RESUMO: objetiva o presente artigo defender a eficácia do provimento judicial transitado em julgado portador do vicio de inconstitucionalidade. Partindo da exposição sobre os contornos do instituto da coisa julgada material no Direito Processual Civil Brasileiro, realçando sua envergadura constitucional, inclusive como elemento inerente ao Estado Democrático de Direito, sem o qual não é possível se falar em pacificação de conflitos de interesses. Visitando a teoria dos vícios dos atos processuais e a adequação da inconstitucionalidade em seu bojo. Terminando por defender a tese da eficácia, em nosso ordenamento jurídico, da coisa soberanamente julgada inconstitucional.
SUMÁRIO: 1. O Caso Julgado. 2. Os Vícios dos Atos Processuais. 2.1. O Vício da Inconstitucionalidade. 3. A Eficácia da Coisa Soberanamente Julgada Inconstitucional. 4. Conclusão. Bibliografia.
1. O Caso Julgado:
O exercício da jurisdição visa à formulação[1] e à atuação prática[2] da norma jurídica concreta que deve disciplinar determinada situação.[3]
Sendo, então, na sentença de mérito que o órgão judicial formula a norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação litigiosa trazida à sua apreciação.[4]
E a decisão judicial que não seja mais suscetível de reforma por meio de recursos transita em julgado, tornando-se imutável dentro do processo.
Configurando a denominada coisa julgada formal, pela qual a sentença, como ato daquele processo, não poderá ser reexaminada.[5]
Assim, a coisa julgada formal é a sua imutabilidade como ato processual, representando a preclusão máxima, além de ser pressuposto da coisa julgada material[6], a qual torna imutável o conteúdo da norma formulada pela sentença.
E, em virtude da coisa julgada material, nem o juiz pode voltar a julgar, nem as partes a litigar, nem o legislador a regular diferentemente a relação jurídica.[7]
Esclarecendo eminente processualista paulista que não existem dois institutos diferentes ou autônomos, representados pela coisa julgada formal e pela material. Trata-se de dois aspectos do mesmo fenômeno de imutabilidade.[8]
Existindo óbvias necessidades de ordem prática que impõem que se assegure estabilidade à tutela jurisdicional assim dispensada. E a lei atende a tal exigência tornando imutável e indiscutível, a partir de certo momento, o conteúdo da norma formulada na sentença.[9]
Nesse momento – que, no direito brasileiro, é aquele em que nenhum recurso pode ser interposto contra a decisão – diz-se que esta transita em julgado. Desde o trânsito em julgado, fica a sentença definitiva revestida da autoridade da coisa julgada em sentido material.[10]
E, para designação dessa realidade, nos parece bem mais adequada a denominação “caso julgado”, preferida em Portugal.[11]
Não consubstanciando um instituto confinado ao direito processual, tendo, acima de tudo, o significado político institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional.[12]
Sendo de se reconhecer que esforços notáveis têm sido empreendidos em busca de uma justificação estritamente jurídica para o instituto da coisa julgada[13], mas que nenhum deles chegou a resultado satisfatório, precisamente por que a justificação única possível é política.[14]
A própria atividade jurisdicional não teria como realizar seus precípuos objetivos se não chegasse um momento para além do qual o litígio não pudesse prosseguir.[15]
Sem isso, a jurisdição resultaria inútil e não valeria senão como exercício acadêmico, já que permaneceria indefinidamente aberta a possibilidade de se rediscutir o decidido, com óbvias repercussões negativas sobre a estabilidade das relações jurídicas.[16]
Pontificando o grande mestre JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA que:
“Todos precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a maquina judicial, seu pronunciamento terá algo mais do que o fugidio perfil nas nuvens. Sem essa confiança, crescerá fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causaria à tranqüilidade social”.[17]
Reconhecendo, nessa perspectiva, nossa mais firme doutrina que a coisa julgada não se liga, ontologicamente, à noção de verdade. Não a representa, nem constitui ficção (ou presunção) legal de verdade. Trata-se, antes, de uma opção do legislador, ditada por critérios de conveniência, que exigem a estabilidade das relações sociais e, por via de conseqüência, das decisões judiciais.[18]
Sendo a real função da coisa julgada a de fornecedora de garantia[19] de segurança e não de justiça.[20]
Quadro em que se pode afirmar, sem extremismos, que a segurança jurídica trazida pela coisa julgada material é manifestação do Estado Democrático de Direito.[21]
2. Os Vícios dos Atos Processuais.
Eis que a classificação dos vícios dos atos processuais não é pacifica em nossa doutrina, adotaremos algumas premissas e critérios que servirão de norte para o desenvolvimento de nosso estudo.
E a nossa premissa é que nada seja, ontologicamente, nem lícito, nem ilícito, nem proibido nem devido, sendo essencial um dizer do homem a este respeito.[22]
Devendo-se, então, ter-se em mente que a tarefa de aplicar o direito às situações concretas não é realizada aleatoriamente pelos órgãos estatais; ao contrário, a atividade processual também é regulada pelo ordenamento jurídico.[23]
E como uma conseqüência natural da fixação de regras legais para a realização dos atos processuais, somente os realizados em conformidade com o modelo legal são considerados válidos perante o ordenamento jurídico e aptos a produzirem os efeitos desejados.[24]
Estabelecendo o legislador sanções, que variam segundo a maior ou menor intensidade do desvio com o tipo legal.[25]
Firme nessas noções deve-se, para a exata compreensão da temática, promover-se separação entre os planos da existência, validade e eficácia.[26]
Entendendo-se que a adequação do ato processual ao modelo prefixado na lei o faz ato perfeito, enquanto que a falta de correspondência entre o tipo e o ato processual determina a sua imperfeição. O ato se torna defeituoso ou viciado.[27]
Se defeituoso, o ato processual existe, ao passo que o inexistente nem pode ser viciado, nem defeituoso.[28]
A inexistência processual é o não-ato. Sendo ineficaz desde sua origem, insanável, irremediável, não sofrendo a cobertura da coisa julgada, nem podendo constituí-la ou legitimá-la.[29]
Devendo-se, pois, ora aqui se registrar, atento aos nortes que informam nosso estudo, que a sentença inexistente é um nada jurídico. Pode existir no plano fático, mas não existe no mundo jurídico, pelo que não produz qualquer efeito jurídico.[30]
Coisa diversa é a nulidade, sanção de ato processual defeituoso quando, em face do ordenamento jurídico vigente, o defeito seja relevante e autorize o pronunciamento judicial de sua invalidade.[31]
Quadro em que, enquanto o ato processual deficiente se desconstitui, o ato inexistente se declara como tal.[32]
Passando ao plano da validade, o primeiro passo consiste em distinguir o ato irregular do ato inválido.[33]
Esclarecendo, a respeito, ARAKEN DE ASSIS “que todo ato processual reclama requisitos necessários e úteis para ingressar eficientemente no mundo jurídico. Requisito necessário é aquele tecnicamente indispensável à finalidade prática do ato; requisito útil somente auxilia tal objetivo”.[34]
Panorama em que a não observância de requisito útil implica simples irregularidade, enquanto que a inobservância, na prática do ato processual, de um requisito necessário, acarreta sua invalidade.[35]
Entendendo-se, assim, que a não observância de um requisito necessário corresponde a um vício essencial do ato processual.
Repousando, entre nós, na mente privilegiada de GALENO LACERDA, a mais difundida das classificações sobre os vícios essenciais, segundo a qual o ato processual está acometido de nulidade absoluta quando há violação de norma cogente, cujos fins abrigam interesse público; nulidade relativa, se a norma infringida for cogente, porém tutela interesse da parte; e, por fim, se a norma violada for dispositiva, há anulabilidade.[36]
Distinguindo-se, nessa sede doutrinária, a nulidade absoluta, da nulidade relativa, quanto à possibilidade de serem sanadas: enquanto a infração a norma que abrigue interesse público jamais convalidará[37]; a ofensa à norma que tutele interesse da parte poderá ser convalidada.[38]
Devendo-se, pois, ora aqui se registrar, atento aos nortes que informam nosso estudo, que, ao contrário da sentença inexistente, o provimento nulo, porque eficaz, deve ser respeitado, se e enquanto não for desconstituído, gerando coisa julgada material.[39]
Entendendo-se, que, com o advento do trânsito em julgado, não mais seja tecnicamente o caso de se falar em sentença nula, mas em sentença rescindível.[40]
E, transcorrido o prazo decadencial de dois anos previsto no artigo 495 do Código de Processo Civil para o manejo da ação rescisória, o provimento judicial passará a ser mão mais impugnável por qualquer meio processual, tendo-se o que o inesquecível JOSÉ FREDERICO MARQUES chamava de coisa soberanamente julgada.[41]
Ou, na terminologia que encampamos, caso soberanamente julgado.
2.1. O Vício da Inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade decorre da simples desconformidade do ato estatal com a Constituição.[42]
Não se ofendendo a Constituição apenas quando se aplica uma lei cujo teor é francamente inconstitucional. A violação constitucional pode também advir da adoção de uma interpretação incompatível com a constituição, em detrimento de outra mais afinada com os desígnios constitucionais. Há que se buscar sempre a interpretação conforme a Constituição.[43]
Parecendo não existir dúvidas de que a inconstitucionalidade seja o mais grave vício que possa acometer o ato jurídico.[44]
Identificando-se setores extremados da doutrina que sustentam a teoria da inexistência jurídica da sentença inconstitucional, que seria, portanto, desprovida da aptidão para transitar em julgado.[45]
Mas, aos nossos olhos, o provimento judicial inconstitucional é um ato processual eivado de nulidade absoluta, não obstante eficaz, devendo ser respeitado, se e enquanto não for desconstituído, gerando, pois, coisa julgada material.[46]
Concordamos com as vozes daqueles estudiosos que defendem, ainda, que inconstitucionalidade é um vicio insanável.[47]
Entretanto, vencido o prazo de dois anos da ação rescisória, ocorrerá a decadência da pretensão de invalidação do ato processual.[48]
Momento em que a imutabilidade do provimento judicial passará a ser absoluta.
Ante ao surgimento de um caso soberanamente julgado.
E nem mesmo a ulterior declaração de inconstitucionalidade pode reabrir decadência solidificada, sob pena de enfraquecimento do postulado da segurança jurídica, prometido na Constituição de 1988.[49]
3. A Eficácia da Coisa Soberanamente Julgada Inconstitucional.
Vivemos um tempo singular que alguém qualificou de a era da incerteza e, nesse quadro, não deve causar surpresa que o instituto da coisa julgada, tida como sagrada na primeira modernidade, entre em declínio.
Sem que deixe de ser curioso que o ataque ao instituto da coisa julgada provenha da própria modernidade, levando-se em conta que o mesmo fora concebido para atender à exigência primordial de segurança jurídica.[50]
Sendo exatamente nessa era da incerteza que veio a surgir o surto do movimento de relativização no Brasil.[51]
Argumentando os seus adeptos, no campo das premissas, que o valor justiça seja a síntese do objetivo da jurisdição no plano social. Quadro em que não seria legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar que sejam eternizadas incertezas.[52]
Entretanto, autorizar o reexame do que ficou decidido simplesmente por vir parte vencida a juízo alegando que a sentença transitada em julgado é injusta, significa implodir o edifício da coisa julgada, eis que faria desaparecer a garantia de segurança e de estabilidade.[53]
Admoestando laureado processualista da Escola da PUC-SP que, entre o justo absoluto, utópico, e o justo possível, realizável, o sistema constitucional brasileiro, a exemplo do que ocorre na maioria dos sistemas democráticos ocidentais, optou pelo justo possível, que é consubstanciado na segurança jurídica da coisa julgada.[54]
Sendo definitivo o argumento segundo o qual, na tensão entre os princípios de justiça e o da segurança, o legislador constituinte escolheu num determinado momento processual, a segurança jurídica.
Os recursos colocados à disposição das partes buscam o valor justiça. Mas, uma vez esgotadas ou preclusas as vias recursais, o provimento judicial se estabiliza, dando-se preferência ao valor segurança.[55]
Até mesmo porque, não há justiça sem segurança jurídica.[56]
Panorama em que não mais nos alongaremos, no presente estudo, no enfrentamento da tese da relativização da coisa julgada material quando o seu pressuposto for o da “mera injustiça” do provimento judicial transitado em julgado.
Visto ser nosso objetivo enfrentar a tese da relativização quando presente no decisório judicial transitado em julgado, o vício da inconstitucionalidade.
Passaremos, então, a tratar mais detidamente das conseqüências de uma sentença inconstitucional transitada em julgado[57], tema da moda, até mesmo em função da crescente e inevitável onda de constitucionalização do processo.
Identificando-se, de um lado, o extremado alvitre de Teresa Arruda Alvim Wambier e de JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA que sustentam a teoria da inexistência jurídica dessas sentenças, que seriam, portanto, desprovidas da aptidão para transitar em julgado.[58]
Sendo ainda conhecida a posição do eminente HUMBERTO THEODORO JUNIOR no sentido de serem essas sentenças nulas, e que o vício ao conteúdo de inconstitucionalidade possa ser atacado, sem necessidade de observância de tempo ou de procedimento específico.[59]
Mas, temos para nós que se afirmar que alguma sentença não faz coisa julgada é temeridade.[60]
O provimento judicial portador, em seu conteúdo, do gravíssimo vício de inconstitucionalidade, não obstante ser ato processual nulo produz seus efeitos, se e enquanto não for desconstituído, gerando coisa julgada material, a qual se torna absolutamente imutável quando vencido o prazo de dois anos da ação rescisória, ante ao surgimento de um caso soberanamente julgado.
Percebendo, com razão, PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON que a garantia da coisa julgada articula-se com harmonia com a do devido processo legal.[61]
Ou seja, admitir que se afaste, por meios atípicos, a autoridade da coisa julgada, abraçando-se a tese da relativização, não se harmoniza com o princípio do devido processo legal.
O que, aos nossos olhos, é argumento mais do que suficiente para que se proclame, a todo o pulmão, a defesa do caso soberanamente julgado.
Até mesmo por que, ao se permitir a desconsideração da autoridade da coisa julgada material, quer diante da constatação de injustiça, quer diante de inconstitucionalidade, o processo judicial, ao invés de servir de instrumento para a pacificação dos conflitos de interesses, apenas irá eternizá-los.
Risco processual esse que foi observado, com sua habitual maestria, por JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, in verbis:
“Suponhamos que um juiz, convencido da incompatibilidade entre certa sentença e a Constituição, ou da existência, naquela, de injustiça intolerável, se considere autorizado a decidir em sentido contrário. Fatalmente sua própria sentença ficará sujeita a critica da parte agora vencida, a qual não deixará de considerá-la, por sua vez inconstitucional ou intoleravelmente injusta. Pergunta-se: que impedirá esse litigante de impugnar em juízo a segunda sentença, e outro juiz de achar possível submetê-la ao crivo de seu próprio entendimento? O óbice concebível seria o da coisa julgada; mas, se ele pôde ser afastado com relação à primeira sentença, por que não poderá sê-lo quanto à segunda? É claro que a indagação não se porá uma única vez: a questão poderá repetir-se, em princípio, ad infinitum enquanto a imaginação dos advogados for capaz de descobrir inconstitucionalidades ou injustiças intoleráveis nas sentenças sucessivas”.[62]
Panorama em que assiste razão a JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, quando o mestre gaúcho, em severa critica a teoria da relativização, conclui que a mesma busca é tornar vulneráveis todas as sentenças, retirando-se a blindagem da coisa julgada.[63]
Sendo forçoso se reconhecer que a revisão da coisa julgada por um critério atípico é perigosíssimo.
Não se podendo, então, compactuar com a idéia de uma cláusula aberta de revisão de sentenças transitadas em julgado em razão de injustiças, de desproporcionalidade ou de inconstitucionalidade.[64]
Finalmente, ante ao que ficou aqui averbado, há de se concordar com aqueles estudiosos do processo que proclamam que o parágrafo único do artigo 741[65] e o parágrafo 1º do artigo 475-L[66], ambos do Código de Processo Civil, sejam normas materialmente inconstitucionais.[67]
Reconhecendo LUIZ GUILHERME MARINONI que admitir a retroatividade da declaração de inconstitucionalidade sobre a coisa julgada é um verdadeiro atentado contra a existência de discurso jurídico.[68]
Pensar o contrário implicaria em ter que se concordar com Araken de Assis, quando esse categorizado mestre gaúcho doutrina que a coisa julgada, em qualquer momento, teria adquirido a insólita característica de surgir e subsistir sub conditione: a qualquer momento, pronunciada a inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, da lei ou do ato normativo em que se baseou o pronunciamento judicial, desapareceria a eficácia do artigo 467 do CPC.[69]
O que, aos nossos olhos, ante a magnitude que nosso sistema empresta ao instituto da coisa julgada, nos parece, um completo absurdo.[70]
4. Conclusão:
Buscou-se, nessa singela pesquisa, defender a intangibilidade do caso soberanamente julgado.
Repudiando, com lastro numa interpretação conforme a CRFB/1988, a tese da relativização, quer nas hipóteses de injustiça, quer nas hipóteses de vício quanto ao conteúdo de inconstitucionalidade.
Especialista em Direito do Consumidor e em Direito Processual Civil. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Advogado, no Rio de Janeiro.
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