (Ricouer,1999)[4].
De fato, é a existência secular e o mútuo relacionamento na vida social que produzem o indivíduo; o reconhecimento do outro vai unido com o reconhecimento do próprio eu. A capacidade para nos autointerpretar é inseparável da aquisição da capacidade para interpretar a outros, para ler suas mentes, para lhes entender, e para nos entender a nós mesmos, como seres intencionais[5].Como seres reflexivos, chegamos ao conhecimento próprio ou ao autoconhecimento em parte através dos olhos dos outros.Quando nos observamos em relaçao com os demais , parte de nossa experiência é nossa visao imaginada de como nos vêem os outros. Esta capacidade é uma das bases da vida social humana e a essência do que significa autodenominarmos “seres sociais”.
A esse propósito, e concretamente no que diz respeito a assombrosa e inerente sociabilidade que caracteriza nossa espécie, uma hipótese bastante segura é a de que, relativamente às necessidades adaptativas da vida social , a sociabilidade dos homínidos teria sido fortemente desincentivada seletivamente durante o período em que nossos antecessores ( o ancestral comum) ocuparam a periferia do nicho arbóreo; sem embargo, na savana aberta, voltaram a necessitá-la: as pressoes altamente seletivas na savana aberta induziram nosso ancestral a voltar a ter fortes tendências sociais, provocadas tanto por necessidades de proteçao contra predadores (muito mais rápidos e fortes), para a caça em comum, como para o abastecimento coletivo em um ambiente particularmente hostil. Por sua vez, essa necessidade adaptativa de sociabilidade favoreceu o ulterior avanço das capacidades cognitivas, promovendo as capacidades de comunicaçao e associaçao simbólica e sentando as bases neurofisiológicas definitivas para a linguagem, o pensamento, a intercomunicaçao proposicional e a leitura da mente.
A vida em grupos cada vez maiores contribuiu para o desenvolvimento de mais inteligência social, evoluindo os homínidos como verdadeiros leitores de mente. No processo de hominizaçao aumentou o volume cerebral ( e com ele os neurônios disponíveis e os padroes possíveis) em relaçao com o volume corporal e se desenvolveram especificamente o cerebelo e o córtex frontal. O córtex frontal alberga funçoes como a planificaçao a longo prazo, a tomada de decisoes e outras que parecem derivadas da exigência de interagir com a complexidade social mais do que com o meio ambiente que nao teve porque sofrer cambios marcantes. Se pode dizer que a inestabilidade evolutiva que conduziu ao homem a evolucionar foi o próprio homem em sua dimensao social. É mais difícil predizer o comportamento do próximo que o calendário anual que , por si mesmo, se repete sistematicamente com o passo dos séculos. Assim que a função própria[6] do fabuloso desenvolvimento neocortical do Homo sapiens é precisamente a de facilitar a interpretação própria e alheia, a inteligência social. A origem biológica de nossas mais extraordinárias capacidades cognitivas – como em todos os grandes homínidos – é de todo ponto social.
Dizendo de outro modo, uma vez que a existência social humana está fundada na propensão genética para ler a mente, para antecipar as consequências das açoes e para formar contratos a largo prazo , à medida que os primatas foram desenvolvendo suas complexas formas de interação e de estrutura sociais , sua sobrevivência passou a depender, sobremaneira, de argúcias e meios mais sofisticados – que seguramente os sistemas de comunicação mais simples não sao capazes de transmitir – para inferir e predizer o comportamento dos demais , para manter a coesao social y a cooperaçao intragrupal , ou seja , para resolver problemas rotinários de sobrevivência , de reprodução , de intercambio social e de vida em grupo.
E como os seres humanos foram modelados pela evoluçao para ser criaturas sociais que buscam naturalmente integrar-se em um sem número de relaçoes sociais, a seleçao natural também nos dotou especialmente da capacidade cognitiva para identificar os contratos sociais e, em especial, para detectar os tramposos que os incumprem (Cosmides,1989). A formaçao de um contrato é , assim, mais que uma propensão cultural universal : é um traço humano tão característico de nossa espécie, uma atividade tão extendida no comportamento social humano (como a linguagem , o pensamento abstrato e praticamente como o ar que respiramos) que , tendo sido desenhado desde o instinto e a inteligência superior, constitui o principal fator de condicionamento e desenvolvimento das capacidades cognitivas das pessoas, das relaçoes, dos motivos, das emoçoes e das intençoes que se manifestam no entorno social[7].
De acordo com esta hipótese, a proposta de Cosmides e Tooby parece fazer referência a uma parte do cérebro humano que funciona como uma máquina de calcular implacável e arrasadora. Ele trata cada problema como um contrato social firmado por duas pessoas e fiscaliza aquelas que podem burlar o contrato. É um órgão de troca que tudo o que faz é empregar módulos especiais de dedução projetados pela seleção natural para descobrir violações de contratos firmados por duas partes.
Em realidade, como espécie, em qualquer entorno que vivamos, seja qual seja a cultura, nao somente parece que somos excepcionalmente conscientes da relaçao custo-benefício existentes nas trocas, como inventamos a troca ou o contrato social mesmo nas situaçoes mais impróprias. De acordo co Ridley (1996), a reciprocidade pende, como a espada de Dâmocles, sobre a cabeça de cada ser humano: obrigaçao, dever, dívida, favor, ajuste, contrato, troca, negócio … O que nao falta em nossa linguagem e em nossa vida sao idéias de reciprocidade , de contrato e de troca social. De fato, o que os demais fazem conosco ( e por nós) e pensam de nossos comportamentos tem uma grande importância para nossas atitudes morais. Graças ao princípio de reciprocidade e do raciocínio em termos de contrato social as relaçoes cooperativas se converteram em uma base prática da vida social. O sentido de endividamente, da necessidade de devolver um presente ou um favor, parece ser universal e é provavelmente uma predisposiçao inata evolucionada, desenhada pela seleçao natural, codificada para uma espécie naturalmente inserida em vínculos sociais relacionais. Em um mundo de caçadores-recoletores, a sobrevivência diária nao dependia do dinheiro guardado no banco senao do grau de intercambio social e da força de coesao dos vínculos sociais establecidos entre os membros do grupo[8].
E essa forma de operar, essa aguda consciência da reciprocidade, faz com que o cérebro humano não seja apenas melhor do que o de outros animais; mas diferente. E diferente de um modo fascinante: como dotado de módulos específicos ou faculdades que o habilitam a explorar a reciprocidade, a ler a mente e predizer o comportamento de nossos congêneres, a trocar favores, a desenvolver um interesse remoto pelo bem estar dos demais e a obter os benefícios do convívio social.
Ora, a amplificação a uma dimensao comunitária , pela elaboração cultural, dessa função própria de um módulo (domínio- específico) de nossa arquitetura cognitiva inata (ou de uma intuição ou emoção moral de origem biológica) conduz à expectativa de certeza jurídica , aqui entendida como expressão sócio-cultural da solução de um problema adaptativo relativo à conata capacidade e necessidade de predizer as ações – e suas consequências – de nossos congêneres.
Dessa forma, a origem e evolução de nosso “comportamento contratual” – e conseqüentemente do direito enquanto artefato da cultura – não é um produto cultural que responde muito direta e racionalmente às condições totalmente recentes, senão um aspecto intrinsecamente humano e tão próprio de nossa espécie que , expandidos múltiplas vezes a uma dimensão coletiva , evolucionaram em preceitos morais e normas jurídicas. E assim ocorreu ( e ocorre) nao somente porque passamos uma parte considerável de nossas vidas tentando sobreviver como espécie essencialmente social, senao porque a transmissao cultural é adaptativa em sua origem, ao permitir que os indivíduos diminuam o tempo e os custos necessários para o aprendizado de uma conduta em termos de eficácia evolutiva, o qual implica que a cultura ( assim como esse artefato cultural denominado direito) pode ser vantajosa com respeito ao aprendizado individual e social (Boyd e Richerson, 1985).
Se bem repararmos, a vida do homem – cujo talento para linguagem não encontra rival no reino animal – encontra-se dominada por esta dimensao cultural que , por sua relevância, se manifesta e se replica por meio dos artefatos normativos que dirigem nossas condutas no universo dos quatro modelos de vínculos sociais relacionais dos quais nós humanos estamos sempre muito pendentes. Nao por outra razao dispomos de normas de conduta bem afinadas que nos permitem predizer e modelar o comportamento social respeito a reaçao dos membros de uma determinada comunidade. Estes artefatos, se plasmam grande parte de nossas intuiçoes e emoçoes morais, nao sao construçoes arbitrárias, senao que servem ao importante propósito de, por meio de juizos de valor, tornar a açao coletiva possível – e parece razoável admitir que os seres humanos encontram satisfaçao no fato de que os valores e as normas sejam compartidos pelos membros da comunidade.
Por outro lado, e com a mesma intensidade, nossos programas ontogenéticos cognitivos também comandam os processos de constituição e automodelação da identidade individual, onde se incluem as necessidades de sexualidade , de afeto e de reconhecimento da própria existência por parte do outro , implicando o mútuo relacionamento dos indivíduos, o acasalamento dentro e fora da unidade familiar, a criação e a educação de nossos filhos etc., num ciclo contínuo, extremamente custoso e interminável .
Como seres intencionais, qualquer ação – quero dizer , qualquer movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento ou emoçao– responde a uma forma específica de como a seleção natural modelou nosso cérebro em benefício de uma vantagem adaptativa : os objetivos de nossas ações são dados por meio de uma estratégia estritamente vinculada à natureza humana, sem prejuízo – claro está- de admitirem amplas variações resultantes da inserção no entorno sócio-cultural em que se vive – ou seja, de que a cultura influi tanto no sentido de acentuar como de rebaixar as tendências mais profundamente enraizadas na natureza humana[9].
E porque durante o largo percurso de nosso processo evolutivo algumas estratégias e mecanismos desenhados pelo homem têm a capacidade de resolver problemas adaptativos a eles associados, assumimos e dizemos que eles têm valor ( que são bons) e, como tal, que são capazes de ir acumulando “tradições” que, renovadas, são transmitidas de geração em geração , por decisões individuais de pessoas influídas pela história, pela cultura e pelo passado evolutivo da humanidade.
Dito de outro modo: se todos os humanos sem exceçao significativa tendemos a valorar as mesmas coisas, nao é porque (somente) nos colocamos de acordo sobre elas, senao porque tais valores comumente compartidos se assentam na psicologia natural da espécie humana. Todos valoramos, por exemplo, a cooperaçao intragrupal, mas desconfiamos da cooperaçao intergrupal quando é proposta desde fora.Valoramos a coesao de grupo, as relaçoes de parentesco, a submissao ou obediência a um líder, a capacidade de ascender na hierarquia social, a conduta altruísta, a proteçao à infância e o aprendizado dos mais pequenos, as alianças estratégicas, a amizade, o sexo, o alvoroço moderado, as relaçoes de intercambio, o risco controlado; valoramos a sinceridade, mas também a reciprocidade e a segurança, e abominamos o engano, e muitas outras coisas também, porque a evoluçao programou a mente humana para comportar-se desses modos típicos de nossa espécie.
Em realidade, parece razoável admitir que nossas valoraçoes sao, em boa medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interaçao: um conjunto de determinaçoes genéticas que nos estimulam a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma comum de nossa espécie; e um conjunto de valores morais do grupo que é uma construçao cultural, e esta construçao ( e sua respectiva transmissao) é historicamente fixada em cada sociedade e em cada época. Dessa interaçao resulta que nossas valoraçoes parecem permeadas (e prenhadas) por nossas tendências inatas dirigidas a determinadas condutas, pois é a gama caracteristicamente humana de emoçoes que produz os propósitos , metas, objetivos, vontades, necessidades, desejos, medos e aversoes do homem, sendo, portanto, a verdadeira fonte dos valores humanos[10]. E isto é importante ter em boa conta porque as valoraçoes morais e jurídicas compartidas sao as que seguirao tendo êxito no futuro; e convém aproveitar o melhor delas para adequar os preceitos éticos e normativos a sua sólida realidade se queremos que funcionem, mais do que extrair-lhes de voláteis e contingentes utopias.
A seleçao natural desenhou e modelou nosso cérebro com o resultado de que nos importam mais umas coisas e menos outras, ou seja, de que nossa arquitetura cognitiva – funcionalmente integrada e de domínio-específico homogênea para todos os seres humanos – impoe constriçoes fortes para a percepçao, armazenamento e transmissao discriminatória de representaçoes sócio-culturais.Dizendo de outro modo, de que os limites observados na diversidade dos enunciados éticos e normativos sao o reflexo da estrutura e funcionamiento de nossa arquitetura cognitiva, ou seja, de que as características biológicas de nosso cérebro delimitan o espaço das normas de conduta que nos sao possíveis de aprender e de seguir. Devido a esse indireto condicionamiento, que nao é tanto de nossas atitudes senao de nossa capacidade moral, todos tendemos a valorar certas coisas em detrimento de outras. Os valores assegurados por meio de nossas normas de conduta descrevem (em grande medida) nossas atitudes morais naturais: valoramos aquilo que admite a margem de nossa limitada capacidade para aprender a valorá-lo.
Em verdade, o que nos incita a comportar-nos moral e juridicamente nao é o cálculo deliberado entre as possibilidades de obter certo beneficio incumprindo uma norma establecida e o risco que corremos se somos descobertos e castigados por nosso ato. Tampoco funcionamos por adesao consciente a normas com as que racionalmente comulgamos. Mais bem sao intuiçoes ou sentimentos morais de grande importância nas relaçoes humanas que entram em jogo de um modo subrepticio, espontâneo, sem dar-nos apenas conta: empatía, remordimento, vergonha, humildade, sentido de honra, prestígio, compaixao, companheirismo. E isto é fundamental na eleiçao moral porque, se há algo que a moralidade leva implícito, sao as convicçoes fortes: estas nao surgem – ou nao podem surgir – através da fria racionalidade kantiana, senao que requerem preocupar-se pelos outros e ter fortes instintos viscerais sobre o que está bem ou mal (F. de Waal, 2002). Simplesmente atuamos diante de uma regra de conduta do modo como nos ensinam a atuar, motivados pelo desejo inato de “identificaçao grupal”, enormemente favorecido por meio da adoçao de práticas sociais e comportamento comuns que funcionam em uma determinada coletividade.
Como já manifestamos anteriormente , tais intuiçoes se assentam em predisposiçoes inatas de nossa arquitetura cognitiva para o aprendizado e manipulaçao de destrezas sociais marcadas na biologia do cérebro, e que foram aparecendo ao longo da evoluçao de nossos antepassados homínidos para evitar ou prevenir os inevitáveis conflitos de interesses que surgem da vida em grupo[11]. Sao estes traços, que poderíamos chamar tendências mais que características, o que melhor pode ilustrar as origens e a atualidade do comportamento moral e jurídico do homem.
De fato, se os homens se juntam e vivem em sociedade é porque só por esse modo podem sobreviver e se constituir como indivíduo separado e autônomo, retirando também daí vantagens consideráveis no que toca à satisfação dos fatos mais significativos da sua inata natureza humana . Desenvolvem-se, por esta via, valores sociais específicos: o sentimento de pertença e lealdade para com o grupo e os seus membros ; o cuidado pela vida e propriedade alheias ; o altruísmo ; a trapaça; a empatia; o respeito recíproco; o antecipar as consequências das açoes; etc. Tudo isto são práticas que naturalmente ressaltam de uma vida compartilhada, dando mais tarde lugar aos conceitos de justiça, de moral, de direito, de dever, de responsabilidade, de liberdade, de dignidade , de igualdade, de culpa, de segurança , de traição e tantos outros.
Por conseguinte, e em que pese o fato de que a tendência para a separação entre o material e o espiritual tem levado, todavia, a que se absolutizem alguns desses valores – desligando-os das suas origens e das razões específicas que os viram nascer e apresentando-os como de essência espiritual, como uma transcendência que ultrapassa o próprio homem -, a ética e o direito parecem ter uma base mais segura quando relacionados a uma visão biologicamente vinculada à nossa arquitetura cognitiva , arregimentada em módulos ou domínios específicos , isto é, à natureza humana unificada e fundamentada na herança[12].
Há que se considerar a circunstância de que os próprios enunciados normativos – dos valores éticos aos direitos humanos – surgiram graças a natureza de nossa complicada arquitetura cognitiva e a inerente sociabilidade que caracteriza nossa espécie, submetidas que estao, por sua vez, às leis da evoluçao através da seleçao natural e a inevitável interferência da cultura. Esses valores pertencem aos códigos da espécie humana como um todo, uma consequência peculiar de nossa própria humanidade que, por sua vez, “constitui o fundamento de toda a unidade cultural” (Maturana,2002).
O projeto axiológico e normativo de uma comunidade ética nada mais é que um artefato cultural manufaturado e utilizado para possibilitar a sobrevivência , o êxito reprodutivo e a vida em grupo dos indivíduos: para expressar (e por vezes, mas não infrequentemente, para controlar e/ou manipular) nossas intuições e nossas emoções morais, traduzindo e compondo em fórmulas sócio-adaptativas de ordenada convivência essa instintiva e mesmo compartida aspiraçao de justiça que nos move no curso da história evolutiva e cultural própria de nossa espécie.. Daí que as normas jurídicas ditem as práticas sexuais, fomentem certos tipos de vínculos sociais relacionais em detrimento de outros, regulem a liberdade e a igualdade e proibam a agressão e a violência .
E uma vez que a abrumadora carga de riqueza empírica ( e intuitiva) milita em favor desta linha de pensamento , a razão parece inclinar-se fortemente à evidência de que o nascimento das representações culturais pressupõe a integração de uma visão biologicamente vinculada à natureza humana, ou seja , de que a coevolução entre os gens e a cultura teceu não só parte, senão toda a rica trama do comportamento social humano[13].
De fato, em funçao desse complicado processo co-evolutivo – em que, por exemplo, as representaçoes culturais normativas que tratam com temas de sexo, familia e poder, desatam fortes reaçoes e sao mais prósperas em termos de “replicaçao” porque se relacionam com aspectos de suma importância de nosso passado evolutivo ( Brodie,1996)-, os homens, desde as pequenas bandas de 70 e 150 caçadores- recoletores ubicados na savana , e cuja sobrevivência dependia inevitavelmente da manutençao da coesao social , se multiplicaram e concentraram progressivamente, primero em pequenas cidades e, mais tarde, em grandes naçoes, tendendo, hoje, a transformar-se em uma “sociedade única” , talvez na busca do grande ideal de “cidadania universal” dos ilustrados Kant e Goethe (que, dito seja de passo, dista em muito do filisteu processo de “globalizaçao” neoliberal de nossa época).
Consequentemente, este fenômeno foi acompanhado por um grande crescimento do conhecimento e da complexidade dos vínculos e estruturas sociais – especialmente no que diz respeito aos sistemas de informaçao e de comunicaçao entre os membros de nossa espécie – , permitindo uma interaçao muito mais intensa e rápida entre os homens e os grupos sociais e, em igual medida, exigindo um incremento substancial das normas integradoras da açao comum. Afinal, como já esclarecido anteriormente, o progressivo aumento da complexidade do intercambio recíproco exigiu (e exige constantemente) uma estratégia adaptativa baseada em uma previsibilidade comportamental cada vez mais sofisticada, ou seja , em uma consistente padronizaçao das açoes e das consequências do complicado atuar humano.
E aqui chegamos às leis humanas – essa ferramenta cultural e institucional “cega”, virtualmente neutra e com potencial capacidade vinculante para predizer e regular o comportamento humano – , qualquer que seja sua natureza ou grau de imperatividade. E parece razoável supor que em todas as sociedades humanas existem normas para o exercício de direitos (ainda que escassos) pelos homens e desde logo, do poder, a distribuiçao e o uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade comunitária, a distribuiçao do trabalho e a regulaçao das trocas em geral, etc. ; normas que, por resolver determinados problemas adaptativos, plasmam , no entorno coletivo e historicamente condicionado , nossa inata capacidade (e necessidade) de predizer o comportamento dos demais e de justificar mutuamente nossas açoes.
Também nesse particular , e tal como parece haver ocorrido com a evoluçao biológica, o processo nao ocorreu linealmente, antes por meio de ensayos e erros. Os homens intentam várias soluçoes normativas e adotam aquelas que lhes parecem mais eficazes em um determinado momento, até que seja possível substituí-las por outras que se revelam mais adaptadas aos seus propósitos evolutivos. E uma vez que a flexibilidade da conduta humana e a diversidade das representaçoes culturais é muito mais limitada do que se pode imaginar e, por outro lado, as alteraçoes se podem transmitir com mayor rapidez e eficácia , o processo da evoluçao normativa encontra-se sujeito a profundos sobressaltos e equívocos e, por vezes, a retrocessos significativos (essa, talvez , seja a explicaçao evolucionista das chamadas leis injustas).
Assim que a ordem jurídica emana da própria natureza humana (de sua faculdade de antecipar as consequências das açoes, de fazer juízos de valor e de eleger entre linhas de açao alternativas) e nao é algo que tenha sido imposto à condiçao humana pela cultura. Nossas manifestaçoes culturais nao sao coleçoes casuais de hábitos arbitrários: sao expressoes canalizadas de nossos instintos , ou seja, de nossas intuiçoes e emoçoes morais. Por essa razao, os mesmos temas despontam em todas as culturas: família, ritual, troca, amor, hierarquia, amizade, propriedade , ciúmes, inveja, lealdade grupal e superstiçao. Por essa razao, apesar das diferenças superficiais de língua e costumes, as culturas estrangeiras têm sentido imediatamente ao nível mais profundo dos motivos, das emoçoes, dos hábitos e dos instintos sociais. E instintos, em uma espécie como a humana, nao sao programas ontogenéticos imutáveis: sao predisposiçoes para aprender e atuar. Com efeito, acreditar que os seres humanos têm instintos nao é uma idéia mais determinista do que acreditar que sao produto da educaçao (Ridley, 1996).
Estamos desenhados pela seleçao seleción natural para circunstâncias ecológicas e culturais distintas das atuais e com uma mente dotada de módulos (ricos em conteúdo) que processam tanto os motivos inatos que conduzem a atos perversos como os motivos inatos que nos levam a evitá-los.Nossos sistemas perceptivos evolucionaram para construir modelos adequados ao entorno, para poder averiguar qual será o passo seguinte.Nosso cérebro está desenhado para resolver com eficácia as dificuldades que encontramos, eleger e tomar decisoes. Nossos vínculos sociales relacionales sao, evidentemente, deficientes e nossa capacidade de prediçao e de antecipaçao das consequências das açoes dista muito de ser perfeita, mas é melhor que nada. Sem normas, nao passaríamos daí. Mas dispomos do direito e, com ele, em uma sociedade complexa, promovemos meios para controlar e predizer as más e as boas açoes, para justificar açoes coletivas e, o que é mais importante, para articular, combinar e estabelecer limites sobre os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais por meio dos quais os humanos constróem estilos aprovados de interaçao e de estrutura social, enfim , dos direitos e deveres que surgem da ineludível vida comunitária.
Com efeito, se o direito é uma resposta a algo, este algo deve haver sido um desafio adaptativo que talvez somente os seres humanos tiveram de afrontar: um desafio que nasceu da necessidade humana de entender e valorar o comportamento de outros seres humanos, de responder a ele, de predizê-lo e de manipulá-lo e, a partir disso, de estabelecer e regular as mais complexas relaçoes da vida em grupo.
Seja como for , os artefatos culturaes melhoram a inteligência social, na medida em que nos ajudam a ver a limitaçoes ou as incoerências de nossas intuiçoes e emoçoes morais, levando-nos a aperfeiçoá-las, emendá-las e ainda a podá-las. Dito de outro modo , ainda que nao possam variar arbitrariamente e sem limites – pois que as influências do meio (incluindo a cultura humana) sobre o conjunto de comportamentos em uma espécie está limitada , condicionada e variam segundo o “substrato” genético sobre o qual atuam – , mas capazes de sobrepassar as limitaçoes biológicas em muitos aspectos, as representaçoes culturais podem servir como eficaz instrumento de ampliaçao, restriçao ou manipulaçao de nossas intuiçoes e emoçoes morais[14]. E pelo que se sabe, os humanos somos os únicos seres ubicados na terra capazes de produzir uma estratégica ferramenta adaptativa, cultural e institucional , como o direito, que permite a geraçao, a articulaçao e o desenvolvimento dos vínculos sociais relacionais com mais rapidez, segurança, previsibilidade e eficácia.
Os códigos éticos e jurídicos surgiram por evoluçao como produtos da interaçao da biologia e da cultura; os sentimentos morais sao agora intuiçoes e emoçoes morais desenhados pela seleçao natural, tal como os definem as modernas ciências da mente e do comportamento , sujeitos a juízos segundo suas consequências: nossos sentimentos e nossas emoçoes derivam de nossa arquitetura cognitiva inata, traços hereditários em nosso desenvolvimento mental, em geral condicionados – ou igual, manipulados – pela cultura, que infuem sobre os conceitos, os princípios, as normas e as decisoes que se tomam , se contróem e se adotam a partir deles.
Assim pois, o desenvolvimento do direito representa um processo evolutivo como qualquer outro , que foi criando , através da interação da cultura com a biologia, um complexo desenho de normas de conduta para solucionar problemas adaptativos práticos relacionados com a crescente complexidade da vida em grupo. As primeiras expressões normativas mudaram o entorno de nossa inteligência social, a qual permitiu que outras normas mais complexas encontrassem uma ubicação na existência essencialmente social da humanidade.
Daí que as regras tendentes a controlar e predizer o comportamento humano não se deram à humanidade desde cima, nem surgiram aleatoriamente na mecânica do cérebro. Evolucionaram ao largo de muitos anos porque resolviam problemas adaptativos e conferiam a oportunidade de estar representados nas gerações futuras , aos gens que os precreviam e que expressavam .
Não somos crianças errantes que ocasionalmente pecam por desobedecer a instruções procedentes de um ser indefinível, estranho e exterior de nossa espécie; somos adultos que descobrimos que determinados pactos são necessários para resolver problemas recorrentes relativos à sobrevivência , ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade , e aceitamos a necessidade de assegurá-los mediante juramento “sagrado”. Por essa razao, a lei não é simplesmente um conjunto de regras faladas, escritas ou formalizadas que as pessoas seguem. Em vez disso, a lei representa a formalização de regras comportamentais, sobre as quais uma alta percentagem de pessoas concorda, que refletem as inclinações comportamentais e oferecem benefícios potenciais àqueles que as seguem : quando as pessoas não reconhecem ou acreditam nesses benefícios potenciais, as leis são, com frequência, nao somente ignoradas ou desobedecidas – pois carecem de legitimidade e de contornos culturalmente aceitáveis em termos de uma comum, consensual e intuitiva concepçao de justiça -, senao que seu cumprimento fica condicionado a um critério de autoridade que lhes impoem por meio da “força brura”. (Margaret Gruter,1991)
Da mesma forma, formulamos juízos de valor sobre o justo e o injusto nao somente por sermos capazes de razao, como expresa a teoria dos jogos e a teoria da interpretaçao jurídica , senao porque também estamos dotados de certas intuiçoes morais inatas e de determinados estímulos emocionais que caracterizam a sensibilidade humana e que permitem que nos conectemos potencialmente com todos os demais seres humanos. Daí que as virtudes da tolerância, da compaixao e da justiça não são fórmulas políticas que nos esforçamos para alcançar, sabendo das dificuldades do caminho, mas compromissos que assumimos e esperamos que outros assumam . A sociedade – tanto como o direito – não é invenção de pensadores. Eles evoluiram como parte de nossa natureza. Sao , tanto quanto nosso corpo, também produtos de um longo e tortuoso processo co-evolutivo. Para compreendê-los devemos olhar dentro do cérebro, para os instintos de e predisposiçoes para criar e explorar os vínculos sociais relacionais que lá estão e cuja gênese deverá entao ser reintegrada na história evolutiva própria de nossa espécie.
Neste particular, se era inevitável que Hobbes e Rousseau carecessem de uma perspectiva evolucionista, é menos perdoável que alguns dos seus descendentes intelectuais também careçam. O filósofo John Rawls – ainda que para o problema da estabilidade dos princípios de justiça , parta do suposto de que certos princípios psicológicos e evolucionistas sao verdadeiros , ou que o sao de forma aproximada – nos pede que imaginemos seres racionais se juntando para criar uma sociedade a partir do nada, exatamente como Rousseau imaginou um proto-humano solitário e auto-suficiente. Decerto que são apenas experiências intelectuais, mas servem para nos lembrar de que nunca houve uma sociedade “anterior”. A sociedade humana nasceu da sociedade do Homo erectrus, que nasceu na sociedade do Australopithecus , que nasceu da sociedade de um extinto elo perdido entre humanos e chimpanzés, que por sua vez nasceu da sociedade do elo perdido entre símios e macacos, e assim por diante, até chegar ao ponto em que começamos, como uma espécie de animal essencialmente social , prioritariamente moral , particularmente cultural e decididamente diferente.
Sendo assim – e ao abrigo desta perspectiva – , resulta evidente que entre o mundo do “ser” e o mundo do “dever-ser” há uma manifesta e íntima relaçao, razao pela qual parece bastante plausível considerar nossa faculdade ética como análoga a nossa faculdade de linguagem : adquirimos conhecimento ético com uma instruçao muito pouca explícita, sem grande trabalho intelectual e, ao final, o resultado é notavelmente uniforme dada a variedade do input ético recebido. O meio ambiente serve simplemente para pôr em marcha e especializar nossas intuiçoes e emoçoes morais[15].
Por conseguinte, a importância da mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar fora de dúvidas. O comportamento adaptativo ao estilo de vida do caçador-recoletor modelou muito provavelmente a conduta social e moral primitiva, e se serviu dela para a aparição de grupos cuja sobrevivência passou a depender sobremaneira de determinadas estratégias adaptativas ( baseadas na complexidade cognitiva do ser humano) que, com o passar do tempo, deram lugar a nossa atual e astronomicamente grande riqueza jurídico-normativa[16] .
Admitir que a difusão domínio-específica dos vínculos de comunidade, proporcionalidade, autoridade e de igualdade se dá porque está incorporada de forma necessária em nossa arquitetura cognitiva ( portanto, vínculos que subjazem aos traços universais da cultura), é , indubitávelmente , o caminho mais seguro para que se possam descobrir poderosas , férteis e vinculantes vias (jurídicas) de explicação e articulação da conduta social humana e dos vínculos sociais relacionais – em particular, de um amplo abanico de condutas mal adaptadas às circunstâncias atuais : modos adequados de combiná-los , de potenciar e cultivar seus melhores lados, e de mitigar ou jugular seus lados destrutivos e perigosos[17].
E uma vez que todo o direito tem caráter relacional, e toda a relação jurídica repousa, em última instância , em uma relação social – portanto, em um dos quatro modelos elementares de vínculos estabelecidos pelo homem, os quais , por sua vez , têm sempre o indivíduo como sujeito[18] -, a função e finalidade de todo discurso jurídico consistem tanto na articulação combinada dos referidos vínculos sociais relacionais como no dever de todo operador jurídico de atuar em razão da pessoa e para a pessoa humana. De outro modo, o direito nao é mais nem menos que uma estratégia sócio-adaptativa – cada vez mais complexa, mas sempre notavelmente deficiente – empregada para articular argumentativamente – de fato, nem sempre com justiça – , por meio da virtude da prudência , os vínculos sociais relacionais elementares através dos quais os homens contróem estilos aprovados de interaçao e estrutura social. Um artefato cultural que deveria ser manipulado para desenhar um modelo normativo e institucional que evite, em um entorno social prenhado de assimetrias e desigualdades, a dominaçao e a interferência arbitrária recíprocas e, na mesma medida, garantindo uma certa igualdade material , permita, estimule e assegure a titulariedade e o exercício de direitos ( e o cumprimento de deveres) de todo ponto inalienáveis e que habilitam publicamente a existência dos cidadaos como indivíduos plenamente livres[19].
Estas consideraçoes podem ajudar a comprender o fenômeno presente da moralidade e juridicidade humana sem desligá-lo de suas origens e, sobretudo, sem hipostasiá-lo como o elemento essencial de nossa descontinuidade com o mundo animal. Com efeito, parece razoável supor que a biologia evolucionária, a neurociência, a ciência cognitiva e a psicologia evolucionista oferecem razoes poderosas que dao conta da falsidade da concepçao comum da psicología ( e da racionalidade) humana e o alcance que isso pode chegar a ter para o atual edificio teórico e metodológico da ciência juridica, para a concepçao acerca do homem como causa e fim do direito, e consequentemente, para a tarefa do jurista-interprete de dar “vida hermenêutica” ao direito positivo.
E isso tem grande importancia para a filosofia e a ciência do direito pois, de nao ser assim, de nao se encontrar restringido cognitivo-causalmente o domínio das preferências humanas (que impoe constriçoes significativas para a percepçao e o armazenamento discriminatório de representaçoes sócio-culturais e que conforma o repertório de padroes de atividade de nosso cérebro dos quais emerge nossa conduta), se pode perfeitamente admitir a alteraçao da natureza humana em qualquer sentido que se deseje e, em igual medida, negar a primera e básica premissa da contribuiçao científica de que o Homo sapiens é uma espécie biológica cuja evoluçao foi forjada pelas contigências da seleçao natural em um ambiente bioticamente rico , de que temos um cérebro herdado por vía do processo evolutivo, gerado para enfrentar-se a realidades tangíveis e equipado com as ferramentas necessárias para, como um verdadeiro motor semântico, manipular os significados e procesar as informaçoes relevantes para resolver os problemas de nosso existir evolutivo.
Também se podem dar passos para uma comprensao das condiçoes de possibilidade e limites do fenômeno jurídico , procurando sempre chegar a soluçoes menos injustas e moralmente aceitáveis se se atende ao princípio ético – extraído diretamente de nossas intuiçoes e emoçoes morais mais profundas – segundo o qual o direito deve ser manipulado de tal maneira que suas consequências sejam sempre compatíveis com a maior possibilidade de evitar ou diminuir a miséria e a infelicidade humana (ou seja, que nao se produza sofrimiento quando seja posível prevení-lo, e que aquele que é inevitável se minimize e grave com moderaçao aos membros individuais da sociedade, aos cidadaos).
Com efeito, o êxito ou o fracasso da humanidade depende em grande medida do modo como as instituiçoes que governam a vida pública sejam capazes de incorporar essa nova perspectiva da natureza humana em princípios, métodos e leis. Compreender a natureza humana , sua limitada racionalidade , suas emoçoes e seus sentimentos parece ser o melhor caminho para que se possa formular um desenho institucional e normativo que, reduzindo o sofrimento humano, permita a cada um viver com o outro na busca de uma humanidade comum.
Isto significa, em termos mais modestos e mais realistas, um compromisso mais específico e virtuoso do operador do direito no sentido de definir e de construir desenhos institucionais, normativos, discursivos e sócio-culturais os mais amigáveis possíveis para com as funçoes próprias de nossas intuiçoes e emoçoes morais, e, em segundo lugar, quando isso nao seja inteiramente possível, que procure desenhos institucionais, normativos, discursivos e sócio-culturais que evitem a sempre possível manipulaçao perversa dessas intuiçoes e emoçoes.
Seja como for, estamos firmemente convencidos de que chegou o momento de transladar o problema do direito a um plano distinto e mais frutífero. E ainda que uma perspectiva evolucionista , funcional e biológica não determine se o cambio é adequado nem que medidas devem adotar-se para criar um desejado cambio, seguramente poderá servir para informar sobre uma questão de fundamental relevância prático-concreta: quem operacionaliza o direito pode procurar atuar em consonância com a natureza humana ou bem em contra essa natureza; mas é mais provável que alcance soluções eficazes modificando o ambiente em que se desenvolve a natureza humana do que empenhando-se na impossível tarefa de alterar a própria natureza humana. Dito de outro modo , é ao direito que cabe servir à natureza humana e nao o contrário.
Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular Cesupa/PA (licenciado); Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.
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