Claudia Barreto Fraga – Bacharel em Direito pela Faculdade Nobre de Feira de Santana. Pós-graduada em Direito Constitucional pelo Damásio Educacional. Advogada (claudiabarreto@live.com)
Resumo: Diante do fenômeno da expansão da internet, ocorrido de forma mais intensa na última década com o uso massivo das redes socias e aplicativos de mensagens, as relações sociais adquiriram novos contornos. Alguns direitos já consolidados no ordenamento jurídico brasileiro exigem agora uma regulação sob uma perspectiva digital. Nesse sentido, este artigo trata sobre os direitos constitucionais à herança e à intimidade e sua interrelação na proteção da intimidade de terceiros em meios digitais. O artigo realiza uma ponderação entre o direito de se herdar um patrimonio digital e o direito do terceiro de proteger sua intimidade no momento da sucessão.
Palavras-chave: Herança. Intimidade. Digital. Ponderação.
Abstract: Considering the booming phenomenon of the Internet, the most intense form has occurred in the last decade with the massive use of social networks and messaging applications such as social relationships acquired new contours. Some rights already consolidated in the Brazilian legal system now require a change from a digital perspective. In this sense, this article deals with the constitutional rights to inheritance an privacy and their interrelation in protecting the privacy of others in digital media. The article balances the right to inherit a digital heritage and the right of others to protect their privacy at the time of succession.
Keywords: Heritage. Privacy. Digital. Weighting.
SUMÁRIO: Introdução. Fundamentação teórica: 1. Do direito à herança; 2. Do Direito à intimidade; 3. Da lei 12.965 de 23 de abril de 2014 ou Lei do Marco Civil da Internet; 4. Dos bens digitais com valor econômico e sem valor econômico; 5. Da personalidade civil; 6. Da ponderação de normas constitucionais. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Os benefícios trazidos pela internet são incontestáveis. O alcance informacional observado na atualidade jamais poderia ser obtido por meios corpóreos tais como o papel impresso. A disponibilidade de conteúdos didáticos, a facilitação da comunicação e a democratização do aprendizado são alguns dos privilégios oferecidos por esta tecnologia. Por outro enfoque, a internet é um organismo fluido, com fronteiras fictas e controlada por uma parcela restrita da sociedade. Muitos usam, poucos a dominam em sua inteireza. A incapacidade de refrear as consequências do mau uso das redes é uma preocupação tanto dos operadores dos ambientes digitais quanto de seus usuários.
O ser humano, por sua própria natureza, tende a reconhecer qualquer ambiente como delimitável. Delimitam-se continentes, países, estados, regiões, cidades, até mesmo espaços pessoais. Num cenário contemporâneo, o usuário comum da internet ainda age como esse ser originário que, por possuir afinidade com o hábito da delimitação, supõe estar protegido no universo digital através do uso de senhas, chaves de segurança e demais mecanismos de proteção de dados. Essa presunção de segurança, no entanto, não guarda correspondência com a realidade e a intimidade do usuário encontra-se sob constante ameaça.
A violação da intimidade na internet por meios fraudulentos é evento comum. Ataques a perfis em redes sociais, invasão de dispositivos móveis, divulgação de informações íntimas, furto de dados pessoais, etc. O direito já vem se adaptando a essas novas formas de transgressão, mas é difícil analisar com urgência, sob as óticas jurídica, social e filosófica, um fenômeno tão metamórfico quanto o universo digital.
A intimidade é um direito consagrado no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. O ordenamento jurídico já possui regramento para a preservação desse direito fundamental. Instaurada uma realidade virtual, no entanto, alguns direitos ganham novos contornos, há uma necessidade de compreensão dos institutos em seus formatos digitais e das consequências, ainda desconhecidas, dessas adaptações.
Dentre esses direitos que vêm ganhando novas configurações, encontra-se também o direito de herança, consagrado no mesmo rol de direitos fundamentais em que se encontra o direito à intimidade.
O direito de herança, em sua modalidade digital, ainda é um tema obscuro para os operadores do direito. Como compatibilizar o direito de herança em seu formato digital com o direito à intimidade de terceiros que mantinham contato íntimo com o de cujus através das contas de internet? O acesso irrestrito dos herdeiros aos conteúdos digitais poderia configurar ofensa tanto ao direito do morto quanto a direito de terceiros.
Ao herdar uma conta digital, o parente do morto teria acesso não somente aos conteúdos públicos exibidos pelo indivíduo falecido, mas também a todos os conteúdos íntimos, como conversas pessoais, fotografias e dados de terceiros. Avaliar a possibilidade de acesso e de gerenciamento dessas contas pelos herdeiros é um exercício típico de ponderação de direitos. A discussão aqui apresentada tem como base a ponderação entre o direito à intimidade e o direito à herança, sem a pretensão, no entanto, de oferecer solução para esse tema de consequências ainda imprevisíveis.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A herança é direito fundamental assentado no artigo 5º, inciso XXX da Constituição da República Federativa do Brasil. A herança é o nome dado ao direito de herdar, por via de sucessão, bens de alguém falecido. Com a morte do indivíduo, abre-se a sucessão. Provada a morte, pelos meios de que se vale a medicina legal, opera-se a transmissão hereditária (PEREIRA, 17, p. 27).
Segundo Ascensão (apud TARTUCE, 18, p.1441), o direito das sucessões realiza a finalidade institucional de dar a continuidade possível ao descontínuo causado pela morte. A continuidade deixa marca forte na figura do herdeiro. Este é concebido ainda hoje como um continuador pessoal do autor da herança, ou de cujus. Este aspecto tem a sua manifestação mais alta na figura do herdeiro legitimário.
Ainda segundo Ascensão (apud TARTUCE, 18, p. 1441), é importante também a continuidade na vida social, pois não seria razoável que tudo se quebrasse coma morte frustrando aqueles que em vida contrataram com o falecido. É necessário, para evitar sobressaltos na vida pessoal, assegurar que os centros de interesses criados à volta do autor da sucessão prossigam quanto possível sem fraturas para além da morte deste.
O Código Civil brasileiro diz em seu artigo 1784 que, aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários. De acordo com o artigo 1829, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente; IV – aos colaterais.
Tomando-se por base esta breve exposição sobre herança em seu sentido clássico, o conceito de herança digital poderia ser delineado como o direito conferido aos sucessores do morto de recepcionar todos os conteúdos gerados por seu parente falecido quando em vida. Os sucessores não somente receberiam os conteúdos digitais, como também poderiam continuar a promover as relações pessoais e comerciais estabelecidas pelo de cujus. Utilizando-se do ensinamento de Ascensão sobre herança, para a construção de um conceito de herança digital, poder-se-ia dizer que herança digital é também a continuação das relações empreendidas pelo falecido quando em vida.
Note-se que o rol de legitimados à sucessão é extenso, juntamente com a possibilidade de se deixar herança por meio de testamento. É importante ter em conta a amplitude do rol de legitimados para realizar as ponderações necessárias no âmbito da herança digital. O acesso e o gerenciamento feito por vários herdeiros não seria razoável, pois comprometeria a segurança do conteúdo. Além disso, há também a impossibilidade de aquinhoar, ou seja, não há como repartir uma herança dessa natureza, o que exigiria uma conexão harmônica entre os herdeiros para o gerenciamento das contas digitais herdadas. Se até mesmo com bens corpóreos os inventários e partilhas são realizados de forma tormentosa, imagine-se a dificuldade em regulamentar uma herança digital e manter a sua integridade.
Até a metade do ano de 2019, dois projetos de Lei sobre herança digital tramitavam no congresso. Um deles era o PL 4847 de 2012 que visava estabelecer normas de herança digital e o outro era o PL 4099 de 2012 que visava garantir aos herdeiros a transmissão de todos os conteúdos de contas e arquivos digitais.
De acordo com a comissão de Justiça e Cidadania, “O PL nº 4.099, de 2012, e o PL nº 4.847/2012 não afrontam o ordenamento jurídico nem a técnica legislativa. Quanto ao mérito, não há lei que trate sobre a sucessão de ‘bens virtuais’ do de cujus aos herdeiros da herança. Assim, a aprovação da presente proposição atende aos pleitos dos tempos modernos e atualiza a legislação. É sabido que houve crescimento nas aquisições na internet de arquivos digitais de fotos, filmes, músicas, e-books, aplicativos, agendas de contatos, entre outros; e a utilização das contas das redes sociais. Neste sentido, somos pela aprovação do PL nº 4.099, de 2012, e do PL nº 4.847/2012, pois visam à pacificação dos conflitos sociais.”[1] De acordo com o site oficial da câmara dos deputados, os dois projetos de lei foram arquivados no ano de 2019[2].
O direito à intimidade, assentado no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal é tratado ao lado dos direitos à vida privada, honra e imagem. Descrita como um núcleo mais restrito do direito à privacidade, “o direito à intimidade compreende as relações e opções mais íntimas e pessoais do indivíduo, compondo uma gama de escolhas que se pode manter ocultas de todas as outras pessoas, até das mais próximas. Representa, pois, o direito de possuir uma vida secreta e inacessível a terceiros, evitando ingerências de qualquer tipo” (MASSON, 16, p.218).
O direito à intimidade é um núcleo mais específico, mais restrito do que o direito à privacidade. O direito à intimidade existiria para proteger relações mais íntimas, mais pessoais. Se no caso da privacidade, as relações pessoais devem ser ocultadas do público, no caso da intimidade tem-se uma proteção até mesmo contra atos das pessoas mais próximas a nós (FERNANDES, 17, p.489).
De acordo com Paulo Gonet Branco, em seu Curso de Direito Constitucional, a privacidade e a intimidade são coisas diferentes. O autor entende que privacidade é algo amplo e que a intimidade está contida naquela. O direito à privacidade teria por objeto os comportamentos e acontecimentos atinentes aos relacionamentos pessoais em geral, como relações pessoais em geral, mas que o indivíduo prefere manter fora do acesso ao público em geral. Já objetivo do direito à intimidade seriam as conversas e episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas (MENDES, BRANCO, 2016, p. 280).
A privacidade e a intimidade seriam direitos de controlar as informações sobre si mesmo, decidindo quem poderia ou não ter acesso a essas informações. Willian Prosser (apud MENDES, BRANCO, 2016, p. 282), nos Estados Unidos, sustentou que haveria quatro meios básicos de afrontar a privacidade. O primeiro deles seria intromissão na reclusão ou na solidão do indivíduo; o segundo, a exposição pública de fatos privados; o terceiro, a exposição do indivíduo a uma falsa percepção do público, que ocorre quando a pessoa é retratada de modo inexato ou censurável; a quarta, seria a apropriação do nome e da imagem de uma pessoa sobretudo para fins comerciais.
Como se pode extrair dos ensinamentos acima, o direito à intimidade é aquele que se encontra numa esfera extremamente restrita. A intimidade abrange as particularidades morais de cada ser humano, seus pensamentos e anseios mais protegidos. Seria a intimidade aquela parcela subjetiva que o indivíduo expõe apenas para si mesmo ou para as pessoas de sua estrita confiança, o que abarcaria a autoestima, a sexualidade, segredos, fotografias íntimas, etc.
Sob a perspectiva de Prosser, a intimidade tratada neste artigo poderia ser tanto aquela referente à exposição pública de fatos privados, quanto aquela que retrata o indivíduo de modo inexato ou censurável. Isto porque, após a sucessão, os herdeiros teriam acesso direito às informações de pessoas diversas e apenas o fato de assumir a herança e ter o acesso à conta já seria suficiente para violar a intimidade de alguém. O destinatário das mensagens, desde o começo, foi o titular originário da conta e não os seus herdeiros, logo, a esses últimos não deve ser garantido o acesso a informações de cunho pessoal de terceiros.
No contexto da herança digital, o sucessor poderia ter acesso não somente aos dados de seu parente falecido, mas também aos dados, conversas e fotos de terceiros que se relacionavam virtualmente com o de cujus. Ou seja, poderia haver a violação à intimidade de um grande número de pessoas, as quais não teriam qualquer instrumento hábil para garantir a sua privacidade em caso de acesso irrestrito às contas.
É sabido que a troca de informações via internet nos dias atuais envolve todo tipo de informação, algumas delas poderiam revelar dados de toda natureza, de fotografias íntimas, as vulgarmente denominadas “nudes”, até a confissão de delitos e transgressões morais. Os efeitos jurídicos desta sucessão, sem restrições, seriam devastadores. As demandas judiciais em busca da tutela do direito fundamental à privacidade aumentariam sobremaneira.
A lei 12.965 de 2014 ou Lei do Marco civil da internet é a lei que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Em seu texto há diversas correspondências aos termos “privacidade” e “intimidade”, o que já denota a importância de tais direitos na regência das relações virtuais no Brasil.
No artigo 3º, a lei comunica que a disciplina do uso da internet no Brasil terá como princípio, dentre outros, a proteção da privacidade. Como explicado no capítulo sobre intimidade, o direito à privacidade é um direito mais amplo no qual está contido o direito à intimidade, este que se apresenta como algo mais restrito, abrangendo particularidades morais, pensamentos, conversações secretas, etc.
O artigo 7º da Lei do marco civil da internet diz que o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania e que ao usuário são assegurados vários direitos. Dentre esses direitos, já no inciso primeiro, a referida lei diz que será garantida a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Na seção II, que trata da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, no artigo 10, a lei estabelece que a guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.
Ainda sobre a lei 12.965 de 2014, o artigo 21 diz que o provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. O parágrafo único do mesmo artigo completa dizendo que a notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
Uma análise superficial da lei do marco civil da internet já permite ao leitor a compreensão de que o legislador atuou em consonância com o que informa a Constituição da República. Em todos os casos, quando se fala de troca de informações pessoais, envio ou recebimento de dados, a lei consecutivamente faz referência aos direitos de privacidade e/ou intimidade. Essa preocupação do legislador deixa evidente o interesse em se preservar tais direitos, seguindo uma linha de constitucionalização do direito civil. Por outro lado, o direito de herança é também um direito constitucionalmente garantido, sendo assim, necessário se faz o exercício da ponderação pela busca de soluções.
Vale ressaltar que os bens digitais se dividem em acervo digital sem valor econômico e com valor econômico. Os bens sem valor econômico seriam aqueles utilizados exclusivamente para a manutenção das relações de afeto e comunicação ou para fins informacionais, tais como redes sociais, aplicativos de conversas, etc. Já o acervo com valor econômico, seria aquele responsável pela geração de renda ao autor do acervo, a exemplo dos canais no youtube.
É certo que a ponderação entre herança digital e intimidade, no primeiro caso, ou seja, no caso de bens sem valor econômico parece ter solução mais simples, pois os bens digitais deixados pelo de cujus seriam parte de sua personalidade e com sua morte poderiam também se extinguir. O problema se evidencia nos casos em que há uma rentabilidade do acervo digital. Não seria razoável privar os herdeiros da rentabilidade advinda do patrimônio digital. Mas também não seria justo permitir que terceiros tivessem sua intimidade violada pelo parente do de cujus em nome do direito de herança. Ao trocar dados e informações na internet, todo usuário possui uma presunção de segurança e privacidade, logo, o alcance de pessoas estranhas à relação formada na esfera digital não parece razoável.
O problema se apresenta quando o bem digital possui, ao mesmo tempo, as duas características acima descritas, ou seja, quando funciona tanto como conta pessoal quanto como conta que gera valor econômico. Exemplo disso são as contas abertas em redes sociais. Essas contas servem como meio de divulgação de conteúdo pessoal, mas também são usadas como meio de oferecimento de produtos e serviços. Alguns usuários chegam a acumular centenas de milhares de seguidores que se afinizam com o material gerado, seja ele de cunho político, moral, espiritual, profissional, etc. Por outro lado, essas contas não são apenas espaços de divulgação, possuem canais privados de comunicação, as denominadas mensagens privadas ou “direct messengers”.
Muitos operadores de conteúdo na internet possuem contato direito com seus seguidores através dessas contas, e também com amigos próximos, e com eles realizam trocas de informações muitas vezes confidenciais. Essas pessoas, ao realizarem este contato, podem entender que sua intimidade estará preservada pelo simples fato de terem realizado aquela comunicação via “mensagem privada”. No entanto, caso ocorresse o falecimento daquele que operava a conta em nome próprio, os herdeiros teriam acesso às informações dessas mensagens privadas e, nesse caso, o remetente já não teria mais a segurança de ter suas informações resguardadas. É nesse ponto que surge a necessidade de se deliberar sobre os limites da herança diante da intimidade do terceiro.
A respeito dos direitos da personalidade, que são tratados na Parte Geral do Código Civil de 2002 no Capítulo II do Título I do Livro I, e conforme os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira (2014, p. 183):
“A personalidade, como atributo da pessoa humana, está a ela indissoluvelmente ligada. Sua duração é a da vida. Desde que vive e enquanto vive, o ser humano é dotado de personalidade”[3] Com base nesse ensinamento, portanto, entende-se que quando o indivíduo se extingue, deve também extinguir-se com ele todas as informações que seriam de cunho personalíssimo, pois os direitos da personalidade são intransmissíveis.
Deve-se levar em conta, no entanto, que os atos praticados pelo indivíduo quando em vida, sejam eles materiais ou virtuais, geram também consequências patrimoniais. E, embora a morte determine a extinção da personalidade, seria necessária a sucessão nesses casos para dar continuidade às relações contratuais. Nesse sentido, observamos uma colisão entre o direito de resguardo da intimidade e o direito de herança com suas diversas implicações.
O Novo Código de Processo Civil inseriu em seu artigo 489, § 2º que no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. De acordo com a técnica da ponderação, em casos de difícil solução, os princípios e os direitos fundamentais devem ser sopesados no caso concreto pelo aplicador do direito, para se buscar a melhor solução. Haverá então um juízo de razoabilidade de acordo com as circunstâncias do caso concreto (TARTUCE, 18, p. 110).
Humberto Ávila (apud TARTUCE, 18, p. 111) ensina que a ponderação não é exclusividade dos princípios: as regras também podem conviver abstratamente, mas colidir concretamente; as regras podem ter seu conteúdo preliminar superado por razões contrárias; as regras podem conter hipóteses normativas semanticamente abertas (conceitos legais indeterminados); as regras admitem formas argumentativas como a analogia. Em todas essas hipóteses Ávila entende que é necessário lançar mão da ponderação.
Alexy (apud TARTUCE, p.111) parte de algumas premissas tidas como básicas para que a ponderação entre princípios seja possível. Como primeira premissa, ele propõe que os direitos fundamentais têm, na maioria das vezes, a estrutura de princípios sendo “mandamentos de otimização caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidade fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”. Como segunda premissa, reconhece o autor alemão que em um sistema em que há um comprometimento com valores constitucionais, pode ser frequente a ocorrência de colisões entre os princípios o que acarretará restrições recíprocas entre os valores tutelados. Como terceira premissa, o operador do direito deve fazer o uso da ponderação. A aplicação da ponderação segundo Alexy seria a solução do caso concreto com a máxima proporcionalidade. Por último, a quarta premissa é a de que a ponderação deve ser bem fundamentada, de forma objetiva e calcada em argumentação jurídica sólida.
Retomando, com base no exposto, pode-se verificar que, tanto o direito à herança quanto o direito à intimidade são direitos constitucionalmente garantidos, inclusive possuem a mesma localização topográfica. Ambos constantes do rol dos direitos fundamentais. A ponderação entre tais direitos precisa ser feita de forma cautelosa para que não haja supressão de um direito fundamental em prol de outro direito igualmente fundamental. Para isso, é possível recorrer também aos princípios de interpretação constitucional.
Em consonância com o princípio da unidade da Constituição, deve haver uma compreensão da Carta maior como um todo unitário e harmônico, desprovido de antinomias reais. O texto da Constituição é um agrupamento de preceitos integrados e alinhavados pelo ideal da unidade (MASSON, 17, P.64). Diante disso, não há que se falar em hierarquia de normas originárias. Tendo-se o direito à intimidade e o direito de herança como garantias constitucionais de mesma graduação, é exigível que se faça a ponderação desses valores para se obter o resultado desejado diante de um caso concreto. A Constituição deve ser sempre interpretada em sua globalidade, como um todo, e, assim, as aparentes antinomias deverão ser afastadas. As normas deverão ser vistas como preceitos integrados em um sistema unitário de regras e princípios (LENZA, 18, p. 207). Anota Canotilho (apud LENZA, 18, p. 207) que o princípio da unidade procura harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar.
Ainda sobre o princípio da unidade da Constituição, Eros Grau (apud MENDES, BRANCO, 2016, P. 92) afirma que “não se interpreta o direito em tiras”, acrescentando que “a interpretação do direito se realiza não como mero exercício de leitura de textos normativos, para o que, bastaria o interprete ser alfabetizado”. De acordo com Paulo Gustavo Branco, esse princípio concita o intérprete a encontrar soluções que harmonizem tensões existentes entre as várias normas constitucionais, considerando a Constituição como um todo unitário.
Princípio constitucional também importante para a compreensão do tema é o princípio da concordância prática ou harmonização. Partindo da ideia de unidade da constituição, entende-se que os bens jurídicos constitucionalizados devem coexistir de forma harmônica e, diante de eventual conflito ou concorrência entre eles, deve-se evitar ao máximo o sacrifício total de um deles. O fundamento dessa ideia de concordância decorre da inexistência de hierarquia entre os princípios. Canotilho (apud LENZA, 18, p. 208) diz que “o campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre bens”.
Para Paulo Gustavo Branco, o princípio da concordância prática ou da harmonização “recomenda que o alcance das normas seja comprimido até que se encontre o ponto de ajuste de cada qual segundo a importância que elas possuem no caso concreto”. As pretensões de efetividade dessas normas devem ser conciliadas, mediante o estabelecimento de limites ajustados aos casos concretos em que são chamados a incidir. Os problemas surgem nos casos de colisões de princípios, nos quais o intérprete se vê desafiado a encontrar um desfecho de harmonização máxima entre os princípios, buscando sempre que a medida de sacrifício de um deles, para uma solução justa, não exceda o estritamente necessário (MENDES, BRANCO, 2016, p. 95).
De acordo com Néviton Guedes[4], existem aqueles que negam a colisão de normas originárias, mas que, contraditoriamente, não recusam a aplicação da proporcionalidade. No entanto, a própria regra da proporcionalidade tem por óbvio pressuposto a colisão de normas. Para o desembargador, o resultado da ponderação apenas será alcançado após um longo processo de argumentação e justificação dos princípios em colisão, considerando-se- as circunstâncias e as possibilidades do caso concreto.
Em outras palavras, as antecipações de entendimento, desenhadas previamente pelos intérpretes, só serão completadas no momento em que houver um confronto entre as conclusões hermenêuticas e o caso concreto. Não há como vislumbrar em tais casos todas as consequências da primazia de uma norma constitucional sobre outra. Somente assim é possível conhecer todo o conteúdo de uma norma, submetendo-a à concretude, pois não há previsibilidade absoluta de todas as demandas que se podem apresentar. Para além disso, é necessário, ainda, observar as mudanças sociais que ao longo do tempo vão modificando a interpretação dada a uma norma em outro momento histórico (mutação constitucional).
Tomando-se por base o ensinamento de Néviton Guedes, a respeito da necessidade de submissão das normas ao caso concreto, pode-se dizer que o tema da intimidade no campo da herança digital ainda precisa ser experienciado para que se chegue a uma conclusão sobre qual norma deve ter prevalência, a norma sobre direito de herança ou a norma sobre direito à intimidade.
CONCLUSÃO
Note-se que o ensinamento sobre a necessidade de submissão das normas ao caso concreto é muito importante para a compreensão do tema. Apesar de se tratar de um tópico ainda muito novo, os conceitos que norteiam a sua interpretação já são conceitos maduros, a exemplo dos conceitos de herança, intimidade, personalidade, etc. Ainda assim, é possível observar o fenômeno de que trata Néviton Guedes quando diz que não há como antecipar todo o entendimento sobre uma norma. Apenas a concretude a revela de forma integral. Em outras palavras, mesmo que uma norma constitucional já possua uma vasta estrutura teórica, ela nunca se revelará por completo antes de ser posta em prática, confrontada com outros direitos também na prática e adequada ao seu momento histórico, econômico e cultural. Em alguns casos, podendo vir a sofrer, até mesmo, a conhecida mutação constitucional.
Num primeiro momento, porém, já é possível vislumbrar algumas questões que devem ser priorizadas na discussão. A primeira delas seria a necessidade de cisão entre o patrimônio digital com valor econômico e sem valor econômico. Não há razão para a transmissão de herança digital de caráter personalíssimo. Se morre o indivíduo, morre com ele tudo que era íntimo e pertencia somente ao seu núcleo de intimidade e ao núcleo de intimidade de terceiros que com ele mantinham contato. No caso de acervo digital com valor econômico, não se afigura razoável privar o herdeiro da sucessão desses bens, porém, seria necessário criar-se um mecanismo que excluísse da conta do de cujus todas as informações e dados não públicos de terceiros antes da realização da sucessão.
No que se refere especificamente à intimidade de terceiros, é importante destacar que o usuário de internet possui a presunção de privacidade nas plataformas digitais. Essa presunção não pode ser violada em nome de herdeiros que sequer participavam da relação empreendida entre o de cujus e o terceiro. Como dito no início desse texto, o ser humano, como delimitador de espaços que é, considera-se protegido no universo digital pelas fronteiras criadas pelas senhas e chaves de segurança. Se no mundo real, o compartilhamento de informações através da fala já é capaz de gerar problemas de devassidão da intimidade, imagine-se o compartilhamento escrito, fotografado e facilmente atribuível a um indivíduo determinado.
REFERÊNCIAS
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
FERNANDES, Bernardo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvador: JusPODIVM, 201.
MASSON, Natália. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2016.
PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil, volume VI. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2018.
MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
A herança digital: Considerações sobre a possibilidade de extensão da personalidade civil post mortem. Disponível em http://www.rkladvocacia.com/heranca-digital-consideracoes-sobre-possibilidade-de-extensao-da-personalidade-civil-post-mortem/
A ponderação e as colisões de normas constitucionais. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-dez-10/constituicao-poder-ponderacao-colisoes normas-constitucionais
Projeto de Lei 4099 de 2012. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=548678;
Projeto de Lei 4847 de 2012. Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=563396
Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Lei 12.965 de 23 de abril de 2014. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
[1] Disponível em http://www.rkladvocacia.com/heranca-digital-consideracoes-sobre-possibilidade-de-extensao-da-personalidade-civil-post-mortem/
[2] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=548678; https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=563396
[3] Disponível em http://www.rkladvocacia.com/heranca-digital-consideracoes-sobre-possibilidade-de-extensao-da-personalidade-civil-post-mortem/
[4] Desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1). Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-dez-10/constituicao-poder-ponderacao-colisoes-normas constitucionais#_ftnref17_4381
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