Sumário: 1. Introdução; 2. Condicionantes do crime; 3. Exames de alcoolemia e teste do “bafômetro”; 4. Retroatividade benéfica. 5. Conclusão.
1. Introdução
Antes das mudanças introduzidas com a Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, para a configuração do crime previsto no art. 306 exigia-se prova da ocorrência de perigo concreto, não sendo suficiente o perigo abstrato. Nesse sentido: STJ, REsp 608.078/RS, 5ª T., rel. Min. Felix Fischer, DJU de 16-8-2004, Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal n. 28, p. 131; TJMG, Ap 2.0000.00.504070-8/000, 4ª Câm, j. 30.11.2005, rel. Des. Delmival de Almeida Campos, DJMG de 21-4-2006, RT 851/596; TJPR, Ap 313.700-6, 3.a Câm, j. 15-12-2005, rel. Des. José Wanderlei Resende, RT 848/629; TJRS, ACr 70001098631, 4ª CCrim, rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 28-6-2000, Revista IOB de Direito Penal e Processual Penal n. 7, p. 113.
A Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008 deu nova redação ao caput do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro e deixou de exigir a ocorrência de perigo concreto. O legislador passou a entender que conduzir veículo na via pública nas condições do art. 306, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, é conduta que, por si, independentemente de qualquer outro acontecimento, gera perigo suficiente ao bem jurídico tutelado, de molde a justificar a imposição de pena criminal.
Não se exige mais um conduzir anormal, manobras perigosas que exponham a dano efetivo a incolumidade de outrem.
O crime, agora, é de perigo abstrato; presumido.
2. Condicionantes do crime
O novo art. 306, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, está assim redigido: “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.
Duas, portanto, as hipóteses identificadas.
Na primeira hipótese, para que se tenha por autorizada a persecução criminal será imprescindível produzir prova técnica indicando que o agente, na ocasião, se colocou a conduzir veículo na via pública estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas.
O dispositivo penal aqui é taxativo no que tange à quantificação de álcool por litro de sangue para que se tenha por configurada a infração penal, e tal apuração só poderá ser feita tecnicamente, de maneira que a prova respectiva não poderá ser suprida por outros meios, tais como exames clínicos ou prova oral.
Na segunda hipótese estará configurado o crime quando o agente se colocar a conduzir veículo na via pública sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Sob tais condições, para a persecução penal não é imprescindível prova pericial, sendo suficiente produção de prova oral.
3. Exames de alcoolemia e teste do “bafômetro”
Nos precisos termos do art. 277, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado, aplicando-se tais medidas também no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos, conforme seu § 1º.
Para a caracterização da infração administrativa prevista no art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro, basta, entretanto, a obtenção de qualquer prova em direito admitida, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor, conforme dispõe o § 2º do art. 277 do mesmo Codex, que arremata em seu § 3º: “Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo”.
Pecou o legislador ordinário.
Nada obstante a letra expressa da lei, que é taxativa ao impor que nas situações catalogadas no caput do art. 277 o condutor será submetido aos procedimentos que menciona, e que a recusa configura infração administrativa (§ 3º), na verdade o condutor não está obrigado, e a autoridade nada poderá contra ele fazer no sentido de submete-lo, contra sua vontade, a determinados procedimentos visando apurar concentração de álcool por litro de sangue. Não poderá, em síntese, constrange-lo a exames de alcoolemia (sangue, v.g.) ou teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), vulgarmente conhecido por “bafômetro”.
Pelas mesmas razões que veremos abaixo, também a infração administrativa prevista no § 3º do art. 277 do Código de Trânsito Brasileiro, não subsiste.
Como bem observou Flavia Piovesan (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3. ed., São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 254) “a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil”, dentre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 8º, II, g, estabelece que toda pessoa acusada de um delito tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada, consagrando assim o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Dando melhor interpretação à regra, Sylvia Helena de Figueiredo Steiner ensina que “o direito ao silêncio, diz mais do que o direito de ficar calado. Os preceitos garantistas constitucional e convencional conduzem à certeza de que o acusado não pode ser, de qualquer forma, compelido a declarar contra si mesmo, ou a colaborar para a colheita de provas que possam incrimina-lo” (A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 125).
A respeito da discussão sobre eventuais conflitos normativos entre o direito internacional e o direito interno vale citar a derradeira e irretocável conclusão de Fábio Konder Comparato, sintetizada nos seguintes termos: “Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. Em várias Constituições posteriores à 2ª Guerra Mundial, aliás, já se inseriram normas que declaram de nível constitucional os direitos humanos reconhecidos na esfera internacional. Seja como for, vai-se firmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há de prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico” (A afirmação histórica dos direitos humanos, São Paulo Saraiva, 1999, p. 48-49).
É o que basta para afirmarmos que o agente surpreendido na via pública, sobre o qual recaia suspeita de encontrar-se a conduzir veículo automotor sob influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência, não poderá ser submetido, contra sua vontade, sem sua explícita autorização, a qualquer procedimento que implique intervenção corporal, da mesma maneira que não está obrigado a se pronunciar a respeito de fatos contra si imputados (art. 5º, LXIII, CF), sem que de tal “silêncio constitucional” se possa extrair qualquer conclusão em seu desfavor, até porque, como também afirma Sylvia Helena de Figueiredo Steiner: “Não se concebe um sistema de garantias no qual o exercício de um direito constitucionalmente assegurado pode gerar sanção ou dano” (Ob., cit. p. 125).
Há ainda o princípio da presunção de inocência, inscrito no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, a reforçar a idéia de que aquele a quem se imputa a prática de um delito não poderá ser compelido a produzir prova em seu desfavor.
Nessa linha de argumentação se faz necessário destacar o direito à ampla defesa consagrado no art. 5º, LV, da Constituição Federal, que possui contornos bem mais amplos do que a ele tantas vezes se tem emprestado, a permitir que o condutor recuse ser submetido aos procedimentos que impliquem intervenção corporal apontados no art. 277, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, sem que de tal agir decorra qualquer implicação administrativa nos moldes do § 3º do art. 277, ou criminal, nos moldes do art. 330 do Código Penal, que tipifica o crime de desobediência.
Da mesma opinião comunga Antonio Scarance Fernandes, que assim discorre: “Já era sensível a evolução da doutrina brasileira no sentido de extrair da cláusula da ampla defesa e de outros preceitos constitucionais, como o da presunção de inocência, o princípio de que ninguém é obrigado a se auto-incriminar, não podendo o suspeito ou o acusado ser forçado a produzir prova contra si mesmo. Com a convenção de Costa Rica, ratificada pelo Brasil e incorporada ao direito brasileiro (Decreto 678, de 6.11.1992), o princípio foi inserido no ordenamento jurídico nacional, ao se consagrar, no art. 8º, n. 2, g, da referida Convenção que ‘toda pessoa tem direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada’. Significou a afirmação de que a pessoa não está obrigada a produzir prova contra si mesma. Pode por exemplo, invocar-se esse princípio em face do Código de Trânsito (Lei 9.503, de 23.09.1997) para não se submeter ao teste por ‘bafômetro’” (Processo Penal Constitucional, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 303-304).
Na mesma toada segue a doutrina de Maurício Antonio Ribeiro Lopes, nos seguintes termos: “Questão de relevo também prende-se à prova da embriaguez e as garantias de reserva da intimidade e da vida privada. Isso porque o art. 277 do Código de Trânsito prevê a obrigação de o condutor do veículo se submeter a testes de alcoolemia ou a exames clínicos ou de instrumentos como o bafômetro para fins de verificação de eventual embriaguez com efeitos administrativos. Como já vimos em comentário ao artigo anterior, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu art. 8º, garante o direito a não auto-incriminação. Desse modo, pode haver recusa pelo condutor de se submeter a esses exames sem que tal fato venha a caracterizar autonomamente crime, tampouco presumir seu estado de embriaguez” (Crimes de Trânsito, São Paulo Revista dos Tribunais, 1998, p. 223/224).
No mesmo sentido, por fim, é o escólio de Luiz Flávio Gomes (Estudos de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 51).
Para provar que o agente conduziu veículo automotor na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, é imprescindível prova técnica.
“Ausente prova técnica atestando o número de decigramas de álcool por litro de sangue, é de se absolver o réu do delito tipificado no art. 306 da Lei 9.503/97, com fundamento no art. 386, II, do Código de Processo Penal” (TJRS, ApCrim 70013521158, 5ª CCrim, rela. Desa. Genacéia da Silva Alberton, j. 13-9-2006).
4. Retroatividade benéfica
Observada a nova redação do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, fica claro em relação à embriaguez ao volante que só haverá processo e eventual condenação se houver prova técnica (bafômetro, por exemplo), indicando a presença de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. A prova testemunhal isolada não é suficiente.
Nesse sentido, a nova redação do art. 306 é mais benéfica que a redação anterior em relação ao réu que responde criminalmente pela conduta em comento, pois cria obstáculo à configuração do ilícito, estabelecendo elementar antes não prevista.
Por força do disposto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, e do parágrafo único do art. 2º do Código Penal, a lei posterior benéfica deve retroagir em favor do réu.
Diante de tal quadro, as investigações criminais em andamento relacionadas com o delito de embriaguez ao volante e os processos penais em curso, onde não se fez prova técnica ou, onde, ainda que feita, não se apurou presença de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, estão fadadas ao insucesso.
Os inquéritos policiais onde não se produziu referida prova não poderão resultar em ação penal; as ações penais em curso, sob tais condições, não poderão ensejar condenação.
5. Conclusão
Em decorrência das mudanças introduzidas com o advento da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, apenas poderá ser chamada a prestar contas à Justiça Criminal “por embriaguez” ao volante, nos moldes do art. 306, caput, primeira parte, do Código de Trânsito Brasileiro, a pessoa que assim desejar ou aquela que for enleada ou mal informada a respeito de seus direitos, e por isso optar por se submeter ou consentir em ser submetida a exames de alcoolemia ou teste do “bafômetro” tratados no caput do art. 277 do mesmo Codex e, em decorrência disso, ficar provada a presença da dosagem não permitida de álcool por litro de sangue.
Em relação à conduta capitulada na parte final do art. 306, caput, (conduzir veículo automotor na via pública sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência), por não ser indispensável prova técnica, a configuração e conseqüente instauração da persecução penal independerá de boa vontade, engodo ou desinformação do agente.
Há uma última questão.
Visando assegurar o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo, diz o art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado…”.
Ora, se o assim denominado “silêncio constitucional” existe para assegurar a regra estabelecida no art. 8º, II, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos, e tem as repercussões amplas que acima anotamos, por questão de lealdade e cumprimento da própria Constituição Federal, todo aquele que for abordado na via pública conduzindo veículo automotor sob suspeita de haver ingerido bebida alcoólica deve ser “informado de seus direitos, entre os quais o de não se submeter a exames de alcoolemia, teste do bafômetro” etc.
Trata-se de decorrência lógica. A regra está prevista na Constituição Federal e é assim que se deve proceder em um Estado de Direito minimamente democrático.
Se a pretensão do legislador era outra, deveria conhecer melhor o sistema jurídico-normativo.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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