Resumo: A propósito da função social da posse, o estudo propõe reflexões sobre alguns de seus pontos mais polêmicos, qual seja, a aplicação da solução contida nos parágrafos 4º e 5º, do artigo 1.228, do Código Civil, especialmente se não estiverem presentes todos os requisitos previstos pelo dispositivo.
Palavras-chave: Função social – Função social da posse – Artigo 1.228 do Código Civil
Abstract: On the social function of the possession, the study proposes reflections on some of his more controversial points, which is the implementation of the solution contained in paragraphs 4º and 5º of article 1228 of the Civil Code, especially if are not present the requirements contained in the aforementioned article of the law.
Keywords: Social function – Social function of possession – Article 1228 of the Brazilian Civil Code
Sumário: 1. Introdução – 2. Julgado objeto do comentário – 3. Exame e comentário – 3.1. Objeto da demanda e do recurso interposto perante o Tribunal de Justiça – 3.2.Função social da posse e os §§ 4º e 5º, do artigo 1228, do Código Civil – 4. Conclusão – Referências.
1. Introdução
Como se sabe, a Revolução Francesa elevou o direito de propriedade às suas últimas consequências, considerando-o, ao lado da liberdade, um direito natural, sagrado e inviolável. Essa concepção extremada forneceu o combustível necessário para que a teoria da função social eclodisse nas palavras da Igreja Católica, de Augusto Conte e Leon Duguit e, afinal, fosse prestigiada pela Constituição de Weimar, em 1919.
A função social da propriedade está, atualmente, consagrada pela nossa Constituição da República como um direito fundamental, inserida em seu artigo 5º.
Tem-se, hoje, a concepção de que o apoderamento de coisas pelos seres humanos deve se justificar socialmente ante uma funcionalidade, que permita respeitar os interesses coletivos e, finalisticamente, assegurar a dignidade da pessoa humana. Assim, diz-se que a função social permeia os bens e os direitos inerentes à propriedade e, sendo indispensável, deve coexistir com a propriedade privada, também imprescindível e garantida pela Carta Magna.
Aliás, a função social da propriedade só existe porque existe a propriedade privada, ou seja, esta é pressuposto de existência daquela.
Todavia, pouco se tem debatido sobre a função social da posse, especialmente a aplicação dos parágrafos 4º e 5º, do artigo 1.228, do Código Civil, que contem uma espécie de “perda remunerada” da propriedade em função do exercício de uma posse dotada de inegável função social, conforme os requisitos previstos na regra.
Daí o presente trabalho, a partir da análise de um caso concreto, julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, propor algumas reflexões acerca da função social da posse e dos limites impostos ao julgador na aplicação da regra contida nos dispositivos em referência.
2. Julgado objeto do comentário
Ementa:
REIVINDICATORIA – Ocupação de área urbana – Posse clandestina – Domínio da autora comprovado – Improcedência do pedido fundamentada no abandono, a caracterizar a perda da função social da propriedade – Inocorrência – Ação ajuizada meses após o registro do imóvel – Direito do proprietário em reaver o bem que desponta, nos termos da Lei Civil, independente da existência de obras no local – Conquanto o direito de propriedade tenha por limite o cumprimento de direitos e deveres, a condição de proprietário é plena, e qualquer limitação ou restrição deve ser excepcional no atendimento a interesses maiores – Ocupação na clandestinidade – A posse clandestina é precária – Não se cogita boa-fé na posse contrária ao direito – Peculiaridades do caso "sub examinem" que reclama solução diversa – Ocupação iniciada em 1.989 – Feito sentenciado há quase onze anos atrás, oportunidade em que mais de cem famílias estavam ocupando o local – Dificuldade da área retornar ao 'status quo ante'- Desvalorização do imóvel inconteste, que impedirá à detentora do domínio emprestar-lhe destinação especifica – Aplicação da alienação compulsória, prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do CC, que melhor atende os interesses das partes – Recurso parcialmente provido, impondo-se a sucumbência recíproca
Voto:
Trata-se de recurso de apelação (fls. 1.952) interposto por Edimetal S/A, Indústria e Comércio, contra r. sentença de fls. 1.935/1.943, cujo relatório se adota, que julgou improcedente o pedido formulado em ação reivindicatória proposta contra ocupantes de área urbana, carreando-lhe os ônus da sucumbência e honorários advocatícios fixados em 15% sobre o valor da causa.
Busca a sua reforma sustentando que a prolatora do r. decisum ignorou os princípios gerais de direito e, no conflito de valores instalado, deixou-se mover por sentimento de piedade e caridade ao repelir direito que assiste ao legítimo proprietário do imóvel em litígio, o qual está a merecer proteção jurisdicional.
Para tanto, assevera que sob inicial orientação de um candidato a vereador os apelados ocuparam o bem imóvel e destruíram seus marcos de demarcação, transferindo as supostas propriedades a pessoas incautas, através de contrato de compra e venda.
Aduz que a formação do núcleo habitacional não se operou de forma mansa e pacífica, porquanto corria a ação reivindicatória ao tempo contra os invasores. Assim, pugna pela procedência da ação, determinando-se a restituição do imóvel (fls. 1.953/1.955).
O recurso foi recebido em seus regulares efeitos (fls. 1.957) e em contrarrazões pugnou-se pela manutenção integral da r. sentença (fls. 1.959/1.963).
Os autos foram redistribuídos a este relator em cumprimento à Resolução n° 542/2011 deste E. Tribunal (Meta 2 do Conselho Nacional de Justiça).
E o relatório.
Ao que se depreende do processado, a apelante é legítima proprietária do terreno designado como Lote n° 95 da Vila Maria de Lourdes, na cidade de Guarulhos, objeto da matrícula n° 53.334 do CRI, cujo registro do imóvel foi efetuado em 28/11/1988 (fls. 15/16). Consta da narração da inicial que ao tentar tomar posse do imóvel, observou-se que a área foi invadida, não se logrando êxito nas tentativas de restituição amigáveis.
A ação reivindicatória foi ajuizada em 22/02/1989.
Após longo período de processado e vários aditamentos para inclusão de novos ocupantes no pólo passivo, a ação foi julgada improcedente, entendendo a MM. Juíza prolatora da sentença que a área encontrava-se abandonada antes da propositura da ação e deixou de atender a função social da propriedade, ao permitir a instalação de adensamento demográfico de forma paulatina.
Como bem delineado na sentença, instalou-se um conflito de interesses: de um lado o direito de propriedade ostentado pela apelante; de outro, os princípios que regem a função social da propriedade.
A princípio, desponta de forma irrefragável o direito do proprietário sobre o bem e, a considerar a data da aquisição e a data do ajuizamento da ação meses após, estaríamos longe de poder configurar o estado de abandono, independentemente da existência de obras no local.
Nos termos disposto pelo art. 1.228 do Código Civil "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha".
Assim, possui o proprietário a faculdade de reivindicar o bem que esteja na ingerência alheia; retomar coisa que lhe pertença de seu detentor sem causa jurídica.
Mas a Lei Civil concebe a propriedade um direito real "como uma relação jurídica complexa, carregada de direitos e deveres e voltada à vocação primordial de atender à função social”.
Logo, o direito de usar, gozar e fruir da propriedade, está estritamente ligado ao princípio constitucional pelo qual a função da propriedade é social, subordinada, pois, a deveres e obrigações à função social do bem.
Em sede doutrinária, Caio Mário enfatiza acreditar-se e sustentar-se "que os bens são dados aos homens não para que dele se extraiam o máximo de beneficio e bem-estar com sacrifício dos demais, porém, para que os utilizem na medida em que possam preencher a sua "função social"". Nessa ordem de idéias, defende o direito positivo que "o exercício do direito de propriedade há de ter por limite o cumprimento de certos deveres e o desempenho de tal função”.
Essa subordinação, no entanto, não retira do proprietário a prerrogativa de manter inerte o bem. Isso porque, a condição de proprietário é plena. Anota Orlando Gomes que: "a propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente".
Frisa o já citado autor Caio Mário da Silva Pereira que "A limitação, como toda restrição a gozo ou exercício dos direitos, é excepcional".
Só deve ser declarada a privação se observada destinação em antinomia a interesses maiores.
Sem embargo aos defensores da idéia de que o mau comportamento do proprietário implica na carência de legitimidade ao exercício do direito de propriedade, o princípio da função social não pode simplesmente ser oposto à este.
Retomando ao caso concreto, se de um lado o apelante logrou comprovar a aquisição e o domínio do bem, de outro lado, conquanto não se tenha verificado grupo de invasores, ocorreu ocupação do imóvel paulatinamente, na clandestinidade, por considerável número de pessoas, de forma totalmente desordenada, não descaracterizando, pois, uma verdadeira invasão.
E a posse clandestina é precária.
Em sendo assim, não há falar-se em posse justa de terreno cuja ocupação continuou ocorrendo mesmo durante o trâmite da ação. Muitos dos contratos de venda e compra das construções erigidas no local foram realizados após respectivas partes serem citadas para responder a presente ação.
Ora, não se cogita de boa-fé a posse contrária ao direito.
Assim posicionou-se o C. Superior Tribunal de Justiça: "A invasão de terras é necessariamente clandestina e violenta, não podendo gerar posse justa'" (REsp. n° 219.579/DF, rei. Min. Humberto Gomes de Barros, j . 26.09.2000).
No mais, a seara da ação petitória não é a mais adequada para debater a ofensa ou abuso ao princípio da função social, especialmente quando não verificada de imediato a condição de abandono a justificar a ocupação. Como já se decidiu: "A invasão da propriedade urbana não encontra respaldo na ordem jurídica. A discussão sobre a função social da propriedade compete ao Poder Público Municipal, estabelecendo e verificando seu cumprimento. Qualquer desapropriação há de ser realizada mediante prévia e justa indenização" (RT 727/294).
Conclui-se, pois, do contexto jurídico extraído dos autos, que o decreto de improcedência do pedido empresta solução do ponto de vista subjetivo à situação fática hoje verificada, haja vista a formação de núcleo populacional instalado e ausência de perspectiva de retomada pacífica do local, mas não condizente com o direito aplicável à situação posta em litígio.
Outrossim, malgrado a ocupação tenha se iniciado sem a característica da boa-fé, a considerar a peculiaridade da situação posta sub examine, relevada a circunstância que na data da prolação da sentença em novembro de 2.000, ou seja, há quase onze anos já havia cerca de 110 pessoas instaladas no local (fls. 1941/1943), número que provavelmente tenha muito se multiplicado nesse longo transcurso de tempo; contemplando-se, ainda, que durante o processado houveram tratativas entre a proprietária e ocupantes para venda das áreas ocupadas aos respectivos posseiros (fls. 1981); e, por fim, tendo-se em conta a inquestionável desvalorização do bem em razão do ocorrido, o que certamente impedirá à detentora do domínio emprestar-lhe destinação específica; entendo que a solução que melhor se amolda à espécie é aquela agora prevista nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do CC, segundo os quais:
"§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante".
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores'".
Consigne-se que muito embora não se vislumbre todos os requisitos circunstanciais previstos no mencionado § 4º, a alienação compulsória tratada no dispositivo em comento, como uma nova modalidade prevista pelo legislador de perda da propriedade particular, vem em encontro ao interesse de todas as partes na presente reivindicatória.
Tal exceção substancial adotada pelo direito contemporâneo proporcionará aos possuidores adquirir legalmente a sua área, dar continuidade e regularizar a posse, eis que ausentes os requisitos do usucapião; e ao autor apelante receber dos ocupantes da referida gleba justa indenização.
O Juízo deverá fixar avaliação para apuração do valor da gleba, e fixar prazo razoável para o pagamento do preço. O valor poderá ser rateado, instituindo-se um condomínio entre todos os envolvidos, se assim acertado entre os possuidores, ou pago proporcionalmente.
Fica ressalvado que o pagamento do preço acarretará o registro da alienação e perda de objeto da reivindicatória, ao passo que, o não pagamento do valor fixado, permitirá ao proprietário reivindicar novamente a área, conforme Enunciado n° 241 da III Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal de 2004: "O registro da sentença em ação reivindicatória, que opera a transferência da propriedade para o nome dos possuidores, com fundamento no interesse social (art. 1.228, §5°) é condicionada ao pagamento da respectiva indenização, cujo prazo será fixado pelo juiz".
Por fim, cabe obtemperar que, embora se trate de regra de direito material inexistente ao tempo do sentenciamento da ação, parafraseando Francisco Eduardo Loureiro na obra já citada, é certo que: "o art. 2.030 do Código Civil criou disposição de direito intertemporal, dispondo que o prazo qüinqüenal da figura em exame seria acrescido de mais dois anos, nos dois primeiros anos de vigência do novo diploma, qualquer que seja o tempo decorrido na vigência do Código de 1916. Em termos diversos, o preceito somente passou a ser aplicado em 12 de janeiro de 2005, com o propósito de não colher de surpresa os proprietários/reivindicantes".
E a contar dessa data, já transcorreram os cinco anos de ocupação pelas partes.
Dada ao caso solução prevista no ordenamento civil que melhor atende os interesses das partes, porém, diversa daquelas defendidas por ambas as partes, impõe-se o reconhecimento da sucumbência recíproca.
Ante ao exposto, pelo meu voto dá-se parcial provimento ao apelo, para afastar o decreto de improcedência e aplicar ao caso a alienação compulsória prevista no art. 1228, §§ 4º e 5º do CC; com sucumbência recíproca.
2. Exame e comentário
2.1. Objeto da demanda e do recurso interposto perante o Tribunal de Justiça
Trata-se de ação de reintegração de posse movida pela empresa Edimetal, em fevereiro de 1989, em face dos ocupantes do imóvel que havia sido adquirido pela autora em novembro de 1988. A ação sofreu vários aditamentos para inclusão de outros ocupantes, atingindo o polo passivo uma centena de pessoas.
A sentença de primeiro grau julgou a ação improcedente por entender que haveria um conflito do direito de propriedade versus a função social da propriedade e a dignidade da pessoa, devendo prevalecer os últimos ante a suposta conduta desidiosa do proprietário. Ainda ressalvou, de forma abstrata, o direito da autora mover uma nova ação para cobrar o valor da propriedade, em face dos ocupantes. [1]
A autora moveu apelação requerendo a reforma da sentença para que fosse julgada procedente a reintegração de posse, sob alegação de que a ocupação foi ilegal desde o início e durante o transcurso do processo, bem assim que não havia transcorrido o prazo ad usucapionem.
2.2. Função social da posse e os §§ 4º e 5º, do artigo 1228, do Código Civil
Antes de examinar o teor da decisão proferida – com a consequente análise da solução adotada, contida nos §§4º e 5º, do artigo 1228, do Código Civil –, cumpre realizar uma breve análise da função social da propriedade e da posse.
A história demonstra ser ínsito ao ser humano, desde os primórdios, apropriar-se de bens. Com o passar dos tempos o fenômeno da civilização levou o Direito a estudar e regular essas relações, sendo atribuído ao Direito Romano a conformação da propriedade como um direito absoluto[2], exclusivo e perpétuo – traços verificados no direito de propriedade como é concebido atualmente.
Mas a evolução da sociedade (e aqui considerando os seus mais diversos setores) atingiu um patamar de complexidade tal que o proprietário deixou de poder usar e gozar de modo absoluto da coisa, como pretendiam os romanos e, em ainda maior intensidade, os liberais do século XVIII[3]. Os anseios burgueses por “propriedade absoluta”, “autonomia da vontade” e mínima liberdade aos juízes, refletidos no Code Napoleon, cederam espaço a institutos e princípios como a igualdade substancial, a função social, a teoria da imprevisão, bem assim a inserção no sistema jurídico de cláusulas abertas ou gerais, com a utilização de termos vagos pelo legislador.
No tocante à função social da propriedade[4] a Constituição de Weimar (1919) representou um divisor de águas. Estabeleceu, em seu artigo 153, que “a propriedade obriga” e que “o seu uso deve ser realizado no interesse geral”.[5] No Brasil, trilhando o caminho aberto pelos alemães, os textos constitucionais reconheceram a função social do direito de propriedade.[6]
Da mesma forma, como não poderia deixar de ser, a posse evoluiu. A concepção original de Ihering – de que a posse merece proteção com o objetivo exclusivo de tutelar a propriedade – deixou de corresponder aos anseios sociais.[7]
Pode-se afirmar com tranquilidade, sobretudo em uma análise pragmática, que a posse tem papel de relevo na concretização do chamado “Estado do Bem Estar Social”, proposto pela nossa Constituição Federal[8]. Ainda mais se observadas as peculiaridades do Brasil, um país com dimensões continentais, realidades regionais e profundos problemas sociais ligados à miséria e à falta de moradia rural e urbana.
Daí porque, deixando de lado a discussão em torno da natureza jurídica da posse (que tem levado a divergências doutrinárias e não representa o escopo do presente estudo), o entendimento predominante de que se trata de um direito autônomo e, assim, passível de uma função social com características próprias.
O Código Civil de 2002 – além de prever a função social da propriedade nos artigos 1228, § 1º e 2035, § único – reconhece a chamada função social da posse, ainda que não expressamente. Assim, por exemplo, ao diminuir o prazo da usucapião quando a posse é dotada de certos aspectos, relevantes socialmente (moradia habitual, realização de obras, serviços produtivos, investimentos de interesse social ou coletivo)[9].
O Professor Arruda Alvim ensina o seguinte:
“A função social da posse engendra configurações protetivas a situações em nome das quais se protegerá, particularmente, a posse (em face de uma situação humana agregada à posse e benfeitorias feitas e socialmente prezáveis), especialmente com vistas à potencial possibilidade de atribuição do direito de propriedade ao possuidor, em tempo menor do que seria normal (v.g. art. 1238, pár. ún., comparando-se o caput de ambos os textos com os respectivos parágrafos únicos), e perecimento do precedente direito do titular da propriedade.”[10]
Objeto de maior controvérsia, a expropriação do artigo 1228, §§ 4º e 5º do Código Civil, prevê uma “perda remunerada” da propriedade em face dos possuidores de boa-fé, atendidos os requisitos ali estabelecidos, em notória tutela dessa função social da posse, in verbis:
"§ 4º O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante".
§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores'".
O acórdão ora examinado lançou mão, justamente, da solução contida nos dispositivos acima transcritos, mas o fez reconhecendo que os requisitos legais não estavam preenchidos. Segundo o decisum, a posse dos Réus: (i) era destituída de boa-fé; (ii) não tinha completado, na data de propositura da ação, o prazo de cinco anos; e (iii) quantitativamente, concentrava a instalação, desordenada, de pelo menos 110 pessoas. O acórdão não esclareceu se havia no local obras ou serviços “de interesse social e econômico relevante”.
Daí a análise que ora se propõe, no sentido de verificar se poderia o magistrado, em nome e por conta da função social, delimitar ou vulnerar o direito da propriedade fora das hipóteses previstas pelo legislador.
O autor Pietro Perlingieri responde positivamente, ao analisar o sistema italiano. Confira-se:
“Igualmente, o mesmo princípio [função social] legitima a desaplicação das disposições legislativas nascidas como expressões de tipo individualista ou concretizadoras de uma função social de natureza diversa daquela constitucional (inspirada, por exemplo, na máxima produção e na auto-suficiência econômica).
(…) A ausência de concretização da função social, portanto, faz com que cesse a razão pela qual se garante e se reconhece o direito de propriedade. O fato de a falta de exercício do direito, prolongada e injustificada, não levar à sua perda por prescrição é solução legislativa admitida há muito tempo, mas sob grave suspeita de inconstitucionalidade – uma vez que se funda no artigo que determina a imprescritibilidade das ações de reinvindicação (art. 948 Cód. Civ.), de fundamento e significado duvidoso – e certamente em estridente contraste com a concepção dinâmica (attivistica) e social da propriedade”.[11]
Tem sido bastante frequente na doutrina brasileira a lição de que os princípios têm, na atual fase pós-positivista, aplicação direta e imediata (normas). Essa compreensão em torno dos princípios, somada ao fato de que os direitos fundamentais, entre os quais a função social da propriedade, possuem igual aplicação – direta e imediata – por força do § 1º, do artigo 5º, da Constituição Federal, serviram de premissa para a chamada “constitucionalização do direito civil”. Como ensina o Professor Arruda Alvim:
“Há de ter-se presente, ainda, o fenômeno da constitucionalização do direito civil, que permite especialmente em casos complicados, hard cases, retraçar o perfil de determinados institutos do direito civil à luz da Constituição Federal, ou, mesmo, a aplicação direta do texto constitucional, que digam respeito a direitos fundamentais, com a ineficácia de texto infraconstitucional. Dever-se-á, em tais casos, preservar ao menos o valor econômico para o proprietário da propriedade atingida.”[12]
Mas é importante notar que, mesmo diante dos fenômenos acima, a Constituição Federal, em uma análise sistemática, tutela a função social da propriedade tal como garante o direito de propriedade. Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
“Por tal razão, as normas inscritas no art. 225 da Constituição hão de ser interpretadas de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado peço ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções (…).
De fato, é indiscutível que, como alega o Recorrente, a propriedade atenderá a sua função social (art. 5º XXIII, da Constituição Federal) e que o art. 225, § 4º, da Carta Magna dispôs: (omissis). Afigura-se correto sustentar, no entanto, que tais disposições constitucionais hão de merecer aplicação harmônica com outra garantia, também instituída pela Lei Maior, qual seja aquela inserta em seu art. 5º, XXII: “é garantido o direito de propriedade”.[13] (grifo nosso)
Daí o motivo pelo qual a aplicação direta da função social, contida no inciso XXIII, com o objetivo de vulnerar o direito de propriedade do titular, garantido pelo inciso XXII, fora das hipóteses previstas no sistema jurídico, deve ser analisada com o máximo de cuidado e, acima de tudo, de forma amplamente fundamentada.
O Professor Arruda Alvim, após reconhecer que a aplicação direta do inciso XXIII, para desconhecer uma situação de direito de propriedade, encontraria limite no inciso XXII, conclui: “isto somente poderá ocorrer em casos manifestamente excepcionais, devendo ser exaustiva a justificativa, como, ainda, não deverá chegar ao ponto de negar ao proprietário o valor econômico da coisa” (grifo nosso).[14]
O v. acórdão, ora analisado, vulnerou o direito de propriedade do Autor. Para fundamentar sua decisão, porém, limitou-se a argumentar, de forma absolutamente genérica e passando ao largo da garantia constitucional, que a modalidade de perda da propriedade insculpida no artigo 1228 iria ao encontro do interesse das partes, proporcionando aos possuidores a propriedade e ao Autor uma justa indenização.
O v. acórdão não adotou, com todo respeito, a melhor solução.
Primeiro, como dito, por não atribuir nenhuma fundamentação à decisão com vistas a, exatamente, justificar o afastamento da regra constitucional que garante ao Autor o direito de propriedade.
Segundo, porque as circunstâncias do caso, descritas pelo v. acórdão, levariam à outra solução. Com efeito, a posse não era de boa-fé e no local não havia prestação de serviços socialmente relevantes. Some-se a isso o fato do Autor da demanda não ter sido desidioso no cuidado de sua propriedade, pois moveu ação em prazo razoável, após não conseguir reaver o imóvel amigavelmente. Portanto, nem mesmo os valores protegidos pela função social da propriedade foram prestigiados pela solução adotada.
De fato, independente da complexidade da causa, houve notória desídia do Poder Judiciário – isso sim. A ação foi ajuizada em fevereiro de 1989, sentenciada mais de dez anos depois, em 2000, tendo o recurso de apelação sido julgado após outra longa década, em outubro de 2011. E o v. acórdão deixa transparecer claramente ter decidido com base na consolidação da situação de fato, ou seja, por considerar que após 20 anos de posse (ainda que injusta) seria difícil – ou socialmente mais gravoso – retirar do local aquelas pessoas.
Com todo respeito, muito mais grave é chancelar, com selo do Poder Judiciário, uma invasão de terras sem que tenha havido qualquer abandono pelo proprietário. Pelo contrário, reconhecendo ser a posse dos invasores destituída de boa-fé e ter o proprietário agido zelosamente, em prazo adequado e razoável.
Portanto, poderia o v. acórdão ter ressalvado aos invasores um direito indenizatório, a ser buscado em ação autônoma, em face do Poder Judiciário – pela excepcionalíssima demora no julgamento –, mas não desconhecer, como fez, a propriedade do Autor.
Terceiro, nota-se que a decisão, após discorrer acerca da regra de transição, contida no atual Código Civil, decide que o artigo 1228 desse diploma legal “passou a ser aplicado em 12 de janeiro de 2005, com o propósito de não colher de surpresa os proprietários/reivindicantes. E a contar dessa data, já transcorreram os cinco anos de ocupação pelas partes”.
Ora, data venia, o prazo de 5 anos, previsto pelo § 4º, do artigo 1228, do Código Civil, deve estar preenchido antes da citação dos réus, para responderem a ação reivindicatória, não podendo ser computado o prazo durante o transcurso do processo. Sobretudo no caso dos autos, em que o proprietário moveu a ação em prazo bastante menor ao previsto na lei.
Por fim, equivocou-se o decisum ao tratar da indenização que deverá ser paga ao proprietário, pelos possuidores invasores. Decidiu que o juízo de primeiro grau deveria: (i) “fixar avaliação para apuração do valor da gleba”; (ii) “fixar prazo razoável para o pagamento do preço”; (iii) bem assim que “o valor poderá ser rateado, instituindo-se um condomínio entre todos os envolvidos, se assim acertado entre os possuidores, ou pago proporcionalmente”.
Os termos em que vazada a condenação são absolutamente genéricos. No item “i” não fixou sequer os parâmetros para liquidação do quantum (e.g. se valor de mercado; se valor atual ou da data da invasão; se valor da terra nua ou com benfeitorias), deixando em aberto questões que intuitivamente serão objeto de controvérsia na fase de liquidação. Com relação ao item “ii”, deveria ter fixado um prazo desde logo ou pelo menos dado parâmetros para que o juiz de primeiro grau o fizesse. No tocante ao item “iii”, o acórdão deixou a critério dos possuidores a decisão entre instituir condomínio (solidariedade) ou não. Com perdão do trocadilho popular, em vez de decidir, acabou por entregar a chave do galinheiro às raposas.
Acerca da indenização, o acórdão ainda estabeleceu que “o não pagamento do valor fixado, permitirá ao proprietário reivindicar novamente a área”. Deu a entender, ao contrário do que parece ser a solução mais correta, que deverá o proprietário ajuizar nova ação. Seria melhor ter deixado claro que a reinvindicação será exercida na própria demanda, mais uma vez para que se evitasse futuras celeumas.
4. Conclusão
Conclui-se, portanto, que a meu modesto sentir a decisão pela solução contida nos §§ 4º e 5º, do artigo 1228, do Código Civil, foi inadequada ao caso, pois:
a) Não estavam preenchidos os requisitos previstos pelo legislador, de modo que para afastar a garantia constitucional do direito de propriedade do Autor (artigo 5º, XXII, da Constituição Federal) deveria o v. acórdão ter sido fundamentado de forma exaustiva, enfrentando diretamente essa questão jurídica;
b) As circunstâncias de fato do processo não atendiam ao preceito da função social da propriedade, insculpido pelo art. 5º, XXIII, da Constituição Federal;
c) O prazo de 5 anos previsto pelo § 4º, do artigo 1228, do Código Civil, deve, a rigor, estar preenchido antes da citação dos possuidores;
d) A demora do Poder Judiciário – e consequente consolidação da situação de fato – não pode ser o único motivo para se convalidar uma situação de invasão de terras, sobretudo quando se reconhece o direito do Autor e a ausência de boa-fé dos possuidores demandados; e
e) A forma de pagamento e a fixação da indenização, prevista pelo § 5º, do artigo 1228, do Código Civil, devem ser definidas de forma clara, estabelecendo-se parâmetros objetivos para evitar, na medida do possível, futuras celeumas.
Formado em Direito pela PUC-SP. Especialista em Direito Contratual pela PUC-SP. Mestrando em Direito Civil pela PUC-SP. Advogado em São Paulo
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