Resumo: O presente artigo foi desenvolvido durante o mestrado em Direito Constitucional, realizado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nosso enfoque foi a análise do Poder Constituinte, usando como paradigma a Assembléia Nacional Constituinte, instalada no ano de 1987, convocada pela EC n. 26, de 27.11.1985 (DOU, 28.11.1985, p. 17422, col 1). Nesse contexto, inconciliável se apresenta uma abordagem do período predecessor, que em que pese às duras críticas do regime militar ditatorial ali instalado, contribuiu de certa forma para a concretude das mudanças insertas no texto constitucional de 1988, fruto de uma deliberação com aberta participação popular sem precedentes no constitucionalismo nacional e que contribuiu para a instalação do Estado de Direito atual.
Palavras-chave: Poder Constituinte. Estado de Exceção. AI-5. Redemocratização. Golpe Militar.
Sumário: Introdução. 1 Golpe Militar de 1964 e a instalação do Estado de Exceção. 2 A Constituição de 1946 e sua contribuição para o constitucionalismo brasileiro. 3 O “Estado de Exceção”. 4 Do Poder Constituinte. Considerações finais. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Incontroverso que para uma análise do Poder Constituinte externado pela Assembléia Nacional Constituinte, que perdurou do ano de 1987 a 1988, convocada pela EC n. 26, de 27.11.1985 (DOU, 28.11.1985, p. 17422, col 1) inconciliável se apresenta uma abordagem do período predecessor, que em que pese às duras críticas do regime militar ditatorial ali instalado, contribuiu de certa forma para a concretude das mudanças insertas no texto constitucional de 1988, fruto de um deliberação com aberta participação popular sem precedentes no constitucionalismo nacional.
Chamamos a atenção para tal constatação, pelo fato de que no Brasil houve um longo e tenebroso processo de transição democrática, ou seja, de um regime autocrático, de natureza militar – empresarial, para um regime democrático, cujas bases estavam sendo traçadas nesse poder constituinte originário.
1 Golpe Militar de 1964 e a instalação do Estado de Exceção
O movimento militar de 1964, que instalou uma nova ordem revolucionária no País, foi determinante para o molde da atual Constituição Federal, já que, conforme iremos detalhadamente abordar no decorrer de nosso estudo, os conceitos de “Estado de Direito” e “Estado Democrático” passaram a ser gradativamente e violentamente mitigados nesse período. Outra ilação não deve haver, pois como exemplo, dentre outros pontos, aqui o País passou a ser governado por Atos Institucionais e Complementares, com nefasta interferência do Poder Executivo sobre os demais.
Olhando um pouco para o passado do constitucionalismo brasileiro, e procurando demonstrar o momento histórico das transformações políticas que nos propomos a abarcar, mais precisamente o que constatado entre a imposição do Golpe Militar de 1964, que atingiu sua plenitude, sob o ponto de vista dos traços que identificam esses regimes, com a vigência do ato institucional nº. 5 e a Assembléia Nacional Constituinte instalada de 1987 a 1988, esse lapso temporal, sem precedentes na história política brasileira é caracterizado justamente pela instituição de um “Estado de Exceção” com o consequente natural e tortuoso processo de redemocratização. O AI 5, não pode ser visto de maneira isolada, mas sim, em um determinado contexto histórico, que marcou o ápice desse “Estado de Exceção” então instalado; o que nos leva até a afirmar que tal ato foi extremamente previsível e irremediável, sendo a fiel imagem de um contexto empírico que se apresentava lamentavelmente no Brasil.
Com tais marcos temporais estabelecidos, importantes menções se fazem necessárias, pois como já adiantamos, inegável que tal período foi um dos mais conturbados na história política brasileira, porém, não se pode negligenciar que, quanto ao estudo do constitucionalismo, em especial ao foco que pretendemos dar, como por exemplo, a análise do Poder Constituinte, a instituição de um Estado de Exceção e a busca pela redemocratização; esse momento histórico inegavelmente nós apresenta importantes lições.
2 A Constituição de 1946 e sua contribuição para o constitucionalismo brasileiro
Como ponto inicial desse processo retrospectivo aqui apresentado, denotamos que a Constituição de 1946 pode ser considerada como um importante avanço no constitucionalismo brasileiro, o que muito se deu as inovações inseridas em seu texto, com o flagrante objetivo de por termo ao regime totalitário vigente a época e externado pela Constituição de 1937. Naquele período se avançou bastante, quanto aos dogmas democráticos, o que muito se deu no tocante ao pluralismo experimentado a Assembléia Constituinte então instalada, de um governo centralizador e opressor, típico dos regimes totalitários, se iniciava então uma discussão voltada paro o “Estado de Direito Social”.[1] Era uma Constituição, em razão dessa constatação promulgada, deliberada e não imposta, com preocupação a uma intervenção estatal, em especial quanto aos Direitos Sociais, em detrimento de um estado liberal, inerte quanto a essas questões.
De tal afirmação se denota a importância da Constituição de 1946, fruto de um pós guerra que demonstrou a maleficência dos regimes totalitários, em especial o nazista e o fascista, ou seja, buscou o constituinte, em uma tendência, a sua aderência ao “fenômeno denominado de constitucionalismo social, com a nota peculiar da modificação da postura do Estado em face dos indivíduos, já, agora, amparado no princípio da não-neutralidade, e destinado a intervir no domínio econômico em ordem à consecução de sociedade menos desigual”[2].
3 O “Estado de Exceção”
Lamentavelmente, em 31 de março de 1964, ocorreu a terrível ruptura desse processo democrático instalado pela Constituição de 1946, por um golpe militar, o que evidenciou ainda a fragilidade das instituições nacionais. Enfim, latente o retrocesso, em todas as vertentes imagináveis; instalava-se no Brasil um “Estado de Exceção” permanente.
Nesse contexto citamos trecho de Giorgio Agabem, em sua obra “Estado de Exceção”, trecho que muito bem reflete a dogmática de um regime totalitário:
“O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração por meio de estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, parecem não integráveis ao sistema político. Desde então, a criação de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos”[3].
Inquestionável que a primeira consequência da instauração de um regime desse porte, com a destruição quase por completa dos direitos individuais e coletivos, com forte repressão política e afastamento das garantias constitucionais ao indivíduo é justamente a violência natural desse regime. Conforme apontaremos, por mais paradoxal que seja, esses regimes totalitários, com a destruição do legislativo e judiciário, passam de maneira unilateral a dizer qual é o Direito vigente a ser observado pela sociedade. De tal constatação, cria-se uma ilusão, no sentido de que por mais nefasto que seja um ato ditatorial, decerto que esse ato naquele momento é o Direito imposto, assim, a perversidade desse sistema é justamente na constate justificação de um ato de força, ao qual sob a égide do ordenamento jurídico usurpado seria recriminável, como por exemplo, eventual justificativa, de um ato de força, pela segurança do regime, pela soberania nacional, defesa do Estado etc.
Diante dessa triste inferência empírica, certo que os militares sangraram o povo brasileiro, produzindo centenas de desaparecidos ou mortes em nome do regime; esse foi o preço de não encontrarmos no Brasil, em sua história, uma tradição democrática, que pudesse coibir a monstruosidade que é um regime militar, aonde generais, sem qualquer compromisso com a democracia, e sem qualquer oposição institucional, eram perigosamente livres para estabelecer as regras de conduta a serem observadas pela sociedade. O Brasil viveu das “verdades” dos porões, aonde em nome da manutenção de uma ditadura, os militares utilizara-se, lamentavelmente com grande intimidade e despudor, da tortura, como forma de interrogatório.
Conforme apontado por Elio Gaspari, em “A Ditadura Escancarada”, um dos grandes legados negativos deixados pelos generais, foi como reflexo de sua política, a institucionalização da tortura em solo brasileiro, fato esse que não pode ser jamais esquecido, no sentido de que fique clara a certeza de como a sustentação de um regime desses é cruel, ou seja, “para presidente, ministros, generais e torcionários, o crime não está na tortura, mas na conduta do prisioneiro” [4].
Com tais ressalvas, pode-se depreender que todo o ideal democrático esculpido na Constituição de 1946, foi completamente vilipendiado pelos militares. Assim, como característica desses regimes, houve verdadeira mitigação dos Poderes, mais fortemente Legislativo e Judiciário, o que derivou de um lamentável retrocesso, ou seja, a um conceito e formato de Estado que muito se assemelhava ao Absolutista. Aqui não havia a distinção de funções típicas entre os poderes constituídos, mas ao contrário, com concentração dos poderes nas mãos do monarca; aqui um general.
Esse é o ponto relevante que caracteriza um “Estado de Exceção”, ou seja, a abolição provisória da distinção entre Poder Executivo, Judiciário e Legislativo. Mostra-se assim, a tendência dos regimes autoritários em transformar-se em prática duradoura de governo, pela real fulminação das instituições que representam uma ameaça a essa perpetração no poder político do País, ou seja, como já abordado, instala-se um “Estado de Exceção” permanente, com o afastamento de qualquer norma contrária aos interesses do regime; cria-se uma exceção em relação aos poderes constituídos.
Quanto a essa extensão de Poderes do Executivo no âmbito do Legislativo, típico daqueles autoritários, Tingstem dispõe da seguinte maneira:
Entendemos por leis de plenos poderes aquelas por meio das quais se atribui ao executivo um poder de regulamentação excepcionalmente amplo, em particular o poder de modificar e de anular, por decretos, as leis em vigor” (Tingsten, 1934, p.13).
De fato, aqui merece a citação da doutrina de Giorgio Agamben, em seu livro “Estado de Exceção” que apontou justamente essa dicotomia existente entre a eficácia da lei e força de lei, aonde aqui é aonde encontramos os traços característicos de um “Estado de Exceção”, sua grande base de sustentação, ou seja, a corrente utilização de decretos e atos institucionais, por exemplo, que não são formalmente leis, porém, adquirem sua força.[5]
As edições de tais atos institucionais fulminaram por completo a Constituição de 1946, aonde chamamos a atenção ao AI – 2, que permaneceu vigente até 15 de março de 1967, data da entrada em vigor da Constituição de 1967, que fez previsão em seu texto, por exemplo, da aprovação de projetos de lei de incitativa do Presidente da República por decurso de prazo, eleição indireta para o cargo de Presidente, restrição de direitos e garantias individuais; dentre outras medidas arbitrárias e autoritárias que norteavam o regime político que no Brasil se instalava.[6]
Fica evidente, que no momento em que se afasta o efetivo, formal e constitucional “processo legislativo” para a produção de leis e passa-se o Executivo a utilizar rotineiramente de atos que não são formalmente leis, porém, adquirem sua força; como os Decretos e os Atos Institucionais; que o Estado Democrático de Direito estará em risco ou até mesmo que nem exista mais.
Nesse momento histórico abordado, constata-se, diante dos fatores acima descritos, numa progressiva erosão do Poder Legislativo e via de consequência do próprio Estado Democrático. Já que este não se compatibiliza com essa realidade, ou seja, em um regime político que quebra a hierarquia das leis e que busca a concentração do poder incondicionalmente. Tal fenômeno, como bem apontado por Gilberto Bercovici, é decorrência natural de uma ditadura, como a aqui estabelecida, pois “no caso de exceção, o Estado suspende o direito em virtude de um direito de auto – conservação”[7].
Também nos termos de Giorgio Agamen: “Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção” [8].
A Constituição de 1967, publicada em 24 de janeiro de 1967, como não poderia deixar de ser, acompanhou a tendência do regime vigente, ou seja, exacerbação do Executivo e mitigação dos direitos e garantias individuais; sendo produto do golpe militar de 1964. Ponto que merece destaque cinge-se a constatação de que tal Constituição “foi aprovado pelo Congresso Nacional, para tanto constrangido a deliberar em sessão extraordinária de apenas quarenta e dois dias – de 12 – 12 – 1966 a 24 – 01 – 1967 – com base em proposta literalmente enviada a “toque de caixa” pelo Presidente da República, que para tanto dispunha do apoio das Forças Armadas, se necessário até mesmo para o fechamento das Casas Legislativas, àquela altura em recesso forçado e já desfalcada dos principais líderes oposicionistas, cujos mandatos e direitos políticos tinham sido cassados pelos chefes da insurreição militar vitoriosa” [9].
Nesse contexto, como citado na passagem, frisamos a pressão exercida pelo regime militar que orientou e ditou os trabalhos da constituinte. Assim, importante questionamento pode-se insurgir, ou seja, será que a Constituição de 1967, mesmo sendo fruto de uma Assembléia Nacional Constituinte, pode quanto a origem, ser considerada uma Constituição promulgada; ou em razão das peculiaridades do momento histórico evidenciado, melhor seria qualificá-la como uma Constituição outorgada, em razão das forças autoritárias de pressão terem mitigado a soberania popular no exercício do poder constituinte?
De início cumpre destacar, como aponta Francisco de Guimarães, que é ponto pacífico da doutrina jurídica, que “a maneira mais adequada de exercício do Poder Constituinte, cuja titularidade pertence ao povo, segundo a teoria da soberania popular, é a formação de uma Assembléia Nacional Constituinte”[10].
4 Do Poder Constituinte
Entendemos relevante a abordagem do tema, no sentido de apontarmos que o lugar por excelência aonde o Poder Constituinte se manifesta é em uma Assembléia Nacional Constituinte, porém, o grande problema desse processo deliberativo (quando há), é o seu produto final, ou seja, o poder que se constitui. Justamente aqui, quando não se observa ou quando realmente não há limites intrínsecos e supralegais que possam balizar essa potencialidade é quando a arbitrariedade se revela. Tal constatação leva a disparates, como observamos com referencia a ANC de 1967 e aquela realizada em 1987 a 1988, aonde o resultado desse processo revela-se completamente distinto.
Não há como negar que, em que pese a deliberação constatada na elaboração da Constituição de 1967, constata-se que esse procedimento foi flagrantemente viciado; contaminado pelos dogmas que permeiam os regimes totalitários, aonde no Brasil já eram aptos a influenciar qualquer manifestação de soberania como a que se realizava. Em razão disso, defendemos que a Constituição de 1967, quanto à origem, foi verdadeiramente outorgada, ou seja, imposta, e não resultado de um processo deliberativo amplo, com debate democrático de toda a sociedade civil; soberania essa somente experimentaria o Brasil na Assembléia Nacional Constituinte que precedeu a Constituição de 1988.
Como essas ponderações, fica evidente como o Poder Constituinte é instituto forte no constitucionalismo, sendo instrumento adequado a potencializar o novo, aonde em que pese a Constituição ser promulgada ou outorgada, esse Poder possui completa aptidão a dizer o que o Direito; nisso reside seu perigo. Como conceito de Poder Constituinte, citamos Antônio Negri, na seguinte passagem:
“O poder constituinte é a potencia de configurar a inovação que resistência e insurreição produziram, e de dar-lhe uma forma histórica adequada, nova teleologicamente eficaz, Se a insurreição obriga a resistência a se tornar inovação ( e expressa, portanto, a produtividade que interrompe do trabalho vivo), o poder constituinte da forma a essa expressão (acumula a potencia de massa do trabalho vivo em um novo projeto de vida, em um novo potencial de civilização). E, se a insurreição é uma arma que destrói as formas de vida do inimigo, o poder constituinte é a força que organiza positivamente novos esquemas de vida e de gozo de massa da vida”[11].
Assim, o cerne da expressão consagrada do constitucionalismo, é justamente o conceito de Poder Constituinte com a idéia de um poder inicial, ilimitado e incondicionado. “Incondicionado porque não há forma prévia de expressão do poder constituinte, não há mecanismos previamente configurados para a constituição de novos registros de realidade” [12].
A apresentação de tal conceito de Poder Constituinte é pertinente para demonstrarmos o quanto tal poder instituidor é perigosamente poderoso, no sentido de tornar até mesmo um “Estado de Exceção” que leva a supressão ou derrogação do ordenamento jurídico vigente, para a concretude de uma nova realidade, com matriz jurídica válida, mesmo que recriminável. Assim, também lembramos Giorgio Agamben, na seguinte passagem:
“O estado de exceção, enquanto figura da necessidade, apresenta-se pois – ao lado da revolução e da instauração de fato de um ordenamento constitucional – como uma medida “ilegal”, mas perfeitamente “jurídica e constitucional”, que se concretiza na criação de novas normas ( ou de uma nova ordem jurídica).” [13]
Lembramos que essa conciliação entre “Estado de Exceção” e ordem jurídica é ponto fulcral da doutrina schimitiana, que entende que o que caracteriza uma ditadura soberana é justamente sua aptidão para criar uma nova constituição. “Trata-se de uma articulação paradoxal, pois o que deve ser inscrito no direito é algo essencialmente exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica (donde a formulação aporética: “Em sentido jurídico {..}, ainda existe uma ordem, mesmo não sendo uma ordem jurídica”) [14].
Afastando-nos às críticas que se possam fazer dessa doutrina, no sentido de não mencionar eventuais limites supralegais ao exercício da soberania pelo Poder Constituinte, o que queremos dizer é que as premissas schimitiana, denotam ao Poder Constituinte, mais precisamente numa ditadura soberana a que pretendemos abordar, uma força de criação ilimitada e incondicional, e com a potência de tornar os preceitos antidemocráticos de um “Estado Exceção” o próprio Direito.
Nessa linha, a ditadura militar instalada no Brasil entendia o “recado” de Carl Schmitt, ao demonstrar uma não preocupação pelo Direito vigente ou quanto ao próprio poder constituído, sendo característica marcante desse regime uma desfiguração da Constituição pretérita por Atos Institucionais. Com tais ilações, mesmo considerando que houve deliberação quanto a promulgação da Constituição de 1967, ratificamos o que já dito, que a mesma foi uma Constituição outorgada pelo regime militar, não havendo exteriorização, nesse período, de qualquer exercício democrático pela soberania popular.
Tanto é assim, que foi o governo de Arthur da Costa e Silva, que apresentou à nação, o mais nefasto de todos os Atos Institucionais, o famigerado Ato Institucional – 5, que entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968. Este Ato minou qualquer vestígio de democracia que ainda restava no Brasil, mesmo não trazendo expressamente em seu texto, certo que na prática, houve a completa desfiguração da Constituição de 1967, conferindo ao regime ditatorial militar uma discricionariedade jamais vista, o que também contribuiu para a consolidação de um “Estado de Exceção” em detrimento de um “Estado de Direito”. O Ato vigorou até 31 de dezembro de 1978[15].
Citando Celso Bastos: “O AI – 5, marca-se por um autoritarismo ímpar do ponto de vista jurídico, conferindo ao Presidente da República uma quantidade de poderes de que muito provavelmente poucos déspotas na história desfrutaram, tornando-se marco de um novo surto revolucionário, dando a tônica do período vivido na década subsequente”[16].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Terminando a abordagem que pretendemos dar quanto às Constituições, em específico, aquelas que precederam a Assembléia Nacional Constituinte de 1977 a 1988; certo que a Constituição de 1969, fruto do Ato Institucional nº. 12, de 31/08/1969, que estabeleceu um governo de “Juntas Militares”, em decorrência da impossibilidade de governar do então Presidente Costa e Silva, por motivo de uma grave enfermidade; se manteve fiel à cartilha do regime militar, sendo considerada, por essas características, uma Constituição revolucionária; foi um golpe dentro do golpe.[17]
Constata-se também que a Constituição de 1967 concebida em razão da Emenda Constitucional nº1/69 de 17/10/1969, mais uma vez demonstrou como o poder constituinte era perigosamente forte, aonde chamamos atenção a norma presente em seu texto que constitucionalizava a utilização de Atos Institucionais, como se observa em seu artigo 182, que manteve em vigor o AI – 5 e todos os demais atos baixados[18].
Nos termos da presente abordagem, demonstrado que a imposição, desde 1964 de um “Estado de Exceção” no Brasil, expressão essa que utilizamos com frequência nesse estudo, nos exatos termos da obra de Agamben, não podia se sustentar por muito tempo. Isso, não pelo desinteresse do regime em se tornar o mais longevo possível, mas sim pela realidade de que, por mais que no Brasil não se observe uma tradição democrática, houve principalmente na América Latina por volta de 20 a 25, atrás um movimento de redemocratização. Por mais que frisado a força normativa de um Poder Constituinte originário, em especial quanto às constituições antidemocráticas, típicas da ditadura militar, o grande problema dessas constituições é quanto a recepção e ulterior oposição desses comandos, o que determinou a derrocada dos regimes militares. Elucidando o que dito acima, citamos Adrian Sgrabi[19]:
“Em síntese, há o problema “empírico” da constituição que concerne a sua “existência fática”, e há o problema “político” da constituição, que diz respeito a sua “adesão” e a sua “capacidade” de servir de referência para a solução de conflitos. Porque como a constituição é resultado de uma decisão política, o regime político envolve a análise da questão de “quem” manda, o “que” manda e “como” manda. Portanto, uma coisa é estabelecer uma análise de normas válidas ( que independe do regime político e da legitimidade da ordem jurídica); outra é aceitar a ordem jurídica, porque tê-la como legítima é aprovar o regime jurídico que ela consagra. A primeira é atividade de “conhecimento”; a segunda de “aprovação”. Ter conhecimento de algo não implica aceitar, aprovar o que se conhece, ter o conhecimento de que uma constituição é “operativa” não significa pessoalmente “aceitá-la”. Essas distinções nos conduzem à questão da estabilidade.
Seguindo, se na ANC de 1967 houve forte influência do regime militar, como constatamos; na ANC de 1987 – 1988, a diretriz era outra. Nesse momento, o País era assolado por uma grave crise econômica e institucional, bem como, por uma forte mobilização social, observada tanto antes, quanto durante a Assembléia Nacional Constituinte de 1987 – 1988, o que foi essencial para demarcar as linhas da influência popular sobre esta.
Conforme adiantamos nas linhas acima, para enaltecermos a grave crise institucional e social, perpetrada pelo regime ditatorial em comento, nos apropriaremos de uma expressão utilizada na obra aqui já citada de Agamben, que muito reflete esse momento, que é o “luto público”. Visto esse, como uma consternação social coletiva, para com o regime vigente e que antecedeu a transição democrática e inspirou os dogmas da Constituição que se aproximava e era tão aguardada.
Para traduzir esse sentimento coletivo de luto, trazemos a colação as palavras Versnel, no sentido de que “todas as sociedades foram edificadas em face do “chaos”. A constante possibilidade de terror anômico é atualizada toda vez que as legitimações que cobrem a precariedade desabam ou são ameaçadas”(Versnel, 1980, p. 583).
Enfim, vencendo a essa etapa de nosso estudo, ou seja, buscar uma pertinência histórica de justificação dos preceitos insertos da Constituição Federal de 1988, podemos afirmar que, como consequência em geral; processos associados a novas democracias, ao término de regimes formalmente autoritários ou militares, foram paralelos a implementação de reformas, como as aqui constatadas no texto da Constituição Federal de 1988.
Fato que o Estado brasileiro necessitava de uma nova diretriz, seja política, social, cultural, econômica etc. Ficou demonstrado que, a sociedade civil aumentava cada vez mais o clamor pela desconfiança na capacidade de as Forças Armadas em conduzirem o Estado Autoritário, como por exemplo, as gigantescas passeatas que tomaram o País, manifestações intituladas por “diretas já” em favor das eleições presidenciais, bem como, as constantes acusações em desfavor do regime, no que se refere ao desrespeito de direitos humanos.
Chegou-se, assim, ao fim do modelo nacionalista, defendido pelos militares por décadas e que além de impingir a violação dos direitos fundamentais e fulminação das instituições públicas, dentre outros atos de força, foi marcado por grande estatização e burocratização, o que levou à década de 80 a ser reconhecida como uma década perdida.
Como já fizemos menção, a democratização não foi um processo eminentemente interno do Estado brasileiro, mas também um movimento de forte cunho internacional e que passou pela periferia, ou seja, América Latina, com grande intensidade na década de 80 e que obedeceu às peculiaridades de cada Estado nessas transformações.
Concluímos ratificando que, diante de décadas de forte opressão, foi natural que na própria Assembléia Nacional Constituinte, já ficasse claro que as vozes que permaneceram forçosamente em silêncio por anos, exigiriam ser ouvidas pelos constituintes e ainda, que houvesse efetiva e real participação popular no processo democrático tão aguardado.
Esse sentimento é latente, na obra de Adriano Pilatti, “A Constituinte de 1987 – 1988, Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo”, com a seguinte passagem[20]:
“Ali aconteceu um processo decisório caracterizado pelo dissenso, pela intensa e permanente mobilização de atores coletivos internos e externos, por votações altamente polarizadas e, ao mesmo tempo – sobretudo em sua fase final – por uma atividade igualmente intensa e incessante de busca de acordos entre lideranças das diferentes forças em choque.”
Nessa senda, como exemplo, podemos citar a legitimação popular, assembléias deliberativas públicas, participação popular e outros instrumentos que bisavam a participação da sociedade civil na ANC. Fato é que o esforço ali despedido foi dimensionado por 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de um milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final[21].
Esse foi o legado positivo dos anos de ditadura, a redemocratização sólida de uma Nação, em patamares jamais vistos.
Referências bibliográficas:
Advogado e Procurador de autarquia municipal. Pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor de graduação da Universidade Presidente Antônio Carlos, São João del Rei, Minas Gerais.
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