Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar e compreender um dos temas centrais da filosofia do direito a partir do pensamento de Immanuel Kant: a relação entre Direito e Moral. A temática é uma ideia de profundo debate através dos séculos. Com a superação do jusnaturalismo e a ascensão do positivismo jurídico na Modernidade surge uma noção de Direito que se desvincula da moral alcançando nível de “ciência pura”. Neste sentido, a análise da relação entre Direito e Moral hodiernamente traz em si não apenas o objetivo de desvincular as duas matérias assegurando o princípio da segurança jurídica, evitando concepções “moralizantes” do Direito, mas também, de garantir um âmbito de desenvolvimento da moralidade individual, ampliando o debate sobre a relação que estas duas modalidades de conduta (moral e jurídica) estabelecem entre si. A partir da fundamentação kantiana sobre as normas jurídicas e morais pretende-se demonstrar as tensões decorrentes desta relação. Destarte, procura-se apresentar as principais consequências da teoria postulada em Immanuel Kant, como a defesa do Estado Liberal clássico e a proteção de um âmbito de autonomia intrínseco à personalidade do sujeito, a saber, a dignidade da pessoa humana.
Palavras-chaves: Immanuel Kant, Direito, Moral, Filosofia.
Abstract: The present article aims to analyze and understand one of the central themes in Law’s Philosophy starting from Immanuel Kant theory: the relationship between law and morals. This theme consists in a profound debate over the centuries. With the overcoming of natural law and the rise of legal positivism in Modernity, a notion of law that is separated of morals arises, seeking the achievement of a “pure science” status. In this sense, the analysis of the relationship between law and morals in our times brings with it not only the goal of avoiding the two subjects ensuring the principle of certainty of law and legal certainty by avoiding "moralizing" conceptions of law, but also the guarantee of individual morality development, broadening the debate about the relationship that these two types of conduct (moral and legal) establish between each other. Starting from the Kantian reasoning of law and morals, this article aims to demonstrate the tensions arising from this relationship. Thus, it is intended to present the main consequences of the theory postulated by Immanuel Kant, such as the defense of the classical liberal state and alsothe protection of an intrinsic part of individual’s personality, namely human dignity autonomy.
Keywords: Immanuel Kant, Law, Morals, Philosophy.
Sumário:1. Introdução: A relação Direito e Moral na História; 2. Direito e Moral na Filosofia de Immanuel Kant: A Autonomia da Vontade como Possibilidade de Moralidade; 2.1. Da Moralidade e da Legalidade: OImperativo Categórico e o Imperativo Hipotético a Legislação Interna e a Legislação Externa; 3. O Direito a Justiça e o Estado Liberal; Considerações Finais.
1. Introdução: a relação direito e moral na história.
Considerando a temática a partir de uma perspectiva histórica, no que diz respeito à Idade Clássica, é possível afirmar que não ainda existe neste período, especialmente na Grécia e em Roma, uma clara delimitação da relação entre Direito e Moral. Por outro lado, fala-se de um reconhecimento mitigado sobre o tema que se expressa através dos institutos do Direito Natural e do Direito Convencional, este último correspondendo em certa medida àquilo que se convencionou chamar de direito positivo. Todas estas questões neste período, são enfrentadas sob o enfoque do problema da justiça do direito, como retrata a Antígona de Sófocles (REALE, 2002, p. 623):
“Revela-se, portanto, na cultura grega, mesmo antes dos sofistas uma distinção clara entre o justo por natureza e o justo por convenção ou por lei. Esta doutrina esclarecida por Platão, é depois desenvolvida de maneira exaustiva por Aristóteles, em cuja obra já encontramos os dados essenciais da problemática que ora nos preocupa.”
APólis grega ilustraa falta de delimitação de âmbito moral e jurídico na Antiguidade, já que como expressão da vida ética e política do indivíduo, constitui uma totalidade da vida política e também moral do sujeito. Assim, como tudo convergia para a Pólis, não se via a necessidade emse estabelecer um critério distintivo entre estes dois âmbitos de conduta.
Na Idade Média, diante da ascensão do Cristianismo, a preocupação dirigida à lei eseus possíveis ditames morais é agora incorporada aos ditames morais da filosofia cristã. Por conseguinte, a filosofia se encontrará, até o florescimento do ideário moderno, em absoluta servidão à teologia. Não mais filósofos, porém, teólogos são incumbidos da problemática do direito e da moral. Dentre estes, surge o nome de São Tomás de Aquino que marca o período por meio de sua principal obra,SummaTheologica(REALE, 2002, p. 640):
“Em tal quadro ideológico, seria de certa maneira impossível uma distinção entre o mundo moral e o mundo jurídico: – todos os problemas são postos em uma unidade que se não pode partir, a risco de atingir-se o cerne do pensamento tomista. É uma concepção teocêntrica do Direito, por que fundada numa concepção teocêntrica do universo e da vida.”
Na teoria Tomista, o Direito Natural não figura apenas como “ditame da boa razão”. Para muito além, o Direito Natural é a própria lei de Deus inscrita no coração dos homens; constitui em si mesmo a afirmação de uma nova lei inaugurada pelo advento do messias e que assim, pode substituir a velha lei correspondente ao conjunto de mandamentos prescritos pelo antigo testamento bíblico. A teoria inaugurada por Aquino afirma a existência da lexaeterna. Esta seria a expressão da razão divina que governa todo o universo. Por meio desta figura surge alexnaturalis que é derivação da lexaeterna, quepropicia um momento de participação humana nesta lei maior, isto é, nalexaeterna, por meio da razão. Aquino leciona ainda acerca da lex humana que derivada desta última(lexnaturalis), correspondenteà lei que se aplica a cada caso concreto, isto é, a lei em sentido “positivo”.
Diante dos fundamentos apresentados na Idade Média, compreende-se que não há distinção entre o âmbito moral e jurídico, uma vez que a lei em sentido amplo é concebida como uma ordem ou legislação universal e imutável de onde decorrem todos os outros imperativos.Partindo-se deste pressuposto, não há delimitação do que faz parte do âmbito moral e do que faz parte do âmbito jurídico,muito pelo contrário, verifica-se o dever de convergência entre estes dois aspectos (direito e moral), já que decorrem de uma mesma ordem transcendente.
Na Idade moderna, por sua vez,observa-se uma importante troca de valores no campo teórico comparativamente à Idade Média: o teocentrismo vai perdendo cada vez mais espaço para o antropocentrismo[1]. Surge no Ocidente a chamada Escola doDireito Natural, que distingue o direito natural daquele visado na concepção aristotélico-tomista, bem como outro movimento significativo, o contratualismo. Posto que da consciência do indivíduo vai resultar a lei, o movimento contratualista se propõe a justificar a existência do Estado e do Direito por meio de um contrato instituído em sociedade. “(…) o ‘contrato’ vale como categoria distintiva entre o mundo moral, equiparado ao Direito Natural, e o mundo jurídico, só este resultante de convenção. Em suma, enquanto a Moral é natural, o Direito é convencional.” (REALE, 2002, p. 648).Finalmente, na última fase da Escola do Direito Natural surge a primeira doutrina sobre critérios de distinçãoclaros entre o Direito e a Moral com um representante do Iluminismo alemão: Thomasius, em Fundamenta Juris Naturae et Gentium(REALE, 1981, p. 63):
“O mais notável dos estudiosos desta matéria foi o jurista alemão Thomasius, que escreveu a sua obra mais importante entre 1700 e 1705 […] voltou a sua atenção para o problema, procurando apresentar uma diferenciação prática entre Direito e a Moral, de maneira a tutelar a liberdade de pensamento e de consciência, com uma delimitação entre o que chamou "foro íntimo" e "foro externo".
Thomasius tem como ponto inicial de sua teoria que, quando o ato se desenrola no âmbito da consciência individual, ou seja, enquanto axiologicamente o indivíduo é a medida de sua conduta, o ato se situa na esfera do foro interno. Quando, porém, o ato estabelece relação com outros indivíduos no seio social, atuando na exterioridade do sujeito, atribui-se a ação à esfera do foro externo. Neste sentido, existiria a possibilidade de tutela por parte da autoridade instituída para harmonizar as condutas, caracterizando assim, o Direito. A exterioridade aparece ligada no pensamento do autor com a noção de coercibilidade, elemento distintivo do Direito em outras famosas doutrinas tais como a de Espinosa e Samuel Pufendorf, até que se chegue aos postulados de Immanuel Kant, o principal teórico a dar continuidade ao pensamento iniciado por Thomasius.
2. Direito e moral na filosofia de immanuel kant: a autonomia da vontade como possibilidade de moralidade
Tecidas as considerações preliminares, cabe agora passar ao exame dos critérios pertinentes ao Direito e a Moral expostos na filosofia kantiana[2]. Importante tratar de um dos conceitos centrais da filosofia de Kant, para a devida apreensão do tema: a autonomia da vontade.
A autonomia da vontade significa a capacidade de optar por uma determinada conduta independentemente das paixões, impulsos e carências, isto é, independente de todo fundamento sensível. Assim, em Kant o agir segundo a aptidão de escolher sua conduta livre de pressupostos sensíveis implica na afirmação da autonomia da vontade como corolário da razão prática. A vontade[3] não está determinantemente condicionada à experiência sensível, pelo contrário, o sujeito não está aprisionado à uma modalidade do agir orientada somente por leis da natureza, mas pode representar a si mesmo leis que serão o elemento constitutivo de sua liberdade. Portanto, “[…] a origem da moral encontra-se na autonomia, na autolegislação da vontade” (HÖFFE, 2005, p. 219).Na filosofia kantiana, a vontade não representa uma face obscura e irracional do sujeito, mas retirando sua essência da razão, pode ser tomada como a própria razão com respeito à ação ou prática, daí falar-se de uma “razão prática pura”.
Compreendendo a vontade de maneira estrita,todavia, não extinguindo os impulsos naturais, Kant nos dirá que a vontade tem o condão de converter-se em princípio-guia para distanciar o agir de impulsos condicionados. É desta maneira, segundo leciona o filósofo, que o sujeito pode estabelecer a lei representada a si como a pauta de seu agir.Nos dizeres de Höffe (2005, p. 189):
“Enquanto razão prática empiricamente condicionada recebe uma parte de sua determinação de fora, de impulsos e necessidades, hábitos e paixões, a razão prática é independente de todas as condições empíricas e cuida totalmente de si mesma.”
Pode-se inferir do exposto, que só se torna possível dar-me uma lei que a mim mesmo represento, distanciando-me de pressupostos sensíveis, por meio da existência de uma vontade autônoma. Aqui, verifica-se a existência de tal possibilidade: a de se representar uma lei que só pode ser entendida em seu verdadeiro sentido como razão prática pura[4]. Na elucidação de Kant: “Autonomia da vontade é a qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma (independentemente de uma qualidade qualquer dos objetivos do dever)” (KANT, 1960, p. 85). Neste ponto reside o âmago da autonomia da vontade: a existência de uma vontade autônoma que não é destinatária de um animus qualquer torna factível a faculdade de representar a si mesmo leis que se escolhe e assim, funda-se o agir moral, isto é a moralidade. Cumpre ressaltar, portanto, que a vontade autônoma é o princípio fundante da Moralidade[5]. A vontade moral (autônoma) é ela mesma a razão prática pura.
2.1. Da moralidade e da legalidade: o imperativo categórico e o imperativo hipotético, a legislação interna e a legislação externa
Sabe-se que a possibilidade da existência de uma moralidade em Kant, funda-se em uma vontade autônoma, entretanto, a pergunta se coloca é: qualconteúdo desta moralidade? Immanuel Kant elabora a resposta sobre o questionamento do conteúdo da moralidade na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (KANT, 1960), onde conceitua o elemento constitutivo da moralidade. Nos dizeres do filósofo: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”(KANT,1960, p. 16). Esta boa vontade, diga-se ilimitadamente boa, assume a forma daquela vontade incondicionada de quaisquer estímulos sensíveis ou objetivos interessados: ela é boa em si, constituindo um fim em si mesma. Sendo tal vontade caracterizada como um fim em si mesma, encontra-se depurada de quaisquer aspectos de experiência sensível. O que a torna ilimitadamente boa, portanto, é o âmbito de autonomia que deixa ao sujeito, a fim de que a ação possa ter nela sua medida pelo puro respeito ao dever para fomentar liberdade. Assim, o que é simplesmente e ilimitadamente bom em Kant, pode ser definido como aquilo que não pertencendo ao universo dos interesses condicionados por estímulos sensíveis pode respeitar a lei do dever[6], por conseguinte,só pode haver dever onde há autonomia da vontade, pois só posso dar-me uma lei que a mim mesmo represento se tenho uma vontade autônoma, desembaraçada de estímulos sensíveis e onde há uma boa vontade, ou seja, uma vontade que é um fim em si mesma. Destarte, verifica-se que o fundamento da moralidade consiste na autonomia da vontade, ao passo que a moralidade em si permanece ligada à boa vontade kantiana.
Assim, claro está que a moralidade se desenvolve no campo do móbil da ação, isto é, da consciência do agir em detrimento de interesses que rondam o mundo fático da conduta. Coloca-se em evidência a persistente atenção de Kant voltada para a origem da vontade – aspecto interno e subjetivo do sujeito.
Portanto, pode-se tomar alguns parâmetros substanciais de distinção entre moralidade e legalidade sintetizando-os em dois critérios: A) A moralidade é a ação dirigida em pleno respeito ao dever; B) A legalidade se mistura aos estímulos sensíveis obtendo seu cumprimento na mera conformidade ao dever; não se importa com móbil que dá origem à conduta, apenas exige que esta lhe esteja conforme. Nas palavras do filósofo (KANT, 2000, p. 89):
“A legislação que erige uma ação como dever, e o dever ao mesmo tempo como impulso é moral. Aquela, pelo contrário, que não compreende esta última condição na lei, e que, consequentemente, admite também um impulso diferente da ideia do próprio dever, é jurídica […]. O puro acordo ou desacordo de uma ação com relação à lei, sem respeito algum ao impulso da mesma, chama-se legalidade (conformidade à lei); quando, ao invés, a ideia do dever derivada da lei é ao mesmo tempo impulso para a ação, temos a moralidade”.
Para elucidar no que consiste tal dever, Kant elabora o conceito de imperativo categórico. Nos dizeres de OtfriedHöffe (2005, p. 216):
“De um lado são procurados o conceito e o padrão de medida supremo de todo o agir moral, de outro, se trata do fundamento último para poder agir de acordo com o conceito e o padrão de medida. À primeira questão Kant responde com o Imperativo categórico, à segunda, com a autolegislação, a autonomia da vontade; a condição da possibilidade do agir moralmente, o princípio da subjetividade moral (personalidade), encontra-se na capacidade de determinar-se segundo princípios postos por si mesmos.”
Assim, o imperativo categórico é uma instância subjetiva que exorta a um agir moral. É, portanto, o dever-ser que expressa fórmulas ou preceitos sustentados pela lei que o sujeito representa a si mesmo; é justamente a exortação a um agir moral na forma do “Age!”.
A característica que confere maior substancialidade ao conceito de imperativo categórico é a sua universalidade, pois consiste em máximas universalizáveis. Contudo, importante ressaltar que o imperativo categórico é aquele que somente prescreve ações boas por si mesmas, pertencendo assim, à ordem da moralidade; reclama uma ação moral, ou seja, em respeito ao dever. Nos dizeres do filósofo: “Age de modo tal, como se a máxima de tua ação devesse tornar-se pela tua vontade lei universal da natureza”(HÖFFE, 2005, p. 57). O Imperativo categórico ganha maiores contornos de objetividade quando é desenvolvido para explicitar no que consiste a ação moral, ao que logo é conferida a resposta: “em máximas universalizáveis”. Por isso, a universalidade é válida como sinal distintivo da conduta moral.
Sobre as máximas que se originam da ordem imperativa “Age (…)”, se convertem no que conhecemos por princípios e, por conseguinte, são dotadas de maior abrangência, funcionando como “guias de ajuizamento” que retém em toda máxima uma universalidade compreendida como uma unidade racional desejada por uma comunidade de indivíduos.
Ao lado do Imperativo categórico está o Imperativo hipotético. Este imperativo é dividido em técnicos e pragmáticos segundo a natureza de seus fins, se possível ou real. O Imperativo hipotético é aquele que formula uma ação que visa à obtenção de certa finalidade, como por exemplo: se não queres ser visto como mentiroso, então, não deves mentir. O Imperativo hipotético é, portanto, a ordem imperativa que prescreve uma ação boa/útil para alcançar determinado resultado. Suas regras são sempre heterônomas, pois está condicionado a pressupostos sensíveis (HÖFFE 2005, p. 72):
“Todas as vezes que se deve tomar como fundamento um objeto da vontade para fins de prescrever à vontade a regra que deve determiná-la, essa regra é sempre heterônoma: o imperativo é condicionado, ou seja, se ou porque deseja este objeto, deve-se agir deste ou daquele modo; consequentemente ele não pode nunca comandar moralmente, ou seja, de maneira categórica”.
Deste modo, tem-se que devido à presença de elementos dotados de heteronomia no Direito, pode-se considerar as leis jurídicas como componentes da esfera dos imperativos hipotéticos.
Assim, demonstram-se os principais parâmetros de distinção entre moralidade e legalidade, sintetizando-os em dois critérios: A) A moralidade é a ação dirigida em pleno respeito ao dever; B) A legalidade se mistura com os estímulos sensíveis, obtendo seu cumprimento em conformidade ao dever; não se importacom a motivação que dá origem à conduta.
3. O direito, a justiça e o estado liberal
Na segunda parte da Metafísica dos Costumes (KANT, 1960), surge a Doutrina do Direito de Immanuel Kant. O filósofo não se preocupa em delimitar sua doutrina tomando por base os pressupostos da experiência, tendo em vista que sua teoria se trata de uma definição não-empírica do Direito. Isso implica em dizer que a filosofia do Direito de Kant se baseia em uma fundamentação do Direito a priori, a fim dedemonstrar sua racionalidade. Assim: “O direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro, segundo uma lei universal da liberdade”(HÖFFE, 2005, p. 407).
O Direito como tal conjunto das condições que possibilitam a convivência e, por assim dizer, perpetuam a vida dos homens em sociedade, retira da fórmula kantiana algumas considerações: A) O conceito de Direito faz referência a uma relação externa e bilateral, que persegue uma adequação das relações humanas; B) O conceito de Direito tem como objeto os arbítrios humanos, isto é, a consciência da capacidade de efetivação do ato nas circunstâncias fáticas; não se refere tão somente ao mero desejo, ou aspiração[7]; C) O conceito de Direito se pretende a regular apenas a forma segundo a qual os arbítrios podem coexistir entre si, e não a matéria ou fim de seu querer.
Observa-se, portanto, que além de racional, o direito é necessário, e somente por meio dele tem-se a forma devida de assegurar a liberdade através da limitação garantidora da coexistência dos arbítrios. O Direito é conexo à ideia da coação, ressalte-se, que segundo Kant, uma “não-liberdade” (coação) que se coloca como freios a uma outra “não-liberdade” causada pelo arbítrio invasivo de outrem é legítima e racional, pois está a garantir a compatibilidade da liberdade de um com a liberdade do outro[8].
O Direito tem sua maior expressão como legislação externa, que possui as características uma vez abordadas: heteronomia, legalidade, habita a esfera do imperativo hipotético e é dotado de coercitividade. Tal legislação deve ser externa, uma vez que regula deveres externos que se conectam a dois ou mais arbítrios[9]. Estes deveres reclamam uma conformidade ou adesão exterior às suas próprias leis e impõem a faculdade de exigir-lhes o cumprimento por vias de coerção[10]. Conclui-se, portanto, que o Direito se converte em um instrumento para coibir as injustiças por meio da coação, a fim de assegurar a liberdade. É o Direito o aparelho estatal instituidor, garantidor e perpetuadorda existência do sujeito para que viva em liberdade. Por fim, nota-se que toda a fundamentação kantiana gravita em torno da liberdade.
De toda a filosofia de Immanuel Kant, resta claro seu desígnio em justificar o Estado liberal impondo severa crítica às premissas do Estado Absolutista[11].A tradição jusnaturalista da qual Kant é expoente, propugna pela limitação do poder do Estado mediante a formulação de conceitos tais como: autonomia da vontade, liberdade, legislação interior e exterior, heteronomia, entre outros.Neste sentido, o mais elevado patamar de justificação do Estado liberal encontra-se na síntese: moralidade e legalidade.
A controvérsia com o Estado Absolutista tem início ainda na fundamentação do Contrato social, para o qual, Kant elegerá como direito natural inato a todos os homens, o direito de liberdade[12]. Kant cria um âmbito de livre atuaçãoe desenvolvimento da personalidade humana[13], ao qual denomina moralidade. Por conseguinte, retira parcela de poder, antes retida nas mãos do soberano para projetar uma esfera autônoma de atividade do sujeito: aquelaque cuida das matérias concernentes a sua própria subjetividade, ou seja, ás chamadas questões consciência[14]. Implica nesta ampliação conceitual da liberdade humana que o Estado não mais intervindo na moralidade de cada um, tem nela um campo excluído de sua jurisdição, de formaque, reside na figura do Estado apenas a manifestação de uma legislação exterior. Conclui-se, que pertence ao nome de Immanuel Kant as bases da filosofia do Estado liberal[15]. Deste modo, a justiça representa o ideal de liberdade; o objetivo do Estado não pode ser outro, a não ser garantir a forma de coexistência dos arbítrios para realizar o ideal de justiça na fruição da liberdade.
Considerações finais
Consoante ao demonstrado no presente trabalho, conclui-seque muito embora em Kant encontre-se a afirmação do direito e da moral como âmbitos distintos da conduta humana, estes não são excludentes entre si, mas correspondem-se com inúmeros pontos de contato.
Neste sentido, de acordo com o destacado por Norberto Bobbio, a moralidade é da ordem do imperativo categórico, enquanto o Direito é da ordem do imperativo hipotético, que prescreve uma conduta com objetivo a um fim. Logo, identifica-seo Direito com a legalidade que reclama mera conformidade de conduta não se importando com a motivação que leva o sujeito a obedecer a um comando jurídico, ao passo que a moral corresponde ao espaço reservado ao imperativo hipotético[16].
Contudo, importante ressaltar que há entre os exegetas de Kant duas interpretações possíveis do Direito, aquela que se insere na linha de Norberto Bobbio, identificando o Direito com o imperativo hipotético, e aquela que identifica o Direito com a ordem do Imperativo categórico, na medida em que o conceito racional eapriorístico de Direito encontra em si mesmo uma máxima universalizável e deve ser desejado por todos como lei da liberdade[17].
A questão permanece controversa entre os próprios exegetas de Kant que ainda se põem a pergunta: “Teria Kant realmente lançado uma primeira separação entre Direito e Moral?”. Há inúmeras teses sendo disseminadas nos mais diversos sentidos. Entendem alguns autores minoritários que o êxito de uma primeira e autêntica separaçãoentre âmbito jurídico e âmbito moral não ocorre em Kant. Isso porque, permanece incontroverso que Immanuel Kant comunga dos valores jusnaturalistasde sua época, que preconizam a conformidade do Direito com uma ordem universal de direito natural.
Desta forma, Kant elege para si como direito natural inerente a todo ser humano o valor da liberdade. Vale observar-se neste ponto, que essa formulação de um Direito que existe para a aplicação no mundo fático do ser, mas que deve ser compatível a um Direito natural caracteriza uma ideologia própria à justificação de uma razão de Estado. Alguns autores de modernidade mais tardia, como Hans Kelsen criticam esta compreensão de Direito pautada num “idealismo platônico” que afirma a decorrência do direito positivo como expressão de um direito natural imanente, objetando que um modelo tal de Direitoteria origem na predileção por um valor moral e ideológico específico, escolhido para tutelar bens e condutas que lhe sejam conformes[18].
Por fim, em que pese este debate tenha sido aparentemente superado pelo positivismo jurídico na Modernidade, a problemática é ainda atual para o estudo da filosofia do direito, ressurgindo investida de novas fórmulas ou“releituras”.
Cite-se, como exemplo as polêmicas teses envolvendo o“neoconstitucionalismo” e o “pós-positivismo”, que pretendem realizar o que alguns têm chamado de “virada kantiana”, na defesa da reaproximação entre moral e direito, bem como na afirmação de umdireito necessariamente moral.
Assessora Jurídica do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH. Bacharel em Direito pela Faculdade Cenecista de Joinville
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