Andreza Santos Feitoza, advogada atuante desde 2007, professora de Ensino Superior desde 2017, especialista em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale, Mestre em Educação pelo Centro Paula Souza. E-mail: andrezafeitoza@adv.oabsp.org.br
Resumo: A sociedade está em constante transformação, seus valores e dinâmica de funcionamento mudam com frequência cada dia maior, cabendo ao Direito buscar atender as demandas sociais de modo a não ficar obsoleto. A filiação fundada no afeto é fruto da maior valoração, por parte da sociedade, dos vínculos afetivos existentes entre pessoas que se tratam como pai e filho ou como mãe e filho, ainda que não o sejam do ponto de vista biológico ou formal. Nesse contexto a filiação socioafetiva surge como instituto novo no ordenamento jurídico brasileiro, trazendo ainda muitas dúvidas quanto à sua caracterização e reflexos. Por isso, esse estudo pretende abordar alguns aspectos controversos em tal instituto e para isso, realizou-se pesquisa exploratória com levantamento de referencial teórico sobre o tema, além de jurisprudências. Os resultados mostram que há questões muitos relevantes sobre o assunto, ainda não aclaradas, carecendo de melhor observação e discussões por parte da comunidade jurídica.
Palavras-chave: Filiação socioafetiva. Multiparentalidade. Aspectos controversos.
Abstract: Society is constantly changing, its values and operating dynamics change with increasing frequency, and it is up to the Law to seek to meet social demands so as not to become obsolete. Affiliation based on affection is the result of the greater appreciation, on the part of society, of the affective bonds existing between people who are treated as father and son or as mother and son, even if they are not from a biological or formal point of view. In this context, socio- affective affiliation emerges as a new institute in the Brazilian legal system, bringing many doubts about its characterization and reflexes. For this reason, this study intends to address some controversial aspects in such an institute and for that, exploratory research was carried out with a survey of theoretical framework on the subject, in addition to jurisprudence. The results show that there are very relevant issues on the subject, not yet clarified, requiring better observation and discussions by the legal community.
Keywords: Socio-affective affiliation. Multiparenting. Controversial aspects.
Sumário: Introdução. 1.Evolução Histórica Normativa. 2.Conceito e Norma Aplicada. 3.Aspectos Controversos e Discussão. Conclusão. Referências.
Introdução
No que diz respeito à conduta moral, a sociedade está sempre à frente do Direito, de modo que, de regra, não é o Direito que impõe comportamentos à sociedade, mas a sociedade que impõe ao Direito a necessidade de regular os comportamentos valorados na sociedade. Sendo assim, na buscar incessante atender as necessidades sociais, de modo a não ficar obsoleto, pode parecer,
num primeiro momento, que é o Direito que está em constante mudança, mas o fato é que a sociedade é que muda de tempos em tempos.
Pela Teoria Tridimensional do Direito, do ilustre Professor Miguel Reale, no fenômeno jurídico há sempre três elementos: o fato, o valor e norma, sendo “o Direito uma integração normativa de fatos, segundo valores” (REALE, 1994, p. 97). Assim, o fato, que corresponde a conduta, pode receber valor jurídico e virar norma.
Nesse sentido, verifica-se que a norma não antecede o fato, mas sim o oposto, destacando Reale (2000, p.574) que o Direito não é um corpo abstrato de ideias, mas está diretamente ligado à sua realidade sociocultural, não podendo assim ser considerado algo acabado, já que está sempre em formação, vez que é próprio dos valores e por isso não pode se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo.
A filiação socioafetiva aparece num cenário de transformações pelas quais a sociedade passou nos últimos tempos, onde o conceito de família, bem como os valores atribuídos à ela, passaram por significativas transformações até os dias atuais, de modo que as questões relacionadas a afetividade se sobressaem aos aspectos estritamente biológicos. Observa-se aí o fato, que recebe valor, passando a ser normatizado.
Ressalte-se que a existência de relações de afeto paternal/maternal e filial entre pessoas não vinculadas biologicamente certamente sempre existiram, mas somente no contexto contemporâneo esse fato passou a ser valorado juridicamente, talvez, por haver um certo amadurecimento social quanto ao assunto. A doutrina e a jurisprudência já haviam se posicionado quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou normatização sobre o tema.
Não há lei específica sobre o assunto e ainda assim, o tema filiação socioafetiva já é apresenta entendimento pacificado no mundo jurídico, contudo observa-se uma série de questões controversas permeando o tema, motivo pelo qual se propõe abordar o assunto nesse estudo, buscando aprofundar em alguns pontos controversos
Para isso, metodologia adotada nesse artigo foi a pesquisa exploratória bibliográfica, que, para Marconi e Lakatos (2012, p. 43), “[…] pode ser considerada um procedimento formal com método de pensamento reflexivo que requer um tratamento científico e se constitui do caminho para se conhecer a realidade ou para descobrir verdades parciais”, com abordagem qualitativa.
1. Evolução Histórica Normativa
Antes de aprofundar no tema importante contextualizar a evolução histórica normativa dos conceitos ligados ao instituto familiar no cenário brasileiro.
Siqueira (2010, p.1) registra que a primeira Constituição Federal do Brasil, de 1824 “ ignorou o casamento civil, importando-se apenas com a família imperial, permitindo que as demais fossem instituídas livremente. Como era grande o número de católicos, o casamento eclesiástico era comumente o mais praticado”.
O casamento civil passou a ser reconhecido na Constituição de 1891 e na Constituição e 1934 o casamento religioso passou a ser validado para fins civis; a carta magna de 1937 tratava o casamento como algo indissolúvel e só no texto da Constituição de 1967 essa questão foi alterada, permitindo-se assim dissolver o casamento (COSTA, 2006)
A atual Constituição Federal, de 1988, se preocupa em cuidar da família e preceitua em seu artigo 226 que “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 2016).
No que diz respeito ao direito à filiação, Da Silva et al. (2018) consideram que tal direito foi um dos que mais sofreu modificação com a promulgação da CF/88, uma vez que até então havia diferença entre filhos legítimos e ilegítimos, ou seja, entre filhos havidos ou não dentro do casamento, ao passo que no atual texto constitucional, não há mais diferenças de tratamento para filhos, seja qual for a origem deles, os direitos e deveres são os mesmos, é o que se vê no § 6º, do inciso VII, do artigo 227 da CF/1988: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
Nesse sentido, Shikicima (2014) destaca que o Direito de Família brasileiro vem passando por transformações e por quebras de barreiras nos últimos tempos, principalmente no que tange à família tradicional. Observe-se que por mais que o texto constitucional tenha se preocupado em preservar a família, no que diz respeito aos filhos, ainda que esses tenham sio havidos fora do casamento, numa relação extraconjugal, talvez, os interesses deles estão preservados, o que leva a refletir que os interesses dos filhos podem se sobrepor, inclusive aos interesses da “família” como instituição.
E aqui cabe trazer à tona o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto o Artigo 1° inciso III da Carta Magna, como um valor supremo de defesa do Estado e da realização de direitos fundamentais do indivíduo, podendo se sobrepor a quaisquer outros.
Nesse cenário, surge o reconhecimento da filiação socioafetiva, ocasião em que se observa uma valorização por parte da sociedade e do Direito, dos laços de afetividade na configuração da família. Sobre esse assunto, Lôbo (2004, p. 8) entende que “a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação, entre eles. Projetou-se, no campo jurídico constitucional, a afirmação da natureza da família como grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade, tendo em vista que consagra a família como unidade de relações de afeto (…)”
Também valorizando o aspecto afetivo, os tribunais passaram a decidir pelo reconhecimento da filiação socioafetiva, como se observa no julgado a seguir exposto:
MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família -Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes-A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. (TJ-SP-APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento:14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:14/08/2012)
E por fim, pacificando o tema, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento do Recurso Extraordinário 898060 e da análise da repercussão geral 622, decidiu que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, reconhecendo assim, além da possibilidade da filiação socioafetiva, a multiparentalidade, o Instituto Brasileiro de Direito de Família exigiu providências do Conselho Nacional de Justiça a fim de tornar mais fácil o reconhecimento de tal filiação sem a necessidade de judicializar a questão. Assim, surgiu o Provimento nº 63, do Conselho Nacional de Justiça -CNJ (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017), que trata da extra judicialização do reconhecimento da filiação socioafetiva, possibilitando formalizar a questão em cartório, desde que observados alguns requisitos.
2. Conceito e Norma Aplicada
A filiação socioafetiva origina-se de um convívio social do qual surge um vínculo afetivo que traz a posse do estado de filho para determinado indivíduo (DA SILVA et al., 2018).
Suzigan (2015) explica que quando alguém goza de uma situação jurídica que não corresponde com a realidade, detêm a chamada de “posse de estado” e “no caso da posse do estado de filho, as aparências fazem com que todos acreditem existir uma situação real, que não corresponde a verdadeira. É o famoso “pai de criação” ou “mãe de criação, cuja adoção não é formalizada, mas o comportamento familiar o agrega como se filho biológico fosse.”
Para caracterizar a posse do estado de filho, Gonçalves e Lenza (2017, p. 542) destacam a necessidade de observância dos seguintes aspectos “[…] tractatus (quando o interessado é tratado publicamente como filho), nomen (indicativo de que a pessoa utiliza o nome de família dos pais) e fama (quando a pessoa goza da reputação de filha, na família e no meio em que vive)”. Já para Tartuce (2017)
sobre os elementos que caracterizam a posse do estado de filho, o nomen é dispensável. Assim, basta o tractatus e a fama para tal caracterização.
No que diz respeito ao vínculo afetivo que traz a posse do estado de filho, pode ser entendido como o elo de amor, de companheirismo, de convivência espiritual, e apoio moral, de auxílio patrimonial, de divisão de alegrias e tristezas da vida e por isso é maior que o simples elo biológico, e sangue (TARTUCE, 2019).
A filiação socioafetiva que já era reconhecida pela doutrina e jurisprudência, não dispunha de nenhuma previsão normativa ou legal, destacando-se aqui o artigo 1.593 do Código Civil que estabelece “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (grifos nossos), de modo que o termo “outra origem” abriu espaço para inovação, já que não impunha óbice ao parentesco por afetividade, no caso, o socioafetivo.
A inovação veio por meio do Provimento 63/2017, do CNJ, de 14 de novembro e 2017, que dentre outros pontos dispôs sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva. Tal Provimento se fundamentou nos princípios da dignidade da pessoa humana, no direito à busca pela felicidade, afetividade, pluralismo das entidades familiares, solidariedade familiar, Igualdade da filiação, paternidade responsável e melhor Interesse da criança e do adolescente (SALOMÃO, 2018).
A Seção II, do mencionado Provimento 63 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017) é a que trata do tema aqui em análise e coloca algumas exigências para a formalização do ato, sendo uma delas a voluntariedade e a maioridade civil do requerente. O Provimento também veda que o ato de reconhecimento seja realizado por irmãos ou ascendentes, de modo a evitar criar confusão com outros institutos, como a guarda e a tutela (GONÇALVES e LENZA, 2017).
O § 4º, do artigo 10 do mencionado Provimento exige uma diferença mínima de 16 anos de idade entre o requerente e o reconhecendo, da mesma forma que ocorre entre adotante e adotado (§ 3º, do art. 42 do ECA). Nesse sentido Diniz (2006, p. 503) explica que “[…] não se poderia conceber um filho de idade igual ou superior à do pai, ou mãe, por ser imprescindível que o adotante seja mais velho para que possa desempenhar cabalmente o exercício do poder familiar (RT, 500:219). […]”. Outra exigência imposta pelo Provimento 63 é o consentimento do filho maior de 12 anos, e sobre esse ponto Gonçalves e Lenza (2017, p. 585) explicam que , “como a adoção cria direitos e deveres recíprocos, inclusive a mudança de estado familiar do filho, com ingresso deste numa família que lhe é estranha, esse só se sujeitará ele a tais contingências se houver consentido no ato, pelo qual se presume a reciprocidade do afeto (DA SILVA; SILVA, 2018).
O artigo 11, do Provimento 63, em seu § 5º, menciona a necessidade de “[…] anuência tanto do pai quanto da mãe […]” o que deixou a entender que haverá a chamada multiparentalidade, ou seja, uma duplicidade de pai e/ou mãe. Nesse ponto, cabe invocar os Princípios da Proteção e do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente (quando se tratar destes), tratado no artigo 227 da CF/88 e também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pois são seres em formação, tanto física como moral e psicológica e por isso, merecedores de afeto, respeito e cuidados próprios (PERIPOLLI, 2014).
Sobre possibilidade de multiparentalidade, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (2017, on line) esclareceu que:
[…] a norma autoriza que seja feito diretamente no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o reconhecimento de paternidade e maternidade socioafetiva, mesmo existindo pai e mãe registral, pois no registro será possível ter no máximo dois pais e duas mães, sendo quatro no total, não podendo ser três pais e uma mãe e nem um pai e três mães.
Oportuno ainda destacar que o reconhecimento da filiação socioafetiva é irretratável e irrenunciável, ao passo que aquele que reconhecer formalmente alguém como seu filho, como regra, não poderá mais romper este vínculo. É o entendimento da jurisprudência brasileira que considera que após a formação do liame socioafetivo não será possível descontruir a posse de estado de filho confirmada pela paternidade socioafetiva. Senão observa-se:
APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PAI REGISTRAL QUE REGISTROU MESMO SABENDO NÃO SER PAI BIOLÓGICO. INEXISTÊNCIA DE ERRO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA PROVADA. Caso de pai registral que efetuou o registrado sabendo não ser o pai biológico, uma vez que quando passou a se relacionar com a genitora ela já estava grávida. Na hipótese, não há falar e nem cogitar em erro ou em algum tipo de vício na manifestação de vontade. Por outro lado, foi realizado laudo de avaliação social que concluiu expressamente pela existência de paternidade socioafetiva entre o apelante e o filho registral que, hoje em dia, já é até maior de idade. NEGARAM PROVIMENTO. (Apelação Cível Nº 70061285912, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 25/09/2014)[7]
A exceção para essa regra está na comprovação de vício de vontade, fraude ou simulação, devendo tal desconstituição ser pleiteada judicialmente, por meio de ação de impugnação.
3. Aspectos Controversos e Discussão
Neste item serão abordados alguns aspectos controversos, tratados em estudos publicados nos últimos 5 anos, relacionados à filiação socioafetiva.
Casserati (2017) destacou em seu artigo as relações paralelamente constituídas com outros familiares, como avós, tios, primos e irmãos, ao se reconhecer a filiação socioafetiva. Assim, considera que imposições relacionadas ao parentesco biológico, também alcançarão tal parentesco por afinidade de modo que, por exemplo, não poderão casar os irmãos, unilaterais ou bilaterais. Outra consequência importante, observada com a constituição da filiação socioafetiva é que no caso um pai ou mãe não ter condições de pagar pensão alimentícia, poderão ser chamados os avós e ainda, no caso de morte de um filho socioafetivo, tendo este deixado apenas um tio socioafetivo vivo, por exemplo, terá ele direito à sucessão. Destaca o autor que “Isso se faz necessário para que seja atendido o princípio da igualdade e que a declaração de filiação socioafetiva não se torne uma fábrica de pedidos de pensão alimentícia, em que a pessoa busca apenas o bônus, sem querer assumir o ônus”
Sobre o impedimento de casarem irmãos socioafetivos, vale a pena ponderar a possibilidade de incongruência em tal impedimento, se esses supostos “irmãos” não tiverem vínculos afetivos. Tal impedimento relacionado aos irmãos biológicos está, principalmente, ligado à eventuais problemas genéticos que seriam transmitidos à prole, ou seja, justamente relacionado ao vínculo biológico. De modo que no caso de não haver o vínculo biológico e tampouco o socioafetivo, plenamente possível considerar que duas pessoas pudessem querer se relacionar como marido e mulher.
Há ainda divergência sobre o assunto, nos casos em que o pai biológico mantém relação assistencial de alimentos com o filho, mas foi reconhecida a filiação socioafetiva em relação a outro pai, surgindo, nesse caso, a paternidade meramente alimentar.
E sobre essa questão, a ministra Nancy Andrighi já se posicionou entendendo que paternidade socioafetiva e biológica são conceitos diversos e a ausência ou presença de uma não afasta a possibilidade de se reconhecer a outra.
A seguir, segue julgado a respeito do tema:
RECURSO ESPECIAL Nº 878.941 – DF (2006/0086284-0) EMENTA: RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIADIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.- Merece reforma o
acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de pré questionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste deforma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.Recurso conhecido e provido.
No estudo de Da Silva et al. (2018) discutiu-se a possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem do pai da mãe; considerando essa situação possível, uma vez que para àqueles que por qualquer motivo, não puderam registrar formalmente em vida seus filhos, teriam a justiça aplicada no post mortem, já que os cuidados dispensados a estes, era de filho, de modo que nada mais justo, que tenham direitos sucessórios em igualdade com os demais herdeiros.
No mesmo sentido, Nunes (2020) destacou decisões sobre o assunto que, embora de forma bem cautelosa, têm concedido igualdade de direitos para filhos socioafetivos:
“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. INEXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL/BIOLÓGICO. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO PATERNO-FILIAL QUE CARATERIZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INCLUSÃO DO NOME PATERNO. ANULAÇAO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INVENTARÁRIO E PARTILHA. RECURSOS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Os apelantes pretendem a modificação da r. sentença da instância a quo para que seja julgado improcedente o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva e, por consequência seja declarada a legalidade da partilha dos bens anteriormente registrada. 2. Os adquirentes dos direitos sobre o imóvel, objeto do pedido de anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha, alegam, em sede preliminar, a ilegitimidade passiva, sob entendimento de não ser possível incluir o espólio no pólo passivo, mas somente os herdeiros. A preliminar não merece prosperar em virtude da superveniência de fato modificativo do direito que pode influir no julgamento da lide, conforme art. 462 do Código de Processo Civil, com a possibilidade da ocorrência da evicção. 3. A paternidade socioafetiva é construção recente na doutrina e na jurisprudência pátrias, segundo o qual, mesmo não havendo vínculo biológico alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção e liberalidade, tendo por fundamento o afeto. Encontra guarida na Constituição Federal de 1988, § 4º do art. 226 e no § 6º art. 227, referentes aos direitos de família, sendo proibidos quaisquer tipos de discriminações entre filhos. 4. A jurisprudência, mormente na Corte Superior de Justiça, já consagrou o entendimento quanto à plena possibilidade e validade do estabelecimento de paternidade/maternidade socioafetiva, devendo prevalecer a paternidade socioafetiva para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole. 5. No caso dos autos resta configurado o vínculo socioafetivo entre as partes, que se tratavam mutuamente como pai e filho, fato publicamente reconhecido por livre e espontânea vontade do falecido, razão pela qual deve prevalecer o entendimento firmado na sentença quanto à declaração do vínculo paterno-filial, resguardando-se os direitos sucessórios decorrentes deste estado de filiação, e respectiva anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha anteriormente lavrada. 6. Recursos conhecidos e não providos. Sentença mantida integralmente.”
E ainda:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido.”
Ainda sobre a sucessão, Gominho e Cordeiro (2018) destacaram decisão do STF que decidiu pela possibilidade de três ou mais ascendentes concorrerem à herança, desde que, de fato, todos tenham desempenhado a função e pai e mãe. Destarte, caracterizando-se a multiparentalidade “concluiu-se que se deve interpretar contrariamente ao Código Civil para equiparar os quinhões dos ascendentes, independentemente da quantidade de linhas. Tal qual o número de ascendentes de primeiro grau, será o número de linhas sucessórias, ou seja, todos os pais e mães herdarão igualmente.”
No reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem não existe a manifestação de vontade do suposto pai ou da suposta mãe, de modo que esse elemento, que é imprescindível entre vivos, passa a ser secundário depois da morte e permite que um filho herde de dois pais e de duas mães sem maiores exigências, o que por si só já parece um tanto quanto impróprio, por outro lado, para que três pais possam concorrer a herança do filho, exige-se que comprovem que, de fato, desempenharam a função de pai e de mãe.
Já no estudo de Artoni (2019) verificou-se precaução relevante quanto a possibilidade do procedimento previsto no Provimento 63/2017, para reconhecimento da filiação socioafetiva, ser utilizado de forma distorcida e enganosa para fugir do processo de adoção, que costuma ser bastante rigoroso e demorado e atenta para que todos os cuidados sejam tomados para garantir o bem estar da criança ou adolescente e evitando-se que, eventualmente tais menores, ingressem em lares mal-intencionados. Por outro lado, o procedimento para reconhecimento da filiação socioafetiva é bem célere e simples, bastando a declaração de vontade das partes, a diferença mínima de idade entre pais e filhos e o convencimento do oficial registrador quanto a existência da posse do estado e filho. Contudo, os oficiais registradores não dispõem de equipe técnica multidisciplinar composta por psicólogos e assistentes sociais, que possam avaliar a real situação, de sorte que podem surgir casos de atuação simulada de pessoas que busquem com esse instituto ludibriarem crianças e adolescentes para obterem um registro civil de filiação e posteriormente darem a esses “filhos” destinações das mais cruéis.
Esse ponto, certamente é o mais preocupante por eventualmente trazer consequências desastrosas à crianças ou à adolescentes, que estão protegidos por meio da lei da adoção, uma vez que são observados uma série de cuidados, para a formalização do ato, ao passo que, por meio do Provimento 63/2017 do CNJ, malfeitores podem encontrar caminhos para burlarem esse sistema.
Conclusão
As últimas transformações pelas quais passou a sociedade, em especial no que diz respeito aos valores ligados à família, fez sobressair o afeto em relação aos aspectos meramente biológicos. O Direito, na busca constante de atender às demandas sociais trouxe o instituto da filiação socioafetiva, que salvaguardou a posse do estado de filho com base nos vínculos afetivos estabelecidos e atribuiu papel secundário a verdade biológica.
Reflete-se que, independentemente de normatização, reconhecimento jurisprudencial ou doutrinário, pessoas tenham desde o passado se relacionado como pais/mães e filhos(as), mesmo sem a existência de ligação biológica. Quem, por exemplo, nunca ouviu uma criança dizer que tem dois pais? Isso ocorria e ocorre em diferentes contextos, e por vezes, de forma despretensiosa.
O reconhecimento da filiação socioafetiva representa um avanço para o Direito de Família, pois formaliza uma situação já existente, de fato, e tem um sentido muito simbólico e representativo para os indivíduos envolvidos, que ultrapassa, as questões de direitos e deveres formais.
Embora se tenha trazido nesse estudo alguns entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, de certo modo, consensuais sobre tal instituto, acredita-se que há muito o que amadurecer sobre o tema e as teses já estabelecias podem ser aperfeiçoadas e outras, ainda discutidas, a depender do caso concreto, uma vez que ainda há muitos aspectos controversos na filiação socioafetiva, conforme verificou-se nesse estudo.
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