Resumo: até o presente momento não ficou claro se o Direito Penal do Inimigo, sobretudo na doutrina de Jakobs, se refere a um fenômeno sociojurídico ou a uma proposta de subversão teórica aos dogmas constitucionais. Faz-se necessário, dessarte, estabelecer balizar a cada uma de tais setores para que se possível compreendê-lo.
Palavras-chave: Direito; Penal; Inimigo.
Abstract: up to the present moment it was not clear if the Criminal Law of the Enemy, especially in the doctrine of Jakobs, refers to a sociojurídico phenomenon or to a proposal of theoretical subversion to the constitutional principles. It is necessary, in this way, to establish limits to each one of such sectors so that it can be understood.
Keywords: Law; Criminal; Enemy.
Sumário: Introdução; 1. Natureza do discurso – Elementos propedêuticos para compreensão conceitual; 2. Termo e designação – Ao que se refere Direito Penal do Inimigo?; 3. Regime jurídico-penal – Esboços de política criminal; 4. Contexto político – A Expansão do Direito Penal; 5. Direito penal da terceira velocidade – O “não-Direito Penal” legítimo; Considerações finais.
INTRODUÇÃO
É fato notório a falta de compreensão da doutrina de Jakobs em terrae brasilis, mormente no que se refere ao famigerado Direito Penal do Inimigo. Isso decorre, dentre outros motivos, de uma confusão metodológica quando da escrita do opúsculo, visto que nem sempre fica claro se o autor está a se referir, de forma empírico-descritiva, a um fenômeno hodierno de política criminal; ou se se trata de discurso axiológico tendente a legitimar tal fenômeno.
Outrossim, é preciso pontual não ser possível a perfeita compreensão do Direito Penal do Inimigo olvidando o funcionalismo sistêmico pugnado pelo autor.
Como sabido, essa tese é deflagrada em meados da década de 80 do século passado, quando Jakobs escreve um artigo cuja epígrafe é “Criminalización en el estadio previo a la lesión de un Bien Jurídico”. Neste artigo estabelece as premissas teóricas para o desenvolvimento posterior do notório “Derecho Penal del Enemigo”.
O artigo é segregado em duas partes[1]: a primeira atesta a existência de um possível inimigo em Direito Penal (cunha uma incipiente definição do Direito Penal do Inimigo), diante da criminalização de condutas que não chegam a violar um bem jurídico, verificando uma ruptura do modelo político-criminal até então em vigor; a segunda procura fundamentos teóricos para legitimar o novo standard.
Jakobs estabelece a seguinte premissa: diante dum cenário de intensa criminalização antecipada (anterior à lesão de um bem jurídico), alguns destes tipos não poderiam legitimar-se em virtude dos postulados estabelecidas num Estado de Direito; todavia questiona “si la ilegitimidad de la criminalización de conductas que tienen lugar en el estadio previo no podría ser neutralizada por la protección de bienes jurídicos anticipados”.[2]
A princípio seu propósito era declaradamente estabelecer limitações materiais à criminalização no estado prévio à lesão de um bem jurídico.[3] Lembra Greco que: “até a virada do milênio, permaneceu o direito penal do inimigo uma figura quase que ignorada.”[4]
Posteriormente, escreve obra específica para justificar o tal Direito Penal do Inimigo, afastando-se, significativamente, do que fora posto anos atrás.[5]
Diante disso, a primeira dezena do século XXI oportunizou acalorados debates sobre um possível inimigo no Direito Penal[6]; a doutrina foi uniforme em observar um giro metodológico da política criminal, mas nem todos acordes com a presença de um inimigo em Direito, ou com a (i)legitimidade do novo modelo frente aos desígnios do Estado de Direito.[7]
As críticas, todas elas, embasaram-se, em princípio, no pensamento de Jakobs; todavia, percebeu-se a necessidade de discriminar o que de fato constituía realidade sensível da política criminal de chusma de Estados ocidentais;[8] da parte axiológica que descreve estes fatos visando, no mais das vezes, legitimá-los. Neste sentido, mostrará ser producente vincular estritamente “Direito Penal do Inimigo” ao nome de Günther Jakobs e seus discípulos, compreendendo-o como uma doutrina defendida pelo mesmo.
Em verdade, trata-se de uma ideologia pugnada pelo autor, de modo que aos investigadores compete bifurcar o plano do “ser” do “dever ser”.
O presente ensaio pretende tratar das premissas de fato que servem de supedâneo para a estruturação da tese de Jakobs; de modo que se espera responder a seguinte indagação: de que se trata esse fenômeno empírico o qual Jakobs designa Direito Penal do Inimigo e quais são as suas características?
Apresentar-se-ão, para tanto, os significados/conceitos que usualmente se relacionam ao Direito Penal do Inimigo; apontando, inclusive, a definição que se pensa ser adequada para designá-lo.
Outrossim, pretende-se introduzir esboço teorético para investigação da legitimidade ou ilegitimidade do novel modelo de política criminal.
Por fim, é de bom alvitre consignar que serão antecipadas, por vezes, algumas características do normativismo de Jakobs, todavia serão esmiuçadas em outra senda, visto que não se trata do foco da presente investigação.
1. NATUREZA DO DISCURSO – Elementos propedêuticos para compreensão conceitual
Cumpre trazer à baila, neste primeiro momento, algumas considerações terminológicas embasadas em profunda metodologia.
Leciona Alf Ross que de há muito se faz um paralelo entre as expressões (utterances) ou discursos (speech-acts) teoréticos e práticos.[9] Enquanto que os discursos teóricos estruturar-se-iam em asserções e enunciados declarativos (statements); os práticos teriam embasamento imperativo, valorativo e em expressões normativas.[10]
Conforme largamente difundido, somente os primeiros poderiam ser falseados e trabalhados pelas leis da Lógica, pois os segundos “have no truth-value.”[11]
A distinção fulcral entre os referidos discursos não se limitaria à questão de ordem morfológica, visto que, como aponta Hare, antes das distinções gramaticais que estruturam as sentenças dos enunciados (statements) e dos mandatos (commands), a segregação se impõe pela função que é atribuída a cada forma de discurso.[12]
Nessa senda, o discurso jurídico, como usual, estrutura-se de forma assertiva sobre fatos e eventos que podem ser falseáveis segundo critérios de ciência stricto sensu, portanto dizendo respeito a questões “científicas” do Direito. Lado outro, igualmente, firma-se em prescrições de cunho normativo imersas em carga axiológica, que somente podem ser verificados de acordo com sua (in)validade.
Assim, Ferrajoli propõe chamar de Teorias explicativas ou explicações “las respuestas a las cuestiones históricas o sociológicas sobre la función (o las funciones) que de hecho cumplen el derecho penal y las penas”; e Doutrinas axiológicas ou justificações “las respuestas a las cuestiones ético-filosóficas sobre el fin (o los fines) que ellas deberían perseguir.”[13]
Por fim, chama-se Ideologia as propostas que tratam sem discriminação, ou fazem confusão, sobre parcela empírica e deontológica de determinada tese.[14]
Dito isso, questiona-se: Direito Penal do Inimigo corresponde a uma teoria, uma doutrina ou uma ideologia?
Observe-se que para Jakobs, Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão são tipos ideais “que dificilmente aparecerán llevados a la realidad de modo puro”.[15] Isso significa que numa ordenação haveria traços de ambos os tipos ideais, ora se aproximando de um regime democrático, ora dum regime de índole totalitária.
Afirma ainda, o autor, que quem não corrobora as expectativas das normas jurídicas deve ser tratado como inimigo (Direito Penal do Inimigo), pois, caso contrário, ficaria vulnerável a segurança social.[16]
Por estas duas passagens, faz-se evidente que se trata de uma ideologia, pois ora designa um fenômeno de política criminal descrevendo práticas repressivas de legitimidade duvidosa, ora designa a justificativa de tal fenômeno.[17]
Destarte, Direito Penal do Inimigo é uma ideologia advogada por Jakobs; mas, para que seja aproveitável, deve designar tão somente o normativismo idealizado pelo autor. Isso porque as explicações, como afirmado, são falseáveis, e o fatídico fenômeno (parte descritiva), conquanto inolvidável, nada tem que ver com a presença de um inimigo.
2. TERMO E DESIGNAÇÃO – Ao que se refere Direito Penal do Inimigo?
Poder-se-ia afirmar que o Direito Penal do Inimigo visa designar um fenômeno estranho ao Direito Penal; vale dizer, “el concepto de Derecho penal del enemigo sólo puede ser concebido como instrumento para identificar precisamente al no-Derecho penal presente en las legislaciones positivas”.[18]
Em outras palavras, conforme aponta Ferrejoli, trata-se-ia “di um ossimoro, di una contraddizione in termini, che rappresenta, di fatto, la negazione del diritto penale”.[19] Zaffaroni, inclusive, entende que seria mais adequado designar “El derecho penal y sus enemigos.”[20]
Assim, diria respeito a um fenômeno que não se submete ao regime jurídico penal e que, portanto, não pode ser identificado como Direito Penal, inobstante possuir vasta semelhança e até mesmo ser denominado como tal; tratar-se-ia, tão somente, de algo travestido de Direito Penal “che si ammantano del nome di diritto penale e che del diritto penale sono invece la negazione.”[21]
Nessa ambientação, Direito Penal do Inimigo seria uma parte[22] do fenômeno criminológico camuflado de Direito Penal que, por relativizar as garantias oriundas do regime jurídico-penal, com este não se confundiria.
O mestre Nucci identifica tal fenômeno como algo adstrito à Lei de Segurança Nacional, não podendo, neste sentido, ser relacionado ao Direito Penal.[23]
Entretanto, ao bem da verdade, diante de toda estrutura teórica que descansa sob o termo Direito Penal do Inimigo, seria temerário defini-lo como um fenômeno de política criminal.
Observe-se que uma coisa é o fenômeno de que se vale Jakobs para estruturar sua tese (que não é digno que se identifique como Direito Penal do Inimigo); outra coisa é sua própria doutrina; em que pese o próprio autor descrever, igualmente, tal fenômeno como Direito Penal do Inimigo.
Daí porque, com sagacidade ímpar, Ferrajoli afirma que Direito Penal do inimigo possui dois significados à luz da ideologia de Jakobs: uma acepção descritiva e outra normativa.[24]
Acredita-se que uma modificação estrutural da política criminal dum Estado de Direito nunca poderia ser denominada de Direito Penal do Inimigo (sendo esse fenômeno legítimo ou ilegítimo)! A ideia de inimigo é própria dos regimes totalitários, de modo que nunca será recepcionada pelo Estado de Direito.[25] Vale dizer, seria no mínimo absurdo rotular parte de tal expansão do Direito Penal de tal forma, pois, sobretudo, não é certa a presença de um inimigo neste fenômeno.[26]
Em síntese, Direito Penal do Inimigo deve designar tão somente a justificativa de parte do fenômeno expansivo do Direito Penal; em outras palavras, trata-se de tese cunhada por Günther Jakobs para justificar/legitimar uma modificação sensível do discurso criminal dos últimos anos.
Isso porque a ideia de inimigo, visto por Jakobs, e a derivada relativização de garantias diante de sua presença, chegando ao extremo de coisificá-lo, não possuem guarida no Estado de Direito.
Por vezes o autor se vale de um maniqueísmo pueril como se o Estado de Direito possuísse direitos absolutos (olvidando que mesmo os Direitos Fundamentais entram em conflito, devendo ser adequados casuisticamente por se tratar de apanágio do Estado Democrático de Direito); como se o Direito Penal não pudesse ter uma visão prospectiva, ou pudesse primar pela efetividade.[27] Nesta perspectiva, tudo que visasse efeitos prospectivos e mitigação de riscos diante de critérios de periculosidade não poderia dizer respeito ao Direito Penal, sendo correto, segundo Jakobs, ser tratado como Direito Penal do Inimigo.
Mostra-se claro, diante disso, um esforço interpretativo, quiçá inidôneo, para tornar seu discurso adequado.[28]
Na verdade, o que define o sistema penal de determinado povo é exatamente a configuração Estatal; de modo que, quando, no fenômeno criminal, constata-se o desvio do regime jurídico consolidado ou se trata de questão inconstitucional, ou há de legitimar-se por vias extraordinárias.
Por fim, é necessária uma reflexão no que toca à nomenclatura: inobstante brilhantismo de Jakobs, talvez a fama desmedida e certa desgraça doutrinária seja atribuída à alcunha “inimigo”. O epíteto da doutrina por ele cunhada carrega uma alta carga ideológica que, provavelmente, sequer fora mensurada pelo autor, o que tem dificultado a compreensão de sua proposta pela inclinação emocional.[29]
O termo desperta o imaginário conduzindo, os mais afoitos, por vezes, a veredas não autorizadas por Jakobs; orienta, outrossim, preconceitos pelas conotações arvoradas em critérios de valor.[30]
3. REGIME JURÍDICO-PENAL – Esboços de política criminal
Como afirmado, se o fenômeno chamado de Direito Penal do Inimigo é algo que apesar da semelhança não pode ser identificado como Direito Penal, há necessidade de que este seja delimitado.
Há certa uniformidade na doutrina contemporânea em definir o Direito Penal como sendo o conjunto de normas definidoras dos crimes (comportamentos mais repulsivos socialmente, identificando nestes uma violação a um bem jurídico indispensável ao convívio harmónico e pacífico em sociedade)[31], o que traduziria na legitimação do Estado em reprimir tal comportamento de forma igualmente grave por intermédio de uma sanção criminal (instrumento mais agressivo de que se vale o Estado para tutelar interesses legitimamente constituídos).
Todavia, o que há de definir determinado ramo do Direito é exatamente um regime jurídico específico que lhe proporciona contornos próprios e autonomia frente ao resto do ordenamento jurídico.[32] O regime jurídico-penal, nestes termos, é formado pelas normas fundamentais, pelos princípios-base que lhe definem arestas.
Destarte, o Direito Penal caracteriza-se como tal em virtude de um arcabouço principiológico que lhe da identidade; o regime jurídico-penal, assim, é a pedra de toque do Direito Penal. Exemplifica-se: não se olvida que o princípio da legalidade constitui mola propulsora do regime jurídico-penal; assim, punição de conduta ao arrepio de norma legal que a criminalize não se identifica com Direito Penal.
Malgrado se tratar de estrutura que comporta modificação com o decurso do tempo, o regime jurídico, a toda evidência, observa uma evolução notadamente lenta quando comparado com a volatilidade das normas jurídicas em ordinário.
Isto ocorre em virtude do supedâneo político que o embasa; é dizer, o regime jurídico-penal é formado a partir dum modelo específico de Estado.[33] Logo, há um modelo de Direito Penal para cada sistema político[34]; em outras palavras, o regime jurídico-penal remonta à própria essência do Estado.[35]
Portanto, o regime jurídico não é definido por um processo legislativo trivial; antes disso, é fruto de conquista e revolução que funcionam, no mais das vezes, como verdadeiras garantias do cidadão e limitações da atividade estatal. Em matéria penal isso fica claro diante do fato de que o regime jurídico-penal fica definido mais pelas normas constitucionais do que pela codificação específica.
O regime jurídico-penal do Estado de Direito, malgrado inúmeras divisões metodológicas, pode ser reduzido ao Princípio da Legalidade, Princípio da Intervenção Mínima, Princípio da Culpabilidade e seus consectários.[36]
Observe-se que os princípios que revestem o Direito Penal de hoje são os mesmos havidos no ideário Iluminista, visto que são apanágios do Estado de Direito. A modificação diz respeito à qualificação dos mesmos para subsumir a uma nova realidade social.
Consequentemente, esta constatação não exaure a definição do Direito Penal moderno, pois o alcance de cada postulado varia significativamente a depender das especificidades do modelo político vigente.
Assim, por exemplo, o Estado Liberal, como sendo produto do pensamento liberal-burguês do século XVIII, firma a proteção da liberdade dos indivíduos em face do Estado.[37] O reclamo, portanto, é de uma mínima intervenção do Estado junto aos jurisdicionados.
No âmbito penal, “los límites derivados del Estado de Derecho son consecuencia de lo que se conoce como ‘principio de legalidad’.”[38] Some-se a isso uma definição precisa de intervenção mínima, visto que, os bens jurídico legítimos de tutela penal seriam aqueles de cunho eminentemente personalíssimos.
Já no modelo proveniente do Estado Social, o Estado é chamado a intervir para mitigar os efeitos deletérios do liberalismo fazendo com que gerencie a coisa pública de modo a proporcionar que todos participem do bem-estar social.[39]
Esse novo paradigma teria a missão de refletir “en lo penal atribuyendo a la pena el cometido de lucha contra el delito, en el sentido de lucha contra la delincuencia como fenómeno real de la existencia social.”[40]
Aqui há uma hipertrofia do Direito Penal, em virtude duma atuação eminentemente repressiva. Muda-se, por conseguinte, a amplitude do objeto de tutela do Direito Penal.[41]
Por fim, costuma-se afirmar que estamos numa terceira era do Estado de Direito, denominado de Estado Democrático de Direito que teria como característica primordial o fomento dos chamados direitos de terceira geração. Estes são direitos de titularidade difusa ou coletiva, ligando-se à tutela de grupos de homens e não mais ao homem individualmente considerado. Nesse sentido, visam preservar “o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.”[42]
Na seara criminal, o Estado Democrático de Direito possui a árdua tarefa de conciliar dois interesses: “protección de las libertades fundamentales del ciudadano (…) y la propia limitación de su poder punitivo, hasta el límite de lo estrictamente necesario para preservar la pacífica convivencia.”[43]
Essa nova compreensão, afirma Vives Antón, há de modificar, em essência, a definição de delito, pois: “el injusto del delito ha de caracterizarse como lesión o puesta en peligro de bienes jurídicos, y bienes jurídicos son, exclusivamente, las condiciones exteriores de la libertad.”[44] (grifei).
Em assim sendo, o Direito Penal só há de intervir sob um critério de necessidade estrito que o legitime,[45] de modo que em virtude das garantias sedimentadas a intervenção penal só se faz legitima quando houver um risco efetivo a um bem jurídico-penal.
Válido salientar a argúcia de Borja Jiménez afirmando que o Estado Democrático de Direito:
“No puede adelantar su línea de defensa para alimentar una total seguridad ciudadana, pues entonces golpea la barrera de la inviolabilidad del individuo, uno de sus pilares fundamentales. Esto supone que los actos lejanos al inicio de la ejecución del crimen, como la proposición, la provocación o la conspiración para delinquir, no deben tipificarse con carácter general (…). De igual forma, no es compatible con un sistema democrático la exacerbada prevención criminal que deriva de la legislación de estados peligrosos y de las correspondientes medidas de seguridad predelictivas.”[46]
Percebe-se que a fase atual visa confluir e aprimorar os postulados da ideologia liberal e intervencionista; algo que, como propõe Aristóteles, a partir do conhecimento dos extremos, encontrar no meio a virtude.[47]
Deste modo, deve coexistir, em política criminal, a igual preocupação com a limitação do poder de punir e com a efetividade do Direito Penal, como sendo artifício para preservar a convivência pacífica da sociedade.
Ocorre que se constata um fenômeno na política criminal hodierna que foge ao padrão ora posto.
4. CONTEXTO POLÍTICO – A Expansão do Direito Penal
A ideologia neoliberal somado à supressão das fronteiras Estatais, proveniente do processo de globalização, modificou a própria concepção de Estado; eis que seus elementos estruturais não se assemelham ao conceito tradicional.[48]
Firmado sobre uma orientação tecnocrática, a sociedade busca incessantemente um desenvolvimento multifacetado, o que propicia o fomento de riscos inerentes às novas descobertas e a ignorância das consequências que lhe são correlatas.
Outrossim, a diversidade ética, que outrora constituía pouco mais que curiosidade entre os povos, torna-se fundamento de conflitos a partir do estreito comunicativo entre as nações.[49] Não fora compreendido, ainda, que a distinção não é causa necessária de segregação.
Nessa conjuntura, a modernidade avançada, aduz Ulrich Beck, caracteriza-se pela exasperação sistematizada da produção social de riscos.[50] Contudo, a sociedade de risco é, ao mesmo tempo, a sociedade que procura a todo custo mitigar os riscos que produz.
Os novos riscos trazem consigo, além de maior probabilidade de dano, danos que até então eram inimagináveis.[51]
Parte significativa desses riscos é proveniente de ações humanas; de decisões tomadas pelo próprio homem. Nesse contexto, o Direito Penal passa a ser enxergado como importante artifício de combate aos riscos; evidentemente que “riesgo de procedencia humana como fenómeno social estructural.”[52]
No escólio do mestre Nucci: “A globalização da economia, dos meios de comunicação, do mercado financeiro, dos transportes, do turismo, entre outros fatores, trouxe também a globalização do crime.”[53]
Doravante, há uma modificação paradigmática em toda política criminal.[54] Essa modificação estrutural se solidifica, como previsível, com os incidentes de 11 de setembro de 2001;[55] marco este que chama a sociedade a refletir sobre a eficácia do modelo em vigor de combate à violação dos bens jurídicos mais relevantes.
Consolida-se, assim, um fenômeno denominado expansão do Direito Penal, caracterizado pelo surgimento de novas figuras típicas e uma modificação substancial do discurso criminal.[56]
O fenômeno contempla uma intensa criminalização de interesses difusos, no sentido de serem assaz amplos e indeterminados, afastando-se da ideia de Direito Penal Mínimo; é dizer, amplia-se a tutela penal que se manifesta pelo: “aumento de las conductas penalmente tipificadas con el fin de proteger bienes jurídicos colectivos o supraindividuales.”[57]
Por outro lado, haveria uma intensa criminalização de condutas de lesividade irrelevante, eis que o primado da tipificação de tais condutas seria o fomento do simbolismo em Direito Penal, cujo propósito é estabelecer uma tranquilidade fictícia.
Nesse diapasão, esta expansão pode ser resumida, segundo Meliá, em dois fenômenos: o “Direito Penal Simbólico” e o “ressurgir do punitivismo.”[58]
No que toca ao primeiro fenômeno, é importante consignar que há uma dificuldade metodológica muito grande em precisar “legislação simbólica” à luz da teoria jurídica. Isso ocorre não diante de um problema semântico do signo símbolo, mas sim dos diversos efeitos da que constatação destes símbolos em Direito causa.[59]
Não obstante, há certa confluência em tratar o Direito simbólico fazendo um paralelo entre aquilo que é manifesto e aquilo que está latente, numa certa tentativa de afirmá-lo como sendo os “efectos reales de las leyes penales.”[60]
Entretanto, aqui interessa o seu sentido crítico como sendo estratagema estatal em política criminal (com a hipertrofia do Direito Penal) para desonerar-se de demandas sociais que lhe impõem o clamor público, e que deveriam ser solvidos por intermédio de programas de política social;[61] ou, nas palavras de Silva Sánchez: “a la producción en la opinión pública de la impresión tranquilizadora de un legislador atento y decidido.”[62]
Isso porque mesmo as normas que são criadas para produzir efeitos concretos, é dizer, para serem eficazes, possuem também um efeito simbólico.[63]
Ao lado desse fenômeno de promulgação normativa que prima por uma função notadamente simbólica, há, também, a criação de novas figuras típicas e exasperação das penas, o que caracteriza um verdadeiro “clima punitivista: el recurso a un incremento cualitativo y cuantitativo en el alcance de la criminalización como único criterio político-criminal”.[64]
Cumpre destacar que estes fenômenos estão intimamente ligados, pois esse sentimento punitivista, ao exasperar a pena de determinadas condutas, por exemplo, sobreleva a marginalização de indivíduo específico ratificando sua exclusão da identidade social construída pelas normas.
Faz-se mister compreender que este fenômeno se afasta do modelo posto pelo Estado Liberal, em virtude, sobremaneira, de uma possível mitigação das balizas postas pelo Princípio da Intervenção Mínima, pois a ideia expansiva é diametralmente oposta à ultima ratio.[65]
Nesse diapasão, na esteira de Meliá, pode-se afirmar que tal fenômeno:
“constituye una reacción de combate del ordenamiento jurídico contra individuos especialmente peligrosos, que nada significa, que de modo paralelo a las medidas de seguridad supone tan sólo un procesamiento desapasionado, instrumental, de determinadas tientes de peligro especialmente significativas. Con este instrumento, el Estado no habla con sus ciudadanos, sino amenaza a sus enemigos.”[66]
Isto posto, haveria setores de criminosos que seriam tratados de maneira distinta, não se enquadrando no arcabouço principiológico do regime jurídico penal.
O ordenamento jurídico, ao qualificar o inimigo, teria como desiderato identificar a fonte de perigo e, via de consequência, empregar esforços para neutralizá-lo. Todavia, de acordo com Meliá, essa qualificação assenta tão somente os símbolos que lhe são correlatos, de modo que se trata de “reconocimiento de competencia normativa del agentes mediante la atribución de perversidad, mediante su demonización”.[67]
Uma característica assaz interessante é que os tipos, para efeito de caracterização do indivíduo como inimigo, são formulados por técnicas estranhas às premissas do princípio da legalidade, não tendo mais como um núcleo um determinado fato.[68]
Portanto, a parcela descritiva do denominado Direito Penal do Inimigo pode ser resumida à aparência de Direito Penal; flexibilização das garantias criminais e a ideia de combate ao risco. Portanto, esse fenômeno é marcado por um desiderato específico, qual seja, atenuar perigos futuros aos bens jurídicos mais importantes, sendo, inclusive, designado como “le strategie di controllo penale.”[69]
5. DIREITO PENAL DA TERCEIRA VELOCIDADE – O “não-Direito Penal” legítimo
Como afirma Silva Sánchez “un Derecho penal de la ‘tercera velocidad’ existe ya, en amplia medida, en el Derecho penal socio-económico.”[70] Na esteira do autor, entende-se temerário negar a existência de tal fenômeno ou mesmo propor o regresso ao modelo liberal.[71]
No escólio do mestre Nucci:
“A terceira velocidade representaria a amenização dos direitos e garantias fundamentais sem nenhuma compensação no campo das penas, pois elas seriam mais graves e daria, então, fundamento a um sistema penal muito mais rigoroso. O autor faz uma ligação com o direito penal do inimigo de GÜNTHER JAKOES.”[72]
no Brasil, essa teoria das velocidades inexiste; estamos a 10 km/h, quase parados em matéria de modernização do sistema penal, trabalhando, ainda, com um Código Penal, editado em 1940, e parcialmente reformado em 1984. Temos um amontoado de leis que não formam uma política criminal: se rigorosa, se branda, se média etc.
Diante dessa expansão do Direito Penal é notória a quebra do paradigma até então consolidado, eis que exsurge a seguinte indagação: trata-se apenas, como há de acontecer, de uma evolução epistemológica do Direito Penal, em virtude da própria evolução social; ou, lado outro, trata-se de fenômeno que não se identifica com o Direito Penal e que, portanto, deve procurar fundamentos outros?
Consignou-se alhures a imbricação necessária da identidade do sistema penal com o modelo político em vigência. Contudo, aduziu-se que mesmo o núcleo duro do regime jurídico há de comportar modificações em razão do decurso do tempo, diante da necessidade do acompanhamento das vicissitudes sociais.
Nestes termos, reformula-se: o fenômeno identificado por Jakobs com Direito Penal do Inimigo nada mais é que o próprio Direito Penal que se repaginou para acompanhar o novo paradigma social das sociedades globalizadas?[73]
Primeira premissa: qualquer tentativa de resposta simplista, reducionista seria ao mesmo tempo leviana. Diante da complexidade do fenômeno, as linhas de investigação e lucubrações filosóficas devem manter o mesmo grau de complexidade.
Segunda premissa: a resposta para esta questão está imersa em alta carga axiológica, demandando a definição do Direito Penal como suposto para solvê-la; não compete à ciência (strictu sensu), portanto.[74] Trata-se de questão epistemológica. Assim, para respondê-la, de forma idônea, as premissas devem ser postas pelo próprio investigador, na condição de jusfilósofo, para justificar seu posicionamento, demonstrando a adequação do seu raciocínio.[75]
Para não fugir ao cerne do que aqui se propõe, limita-se a afirmar que esse fenômeno expansivo, cuja característica principal é a mitigação de garantas penais até então consolidadas (identificado, por vezes, sob o rótulo Direito Penal do Inimigo) ora corresponde a uma evolução do Direito Penal para se readequar aos novos reclamos sociais;[76] ora diz respeito a medidas inconstitucionais, pois não se adequa aos paradigmas do Direito Penal num Estado de Direito, maiormente, diante da teleologia discrepante;[77] ora, mesmo recepcionado pelo Estado de Direito, não pode ser considerado Direito Penal.
Ao bem da verdade, tal investigação deve ocorrer de forma tópica, partindo-se de uma premissa conceitual de Direito Penal.
Enfim, ao admitir parte de tal fenômeno como legítimo, faz-se indispensável sublinhar integralmente a advertência de Silva Sánchez:
“Sin negar que la ‘tercera velocidad’ del Derecho penal describe un ámbito que debería ser deseablemente reducido a la mínima expresión, aquí se acogerá con reservas la opinión de que la existencia de un espacio de Derecho penal de privación de libertad con reglas de imputación y procesales menos estrictas que las del Derecho penal de la primera velocidad es, seguramente, en algunos ámbitos excepcionales y por tiempo limitado, inevitable.”[78] (grifei).
Válido ressaltar, em síntese, que é possível verificar que neste fenômeno há: a) parte significativa que compreende uma readequação do Direito Penal diante da sociedade globalizada e seus consectários; b) parte que constitui verdadeiro impropério jurídico, afastando-se de qualquer finalidade idônea num Estado de Direito não podendo, portanto, ser recepcionado sob qualquer rubrica; c) parte, que diante duma finalidade proba, se faz legitima no Estado de Direito, todavia não deve ser designado como Direito Penal.
O item a) não gera qualquer consideração. Trata-se, como deve ser, de uma adequação em virtude do novo standard socioeconômico; a evolução cultural gera uma releitura dos institutos jurídicos mais pedestres. Como diria Jakobs um fato ordinário que provoca pouco mais que tédio.
O item b) é simplesmente uma medida de política criminal que, por não respeitar os ditames constitucionais, é inconstitucional; aproxima-se, de forma desmedida, das prerrogativas de um Estado de índole totalitária cujo propósito escuso não se abriga no Estado de Direito.
Já o item c) merece toda atenção e cautela que, para efeito de investigação, nos valeremos do emblemático caso de bomba-relógio.[79]
O que precisa ser pontuado, na esteira de Jakobs, que parte deste fenômeno (o chamado Direito Penal do Inimigo) não deve ser compreendido como Direito Penal[80]; em outras palavras, é necessário segregar o Direito Penal tradicional de algo que, apesar da aparência de Direito Penal, oblitera ou mitiga de forma tão especial as garantias penais que não pode ser confundido com uma mera evolução do Direito Penal.
Nestes termos, por exemplo, a tortura[81] é inadmissível em um Estado de Direito, inclusive, é comum a afirmação de que se trata de um dos poucos direitos absolutos; vale dizer, o direito de não ser torturado não encontraria qualquer mitigação ou ressalva.
Inobstante, é importante salientar que “ainda que prima facie humanitária, a verdade é que a proibição absoluta pode resultar um tanto dolorosa em situações de necessidade.”[82]
A questão é que a literatura é vasta, igualmente, em legitimar a tortura em caso de bombas relógio, ou situações análogas.[83]
Sem entrar no mérito da questão, precisa-se pontuar que se admissível, tratar-se-ia de algo excepcional e que não poderia (a tortura) ser regulamentada pelo Direito Penal porque nesse caso estar-se-ia diante de uma quimera que só geraria confusão. Veja que todos as regras de Direito Penal devem-se identificar com os postulados descritos pelo seu regime jurídico e a tortura, em nenhuma hipótese hermenêutica, poderia encontrar relação com aquela.
Em síntese, em sendo legítima (por encontrar justificativas à luz dos postulados do Estado de Direito) algumas regras (de combate à criminalidade, v.g.) que notadamente mitigam a principiologia do Direito Penal, estas devem ser regulamentados por outro ramo do Direito.
Poder-se-ia aduzir que se trata de excesso de zelo para com a forma; todavia, as implicações que geram na interpretação e conseguinte aplicação da Lei Penal justificam, de per si, essa segregação.
O cerne da questão é que a definição do Direito Penal possui respaldo na tradição e essa característica não é olvidável; é dizer, foram séculos para se construir o arcabouço estrutural que identifica o Direito Penal fulcrado em uma série de postulados.
O regime jurídico-penal, por vezes, não possui qualquer identificação com o modelo de política criminal hodierna quando cotejada com parte fenômeno expansivo do Direito Penal.
Destarte, o Direito Penal de terceira velocidade, bem como o Direito Penal de segunda velocidade não devem ser denominados por Direito Penal.[84]
Igualmente, admitir transação penal, sanções exclusivamente pecuniárias, algumas penas restritivas de direitos, suspensão condicional do processo, a ideia de crimes de menor potencial ofensivo[85] etc. fere de morte a raiz do Direito Penal. Não que se deva extinguir tais institutos, todavia não devem ser enquadrados como Direito Penal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta de Jakobs apresenta pouco relevo atual estando fadada ao ostracismo, pois há muito pouco que pode se aproveitar.
Faz-se evidente, como sublinhado, em mais de uma oportunidade, que seria no mínimo leviano designar o fenômeno expansivo do Direito Penal por Direito Penal do Inimigo, ou fazer qualquer relação entre inimigo e Estado de Direito. São duas ideias antagônicas que não podem subsistir concomitantemente.
Deste modo, para não sepultar o termo Direito Penal do Inimigo, este deve designar tão somente a justificativa que Jakobs confere a tal fenômeno.
No que toca à expansão do Direito Penal, entende-se que esta atende, no mais das vezes, a um novo paradigma social; de modo que, acompanhando as vicissitudes sociais, se readéqua a uma nova realidade.
Todavia, é necessária muita cautela para investigação de tal fenômeno, visto que não se olvida o sentimento punitivista que tomou conta da aurora do século XXI e a ideia absurda de que o Direito Penal seria o principal (mais importante e mais eficaz) instrumento do Estado para combater a criminalidade e estabelecer a pacificação social.
Inobstante dificuldade em definir precisamente bem jurídico-penal, o Princípio da Intervenção Mínima ainda é axioma do Estado de Direito e deve, dessarte, conduzir o sistema penal na eleição do seu objeto de tutela.
É imperioso repesar os institutos de forma teleológica valendo-se do primado do Direito Penal como ultima ratio. Assim, contemplado, hipoteticamente, o alcance do desígnio almejado por outro artifício, a intervenção Penal deve ser sumariamente obliterada.
A segregação posta por Jakobs entre Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo possui uma finalidade assaz relevante, malgrado inaceitável seus fundamentos.
Afirmou-se, outrossim, que parte desse fenômeno integra uma singela evolução do Direito Penal, de modo que não enseja qualquer debate ou investigação sobre sua legitimidade; ela se subsome aos anseios do Estado de Direito, não obstante reconstituir o alcance de algumas garantias firmadas.
Porém, há parte que, sendo necessária/legítima/justificável, não pode se afirmar como Direito Penal por uma necessidade metodológica de forte repercussão pragmática.
Nestes termos, faz-se mister segregar ramos do Direito para que cada qual respeite um regime jurídico próprio. Destarte, salienta-se o contorno de cada um gerando, ao cabo, a tão esperada segurança jurídica, visto que cada parte respeita um sistema hermenêutico e método de aplicação normativa autônomos.
Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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