Resumo: O presente trabalho procura estudar o princípio da fraternidade enquanto categoria jurídica. Tendo como início a Revolução Francesa de 1789, busca-se analisar a evolução da trilogia principiológica que marcou a Revolução: liberdade, igualdade e fraternidade; entender o porquê desta última ter ficado à sombra da liberdade e da igualdade. Procura-se valorizar as mudanças sofridas na história da humanidade e do constitucionalismo moderno a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a interdependência entre indivíduos que formam o gênero humano. Apesar da bibliografia escassa e de certa resistência no âmbito jurídico, evidencia-se a força do tema, principalmente com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e com a prática dos operadores do Direito. Este trabalho tem ainda como desafio entender o Direito como um instrumento para uma mudança social, tendo no princípio da fraternidade o seu grande alicerce.[1]
Palavras-chave: Revolução Francesa. Princípio da fraternidade. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Prática dos operadores do Direito.
Abstract: The present research does a study about the principle of the fraternity while legal category. It has as beginning the French Revolution of 1789, it analyzes the evolution of the trilogy that marked the Revolution: freedom, equality and fraternity; understanding the reason of this last one it has been to the shade of the freedom and the equality. It is looked to value the changes suffered in the humanity’s history and the modern constitutionalism from the Universal Declaration of Human Rights and the beginning of the dignity of the person human being, in view of the interdependence between individuals that form the human sort. Although the scarce bibliography and of certain resistance in the legal scope, proves it force of the theme, mainly with the Federal Supreme Court’s jurisprudence and with the practical one of the operators of the Law. This research still has as challenge to understand the Law as an instrument for a social change, having in the beginning of the fraternity its great foundation.
Keywords: French Revolution. Principle of the fraternity. Universal declaration of the Human Rights. Operators’ practical of the Law.
Sumário: Introdução. 1. Fraternidade: contexto histórico. 1.1. A fraternidade francesa. 1.2. A fraternidade no pós-guerra. 2. A fraternidade como categoria jurídica. 3 Um caminho jurídico para uma mudança social. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Refletir sobre a sociedade atual, por vezes, é cair numa discussão acalorada e sem fim. Cita-se filósofos, sociólogos, teólogos, economistas, juristas, enfim, todos que defendem ou sustentam o seu ponto de vista.
Quando a palavra FRATERNIDADE é proferida, remete-se, quase que instantaneamente, ao lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. Entretanto, essa ideia é bem mais antiga e evidencia que o homem, ao escolher viver em sociedade, estabelece com os seus pares uma relação de igualdade. Munir Cury[2] revela que, “Para os romanos, a fraternidade era o relacionamento entre irmãos da mesma família e sobre essa base se modelou o conceito de sociedade particular na qual se colocavam os bens em comum”. Nestes termos, o professor Carlos Augusto Alcântara Machado[3] ensina que a fraternidade remete à ideia de consanguinidade, desde os documentos bíblicos do Antigo Testamento que indicam como irmãos os membros de uma mesma família ou de uma mesma fé, até o Novo Testamento, onde todos são irmãos, pois são filhos do mesmo Pai que está no Céu.
Porém, para o mundo moderno concebido como Estados independentes, é a Revolução Francesa o marco inicial do “surgimento” do princípio da fraternidade. Vale destacar que o célebre lema da Revolução de 1789 somente se tornaria oficial na República revolucionária de 1848. Contudo, foi na Revolução de 1789 que a ideia de fraternidade foi entendida e praticada politicamente, isto é, iniciou-se uma aproximação com os outros dois princípios: liberdade e igualdade.
Dessa forma, enquanto a liberdade e a igualdade tornaram-se categorias políticas e princípios expressos em grande parte das Constituições do mundo ocidental, o pensamento a respeito da fraternidade manteve-se estagnado. Isso porque a fraternidade nunca foi vista como ela realmente é: ora extrapolam e sustentam a fraternidade como um entrelaçamento do homem com os animais e os vegetais, o que se revela politicamente ineficaz; ora restringem seu conceito por conta das suas fortes raízes cristãs, o que afronta o caráter republicano da Revolução de 1848. Esta revolução, inclusive, foi a primeira tentativa de se construir uma universalidade em torno das várias interpretações descristianizadas do conceito de fraternidade.
Entende-se que, por mais que os ordenamentos jurídicos proclamem a defesa da liberdade e da igualdade, percebe-se que a sua plena realização ainda está longe de ser alcançada. Parecem bastante atuais as palavras de Jean-Jacques Rousseau[4]: rigorosamente nunca existiu verdadeira democracia, e nunca existirá. Talvez porque estejam desprovidas da fraternidade. Isso gera uma dúvida não só sobre o que realmente seja a liberdade, a igualdade e a fraternidade como também dificulta a garantia dos direitos fundamentais para todos os cidadãos, independentemente de grupo, classe ou raça. Pois, segundo Ana Maria de Barros[5], a relação dinâmica entre os três princípios dá o verdadeiro embasamento às políticas relacionadas aos direitos humanos.
Até John Rawls[6], sob a perspectiva do princípio da diferença, ressalta a importância da fraternidade, mesmo adotando outra linguagem, o pensador acredita ser a fraternidade elemento imprescindível do novo contratualismo, e a adota sob o “codinome” princípio da diferença[7].
Vê-se a conservação dos valores democráticos fincados no princípio da fraternidade. Ela é capaz de elevar a estima social, superar as relações servis, introduzir o senso de fraternidade cívica e de solidariedade social. Sob esta ótica, é a fraternidade o elemento capaz de mudar a sociedade. Ronald Dworkin[8] talvez vislumbrasse uma saída para o conflito entre liberdade e igualdade nas sociedades globais se considerasse a fraternidade o elemento que proporciona o diálogo entre os outros dois princípios:
Se utilizado para o bem comum, o princípio da fraternidade pode ajudar na compreensão da liberdade segundo John Locke[9], isto é, formadora de uma comunidade, uma sociedade de homens conscientes politicamente e que, de fato, detenha o poder.
O objetivo da fraternidade é o mesmo do direito, a saber: a paz. E é exatamente por ser desafiador alcançar este objetivo que se exige do cidadão e dos operadores do Direito uma luta incansável. Como ressalta Rudolf Von Ihering[10], “Enquanto o direito tiver de rechaçar o ataque causado pela injustiça – e isso durará enquanto o mundo estiver de pé – ele não será poupado […] O direito não é mero pensamento, mas sim força viva”.
Na busca por essa mudança social, o professor Dimas Salustiano[11] defende o princípio da fraternidade como garantidor de um futuro melhor, e o Direito é um caminho que necessita de uma reflexão a esse respeito, pois o princípio da fraternidade exige uma discussão, um debate, exige uma segunda pessoa com quem confrontar a ideia de uma justiça mais humana, exige uma reflexão moral, como bem assinala Michael Sandel[12]:
O mundo contemporâneo associa o tema fraternidade a um discurso religioso ou político, extrajurídico ou meta jurídico. Todavia, entende-se a fraternidade como um caminho também jurídico e capaz de transformar as relações interpessoais. Aliás, o mundo jurídico é o meio social mais necessitado de fraternidade, pois a falta de sensibilidade dos membros do Poder Judiciário é notória. Este Poder esconde-se atrás do princípio da legalidade para por fim aos processos e não buscar soluções para os conflitos que envolvem a sociedade. Conseguir enxergar o outro como seu semelhante, independentemente do cargo que ocupa ou da posição social, é o grande desafio que se apresenta no mundo das leis. Julgar, acusar e defender em nome da paz social é algo desafiador num mundo que exige de seus habitantes sempre um diferencial, em muitos casos sem levar em consideração a questão moral de suas atitudes. E é este o desafio principal: investigar, à luz do princípio da fraternidade, de que maneira o Direito pode ajudar na melhoria das relações sociais.
1. FRATERNIDADE: CONTEXTO HISTÓRICO
1.1. A fraternidade francesa
Temos a visão romântica da Revolução Francesa, resumida em seus três célebres pilares, a saber: liberdade, igualdade e fraternidade.
A revolução em questão, datada de 1789, não é o primeiro momento histórico no qual a fraternidade é citada. Houve ascensões e declínios até se constituir de maneira definitiva no art 2° da Constituição de 27 de outubro de 1946. Podemos buscar nos primórdios do cristianismo exemplos de exercício deste princípio, contudo, é na Revolução Francesa que surge o tema “fraternidade” com um viés político, aliado da liberdade e da igualdade. Como analisa Antonio Maria Baggio[13]: “O que é novo na trilogia de 1789 é a fraternidade adquirir uma dimensão política, pela sua aproximação e sua interação com os outros dois princípios que caracterizam as democracias atuais: a liberdade e a igualdade. Porque, de fato, até antes de 1789 fala-se de fraternidade sem a liberdade e a igualdade civis, políticas e sociais; ou fala-se de fraternidade em lugar delas. A trilogia revolucionária arranca a fraternidade do âmbito das interpretações – ainda bem que matizadas – da tradição e insere-a num contexto totalmente novo, ao lado da liberdade e da igualdade, compondo três princípios e ideais constitutivos de uma perspectiva política inédita. Por isso, a trilogia introduz – ou, ao menos, insinua – um mundo novo; um novum que questiona inclusive o modo como o cristianismo entendera até então a fraternidade; um novumque é anunciado e logo em seguida decai, pelo desaparecimento, quase que imediato, da fraternidade da cena pública. Permanecem em primeiro plano a liberdade e a igualdade – geralmente mais antagônicas do que aliadas (antagonistas justamente por serem desprovidas da fraternidade) -, que, de algum modo, estão integradas entre si no seio dos sistemas democráticos; mas que se tornam também, em alguns lugares, sínteses extremas de duas visões de mundo, de dois sistemas econômicos e políticos que disputarão o poder nos dois séculos seguintes.
Liberdade e igualdade conheceram, assim, uma evolução que as levou a se tornarem autênticas categorias políticas, capazes de se manifestarem tanto como princípios constitucionais quanto como ideias-força de movimentos políticos. A ideia de fraternidade não teve a mesma sorte. Com exceção do caso francês, como princípio político, ela viveu uma aventura marginal, o percurso de um rio subterrâneo, cujos raros afloramentos não conseguiam irrigar sozinhos, a não ser esporadicamente, o terrenos político. Enfim, o pensamento democrático a respeito da fraternidade manteve-se em silêncio”.
A ideia de fraternidade que circulava em 1790 tinha a intenção de estabelecer um relacionamento mais estreito entre os cidadãos franceses, haja vista a existência dos feudos da velha França que não se constituía em um território comum a todos. Camille Desmoulins cita a Festa da Federação de 14 de julho de 1790 como o primeiro momento no qual os três pilares da Revolução aparecem juntos, numa possibilidade de vivência e convivência harmoniosa entre diferentes. “Chega um jovem, tira o paletó, coloca sobre ele os seus dois relógios, toma uma enxada e vai trabalhar num lugar distante. Mas e os seus dois relógios? – Ah! Não existe desconfiança entre os próprios irmãos. – E seus pertences, deixados sobre a areia e as pedras, são tão invioláveis quanto um deputado da assembleia nacional”. (DESMOULINS, 1989 apud BAGGIO, 2008, p. 27-28).
Juntos oficialmente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade apareceram no decreto de organização das Guardas Nacionais, de 5 de dezembro de 1790, em seu artigo 16: “[…] Eles carregarão no peito estas palavras bordadas: ‘O povo francês’, e acima: ‘Liberdade, Igualdade, Fraternidade’. Essas mesmas palavras serão inscritas em suas bandeiras, que trarão as três cores da Nação”. (ROBESPIERRE, 1989 apud BAGGIO, 2008, p. 28).
Finalmente completado o período de formação da trilogia, esperava-se que o povo francês desfrutasse de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna. Entretanto, a fraternidade ganhou interpretações diversas e dificultou o caminho da Revolução. Em um primeiro momento, a fraternidade serviu para unir, vide Festas da Federação; já em um segundo momento serviu para separar, quando da morte do rei e a tomada do poder pelos jacobinos. É o que nos ensina Baggio[14]: “É evidente que, na época do Terror, a fraternidade se distanciava totalmente do seu verdadeiro significado. Só assim se explicam as palavras de Chamfort, segundo o qual a trilogia seguida da expressão “ou a Morte” nada mais significava do que: “Seja meu irmão, ou então eu o mato”. Comenta o historiador Alphonse Aulard que, certamente, não era esse seu significado original, que, na verdade, pretendia declarar a disposição de morrer para defender a liberdade: “Mas não há duvidas de que, sob o Terror, as palavras ‘ou a Morte’ foram tomadas também, e especialmente, em outro sentido, no sentido de uma ameaça de morte aos aristocratas” (Aulard, op. Cit., p. 23). De fato, com o fim do Terror, tomou corpo um movimento de opinião que obrigou cancelar, nos monumentos, a maioria dos dizeres que associavam a fraternidade à morte. A fraternidade, no seio da “Grande Revolução”, havia cumprido seu ciclo”.
1.2. A fraternidade no pós-guerra
Documentalmente, a fraternidade voltou ao cenário internacional com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Influenciados pelos acontecimentos que envolviam as ideologias nazista e fascista, era necessário redigir um documento capaz de por em evidência a dignidade da pessoa humana; revelar a importância do ser humano perante o Estado.
A Carta da ONU, aprovada em junho de 1945, estabelecia já em seu artigo 1° a finalidade de “promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Entretanto, não havia uma declaração sobre os direitos humanos. Prometeu-se então a redação de um International Bill ofHumanRights.
Passou-se a discutir o formato dessa Declaração. Em um primeiro momento, pensou-se em um ato legislativo da Assembleia Geral. Mas essa ideia logo foi refutada por conta da limitação dos poderes da Assembleia; em seguida, buscou-se complementar a Carta da ONU com a Declaração, se utilizando do comando que previa emendas à Carta, desde que aprovadas e ratificadas pelo voto de dois terços dos membros da ONU. Essa medida também não obteve sucesso pelo repúdio ao caráter vinculativo que os direitos humanos poderiam ter e levar a ONU a interferir em questões internas de um Estado. Por fim, decidiu-se por uma declaração-manifesto de princípios que definiriam a natureza e o conteúdo dos direitos e das liberdades fundamentais, bem como a natureza e o alcance das garantias internacionais que deveriam ser postas em prática.
O processo de redação da Declaração teve início com o Conselho Econômico e Social da ONU em 16 de fevereiro de 1946. Em junho de 1947 foi proposto o Artigo 1° com a seguinte redação: “Todos os homens são irmãos. Dotados de razão e consciência, são membros de uma única família. São livres e têm a mesma dignidade e os mesmos direitos”.
Vê-se a necessidade de incutir desde o início da Declaração um espírito fraterno entre os seres humanos. Mas este artigo não era ponto pacífico, principalmente pelo desejo de inserir no Preâmbulo da Declaração um texto semelhante. Depois de vários debates, em dezembro de 1947, foi aceito pela maioria o seguinte texto: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados pela natureza de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros como irmãos”.
Esse texto passou pela Comissão e pelo Terceiro Comitê da Assembleia Geral com pequenas alterações: substituiu-se “homens” por “seres humanos” e “como irmãos” por “em espírito de fraternidade”.
Para aprovação do Artigo 1° no Terceiro Comitê da Assembleia Geral, vale destacar as palavras de R. Cassin, membro do Comitê de Redação da Declaração. “Nos últimos dez anos, milhões de homens perderam a vida justamente porque esses princípios foram cruelmente desprezados. A barbárie, que o homem considerava ter com toda certeza sepultado, conseguiu voltar a se espalhar enormemente pelo mundo. Era essencial que as Nações Unidas proclamassem novamente à humanidade os princípios que chegaram tão perto da extinção e rejeitassem explicitamente a abominável doutrina do fascismo”. (Officials Records of the Third Session of the General Assembly apud AQUINI. In BAGGIO, 2008, p. 132).
Tendo sido aprovada no Terceiro Comitê com vinte e seis votos a favor, seis contra e dez abstenções, o Artigo 1° bem como toda a Declaração seguiram todos os trâmites legais até a aprovação definitiva em Assembleia Geral em 10 de dezembro de 1948.
Estavam assim, lançadas as bases para entender e colocar em prática a fraternidade como categoria jurídica.
2. A FRATERNIDADE COMO CATEGORIA JURÍDICA
A Magna Carta brasileira de 1988, “apelidada” de Constituição Cidadã, desde o seu preâmbulo vislumbra uma sociedade fraterna. “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Essa Constituição mostra toda a sua força neste Preâmbulo, que se apresenta como um grande princípio, uma identidade. Segundo o Doutor Paulo Ferreira da Cunha[15]: “Este preâmbulo da Constituição brasileira afigura-se-nos a grande cláusula pétrea por detrás das cláusulas pétreas elencadas expressamente. E não esqueçamos que estas cláusulas têm de existir, sob pena de banalização e rebaixamento constitucionais: são as muralhas que defendem a cidadela constitucional contra as investidas dos poderes fugazes e o turbilhão do momento, de cada momento”.
Nota-se que no preâmbulo da Constituição brasileira em vigor os direitos individuais interagem com os sociais, em busca do bem-estar, segurança e desenvolvimento, tendo por base a liberdade, a igualdade e a justiça, capazes de construir uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
O artigo 3°, inciso I, corrobora essa linha de pensamento:
“Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;”[…]
Em sua tese de Mestrado, Marieta Izabel Martins Maia[16] observa uma caminho sendo trilhado até o Direito Fraterno: “Nossa acuidade bibliográfica levou-nos a observar que no momento do Estado Liberal vivenciamos a fase declaratória dos Direitos individuais, no Estado Social, a fase garantista dos Direitos sociais, e provavelmente, estamos propensos, com o Estado Democrático de Direito e de Cultura, à concretização do Direito Fraterno, coroado com a premissa de ser o Direito das relações interpessoais, por meio da qual se busca, efetivamente, formar uma sociedade plural, onde se respeitam as diferenças de credo, sexo, cor e religião”.
Portanto, é a dignidade da pessoa humana o valor requisitado por toda a sociedade, pois se houver uma aproximação entre o Estado e a sociedade, o indivíduo terá condições adequadas para o seu desenvolvimento enquanto cidadão, e este, engajado com a mudança social, atuará de modo que o Direito se adeque aos interesses coletivos e individuais, resultando em um processo cristalino de surgimento do Direito Fraterno.
O grande jurista Carlos Ayres Britto[17] nos ensina que a fraternidade “(…) é o ponto de unidade a que se chega pela conciliação possível entre os extremos da Liberdade, de um lado, e, de outro da Igualdade. A comprovação de que, também nos domínios do Direito e da Política, a virtude está sempre no meio (medius in virtus). Com a plena compreensão, todavia, de que não se chega à unidade sem antes passar pelas dualidades. Este, o fascínio, o mistério, o milagre da vida”.
A consagração da fraternidade pode proporcionar uma sociedade mais feliz, menos extremista, em busca daquilo que une a todos os seres humanos e não daquilo que os distancia, pois a primordial função do direito é a tutela da dignidade da pessoa humana, haja vista que o homem é anterior ao Direito e ao Estado e, por isso, tem o direito de ser reconhecido como pessoa humana.
Toda pessoa só pode ser considerada ser humano se detentor de dignidade. E é essa pequena-grande parte, o ser humano, que forma algo gigantesco: a humanidade. Portanto, pode-se dizer que em cada ser humano está presente a humanidade inteira. Gandhi, em sua luta pacífica pela independência da Índia, dizia que “eu não posso ferir o outro sem me ferir”. Essa é a ideia do “um” que é o “todo”; o “singular” que é “plural”.
Entretanto, essa unidade não pode ser considerada em um plano estático da sociedade. Ao contrário, essa unidade necessita de uma dinamicidade capaz de realizar a pessoa humana dentro de uma comunidade, onde todos possuem igualdade de dignidade.
Independentemente da posição ideológica, o homem, e porque não, a dignidade humana são os responsáveis pela sua realização enquanto humanidade. O ateu Jean-Paul Sartre escreveu que “o homem está constantemente fora de si mesmo, e é projetanto-se fora de si e perdendo-se para além de si mesmo que ele se realiza; por outro lado, é perseguindo fins transcendentes que ele pode existir. Assim, ele se revela como transcendência e é, em si mesmo, o núcleo e o centro dessa transcendência. Só existe o universo do homem – o universo da subjetividade humana. Esse vínculo entre transcendência, constitutiva do homem (transcendência não no sentido de que o homem vai para além de si mesmo, não no sentido de que Deus é transcendente), e subjetividade (no sentido de que o homem não se encerra em si mesmo, mas está sempre presente no universo humano) é o que se chama ‘humanismo existencialista’. É humanismo porque o homem, como único legislador, faz sua própria escolha e porque, na busca constante de fins fora de si mesmo na forma de libertação, é que ele se realizará como verdadeiramente humano”. (SARTRE, 2007 apud SILVA, 2010. In SOUZA; CAVALVANTI (coordenadores), 2010, p. 8)
Por outro lado, o católico Jacques Maritain diz: “Para deixar as discussões abertas, digamos que o humanismo (e uma tal definição pode ser desenvolvida segundo linhas muito divergentes) tende essencialmente a tornar o homem mais verdadeiramente humano, e a manifestar sua grandeza original fazendo-o participar de tudo o que pode enriquecer na Natureza e na história (‘concentrando o mundo no homem’, como dizia mais ou mesmo Scheler, e ‘dilatando o homem no mundo’); ele exige ao mesmo tempo que o homem desenvolva as virtualidades nele contidas, suas forças criadoras e a vida da razão, e trabalhe por fazer das forças do mundo físico instrumento de sua liberdade”. (MARITAIN, 1945 apud SILVA, 2010. In SOUZA; CAVALVANTI (coordenadores), 2010, p. 9)
Nessa dimensão, a relação entre os sujeitos são analisadas sob um outro ângulo e, sob esta nova ótica, o Direito é um instrumento fundamental para propiciar relações mais adequadas entre os seres humanos, pois já não se pode conceber uma relação jurídica que estabelece a defesa dos interesses do indivíduo e menospreza as exigências da relação entre eles.
Segundo Marieta Maia[18], “Os Estados, o Direito e a sociedade, quando consagraram os princípios da liberdade e da igualdade, reforçaram somente os direitos individuais. E isto não é suficiente, não estabelece posições e não fornece respostas satisfatórias e adequadas para assegurar uma vida de relações na comunidade, pois se prescinde de outro princípio fundante: a fraternidade.
Esses três princípios são solidários uns com os outros, mutuamente, apoiam-se. Caso contrário é difícil a edificação total da sociedade, ficaria incompleto o prédio social, na medida em que se a fraternidade for praticada por si só, sem a igualdade e a liberdade, não há verdadeira fraternidade, tornar-se-ia falsamente prestativa aos seus fins; por sua vez, a liberdade sem a fraternidade, seria libertinagem, pois é com o princípio da fraternidade que se concretiza a dignidade da pessoa humana e, por conseguinte o mutuo respeito das liberdades individuais e coletivas, cerceando-se em limites fraternos; e, por fim, a igualdade sem a fraternidade provavelmente, pode conduzir à tirania, pois se a igualdade busca a liberdade, ensejará uma espécie de despotismo, onde os mais fracos quererão aniquilar os mais poderosos para assumirem o seu lugar e poder”.
A construção de uma sociedade conforme objetiva a Constituição brasileira (livre, justa e solidária), passa pela atuação do Direito também em sua dimensão humanista e interpessoal, afinal, todos têm o direito e o dever de contribuir para o bem do próximo, através da integração cívica e comunitária.
A fraternidade está expressa em outros ordenamentos jurídicos que não só o brasileiro. Carlos Augusto Alcântara Machado[19] registra em seus escritos sobre a fraternidade como categoria constitucional: “Na vigente Constituição lusitana, logo no preâmbulo, o constituinte português registrou um relevante compromisso: fazer de Portugal um país mais fraterno (grifo do autor). No art. 1°, um importante empenho: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
No decorrer do seu texto, por diversas vezes (arts. 63°, 66°, 71° e 73°) o substantivo solidariedade foi empregado no trato de temas como deficientes, meio ambiente, educação, e economia. Utilizou o texto magno português expressões como solidariedade entre gerações; solidariedade social, espírito de tolerância e compreensão mutua.
É possível encontrar a presença efetiva da fraternidade ou da solidariedade, expressa ou implicitamente, também na Constituição Italiana.
Eis alguns dispositivos que indicam, no particular, o compromisso da Carta Constitucional italiana (sem os destaques no original):
Art. 2. A República reconhece e garante os direitos invioláveis do homem, quer como ser individual quer nas formações sociais onde se desenvolve a sua personalidade, e requer o cumprimento dos deveres inderrogáveis de solidariedade política, econômica e social.
Art. 4. A República reconhece todos os cidadãos o direito ao trabalho e promove as condições que tornem efetivo esse direito. Todo cidadão tem o dever de exercer, segundo as próprias possibilidades e a própria opção, uma atividade ou uma função que contribua para o progresso material ou espiritual da sociedade.
Art. 41. A iniciativa econômica privada é livre. A mesma não pode se desenvolver em contraste com a utilidade social ou de uma forma que possa trazer dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana. A lei determina os programas e os adequados controles, a fim de que a atividade econômica pública e privada possa ser dirigida e coordenada para fins sociais”.
Constata-se que ao Direito já não cabe mais o papel de ciência tecnicista, positiva e dogmática. O século XXI exige uma busca incessante pela paz social.
Em se tratando do ordenamento jurídico italiano, ele não traz explicitamente o princípio da fraternidade, mas possui subsídios para enxerga-lo realmente vivo na Constituição daquele país. Para tanto, a Itália se serve do princípio personalista, matriz reconhecida do princípio da solidariedade, que se expressa principalmente nos artigos 2° e 3°.
No personalismo constitucional, coloca-se em evidência o caráter naturalmente social e político da pessoa, onde a identidade se constrói somente na relação social com o diferente de si. O homem não serve ao Estado, mas o Estado deve ser para o homem. Portanto, não é a autonomia e a independência que caracterizam o homem, mas a interdependência estrutural.
FilippoPizzolato[20] demonstra que “[…] o processo de constituição da personalidade desenvolve-se e aperfeiçoa-se por intermédio das estruturas da sociedade. Coerentemente com essa convicção, o Artigo 2° da Constituição reconhece e promove amplamente as “formações sociais”, em que a personalidade humana se desenvolve. Pertencer a uma comunidade é constitutivo e estrutural da identidade humana, não um dado acessório ou opção eventual, voluntarista”.
Dessas linhas gerais sobre o personalismo constitucional, encontra-se no ordenamento jurídico italiano o princípio da fraternidade. Afirma Pizzolato[21]: “[…] Justamente por ser a fraqueza aquilo que identifica os homens entre si, não existe para a solidariedade o caminho do paternalismo, mas tão somente o da fraternidade. O personalismo não corre o risco, ao menos no campo teórico, de cair no assistencialismo, pois não há nele uma separação entre uma categoria de “fortes” que, de maneira paternalista, deve prestar socorro, e uma categoria de “fracos”, destinatária do socorro. O que há é uma interdependência e uma fraternidade, na qual “todo cidadão tem o dever de desenvolver […] uma atividade ou uma função que concorra para o progresso material ou espiritual da sociedade” (Artigo 4° da Constituição); em outras palavras, num quadro de indispensável solidariedade. A recusa de qualquer distinção definitiva e definidora entre fortes e fracos requer, portanto, da sociedade e de seus membros um esforço de promoção do fraco, e requer do fraco que participe dos processos de construção social. O Artigo 3°, alínea 2, da Constituição compromete a República, composta de administração pública e sociedade civil, com a tarefa de “remover os obstáculos de ordem econômica e social” que “impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país”.
A responsabilidade social configura-se como dimensão constitutiva da liberdade, e direitos e deveres são fundidos até se tornarem indistintos (Artigo 2° da Constituição). De fato, o indivíduo deve incluir novamente entre suas opções de vida não apenas seu próprio bem, mas o bem comum; pois, causando dano à comunidade, na realidade danifica o tecido de solidariedade do qual ele mesmo extrai a seiva vital”.
A fraternidade se exprime na correlação, já mencionada, entre direitos e deveres. Essa interdependência estrutural estabelece a Regra de Ouro[22]: fazer aos outros aquilo que gostaria que fosse feito a você e não fazer aos outros aquilo que não gostaria que fosse feito a você.
Pizzolato[23]aponta na Constituição de seu país esse “espírito fraterno”: “[…] Na esfera constitucional, já não se impõe à liberdade apenas a obrigação de não causar prejuízo à liberdade alheia, mas o dever (in primis mediante o trabalho) de concorrer “para o progresso material ou espiritual da sociedade” (Artigo 4°); já não se exige apenas da liberdade econômica que não seja exercida “de modo a causar dano à segurança, à liberdade, à dignidade humana”, mas também que “possa ser orientada e coordenada para fins sociais” (Artigo 41 da Constituição); já não se reconhece à propriedade apenas o título de direito inviolável (jus utendiac abutendi), mas é preciso garantir-lhe sua “função social”, e isso não somente mediante expropriação, mas também por meio da regulamentação do que é facultado ao direito de propriedade (Artigo 42 da Constituição). Não podemos, porém, afirmar que esses elementos do sistema constitucional já tenham sido acolhidos e plenamente aplicados”.
Assim, está demonstrada a presença e a importância do princípio da fraternidade em vários ordenamentos jurídicos ocidentais e a necessária aplicação deste princípio para a concretização da justiça social.
3. UM CAMINHO JURÍDICO PARA UMA MUDANÇA SOCIAL
Não é possível estabelecer o princípio da fraternidade como princípio constitucional e, por isso, categoria jurídica, sem ter a noção de democracia e participação social. Tendo à frente a fraternidade, a cidadania e essa grande pólis que é o mundo moderno não podem funcionar como um amontoado de diferentes identidades culturais, mas como um ambiente de encontro com o outro, de criação de novos modos de existência e de sociedade, em busca de uma grande comunidade. Aliás, a palavra comunidade é bem definida por Zygmunt Bauman[24]: “As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa comunidade”. Se alguém se afasta do caminho certo, frequentemente explicamos sua conduta reprovável dizendo que “anda em má companhia”. Se alguém se sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade, sentimos, é sempre uma coisa boa.
Os significados e sensações que as palavras carregam não são, é claro, independentes. “Comunidade” produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra “comunidade” carrega — todos eles prometendo prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar mas que não alcança mais.
Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros (com certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nos entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem”.
Na comunidade, os ideais democráticos e a garantia dos direitos humanos estão resguardados. Mas esta segurança encontrada na comunidade sempre está ameaçada quando se está diante de uma crise política. Parece bem atual a análise de Paulo Bonavides[25]: “Com efeito, a crise politica de uma Nação pode percorrer três distintos graus nesta escala: em primeiro lugar é crise do Executivo, que normalmente chega ao seu termo quando se muda a chefia do governo ou advém, de maneira bem-sucedida, uma nova política; a seguir, crise constitucional – de solução ainda possível – mediante uma Emenda à Constituição ou, nos casos mais graves e excepcionais, por via da reforma total ou da promulgação doutra lei maior; enfim, se converte ela em crise constituinte, a de terceiro e derradeiro grau, quando deixa de ser tão-somente a crise de um Governo ou de uma Constituição para se transformar em crise das instituições ou da Sociedade mesma, em seus últimos fundamentos”.
E continua com um exemplo já vivido pelo Brasil[26]: “Nunca, porém, as três conjunturas se conjugaram com tamanho ímpeto e força como nas décadas da segunda metade do século XX. Uma só época constitucional – a do transcurso da Constituição de 1946 – coloca-nos diante do desastre de legitimidade a que ontem chegamos e do qual, em nossos dias, ainda não emergimos.
Efetivamente, durante aquele singular período de nossa existência, vimos primeiro uma crise de governo ou crise executiva, quando Getúlio Vargas entrou em conflito com o Congresso e, não podendo resolver a pendência, suicidou-se.
A seguir, decorridos menos de dez anos, passamos por uma crise constitucional, com a renuncia de Jânio Quadros e a introdução do parlamentarismo do Ato Adicional. Já não se tratava então de substituir um Governo, mas de alterar a própria forma de Governo, numa experiência, aliás, malograda.
Finalmente, não se resolvendo a crise constitucional, mediante o retorno ao presidencialismo, cedo ela se converteu na mais funesta de todas as crises: a crise constituinte, que recai sobre o Governo, a Constituição e a Sociedade.
Nessa crise submergimos durante todo o período autoritário em que o país se governou por Atos Institucionais e decretos-leis.
Toda vez que os desesperos coletivos somam os infortúnios gerados pelas três crises, produz-se a desmoralização política da Sociedade e os direitos humanos fundamentais padecem muito com isso”.
A crise política tira a sociedade do raio de luz do fim do túnel, torna a sociedade extremista e intolerante. Por isso, é fundamental a afirmação da fraternidade enquanto categoria jurídica capaz de produzir uma mudança social. Para constatar isso, entende-se necessária a demonstração de julgados pela Corte Suprema do Brasil e de experiências dos operadores de Direito que, tendo como foco o princípio da fraternidade, contribuem para a mudança do status quo da humanidade.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.768-4/DF, ajuizada em 1° de agosto de 2006, teve como Relatora a Ministra Cármen Lúcia e nela refere-se ao Direito Fraterno:
“3. Alega a Autora que a presente Ação Direta ‘visa apenas que o Supremo consagre uma interpretação (ou elimine uma dentre as possíveis do art. 39 do Estatuto do Idoso Lei n. 10.741/2003) de que seja compatível com inteligência harmônica dos arts. 30, V; 37, XXI; 175; 195, § 5º; 203, I e 230, caput, e § 2º, todos da Constituição, de forma a desvendar os limites e possibilidades de aplicação da regra de gratuidade no cenário do serviço de transporte urbano prestado indiretamente pelo Município, isto é, no regime de permissões e concessões.’
a) o direito daqueles que têm mais de 65 anos ao transporte gratuito ‘encarna uma decisão política de amparar a velhice como valor constitucional, por isso deve ser classificado ou como direito social de uma fatia determinada da população, logo de segunda geração; ou como direito de solidariedade ou fraternidade, ligado à assistência social, e por isso pertencente à classe dos direitos de terceira geração, (…) o que já [seria] bastante para inferir que a sua implementação pelo poder público municipal, sempre a atrair prestações positivas de cunho oneroso, submeter-se-á à luz da chamada reserva do possível’;
5. Insiste a Autora que esse direito do idoso não seria de primeira, mas de segunda ou até mesmo de terceira dimensão. Essa discussão não tem cabimento aqui para o desate da questão posta a exame. Primeiro, porque independentemente da classificação, como consignado na Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a participação do idoso na comunidade. Segundo, porque essa participação demanda, salvo em casos específicos, a possibilidade de os idosos se locomoverem. Terceiro, porque a dignidade e o bem-estar dos idosos estão fortemente relacionados com a sua integração na comunidade para que se possa dar a sua participação na vida da sociedade.
Não é aboletado e aquietado em razão de sua carência para pagar transportes por meio dos quais possam se locomover que se estará garantindo ao idoso o direito que a Constituição lhe assegura.
6. O transporte gratuito, especialmente para os idosos que sobrevivem de aposentadorias insuficientes para o suprimento de suas necessidades básicas, apresentasse como verdadeiro suporte para que possam exercer, com menores dificuldades, seu direito de ir e vir.
8. A gratuidade do transporte coletivo representa uma condição mínima de mobilidade, a favorecer a participação dos idosos na comunidade, assim como viabiliza a concretização de sua dignidade e de seu bem-estar, não se compadece com condicionamento posto pelo princípio da reserva do possível. Aquele princípio haverá de se compatibilizar com a garantia do mínimo existencial, sobre o qual disse, em outra ocasião, ser “o conjunto das condições primárias sócio-políticas, materiais e psicológicas sem as quais não se dotam de conteúdo próprio os direitos assegurados constitucionalmente, em especial aqueles que se referem aos fundamentais individuais e sociais (…) que garantem que o princípio da dignidade humana dota-se de conteúdo determinável (conquanto não determinado abstratamente na norma constitucional que o expressa), de vinculabilidade em relação aos poderes públicos, que não podem atuar no sentido de lhe negar a existência ou de não lhe assegurar a efetivação, de densidade que lhe concede conteúdo específico sem o qual não se pode afastar o Estado”. (grifo nosso)
Ao votar com a Relatora, o então Ministro Carlo Ayres Britto alegou o advento de um “Constitucionalismo Fraternal”, pois “não se trata de um direito social, mas de um direito fraternal para amainar direitos tradicionalmente negligenciados”.
Quando julgou o acesso a medicamentos e tratamento (STA 223-AgR, julgamento em 14 de abril de 2008), a Corte Suprema decidiu que no caso de um acidente que resultou em um estudante tetraplégico o custeio das cirurgias e da implantação de marcapasso caberiam ao Estado de Pernambuco, pois a omissão de segurança se mostrou latente. Nas palavras do Ministro Celso de Mello, a observância da segurança são “medidas que muitas vezes os responsáveis pela segurança pública nos estados desconhecem ou fazem de conta que não sabem”. E ainda alerta que “Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executa-la com o propósito subalterno de torna-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos”.
Já na ADPF 186-2/DF, a discussão se pautava na instituição do sistema de cotas na Universidade de Brasília. Apreciando a medida cautelar requerida pelo autor da ação, o Min. Gilmar Mendes destacou a importância do valor fraternidade no constitucionalismo contemporâneo:
“Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a historia da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o Estado Democrático de Direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo menos em sociedades construídas sobre valores democráticos – e, neste momento, deixo claro que pretendo rememorar ou reexaminar o tema sob esse prisma.
Não posso deixar de levar em conta, no contexto dessa temática, as assertivas do Mestre e amigo Professor Peter Haberle, o qual muito bem constatou que, na dogmática constitucional, muito já se tratou e muito já se falou sobre liberdade e igualdade, mas pouca coisa se encontra sobre o terceiro valor fundamental da Revolução Francesa de 1789; a fraternidade (HABERLE, Peter.Liberdad, igualdad, fraternidade. 1789 como historia, actualidad y futuro del Estado constitucional. Madrid: Trotta; 1998). E é dessa perspectiva que parto para as analises que faço a seguir. No limiar deste século XXI, liberdade e igualdade devem ser (re)pensadas segundo o valor fundamental da fraternidade. Com isso quero dizer que a fraternidade pode constituir a chave por meio da qual podemos abrir várias portas para a solução dos principais problemas hoje vividos pela Humanidade em tema de liberdade e igualdade.[…]
Pensar a igualdade segundo o valor da fraternidade significa ter em mente as diferenças e as particularidades humanas em todos os seus aspectos. A tolerância em tema de igualdade, nesse sentido, impõe a igual consideração do outro em suas peculiaridades e idiossincrasias. Numa sociedade marcada pelo pluralismo, a igualdade só pode ser igualdade com igual respeito às diferenças. Enfim, no Estado democrático, a conjugação dos valores da igualdade e da fraternidade expressa uma normatividade constitucional no sentido de reconhecimento e proteção das minorias”.
Observa-se as inovações jurídicas pautadas no “Constitucionalismo Fraternal”, onde a administração pública serve aos cidadãos. É interessante observar o espaço que o princípio da fraternidade ocupa ou pode ocupar no Direito Administrativo. Na Europa, onde se tem uma zona comunitária e, por isso, pode haver conflito entre o Direito interno e o Direito internacional, Nino Gentile[27] apresenta uma base de gestão do interesse público: “[…] podem se colocar em evidência e realizar na sua maior extensão, quantitativa e qualitativa, algumas funções específicas próprias das administrações públicas, como, por exemplo:
– dar às famílias a “casa”, revitalizando as entidades e os organismos de financiamento e a realização do bem social da habitação;
– assegurar o “trabalho”, incrementando o sistema de formação profissional, de iniciação ao trabalho, de assistência nos períodos de desemprego;
– garantir, a “quem quer estudar”, acesso a “escolas” e “livros”, fomentando uma administração escolar aberta a todos, colocando e desenvolvendo um conjunto de intervenções e estruturas para tornar efetivo e em condições de igualdade o direito ao estudo;
– projetar e realizar obras e infra-estruturas, como “estradas e ferrovias”, consentindo e facilitando os transportes e as relações econômicas e sociais;
– garantir a “possibilidade de se cuidar adequadamente da própria saúde”, por meio de um sistema de saúde eficiente e acessível a todos;
São indicações que exemplificam o papel e as funções da administração, a qual, orientando justamente a própria ação no sinal da fraternidade, pode atuar melhor sua finalidade mais elevada, que é “recolher na unidade de um projeto comum a riqueza das pessoas e dos grupos, consentindo a cada um realizar livremente a própria vocação, fazendo com que colaborem entre si, promovendo encontros entre as necessidades e os recursos, as demandas e as respostas, influindo em todos a confiança um dos outros”.
Nessa perspectiva, o Direito público e as administrações públicas podem encontrar nas inter-relações o contributo para a realização do autêntico “bem comum”.
Quando se fala em Direito, ciência que institui regras para as relações entre indivíduos, e o princípio da fraternidade, pensa-se de imediato no Direito de Família, uma vez que na família estas relações se apresentam mais próximas e onde se vive em comunidade. Mas o fato de existirem regras e comandos jurídicos que regulamentam a relação familiar, evidencia que nem sempre a vida familiar é tranquila e segura. O advogado dominicano Angel Cano[28]aponta as dificuldades do sistema jurídico da República Dominicana no que tange às leis da família:
“O nosso sistema jurídico, de tradição francesa, trouxe consigo traços dos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todavia, a estrutura judiciária não facilita sua aplicação eficaz. De fato, a mulher, os menores e a família, como instituição, não eram tutelados por uma legislação apropriada.
A redação de um novo código, em 2003, para a proteção das crianças e dos adolescentes, introduziu no novo sistema uma regulamentação na qual o respeito e o afeto encontram espaço como critérios de interpretação na qual o respeito e o afeto encontram espaço como critérios de interpretação e aplicação da lei para os casos relativos aos menores.
Uma das disposições mais importantes é o Artigo 61, que declara a igualdade nos direitos dos filhos e das filhas, independentemente do fato de terem nascido no matrimônio, fora do matrimônio ou serem adotados. Essa igualdade aplica-se principalmente no campo das sucessões hereditárias, onde antes vigorava um sistema discriminatório, e introduz a proibição do uso de termos que impliquem diferenciações entre os filhos.
O Artigo 59 sanciona o direito do menor de ser educado numa família e proíbe que seja afastado dela por motivos econômicos. Estabelece-se também a igualdade entre as autoridades do pai e da mãe em relação aos filhos menores e a tutela especial pelos menores e pela mulher, por serem a parte mais frágil da relação”.
A comissão que instituiu o novo código se preocupou não só com a participação do Estado nas relações familiares, mas com o dever dos indivíduos na formação destas relações[29]:
“[…] Assim também se destaca o direito dos pais na formação dos próprios filhos e filhas, correspondente aos valores humanos (em que acreditam) e à sua participação no processo de ensino, garantindo o acesso dos membros pelo menos a cursos de educação profissional, que permitam aos jovens encontrar trabalho e, assim, evitar a emigração e a desagregação familiar.
Previmos, também, em favor das famílias dos imigrantes, os mesmos direitos de que gozam as outras, o respeito pela sua cultura, a sustentação e a assistência para a integração na comunidade para a qual trabalham, a proteção do Estado contra a exploração e as intimidações de traficantes e organizações criminosas”.
O exemplo dominicano mostra que, imbuídos do respeito à dignidade humana e do princípio da fraternidade, a mentalidade jurídica pode mudar e administrar e aplicar a lei de maneira mais justa.
Para muitos é difícil perceber a fraternidade como um regulador das relações entre as pessoas. No Direito Empresarial, onde o lucro e a valorização das ações são os itens mais importantes, é difícil nota-la. Mas toda norma que tenta impedir a lesão de direitos alheios, tem um foco de fraternidade. Princípios como o da boa-fé e da equidade são exemplos disso. Salvador Morillas Gómez[30], advogado espanhol elenca pontos que ajudam a gerir a empresa à luz do princípio da fraternidade:
“[…] Uma empresa bem administrada deve mirar a tutelar os interesses dos sócios, já que é racional que o capital frutifique convenientemente. No entanto, isso não deve contrapor a exigência de pagar justo salário aos trabalhadores, prestar serviços que respeitem o princípio do equilíbrio das trocas, garantir a equidade em relacionamentos com os clientes e fornecedores e o respeito das normas fiscais e administrativas.
Isso pode acarretar a redução do lucro econômico imediato dos sócios. No entanto, permite aumentar aquele social que, ao longo do tempo, favorece o bom desempenho da empresa. Uma gestão inspirada na fraternidade deve levar em conta todos esses elementos, para visar ao bem de todos, harmonizando os vários direitos e interesses.[…]
Podemos ler na perspectiva da fraternidade e a regulamentação da livre concorrência, que busca estabelecer condições favoráveis de mercado, e a lei que veda a concorrência desleal (Lei 3/1991, de 10 de janeiro, sobre a concorrência desleal). A normativa sobre a publicidade (Lei Geral de Publicidade 34/1988, de 11 de novembro) proíbe o prejuízo aos produtos concorrentes e obriga a dar uma informação leal aos consumidores, impedindo a propaganda enganosa.[…]
Também as relações de Direito público têm a ver com a vida da empresa. Basta pensar, por exemplo, em todas as normas a respeito da ecologia, orientadas a preservar um ambiente propício ao interesse da coletividade; nas normas fiscais, com que se estabelece um dever jurídico igualmente baseado no princípio de solidariedade”.
Essas diferentes relações jurídicas dentro de uma empresa dão pistas de como o princípio da fraternidade pode influenciar nas relações privadas.
É importante ressaltar que falar em fraternidade não significa deixar de atentar para os interesses egoístas da sociedade, afinal, são o egoísmo e a maldade humana que geram os conflitos a serem regulados pelo Direito, que busca a prevenção e a solução destes conflitos, na tentativa de direcionar à unidade dos componentes do grupo.
A juíza de Direito, Elena Massucco[31] relata a sua vivência da fraternidade na aplicação das normas jurídicas:
“Um dia, durante um processo rápido, deparo-me no julgamento com uma pessoa que havia confessado abertamente o crime cometido (um pequeno furto). Por causa de seus antecedentes penais e de sua situação pessoal (toxicodependência – por isso tinha sido afastada da residência dos pais), essa pessoa não podia ser posta em liberdade. Havia sérios motivos que levavam a supor que ela recairia na conduta criminosa, e a prisão domiciliar não era aplicável, pelos motivos citados. Tratava-se, porém, de um sujeito necessitado de tratamento por causa de grave forma de depressão. Certamente ele não poderia usufruir disso na prisão, o que agravaria mais tarde sua doença.
No entanto, com o Ministério Público e o defensor tínhamos combinado que, tão logo aparecesse uma vaga numa clínica psiquiátrica, eu concederia a prisão hospitalar.
Terminada a audiência, com uma condenação razoavelmente leve (que considerou também seus problemas de saúde), eu sabia ter feito, como juíza, tudo o que profissionalmente se esperava de mim, ou seja, “administrar a justiça”.
Naquele instante, porém, dei-me conta de que aquele homem por trás das grades era meu irmão, e senti enorme compaixão dele. Então compreendi que viver aquela fraternidade que o Evangelho requer pedia algo mais do que o “profissionalmente correto”. Assim – sensibilizando o defensor do réu, que, em seu ofício, pensava no início ter esgotado suficientemente o seu mandato – dispus-me a convencer os familiares do acusado (já cansados de sofrer humilhações por ele) a acolhê-lo em casa até o momento da internação numa clínica, a fim de permitir que ele ao menos pudesse continuar o tratamento medicamentoso.
Desse modo, dado o primeiro passo, estabeleceu-se uma verdadeira “competição de amor” com o Ministério Público e o defensor, a fim de que tudo pudesse caminhar na direção certa e o mais rápido possível, com grande vantagem para toda a administração da justiça. Sem, porém, efetuar qualquer violência processual, mas simplesmente adotando, como critério de aplicação da norma penal… a fraternidade!
De fato, o compromisso de viver os ensinamentos da fraternidade no meu trabalho faz com que muitas vezes, durante o desenvolvimento normal das audiências, eu me esforce de “ir para além” da minha função (sem, contudo, prejudicar o exercício da profissão), a fim de poder dividir momentos de fraternidade com o réu que estou julgando. Coloco-me numa atitude, manifestada por gestos reais de amor, que “contagia” também os demais integrantes do processo (defensor, Ministério Público, agentes carcerários etc.). Por exemplo, escuto com atenção o acusado, procurando satisfazer alguma pequena, mas legítima, exigência ou expectativa dele, explicando bem as fases do processo, o motivo da condenação, a natureza da pena etc.
Fazendo assim, não é raro o réu, mesmo sem ter usufruído de benefícios especiais em prêmios, mas consciente do próprio erro, ao sair da sala para retornar ao cárcere, exprimir sentimentos de sincera gratidão com a juíza que pronunciou sua condenação.
Desde grandes gestos até os mais simples, o princípio da fraternidade se apresenta capaz de mudar relacionamentos entre os membros que compõem a justiça. O Juiz do Trabalho Carlos Eduardo E. B. dos Santos[32] exemplifica:
“Durante uma audiência, fui advertido pelo servidor de que havia um advogado na porta do fórum trajando apenas bermudas, mas que precisava participar de uma audiência ou fazer constar seu nome na ata.
Quando saí, deparei com um advogado já conhecido, a quem eu tinha algumas restrições pela sua forma de trabalho, que prejudicava seus clientes e o andamento dos processos. Ouvi atentamente sua explicação: sairá da Capital, e sua esposa tinha colocado o terno sobre a mala, mas ele não conferira. Viajara apenas de bermudas, para se trocar ao chegar á cidade. Ocorreu na capa viera apenas o blazer, e agora não teria como participar da audiência, embora precisasse apresentar junto à empresa que representava o comprovante de sua presença. Eu não poderia registrar algo que não tinha acontecido – a presença dele na sala de audiência -, mas rapidamente tirei a toga que estava usando e lha emprestei, de modo que poderia entrar no fórum e participar da audiência. Em que pese a simplicidade do gesto, percebi uma mudança de postura no causídico durante a audiência e o novo relacionamento criado a partir de uma atitude de acolhimento”.
Evidencia-se que em todos os níveis da relação jurídica, e por que não, das relações sociais, o princípio da fraternidade interfere de maneira positiva para a obtenção da paz social. Contudo, nenhum campo é mais fértil que a academia. É nela que estão indivíduos sedentos por conhecimento e por novas experiências. E a participação dos docentes é fundamental no processo de efetivação dos direitos fundamentais, respeito aos direitos humanos e mudança na prática forense, pois não basta a formação de técnicos habilitados a trabalhar com a dogmática jurídica. O mundo necessita de algo maior: provocadores de justiça. para isso, é necessário semear a criticidade, cultivar o raciocínio questionador, promovendo um mundo renovado e ético. A experiência das doutoras Olga Maria B. Aguiar de Oliveira e Josiane Rose Petry Veronese na criação do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina dá a certeza de que novos ventos sopram em favor de um mundo mais justo, solidário e dos bens em comum – um mundo fraterno.
Essa proposta da fraternidade ser inserida no espaço acadêmico teve início no Brasil em um Congresso Nacional sobre o tema, realizado em janeiro de 2008 na cidade de Vargem Grande Paulista, estado de São Paulo. Esse evento contou com a participação de centenas de pessoas do âmbito jurídico, além de vários estudantes e foi organizado por um movimento intitulado “Comunhão e Direito”.[33] Ficou constatado que essa “nova onda” teria como principal difusor a universidade, pelo motivos já apresentados acima.
Além do Congresso Nacional outros foram realizados Brasil a fora e até internacionalmente. Vale destacar o Congresso Regional realizado em 2008, na cidade de São Luís, estado do Maranhão; a I Jornada Sul-Brasileira de Direito e Fraternidade, realizado também em 2008, na cidade de Florianópolis, estado de Santa Catarina; o I Congresso Internacional para Estudantes e Jovens Profissionais “Jovens juristas em diálogo”.
Todos estes eventos analisaram o princípio da fraternidade sob o enfoque doutrinário e prático. O relato das doutoras Olga e Josiane sobre o evento internacional, do qual o autor deste trabalho também participou, merece destaque:[34]
“Desse encontro evidenciamos, além do mergulho em concepções muito distintas dos sistemas normativos de cada país ali representado, a possibilidade de conhecermos outras experiências, pois foram significativos os relatos de operadores do Direito, estudiosos e estudantes dos mais diversos países, com seus respectivos costumes e formas de pensar e atuar o Direito.
Enfim, também tivemos a oportunidade de construir um relacionamento baseado no respeito ao outro. Aí está a essência, algo vivo, dinâmico, experenciado, para além das barreiras do diferente, do desconhecido, do não usual, sobretudo em se tratando do Direito na concepção ocidental, tão distinta da oriental”.
Com o crescimento exponencial da fraternidade, em 5 de junho de 2009 foi instalado o Núcleo de Pesquisa da UFSC, já mencionado, que desenvolve vários colóquios e promove vários seminários sobre o tema. Isto já produziu diversos frutos, como a apresentação de trabalhos no Instituto Universitário Sophia, localizado na Itália.
A fraternidade é possível de ser “instalada” no meio jurídico, afinal, o ser humano é mutável, consegue se adaptar aos locais e ambientes mais adversos. E o mundo de hoje é praticamente um local inóspito para a fraternidade. Contudo, isso não é um problema, pois como bem assinala Laraia[35]:
“As diferenças existem entre homens, portanto não devem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com as suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais terrível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura”.
Como se pode observar, a fraternidade não só é possível como deve ser realçada no ambiente acadêmico, pois ela é imprescindível para a visão humanista do Direito, já que o acadêmico não pode ser mero leitor e reprodutor da norma jurídica, mas sensível à realidade na qual está envolvido.
CONCLUSÃO
As reflexões feitas aqui se apresentam como respostas às indagações feitas durante todo o trabalho, que não se pode resumir em poucas linhas, mas que merecem destaque.
Nota-se que a fraternidade, mesmo sendo princípio basilar da doutrina cristã, esteve presente desde o início do mundo moderno enquanto categoria política, juntamente com a liberdade e com a fraternidade. Por vezes foi abandonada exatamente por essa vinculação com o cristianismo ou em decorrência das fronteiras nacionais.
Entre aparições tímidas e corajosas, a fraternidade chegou ao século XX com status de “solução” após as grandes guerras mundiais do início do mesmo século. A partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o terceiro princípio da tríade revolucionária francesa passou a ser o espírito norteador das relações humanas.
Com o seu caráter universal, a Declaração dos direitos humanos determinou a vários direitos a sua característica de fundamentais, apesar de já terem sido qualificados como tais desde a Declaração dos Direitos do Homem de 1789. O que muda é a percepção de que os direitos ditos fundamentais devem ter como alvo o ser humano e o respeito à sua dignidade, buscando assim assegurar os meios efetivos para a concretude dos anseios humanos. Os direitos humanos saem da esfera nacional e passam a ter proteção internacional, inclusive com a criação de mecanismos para sua proteção na órbita internacional: Comissão Europeia de Direitos Humanos, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentre outros. Mesmo que a prática seja, por vezes, diferente da teoria, a voz dos direitos humanos já não pode mais ser calada, as dificuldades encontradas alimentam ainda mais o desejo de ver consolidadas as garantias mínimas para um direito que vai além da jurisdição de um Estado.
Já se reconhece a necessidade de inter-relacionamento na sociedade pós-moderna. Ou seja, o Direito não pode mais servir apenas para garantir a individualidade do indivíduo, mas também para assegurar o relacionamento entre indivíduos. Nesta seara, a fraternidade, tantas vezes confundida com a solidariedade, é de fundamental importância, pois é com base neste princípio que o ser humano pode perceber que o outro é ele mesmo, posto que a maldade praticada contra um resulta em prejuízo para o outro. Reconhecendo isto, vários ordenamentos jurídicos ocidentais garantem em suas Constituições a fraternidade ou a solidariedade como formas de garantir o bem-estar social. Não se pode pensar em erradicar a pobreza, por exemplo, sem pensar no pobre como indivíduo detentor de dignidade, um ser igual ao administrador da coisa pública. Qualquer atitude contrária a este pensamento é puro discurso demagógico.
Apesar da escuridão do mundo, do egoísmo e extremismo vivenciado instantaneamente em todas as partes do mundo, existem personagens “nadando contra a maré”, fazendo da fraternidade o foco do seu trabalho. Inúmeros operadores do Direito demonstram em seu cotidiano como é possível “ir além”, isto é, não ficar preso ao rigor da lei fria, mas entender o seu relevante papel na construção de um mundo melhor, mais justo, onde o bem da coletividade seja colocado em primeiro plano. Se o mundo jurídico for sensível aos anseios do mundo moderno, poderá surgir uma verdadeira comunidade citada por Bauman. E o palco principal para catalisar e difundir esta prática é a universidade, a academia. É dela que partem milhares de novas mentes que decidirão o futuro da humanidade. Se pensada a fraternidade como esta “nova cultura”, ela poderá influir decididamente nos paradigmas já existentes, poderá construir um interculturalismo crítico, baseado na ética, respeito mutuo e amor ao próximo, inserindo a partir daí uma realidade efetiva de justiça social, saindo do mundo “declarador de direitos” ou “garantidor de direitos” e passando para uma terceira fase, a fase da “concretização de direitos”.
O desafio do ser humano global é reconhecer o outro como um “irmão”, pelo qual se é responsável e pelo qual exerça com maestria seu trabalho. Essa responsabilidade não fará do gênero humano uma espécie ingênua ou assistencialista, mas proporcionará uma nova forma de enxergar o mundo, enraizada na conscientização de direitos e deveres, com o intuito de lutar para que as desigualdades deste mundo possam ser extintas.
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