Entendendo de uma vez por todas a traição benéfica

Resumo: Quando o acusado confessa a prática do crime e também o imputa a terceiros, facilitando a descoberta de delitos e de seus autores, redundando em diminuição ou isenção de pena, este procedimento (leia-se agir) é a traição benéfica, comumente chamada de delação premiada. Tal instituto se encontrou na prova da OAB do Estado de Goiás (segunda fase/ dezembro de 2004).


Cabe ressaltar as proposições quanto a este instituto advindas dos eminentes professores Fernando Capez e Eugênio Pacelli de Oliveira Contudo, ouso afirmar: o que se transcreve sobre a traição benéfica não se finda somente nestes autores.


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Tal instituto é amplamente utilizado na Itália (pattegiamento) e nos Estados Unidos (bargain). Há quem afirme que o arrependimento posterior, fruto da influência da legislação italiana, inspirou o surgimento da delação.


Esta surgiu efetivamente na década de 90 como meio de enfrentar a criminalidade que assombra o sistema financeiro e ordem tributária e econômica, bem como a criminalidade organizada.


Sparato (apud LAVORENTI, 2000, p.52) nos aclara que


“Seria errôneo pensar que os sucessos antes descritos são o fruto exclusivo do profissionalismo, seguramente acrescido e disseminado, das forças de polícia e/ou magistratura; na realidade, a razão principal de tais sucessos está na explosão do número de colaboradores, como se sabe, apesar das polêmicas que o seu emprego freqüentemente levanta, são sempre e em toda a parte o instrumento mais eficaz de combate ao crime organizado”.


Assim, os benefícios dos colaboradores ante a legislação italiana são a redução de pena, regime mais brando com possibilidade de trabalho externo, além de medidas alternativas a detenção e a proteção para o colaborador e sua família, com troca de identidade, transferência de lugar, entre outros.


No direito brasileiro a delação premiada foi inicialmente disciplinada pela Lei n. 8072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos prevendo em seu artigo 8º, parágrafo único, que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá pena reduzida de um a dois terços”.


Posteriormente, a Lei n. 8137/90, que define crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, igualmente dispôs tratamento à matéria, previsto em seu artigo 16, parágrafo único, que em relação aos crimes “cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através da confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços”.


A Lei n. 9269/96 tratou da delação premiada em relação ao crime de extorsão mediante seqüestro, ao introduzir o §4º no artigo 159 do Código Penal, prevendo a redução da pena de um a dois terços para aquele que denunciar o crime à autoridade, facilitando a liberação do seqüestrado.


No tocante à criminalidade organizada, seguindo a influência transnacional, a Lei n. 9034/95, que dispõe dos meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, reza em seu artigo 6º que “nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.


A Lei n. 9807/99 tentou uniformizar o tratamento dado à delação, prevendo o legislador a possibilidade de concessão de perdão judicial ou a diminuição da pena dos acusados que colaborarem de forma voluntária e eficaz.


Contudo, no nosso ordenamento jurídico, a matéria em questão ainda recebe séria crítica doutrinária.


Os favoráveis asseveram que a delação favorece a prevenção geral e a repressão dos fenômenos criminais de maior gravidade, facilitando a desagregação de enormes organizações criminais (FRANCO, 1992, p.317), se apresentando rico em dois aspectos: para o réu, ao reconhecer seu crime e colaborar, uma vez que se redime de sua participação na infração penal e para a sociedade em virtude da coleta do material relevante para o desmonte do grupo criminoso, pois a sociedade já tendo sofrido a violação com a conduta delituosa do colaborador se sente, em parte, ressarcida com sua colaboração.


Os contrários afirmam que a lei não é didática e não apresenta princípio cívico “decente” ensinando que trair é bom porque reduz a conseqüência do pecado penal (JESUS, 1999, p.2), transformando o direito em instrumento de antivalores, haja vista conceber um prêmio ao traidor, além de ofender o princípio da proporcionalidade (GOMES, 1997, p.347).


Com o fito de dirimir controvérsias, Franco (1992, p.221) ensina que


“Dá-se o prêmio punitivo por uma cooperação eficaz com a autoridade, pouco importando o móvel real do colaborador, de quem não se exige nenhuma postura moral, mas antes, uma atitude eticamente condenável. Na equação “custo-benefício”, só se valora as vantagens que possam advir para o Estado com a cessação da atividade criminosa ou com a captura de outros delinqüentes, e não se atribui relevância alguma aos reflexos que o custo possa representar a todo o sistema legal enquanto construído com base na dignidade da pessoa humana.”


O instituto da colaboração processual foi disciplinado (distinto, portanto, da delação premiada), recentemente no direito brasileiro com a edição da Lei n. 10409/02, buscando um acordo entre o representante do Ministério Público e o investigado colaborador na fase pré-processual.


O mais importante requisito a ser observado pelo Ministério Público quando dos acordos é que a colaboração seja espontânea (SILVA, 2003, p.81).


A voluntariedade da iniciativa do colaborador é um dos pontos mais sensíveis do instituto no plano prático ante a real possibilidade de constrangimentos para que haja uma colaboração eficaz. Se forem previsíveis ocorrências de excessos para extração de uma confissão durante as investigações, nada impede que também possam ocorrer na busca de uma colaboração eficiente, o que conduzirá inevitavelmente à ilicitude da prova obtida, pois uma das decorrências da presunção de inocência no processo penal em relação à matéria probatória refere-se justamente à impossibilidade de obrigar o acusado a colaborar na investigação dos fatos (GOMES FILHO, 1991. p.40).


Ante o exposto, consoante a lição de Silva (2003, p.82)


“Melhor seria a previsão de participação do juiz nessa fase preliminar que, distante do procedimento investigatório, teria melhores condições de avaliar a espontaneidade das palavras do colaborador, conferindo-lhe até maior idoneidade para sua futura valoração em juízo (…) Nos termos limitados da lei, a solução paliativa, por ora, é o Ministério Público disciplinar, por meio de tão normativo, regras básicas de como devem proceder a seus membros para a lavratura do acordo que se refere a lei, sobretudo com vistas a assegurar a espontaneidade das palavras do investigado, como a presença de testemunhas estranhas aos quadros da instituição e da polícia. É imperiosa a necessidade de os agentes estatais respeitarem o livre arbítrio do investigado em relação a uma eventual delação na fase pré-processual, limitando-se a esclarecê-lo das vantagens previstas na lei, pois sua utilização implicará a renúncia do direito ao silêncio de não “auto-incriminação” assim como do direito de silêncio, o que significa na prática o sacrifico de uma garantia fundamental.”


Conforme a lei, o próximo requisito a ser exigido é a relevância das declarações do colaborador, revelando a existência de organização criminosa e permitindo a prisão de um ou mais de seus integrantes ou até mesmo a apreensão da droga ilícita.


Os termos teratológicos adotados pelo legislador no artigo 32, §2º, in fine, da Lei n. 10409/02, poderão ensejar a aplicação do instituto da colaboração para a apuração de qualquer crime de tóxico, até aqueles praticados por organizações criminosas.


Certas amplitudes que permeiam o tratamento para esse instituto afrontam o principio da proporcionalidade, em que a adoção dos meios excepcionais de obtenção de prova deve sempre ser marcados pela estrita necessidade.


Ferrajoli (1998, p.449) ensina que


“En la batalla iluminista contra la ferocidad punitiva, algunos argumentos son acompañados de otros, más morales y humanitarios, pues non hay libertad, escribe Beccaria anticipando Kant cuando las leyes permiten que en ciertos acontecimientos el hombre deje de ser persona a ser considerado cómo cosa”[1].


As declarações sobre fatos sem relevância não devem ser qualificadas para autorizar a concessão do benefício.


O terceiro requisito se encontra no artigo 13 da Lei n. 9807/99, com a finalidade de efetividade da colaboração (SILVA, 2003, p.83).


Trata-se do dever do investigado colaborar de forma permanente com as autoridades, implicando na necessidade de comparecer perante a autoridade policial ou judicial todas as vezes que for solicitada sua presença ou acompanhar os atos de diligência, se assim for imprescindível.


O quarto requisito está elencado no artigo 13, parágrafo único, da Lei n. 9807/99, devendo ser observada a personalidade do colaborador, natureza, circunstância, gravidade e repercussão social do fato criminoso (SILVA, 2003, p.84).


Assim, o Ministério Público deverá avaliar as características do crime e sua repercussão social.


As conseqüências do acordo da colaboração na fase pré-processual são duas, a saber, o sobrestamento da investigação e o posterior arquivamento do respectivo inquérito policial, rompendo-se com o principio da obrigatoriedade da ação penal pública para crimes graves e a redução da pena a ser fixada na sentença final. Trata-se de uma nova causa de diminuição de pena que deverá constar da denúncia para que o juiz possa considerá-la quando da fixação da pena. A lei, contudo, não fixa o quantum para essa redução, devendo ficar a critério dos acordantes.


No tocante à fase processual, deve-se levar em consideração o disposto no artigo 32, §3º da Lei n.10409/02, lembrando que a referida lei não faz menção a um acordo entre colaborador e o Ministério Público, se tratando exclusivamente da delação premiada, com natureza jurídica de perdão judicial ou causa de diminuição de pena.


Melhor seria a previsão de um acordo também na fase processual, pois o legislador ficou na fronteira do nada com coisa alguma quando tentou definir se o disposto é mesmo delação ou colaboração, criando o gigantesco inseto em que foi transformado Gregor Samsa, em “A Metamorfose” de Franz Kafka.


 


Bibliografia acessível para aprofundamento da matéria.

AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, v.7, n.83, 1999.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayón Mahino, Juan Terradillos y Racío Cantarero Bandrés. Madrid: Trotta, 1998.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

GOMES, Luis Flávio; CERVINI, Raúl. Crime organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9034/95) e político criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

GOMES FILHO, Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991.

JESUS, Damásio Evangelista de. Perdão Judicial – colaboração premiada. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n.82, set. 1999.

LAVORENTI, Wilson; GERALDO DA SILVA, José. Crime organizado na atualidade. Campinas: Bookseller, 2000.

PELLEGRINI, Angiolo; JÚNIOR, Paulo José da Costa. Criminalidade organizada. Brasília: Jurídica Brasileira, 2004.

SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.


Nota:

[1] Na batalha iluminista contra a ferocidade punitiva, alguns argumentos são acompanhados de outros, mais morais e humanitários, pois não há liberdade, escreve Beccaria antecipando Kant, quando as leis permitem que em certos acontecimentos o homem deixe de ser pessoa para ser considerado como coisa (N.A).

Informações Sobre o Autor

Tathiana de Melo Lessa Amorim

Advogada. Especialista em Direito Internacional e Penal (Universidade Federal de Goiás).


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Equipe Âmbito Jurídico

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