Resumo: O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre as raízes da homofobia, bem como sua relação com a misoginia; assim, como essência do trabalho, pretende-se retomar ao passado na busca por respostas. Desta feita, inicialmente se questiona a hipotética relação entre o fenômeno homofóbico e misógino com a própria questão do falocentrismo. Em que pese o desenvolvimento da temática, ressalta-se especificamente no contexto moderno até a atualidade, os fenômenos de violência envolvendo a homossexualidade, mormente em relação ao processo de criminalização e patologização. Sendo assim, a pergunta que resume a pesquisa pode ser assim formulada: qual a relação entre a homofobia e a misoginia no período moderno à atualidade, tendo em vista o falocentrismo? No que se refere ao método de pesquisa, o artigo será realizado por meio de revisão bibliográfica e busca de literatura, sobretudo no campo histórico e antropológico.
Palavras-Chave: Falocentrismo; Homofobia; Misoginia; Modernidade.
Abstract: This article aims to discuss the roots of homophobia and its relationship with misogyny, as well as essence of the work, we intend to return to the past in search for answers. This time, initially questions the hypothesized relationship between homophobic and misogynist phenomenon with the very question of phallocentrism. Despite the development of the theme, it is emphasized specifically in the modern context to the present day, the phenomena of violence involving homosexuality, especially in relation to the criminalization and pathological process. So the question comes down to research can be formulated as follows: what is the relationship between homophobia and misogyny in the modern period to the present, with a view phallocentrism? With regard to the research method, the article will be carried out through literature review and literature search, especially in the historical and anthropological field.
Keywords: phallocentrism; Homophobia; Misogyny; Modernity.
When I was in the military, they gave me a medal for killing two men and a discharge for loving one[1]
INTRODUÇÃO
Após praticamente um século de efervescência medieval, o alvorecer do Renascimento trouxe uma nova fachada ao contexto científico e filosófico. A despeito de, como assevera Nietzsche (2008), o Renascimento ter representado uma transvaloração dos valores cristãos, uma tentativa, empreendida por todos os meios e com todo o gênio, de levar à vitória dos valores até então combatidos. A cultura pagã grega voltou a ser idealizada enquanto pensamento de excelência entre os intelectuais. A partir de então, influenciada principalmente pelo movimento absolutista, os Estados europeus se tornaram cada vez mais independentes e laicos, desvinculados politicamente da Igreja Católica e Protestante. Influenciados pelo Iluminismo, os novos pensadores começaram a cultivar um enorme rancor pela Igreja Católica[2]. Ademais, é durante o Renascimento que o mundo clássico volta a ganhar lugar na cultura europeia, sobretudo, nas artes. Nas esculturas, nos afrescos e nos quadros, os novos artistas mostram uma estética grega. A Criação de Adão e o David de Michelangelo, ambos, mostram o corpo masculino nu, com seus músculos torneados, assim como na arte pagã. Leonardo da Vince igualmente ressalta a beleza andrógina em suas pinturas, em seu São João Batista quase não se nota os traços masculinos, podendo ser facilmente confundido com uma mulher. Mesmo as figuras femininas de da Vince apresentam certo toque masculino, se fosse trocada a indumentária da Dama com Arminho, ela facilmente se transformaria num rapaz.
O movimento iluminista foi um protesto aos anos de obscuridade medieval. Tudo conhecimento mítico, ou misterioso, se tornou funesto, os novos pensadores não mais admitiam teorias fantasiosas a respeito dos fenômenos naturais ou sobre os sentimentos humanos. Para a nova ciência, todo conhecimento poderia, e deveria, ser analisado por meio de um processo metódico, assegurando assim que somente a mais pura verdade prevalecesse. As ciências humanas, ou seja, todo conhecimento que provinha da subjetividade, e que até então era vinculado apenas à Filosofia, passou também por esse processo de racionalização. O subjetivo se tornou objetivo, de modo que melhor pudesse ser dissecado; na realidade, o dogmatismo humano deu lugar a um dogmatismo científico.
1. Os criminosos sodomitas da Modernidade
Mesmo com o advento da Modernidade, a influência da Igreja, o moralismo sexual e dominação fálica estavam longe de acabar. Apenas a aristocracia intelectual parecia consciente da nefasta influência da religião, por meio da Igreja, a população miserável permanecia inerte na ignorância. Em realidade, o povo ainda sofria as consequências psicológicas da Baixa Idade Média, quais sejam, a preocupação com a salvação, o medo da morte e da tentação diabólica. Em detrimento dos tempos de peste do século XIV, estes temores criaram uma onda de pânico tão grande, no final do medievo, que sua força ainda podia ser sentida na Modernidade. O fervor religioso, motivado pela culpa e o sentimento de esperança, conseguiram se propagar pelas gerações facilmente. Socialmente, as maiores consequências disso foram a valorização do casamento e da castidade, no final do medievo e início da Modernidade. Segundo Muchembled, testemunhos disso são o avanço da devoção à Virgem Maria e, ao mesmo tempo, a caça às Bruxas, que culmina entre 1580 e 1630 na Europa Ocidental (MUCHEMBLED, 2007).
“A caça às bruxas foi uma perseguição religiosa e social. Teve início no final da Idade Média e se intensificou na Idade Moderna, de 1453 a 1789. As colheitas goradas, as tempestades, as doenças do gado e as crianças deformadas tinham sido obra, principalmente de feitiçaria e do Diabo. Qualquer moça atraente, ou com uma feiura muito evidente, era suspeita de bruxaria e de ter relações sexuais com Satã. Alguns historiadores estimam que o número de vítimas foi de aproximadamente 320 mil, sendo 90% mulheres” (LINS, 2013, p. 276).
Em 1484, o Papa Inocêncio VIII promulgou um dos documentos mais importantes da história do Vaticano, a bula Summis desiderantes affectibu[3], a qual intensificava severamente a caça às bruxas. A encíclica deu origem a um manual didático, Mallus Maleficarum, O Martelo das Feiticeiras, escrito em 1487 pelos inquisidores Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, a pedido do próprio papa, a obra é dividida em três partes: na primeira ensina como reconhecer as bruxas; em seguida, analisa os tipos de feitiço e males que elas causam; finalmente, a última parte, explica como devem ser o processo de julgamento, acusação e condenação. O ódio irracional se resume na frase: “todas as bruxarias provêm da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável” (KRAMER; SPRENGER, 1997, p. 154).
A violência e a dominação moderna representam apenas uma consequência da visão medieval, que ainda permanecia incrustada na mentalidade humana. As bruxas, as noivas de Satã, as diabas, as mulheres lindas e as feias eram apenas símbolos do feminino. As lendas e representações artísticas da época mostram uma clara relação entre a sexualidade e o feminino. Inúmeros quadros mostram mulheres sendo sodomizadas em caldeirões e praticando atos bestiais, inclusive, a própria figura do coito demoníaco se relaciona com a bestialidade, visto que a imagem medieval dos demônios são absolutamente animalescas. Ademais, os atos homossexuais figuram no mesmo polo das mulheres, não sendo rara a associação da sodomia masculina com a demonologia. Em suma, nesse período tudo que represente o feminino, inclusive os homens praticantes da homossexualidade, são relacionados à luxúria, consequentemente são simbolicamente demonizados. Destarte, para o homem moderno, a tortura continuou a representar uma vingança ao feminino, ou seja, uma profunda represália ao mal.
Para os medievalistas, o medo da homossexualidade representava o consciente medo do retorno aos cultos pagãos. Por outro lado, entre os modernos, o temor desta prática significaria uma relação com o ocultismo. A caça às bruxas representou uma perseguição moral, qualquer comportamento sexual que diferisse do tradicional introductio penis intra vas seria interpretado como herético. A homossexualidade, para homens e mulheres, foi maciçamente relacionada à ideia de feitiçaria, os sodomitas eram julgados, torturados, acusados e finalmente executados. Segundo análise do Marquês de Sade, em sua polêmica literatura Os 120 dias de Sodoma, a tortura e a punição, principalmente contra os atos libidinosos, representam uma nobre forma de satisfação sexual[4]. Logo, a tortura, praticada em prol da moralidade e dos bons costumes, representava a única forma socialmente aceita que o homem de bem tinha para satisfazer sua própria lascívia. Essa interpretação de Sade também guarda mais relação com as violências contra os praticantes da homossexualidade do que contra as mulheres, visto que era socialmente mais aceito que um homem se relacionasse que com uma mulher, assim, ao homossexual reprimido ou ao mero desejo carnal que não fosse o heteressual só lhe cabia a catarse pela violência, seja na mulher ou um homem que transparecesse sua homossexualidade. Talvez a maior repressão guardada se referisse aos comportamentos homossexuais; por este motivo, muito provavelmente, os inquisidores tinham mais prazer em queimar um homem efeminado acusado sodomita, do que uma mulher de bruxaria.
Nesse momento ainda havia certa confusão entre os conceitos de crime e pecado. Assim, foi no século das luzes que as sociedades europeias criminalizaram definitivamente a prática homossexual. Com a rejeição à masturbação e à homossexualidade, a masculinidade ideal reorienta-se para as prostitutas e os bordéis. Logo, a prostituição então foi incentivada, pois constituía uma prova de virilidade (LINS, 2013). A libertinagem foi uma resposta ao clima de repressão sexual da Renascença. Era interessante para a Igreja e para os governantes que a população se entretece nos bordeis. Porém, a libertinagem havia perdido o controle na aristocracia, e nem mesmo a Igreja conseguia dominá-la. Os libertinos, surgidos na França, sintetizavam um estilo de vida da corte de Luís XIV, o Rei Sol, e de algum modo acabaram por influenciar outras cortes. Os bailes e as festas eram uma incitação ao adultério e a todo o tipo de concupiscência, um modelo propagado pelo rei em pessoa.
“Por um curto período, o princípio calvinista dominou completamente a Inglaterra. O adultério e a sodomia – homossexualidade – tornaram-se crimes capitais, e fornicação passou a ser punida com três meses de detenção. Nos Estados Unidos a sodomia e a bestialidade receberam a pena da forca. Por outro lado, a aristocracia francesa conservou a tradição do laissez-faire em relação a toda a questão da sodomia. No século XVII, ela era permitida nas classes superiores, enquanto qualquer outra pessoa apanhada no ato, até a metade do século XVIII, era queimada na Praça de Greve, em Paris” (SPENCER, 1999, p. 175).
Os homossexuais eram cabalmente perseguidos, torturados e executados, o povo vibrava enquanto os corpos eram carbonizados nas praças. Eles se sentiam mais vingados, para eles era um pecador a menos nas ruas. Os condenados pertenciam à própria massa, talvez um vizinho, um familiar ou um conhecido, a população se via naquelas execuções, era como se parte dela estivesse ali sendo destruída, a parte que elas mais desprezavam. Ao turno que os miseráveis sodomitas eram caçados e exterminados, como uma ratada, em prol da moral e dos bons costumes, a libertinagem na aristocracia florescia. A homossexualidade entre os nobres era comum e tolerada. Mas não demorou muito para que a notícia das luxúrias palacianas tomasse as ruas. Os tabloides passaram a criticar essa conduta e o teatro popular também satirizava o tema. Não era somente o comportamento degenerado da nobreza que irritava o povo, mas o total descaso, pois, enquanto a população lutava pra sobreviver em meio à miséria e a mortandade, a realeza desfrutava dos altos impostos com devassidão e prodigalidade.
“Século XVII: seria o início de uma época de repressão própria das sociedades chamadas burguesas, e da qual talvez ainda não se estivesse completamente liberados. Denominar o sexo seria, a partir desse momento, mais difícil e custoso. Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro, reduzi-lo ao nível da libertinagem, controlar sua livre circulação no discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de maneira demasiado sensível” (FOUCAULT, 2006, p. 23).
A Revolução Francesa, durante o século XVIII, não tardou a eclodir, ela significou, mormente, um movimento de reivindicação. Um rancoroso sentimento de vingança aos anos de regime absolutista tomou a massa. O povo derrubou a Bastilha, invadiu Versalhes e guilhotinou os reis. A Revolução não foi apenas o fim de um sistema de opressão causado pela hegemonia monárquica, para muitos autores ela representou o fim do próprio modelo patriarcal. Assim como o rei não representava mais o povo, doravante o pai não representaria mais a família. O fim do patriarcado significou o início da entrada de mulher no mercado de trabalho. Pela primeira vez na história as famílias monoparentais começaram a ser respeitadas. Como o pai não figurava mais no centro familiar, a mulher passaria a ganhar mais prestígio social. Quando Nietzsche proclama a morte de Deus em Gaia Ciência, pode-se interpretar que na realidade ele está falando do fim do patriarcado[5] [6], uma vez que este sistema está intimamente ligado com as questões religiosas e com o poder absolutista. Nota-se que o primeiro foi afetado pela laicização estatal e o segundo pelo início do democrático regime republicano[7]. Não obsta asseverar, todavia, que a moral cristã continuará influenciando a sociedade, mesmo com a separação entre Estado e Igreja.
Será o fim o falocentrismo? Talvez ele tenha apenas mudado de foco, pois doravante a mulher deixara cada vez mais seu papel submisso e passara a assumir um papel ativo na família e na sociedade. Ainda se está muito longe da Revolução Sexual, mas com o fim do patriarcado, as mulheres parecem ter desenvolvido um pseudofalo, tornando-as aptas para ingressar nas universidades, trabalhar e galgar um espaço melhor na sociedade. Não obstante o desenvolvimento fálico feminino, parece que paralelamente à retomada de prestígio feminino, outras figuras passaram a simbolizar o que outrora representara a nefasta figura da mulher. Com o desenvolvimento da Psiquiatria, a homossexualidade deixou de representar um comportamento e passou a representar um indivíduo. Os sodomitas, que até então significavam uma coletividade, de agora em diante, eram representados por sujeitos individualizados. Não se está mais homossexual, se é homossexual. O novo paradigma irá revolucionar o pensamento a respeito desta nova classe de pessoas. Eles passariam a ser identificados e catalogados. Obviamente que este olhar analisador continuaria influenciado pela censura de seus precursores. Para os novos psiquiatras, o homossexual não passaria de uma cobaia, um experimento. Se há bem pouco tempo eles ocupavam as instituições prisionais, doravante eles inaugurariam as novas alas dos sanatórios.
2. Os sodomitas doentes da Pós-Modernidade
Mormente após a Revolução Francesa, mudanças no cenário político e econômico do Ocidente passaram a ser analisadas pelos críticos da Sociologia como o início de um novo momento histórico. Segundo LYOTARD (1993), na referencial obra O Pós-Moderno, decidiu-se chamar de Pós-Modernidade o período posterior ao final do Século XIX, a designar um estado de evolução científica, filosófica e artística de ruptura com a modernidade. Do ponto de vista paradigmático, os processos históricos do Século XX, no que se refere ao evidente avanço tecnológico, a rapidez no fluxo de informações e o fenômeno da globalização, apontam para uma notória agitação de ordem moral, econômica e política.
Paralelamente ao movimento racional, surge o Romantismo, que no campo artístico, literário e musical, tentou analisar o aspecto subjetivo do homem, talvez num retorno aos ideais trovadoresco; é certo que o amor cortês foi, sem dúvida, o seu mais arcaico resquício. Enquanto os pensadores estão envolvidos nos novos rumos que o Positivismo dado às ciências, o Romantismo não estava preocupado com a realidade dos fatos, sua crítica estava justamente na visão irracional e exagerada do mundo. Através de artistas como Francisco de Goya, com seu óleo sobre reboco Saturno devorando seu filho; Beethoven, com suas nove sinfonias; e Goethe, com sua obra Os sofrimentos do Jovem Werther, que se inaugurou o movimento romântico na Europa. O Romantismo foi, antes de mais nada, um protesto[8]. Mormente na literatura fica evidente a exaltação do feminino e a mendicância masculina pelo amor. As obras desse período tiveram grande influência social. Porém, se por lado as pessoas se sentiam cada vez mais apaixonada e em busca de um amor, do ponto de vista sexual, a pós-modernidade se iniciou marcada por um profundo sentimento de repressão, que se intensificaram após a era vitoriana.
“Pela primeira vez na história, a sociedade designava um grupo de homens como desprezíveis por causa de sua sexualidade. Antes dessa época, a sodomia tinha certamente sido considerada um pecado, mas era algo que poderia fazer toda a humanidade sofrer. Agora, apenas alguns indivíduos eram caracterizados pelo pecado. Essa mudança do geral para o particular foi radical e tinha suas utilidades, a homossexualidade poderia agora ser confirmada” (SPENCER, 1999, p. 182).
Desde os gregos, que exaltaram a homossexualidade a mais excelsa dignitude, nunca houve um só vernáculo que expressasse a categoria dessa gente, eles eram somente pessoas. Igualmente entre os romanos, que de certa forma toleram esse comportamento, não obstante houvesse diversas expressões, depreciativas e malfadadas, para representar o passivo da relação, não havia uma categoria social que englobassem todos. O que é mais espantoso é que mesmo os medievalistas ignoravam essa categoria, talvez por ignorância ou absurda heresia, no máximo eles se referiam a eles enquanto pecadores. Até a palavra sodomita, que parece soar tão arcaica, não fazia referência apenas à homossexualidade, mas a todos os atos sexuais não naturais. Mesmo quando se promulgaram leis contra a homossexualidade e esta recebeu a pena da fogueira, os condenados eram queimados sendo homens e mulheres praticantes de sodomia. Não havia ainda no imaginário do homem a ideia de que alguém podia ser assim. Apenas com o advento da psiquiatria no final da modernidade que se começa pensar na homossexualidade enquanto ser, enquanto uma característica essencial ou adquirida que possa diferenciá-lo dos demais.
Do ponto de vista penal, talvez assim tenha ficado mais fácil apontá-los e separa-los das pessoas. Torná-los uma categoria a parte foi tão desumano, pois os sodomitas ou uranistas, como passaram a ser chamados, formavam um sexo a parte, é como que se eles não fossem nem homem, nem mulher – no imaginário da maioria eles sequer podiam ser chamados de pessoas. Em pleno século XIX, alguns países ainda mantinham a pena capital ao crime de sodomia, embora as execuções fossem muito raras, visto que o jure quase sempre se comprazia ao réu[9]. Manter os sodomitas como criminosos capitais talvez tenha sido uma arma política, visto que assim havia um certo controle pelo medo, mesmo que na prática jurídica a absolvição era quase certa. Quando esse método parou de funcionar o legislador tratou de transformar a pena em privativa de liberdade. Oscar Wild possivelmente foi o caso mais famoso. Respeitado no meio intelectual, todos sabiam de suas preleções sexuais, ainda assim, suas peças eram exibidas nos teatros e seus livros eram lidos. Porém, envolveu-se com um duque, seria sua última paixão, pois assim que o pai do nobre tomou ciência do relacionamento, levou o caso aos tribunais. Wild foi preso em 1895, condenado a trabalhos forçados por dois anos. Depois do escândalo, suas peças foram retiradas dos palcos e seu nome saiu das conversas intelectuais. Em 1900 ele morreu, pobre, sozinho e infeliz. Nas palavras de Naphy (2006), o recado naquele fim de século era claro: os homossexuais podiam ser presos e destruídos em público.
2.1. Psiquiatria: homossexualismo e os epidemiologistas
Enquanto na Idade Média a única ótica para o homem era a religião, com o surgimento das ciências há uma nova possibilidade de análise. Até então a Filosofia[10], com a forte influência da teologia, que estudava o subjetivismo. A partir de então, o positivismo daria especial importância à subjetividade humana. Para a psiquiatria, a homossexualidade passa a ser vista enquanto uma categoria específica, uma perversão. Considerar a homossexualidade uma perversão não era nada admirável ou novo, ela já vinha sendo censurada há séculos, o discurso médio só veio dar suporte científico. Ademais, o que nesse período não era considerado perversão? Desde a felação até o coito anal, nada que se distanciasse do introductio penis intra vas podia ser normal, até o simples ato do onanismo, que inclusive acreditavam guardar certa relação com a homossexualidade, eram igualmente pervertidos. O vernáculo homossexual ainda existia, visto que este termo só seria cunhado em meados do século XIX. Contudo, neste momento, a ciência já tinha uma certeza: a homossexualidade se referia a uma categoria específica. Basta saber agora quem eram eles e de onde eles vinham?
“Por volta do século XVIII nasce uma incitação política, econômica, técnica, a falar do sexo. E não tanto sob a forma de uma teoria geral da sexualidade, mas sob forma de análise, de contabilidade, de classificação e de especificação, através de pesquisas quantitativas ou causais. O sexo não cessou de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado. E tais discursos sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele, porém lá onde ele se exercia como meio para seu exercício” (FOUCAULT, 2006, p. 30).
Do ponto de vista penal, embora já não houvesse mais execuções capitais, a homossexualidade ainda era criminalizada, geralmente classificada como sodomia, recebia a pena restritiva de liberdade. A psiquiatria foi de vital importância para o Direito Penal, pois os legisladores tinham subsídios científicos para embasar suas leis. Até o advento da psiquiatria as decisões jurídicas tinham se utilizado do Direito Canônico, o que deixava os julgadores cada vez mais embaraçados, dada a laicização do Estado. A expressão sodomita soava muito bíblica para alguns juízes, era necessário um toque mais científico. Foi graças ao grande esforço dos médicos e psicólogos que essa situação mudou, tão logo os profissionais da saúde começaram a classificá-los de pervertidos e degenerados, estes termos passaram a ganhar jargão técnico. Com o uso de tais nomenclaturas técnicas, as decisões e os acórdãos começaram a ganhar mais credibilidade. Quanto mais os legisladores abrandavam as penas e os julgadores tornaram as condenações mais raras, os médicos mais se interessavam pelo assunto[11]. Foi somente em 1848 que o psicólogo austríaco Karoly Maria Benkert batizou o praticante do degenerado comportamento como homossexual, em um manuscrito. Alguns anos depois ele utilizou o mesmo termo em seu livro Psychopathia Sexualis, publicado em 1886 (SPENCER, 1999).
Contudo, o batismo não tornou menos lúgubre e pesado o fardo dos homossexuais, seu novo nome representou apenas mais um título, mais uma nomenclatura técnica, um eufemismo médico, carregado de preconceitos. Juntamente com os homossexuais iriam aparecer inúmeras outras classificações e subespécimes humanos – talvez tenha sido uma diversão médica. Como bem aponta Foucault esta nova caça às sexualidades periféricas provoca a incorporação das perversões e novas especificações dos indivíduos. A sodomia, a dos antigos direitos civis e canônicos, eram um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX tornou-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. A homossexualidade aparece como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida da prática da sodomia para uma espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma; o sodomita era um reincidente, a partir de agora o homossexual é uma espécie. A esse movimento científico de busca e conhecimento o filósofo francês chamou de psiquiatrização do prazer perverso[12].
O sexo sempre interessou o homem, provavelmente impelido pelo seu próprio ímpeto libidinal, a forte moral e a censura fizeram com que essa curiosidade fosse recalcada ao ponto de sua extinção. A total negação da sexualidade pelo dogma do cristianismo, e a obsessiva perseguição por parte dos clérigos, a ponto para uma mórbida curiosidade sexual. É por meio do discurso da negação consciente que os cristãos abordavam a sexualidade e acabavam por ter mais contato com ela. O movimento de psiquiatrização fez o mesmo, diante da valorização da castidade e da condenação da libertinagem que a sociedade ainda vivia no final do século XIX, abordar o sexo nos discursos científicos era uma forma bem elegante de lidar com os próprios instintos. É provável que tenha sido a própria inquietação de sua sexualidade que impeliu os primeiros estudiosos a se debruçarem sobre o tema e o tornasse um objeto tão inquietante. Isto não significa que todos os psiquiatras da época considerassem sua sexualidade perversa, incomodando-os e atormentando-os a tal que os influenciassem a estudá-la. Todavia, a considerar que o padrão de sexualidade normal e saudável limitava-se ao conjugal introductio penis intra vas, qualquer prática excêntrica ou posição um pouco mais original poderia ser interpretada como um traço de perversão. Outrossim, tornar os homossexuais perversos necessários podia ser uma boa vingança, não só em relação aos outros, mas contra seus próprios sentimentos e dilemas. Quantos estudiosos homossexuais, conscientes ou inconscientes de seus desejos, não se refugiaram por trás de um discurso conservador e preconceituoso, numa tentativa frustrada de negação?
Essa mentalidade patológica do homossexual foi muito forte no século XIX, pouquíssimos psicólogos e psiquiatras ousavam contestar publicamente essa teoria. Spencer cita apenas quatro rebeldes desse período, que se atreviam a expressar sua indignação e repúdio ao conservadorismo médico, são eles: Walt Whitman, John Addington Symonds, Edward Carpenter e Havelock Ellis (SPENCER, 1999). A posição médica conservadora a respeito da sexualidade só iria mudar a partir do século XX, e de forma muito acanhada, mormente a partir da influência psicanalítica. Sigmund Freud, neurologista austríaco, foi quem fez as primeiras descobertas sobre a sexualidade, suas observações iniciais advinham da observação clínica de suas pacientes histéricas. Freud notou a relação entre os sintomas histéricos – paralisias, desmaios e cegueiras – e a repressão sexual. Em seguida, constatou que as crianças eram dotadas de sexualidade e que guardavam um desejo incestuoso pelos pais. Se hoje falar em sexualidade e incesto causam certa estranheza, o que dirá numa época em que os masturbadores ainda eram acusados de serem pervertidos e degenerados? A teoria psicanalítica gerou enorme efervescência no ocidente, mas foi ganhando adeptos ao longo das décadas.
“A posição singular da psicanálise não seria bem compreendida caso se desconhecesse a ruptura que operou relativamente ao grande sistema da degenerescência sexual. Porém, as camadas populares esperaram, por muito tempo, ao dispositivo de sexualidade. Estavam, decerto, submetidas, conforme modalidades específicas, ao disposto das alianças: valorização do casamento legítimo e da fecundidade, exclusão das uniões consanguíneas, é pouco provável que a tecnologia cristã da carne tenha tido jamais alguma importância para elas” (FOUCAULT, 2006, p. 63).
O século XX foi um período marcado por grandes lutas e inovações para a sexualidade. Por um lado, na área da saúde mental, a medicina e a psicologia se digladiavam nos congressos, nos dois campos havia os conservadores e os progressistas. Grosso modo, a ala conservadora continuava a defender a patologização da homossexualidade, segundo eles os homossexuais, assim como os demais ófilos – zoófilos, pedófilos, necrófilos –, deveriam ser estudados enquanto doentes, ou seja, enquanto parafilíacos e pervertidos, para quem sabe num futuro próximo fosse possível o desenvolvimento de um tratamento. De outra banda, havia os liberais progressistas, entre eles os psicanalistas, que defendiam um modo mais humanitário de analisar os homossexuais, de acordo com esta linha, a homossexualidade era apenas um traço da sexualidade humana e não representava um distúrbio mental. Estas discussões não pertenceram apenas à primeira metade do século XX, tendo em vista que a retirada do termo homossexualismo da Classificação Internacional de Doença só se deu na década de 70[13].
A visão patológica e a influência da psiquiatria, na tentativa de se desenvolver um tratamento ou uma cura efetiva para a homossexualidade, chegaram ao seu auge durante a Segunda Guerra Mundial. Fortemente influenciado pelo pensamento do eugenismo, os nazistas queriam a todo custo encontrar uma forma de exterminar esse sentimento. A lobotomia, que já vinha sendo testada em pacientes esquizofrênicos e em prisioneiros com alto grau de perigosidade , começou a ser testado em homossexuais nos campos de concentração. A ideia era realizar uma incisão no cérebro, nas vias de ligação entre o lobo frontal ao tálamo, na tentativa de minimizar os impulsos sexuais que levavam ao comportamento homossexual[14].
O grande legado das ciências mentais se deu pelos estudos quantitativos realizados na década de 1940, pelo entomologista e zoólogo norte-americano Alfred Kinsey. O relatório consistiu na elaboração de dois volumes, quais sejam, o Sexual Behavior in the Human Male, em 1948, e o Sexual Behavior in the Human Female, publicado cinco anos depois. As afirmações de Kinsey que quase metade dos homens, e um quarto das mulheres, já havia tido experiências homossexuais causou grande escândalo na época (KINSEY, 1954), mas foram de imensurável importância para o Movimento Gay. O grupo de conservadores da saúde, os quais ainda defendiam que a homossexualidade era uma doença, se tornou cada vez mais restrito. Nesta mesma trincheira, o casal William Master e Virginia Johonson se dedicou por mais de trinta anos ao estudo da sexualidade humano, de 1957 a 1990, publicando cinco livros e centenas de artigos científicos. Na década de 1990, influenciada por Kinsey, Shere Hite publicou um estudo semelhante sobre a sexualidade de homens e mulheres, também dividido em dois volumes: O Relatório Hite. Foi neste contexto, depois da segunda metade do século XX, que pela primeira vez se falou em homofobia, dando início a um período onde seriam realizados sérios estudos sobre a violência contra homossexuais, bem como suas causas sociais e psicológicas.
Não obstante todo o impasse científico durante o século XX, pouco se pode sopesar enquanto uma efetiva mudança no pensamento ocidental a respeito da homossexualidade. Parece que, ao mesmo tempo em que o mundo se tornara menos reticente à mulher, dentro do seio familiar, no cotidiano social e no mercado de trabalho, o inverso ocorreu com os homossexuais. As mulheres conseguiram provar sua capacidade e sua importância na sociedade – talvez após terem desenvolvido qualidades masculinas, o que fez com que elas desenvolvessem um Falo imaginário –, mas o mesmo não ocorreu entre os homossexuais. É provável que tenha sido o próprio rancor das conquistas femininas que tenha impulsionado o homem a se voltar contra o que, segundo eles, simbolizava apenas mais uma dimensão feminina. Assim sendo, se considerar o sentimento anti-homossexual como uma consequência da misoginia, então o falocentrismo jamais deixou de existir. De fato, dada a grande censura e o conservadorismo moral na sociedade, no final do século XIX e início do século XX, pouco restou da homossexualidade no discurso popular, já que não se queimavam mais acusados de práticas sodômitas em praça pública. Todavia, os homossexuais parecem não ter sido esquecidos pela elite, tanto entre os intelectuais, que permaneceram levando o assunto às pautas dos congressos, quanto pelos governantes e legisladores, que persistiam nas perseguições e condenações à prisão.
2.2. Movimento Gay: uma busca por dignidade
A despeito de a expressão homossexual ter sido cunhada em meados do século XIX, seu uso só se tornaria popular depois do período bélico do século XX. Até então, muito pouco se falou sobre o assunto. A censura moral era tão forte que quase nenhum romance abordava o tema, os autores faziam no máximo referências sutis quanto ao comportamento efeminado ou delicado de determinada personagem. Isto se repetia no cinema, que dava seus primeiros passos, os diretores se negavam a abordar o tema, inclusive, não insistiam em nada que fizesse qualquer relação com a sexualidade. É como que se as pessoas ignorassem o fato, negando este aspecto social. Segundo Spencer, o silêncio e a censura foram tão eficazes que a grande maioria das pessoas ignorava totalmente que algo como o sexo entre seres do mesmo gênero pudesse sequer existir (SPENCER, 1999). Ao passo que alguns ignoravam ou fingiam que tal comportamento pudesse existir, a homossexualidade persistiu numa espécie de manifestação marginal da sociedade, fazendo com que os políticos não deixassem de se preocupar com o assunto.
“A prostituição masculina foi duplamente reprimida. Em nome da homofobia e da própria prostituição. No final do século XIX, em Nova Iorque, funcionava o Golden Rule Pleasure Club, onde os interessados poderiam contratar um jovem disposto a tudo para satisfazer a sua clientela. Em Paris, não era menor o movimento homossexual de prostituição. O que mais irritava as conversadoras autoridades francesas era a captação de soldados para entreter os homossexuais ricos” (LINS, 2013, p. 149).
A homossexualidade foi um movimento irradiante nos guetos e nas periferias, todos os grandes centros urbanos tinham zonas de prostituição masculina. Longe dos olhares hipócritas e do moralismo da alta sociedade, os ricos homossexuais visitavam esses centros. Os clubes de encontros e os prostíbulos do público homossexual eram os únicos locais de intercessão entre ricos e pobres, não importava sua classe social, todos estavam juntos lá. Todavia, a preocupação dos políticos se referia justamente à proliferação desse vício, que parecia atrair cada vez mais adeptos. A legislação sobre o assunto continuou severa e os homossexuais continuaram a serem perseguidos e presos[15]. O medo que os poderosos tinham de que a massa tomasse conhecimento do que se passava nas periferias, fez com que as próprias leis omitissem o termo, geralmente classificavam as condutas homossexuais genericamente como, verbi gratia: comportamento degenerado, tipo desclassificado, ou imoralidade. É claro que era, mormente, a classe trabalhadora que mais sentia o reflexo das sanções penais; os homossexuais de famílias mais abastadas poucos eram importunados. Porém, até o advento da Primeira Guerra Mundial, grande parte dos países ainda criminalizava a homossexualidade, mas evidentemente apenas os homens de classe baixa, em geral, operários e soldados de baixa patente, eram punidos.
“O fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, repercutiu em todos os setores do Ocidente. Diante do rigor e da hipocrisia que a moral burguesa impôs ao século XIX, o comportamento amoroso e sexual se tornou incomparavelmente mais livre. A primeira metade do século XX se caracterizou por uma busca crescente de prazer sexual. A partir do período entre as guerras, a moral sexual foi se tornando cada vez menos rígida. Apesar de a Igreja só aceitar o sexo no casamento para a procriação e, portanto, o prazer sexual ainda ser visto como pecado, um número crescente de pessoas defendia que o amor e o prazer estavam associados” (LINS, 2013, p. 187).
Após a Primeira Guerra Mundial, a Europa foi tomada por um sentimento de medo. Muitas famílias tinham sido destruídas, os soldados veteranos voltavam mutilados para casa, o povo temia uma nova guerra. Na Alemanha, com a derrota da Primeira Guerra, a economia estava destruída, a população estava revoltada e querendo vingança. Começou a crescer um sentimento de hostilidade às pequenas minorias, os judeus foram os que primeiramente sentiram os efeitos dessa onda xenofóbica, todavia, os homossexuais também acabaram afetados. Impulsionados por essa raiva que o pensamento socialista? Surgiu entre os alemães por meio do Partido Nazista. Os anos de domínio nazista ficaram marcados pela perseguição selvagem aos homossexuais na Alemanha. Não há estatísticas oficiais de quantos homossexuais morreram em campos de concentração, mas estima-se que quase 50 mil pessoas tenham sido condenadas pelo parágrafo 175, que considerava crime qualquer prática homossexual[16].
Os anos de guerra do século XX haviam deixado profundas cicatrizes, principalmente nos europeus, que vivenciaram os efeitos de perto. Grandes cidades foram destruídas, a Alemanha estava dividada, muitas mulheres se tornaram viúvas. Os traumas de guerras estavam claros, muitos tinham passado fome e frio, presenciado as execuções e as pilhas de cadáveres nas ruas. Por outro lado, a repressão sexual no ocidente, que havia se intensificado muito no século XIX, passou a se estagnar no período posterior à Segunda Guerra. Do ponto de vista artístico, os anos 50 foram muito prósperos para a economia norte-americana, graças a isso Hollywood teve seu tempo de esplendor nesta década, Billy Wilder soube construiu a imagem publicitária por trás dos símbolos sexuais que mexiam com a libido dos homens. Na música, o country e o blues foram unidos na criação do rock and roll, que influenciou toda a juventude[17]. Como conceitua Reich, a Revolução Sexual teve suas raízes muito antes do advento da pílula e dos movimentos feminista e gay. Segundo o autor, o início revolucionário se deve principalmente ao fim do patriarcado, que possibilitou a reinserção da mulher na sociedade (REICH, 1977).
Em suma, a Revolução Sexual significou uma revaloração do símbolo feminino. Mesmo ganhando salários mais baixos que os homens, as mulheres passaram a sentir uma liberdade que jamais tinham vivenciado. Com as enormes baixas causadas nesse período, as mulheres tiveram que assumir o papel masculino, dentro e fora do lar, as indústrias passaram fazer contratações maciças de mulheres. Consequentemente, os homens começaram a se acostumar com nova influência da mulher na sociedade. Os movimentos feministas tomaram conta dos Estados Unidos e influenciaram todo o ocidente. Já que as mulheres tinham adquirido seu próprio Falo, não admitiam mais a imposição masculina. Ao mesmo tempo que as mulheres queimavam seus sutiãs[18], a juventude vivenciava a contracultura, por meio do movimento hippie. Cansados da opressão moral e do pensamento conversador, o Woodstock Music & Art Festival representou o apogeu de um movimento de renovação cultural?. Este foi um momento de grande euforia, as drogas sintéticas se popularizaram e o sexo se banalizou. A invenção da pílula deu mais força a este contexto, pois com o advento dos contraceptivos hormonais, as mulheres não precisavam mais temer a infidelidade e as consequências do adultério. A popularização dos métodos contraceptivos significou uma liberdade maior para mulher, aproximando-a do homem. Questões como o casamento, o divórcio, a monogamia e a homossexualidade, passaram a ser questionadas.
“Mas a pílula não favoreceu somente às mulheres. O fato de o sexo se dissociar da procriação fez com que as práticas heterossexuais e homossexuais se aproximassem. A homossexualidade, representante máxima dessa dissociação, onde é possível atingir um alto nível de prazer sem a menor possibilidade de procriação, é beneficiada socialmente” (LINS, 2013, p. 270).
Em detrimento do cristianismo, o casamento e a reprodução sempre estiveram ligados. Outrossim, a ideia de sexualidade, segundo os padrões ocidentais, sempre esteve relacionada com a ideia matrimonial. O prazer sempre estivera em segundo plano, inevitavelmente, ligado à perversão ou pecado. Visto que o sexo para as mulheres sempre foi sucedido pela gravidez, o adultério comumente foi uma questão polêmica e condenável, enquanto que para o homem era mais aceitável. Em relação à homossexualidade, a bancada conservadora e religiosa defendia que era um comportamento antinatural, porque não se via o sexo enquanto prazer ou sentimento. Felizmente, graças à pílula e aos novos métodos anticoncepcionais, popularizados a partir da segunda metade do século XX, o sexo paulatinamente perdeu seu valor reprodutivo. Já que ele não estava mais ligado necessariamente à gravidez, doravante as pessoas poderiam se relacionar com quem quiserem. A homossexualidade, pelo menos enquanto prática sexual desvinculada da reprodução, se igualou à heterossexualidade.
O Relatório Kinsey havia trazido novamente aos debates populares a questão da homossexualidade após a Segunda Guerra. As leis que versavam sobre a criminalização da homossexualidade se tornaram cada vez mais obsoletas, as prisões que se seguiram estavam mais relacionadas a atos obscenos, os homossexuais que eram presos geralmente tinham sido flagrados em atividades libidinosas em ruelas e parques públicos. As invasões a bares e boates eram mais usadas como meio de controle, as prisões eram raras, mesmo porque havia muitos clientes ligados a pessoas influentes do meio artístico e político. Motivados pela Revolução Sexual e pelas mudanças culturais, os homossexuais estavam mais numerosos e unidos, o que propiciou uma melhor organização. Os homossexuais, então, tinham ganhado uma nova identidade, tanto homens quando mulheres passaram a se identificar como gay. O termo inglês inicialmente usado como substantivo para designar alegre, ganhou popularidade como sinônimo de homossexual após o sucesso do filme norte-americano Bringing Up, lançado em 1938, pelo diretor Howard Hawks. Na hilária cena, o ator Cary Grant sai do banheiro e, como sua esposa estava trancada no closet, veste um penhoar. Nesse momento a campainha toca e ele decide atender vestido do mesmo jeito, questionado por que estava usando aquelas roupas, ele respondeu, ironicamente: “Because I just went gay all of a sudden!” – Porque eu só fui gay, de repente (HAWKS, 1938). Esta tinha sido a primeira vez que a palavra gay foi pronunciada no cinema, a partir de então, ela começou a ser usada como sinônimo de efeminação e homossexualidade. Não demorou muito para os próprios homossexuais começarem a usar o termo enquanto um signo identitário.
“Anos de lutas conferiam aos homossexuais militantes muita experiência. Mas, em 28 de junho de 1969, um único movimento definiu a causa gay. Um clube em Greenwich Willage, Nova Iorque, o Stonewall Inn, lugar de encontro de gays, lésbicas e travestis, foi invadido pela polícia. Não havia nada de especial na batida de Stonewaal, a não ser que, pela primeira vez, os gays reagiram. Seis meses mais tarde a Frente de Libertação Gay havia discursado em 175 campi universitários. A primeira Marcha do Orgulho Gay aconteceu em 1972. Nos anos seguintes outros países começaram a levantar a mesma bandeira” (LINS, 2013, p. 292).
O Movimento Gay se iniciou oficialmente nos anos 70 como uma vertente da Contracultura e do Movimento Feminista. Porém, já se cultivava há muito tempo um sentimento de revolta frente à hostilidade da polícia e as manifestações da classe conservadora. Visto que as invasões e agressões eram constantes nos bares de encontros de homossexuais e nas zonas de prostituição, com certeza a revolta de Stonewall não foi a primeira. É certo que outras revoltas menores tenham ocorrido e se dissipado, por isso não receberam atenção da imprensa e consequentemente não entraram para os registros históricos. Todavia, a geração da década de 1970 estava vivenciando um período de grande euforia e libertação. Os movimentos feministas, que vinham acontecendo, deram um novo significado ao ocorrido de Stonewall, o que talvez tenha atordoado as autoridades e contribuído para seu efeito irradiante. Paralelamente aos eventos nos Estados Unidos, grupos militantes de jovens se uniram em outras localidades, no Reino Unido surgiu o Gay Liberation Front e um ano depois surgiu na França o Front Homosexuel d'Action Revolutionnaire. Os homossexuais, ou gays como passaram a se autodenominar, começaram a ser ouvidos pela sociedade e ganharam poder político. Foi durante as manifestações do Movimento Gay, durante a década de 1970, na Europa que a Bandeira do Arco-Íris foi erguida pela primeira vez, com suas seis cores, cada uma a representar um aspecto do movimento: luz, cura, sol, calma, arte e espírito.
“A organização denunciou publicamente os pubs que haviam recusado clientes considerados gays. Muitos começaram a montar suas próprias discotecas, onde homens e mulheres homossexuais podiam se encontrar e passar uma noite agradável, numa atmosfera relaxante e sem a tensão e o clima pesado dos locais tradicionais de encontro heterossexual” (SPENCER, 1999, p. 152).
Entrementes, em 1981, o jornal The New York Times publica como manchete de capa: “Rare cancer seen in 41 homossexual” – Raro câncer visto em 41 homossexuais (ALTEMAN, 1981), a notícia falava sobre uma misteriosa doença encontrada num grupo de homossexuais de Los Angeles e que parecia se relacionar com o sistema imunológico. Tinha dado início à pandemia da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. A doença se espalhou primeiramente entre os homossexuais devido aos hábitos de troca de parceiros e o sexo sem proteção. Porém, não demorou muito para atingir os usuários de heroína injetável e os hemofílicos. O aparecimento inicial da doença entre os grupos gays trouxe consequências diretas à comunidade, principalmente devido ao sentimento de culpa e o estigma social. De acordo com Spencer, isso fez com que muitos abandonassem o álcool, o cigarro e as drogas, aderindo a rígidos programas de exercício e frequentando academias. Contudo, apesar de num primeiro momento os gays terem reivindicado o direito à diferença, como forma de serem reconhecidos pela maioria, nos anos 1980 houve uma modificação tática no movimento. Ser minoria, uma espécie à parte, dificultava a visão de que a homossexualidade é um aspecto da sexualidade de cada um, provocando a exclusão da sociedade (SPENCER, 1999). A partir da década de 1990 aparentemente o discurso sobre a homossexualidade no ocidente se tornou cada vez mais aceito. A questão da homofobia, que até os anos 70 era discutida apenas no âmbito acadêmico, se torna mais popular. Começou-se a falar em Direitos Humanos para homossexuais e novos direitos passam a ser pleiteados. O final do século XX e início do XXI foram marcados pela luta por direitos de igualdade entre homossexuais e heterossexuais. Tanto na Europa quanto na América, a comunidade gay passaria a pleitear principalmente direitos civis e previdenciários, entre eles: o casamento, a adoção, a sucessão de bens e a pensão. Será o fim da desigualdade, da violência e da opressão?
“O comportamento homossexual é ilegal em 74 dos 202 países do mundo. Em geral, a lei só cita os machos. No cômputo geral, a situação na África é pior que na Europa. Em 144 países não existe apoio aos Direitos de gays e lésbicas. Entre os países em que o homossexualismo é ilegal, 56 são ex-comunistas, ex-integrantes do Império Britânico, ou de cultura predominantemente islâmica. Em 56 países existem movimentos gays e lésbicos; em 11 deles na maioria da população há direitos iguais para lésbicas e homens gays. Em 98 países o homossexualismo não é ilegal, ainda que a idade mínima para a opção sexual seja diferenciada e não haja leis contra a discriminação. Em apenas 6 países a lei protege os gays e as lésbicas contra a discriminação. Essa proteção existe em alguns estados americanos, no Canadá e na Austrália” (BORRILLO, 2010, p. 366).
O século XX foi, sem dúvida, o mais turbulento na história da homossexualidade. Em apenas um século os homossexuais passaram por três estágios de estereótipos diferentes. Inicialmente foram considerados criminosos, segundo a legislação penal do começo do século, em paralelo continuaram a ser classificados como pervertidos pela Psiquiatria e Psicologia, de acordo com as correntes mais conservadoras, o que só mudou oficialmente na década de 1970 por meio da retirado do termo homossexualismo da lista de doenças e distúrbios mentais. Depois, a partir do Movimento Gay e das novas conquistas no direito civil, parece que os homossexuais adquiriram o status de normalidade. Criminosos, pervertidos e normais, em apenas cem anos, mas será que a sociedade conseguiu acompanhar este fenômeno? Será que as pessoas deixaram de associar a homossexualidade com a perversão e com o banditismo? Sem falar da barbaridade que ainda se comete em alguns países da África e da Ásia, graças ao fanatismo religioso, ao examinar somente os países ocidentais de cultura cristã, é possível observar uma clara resistência de grupos conservadores que são contra qualquer espécie de equalização entre heterossexuais e homossexuais. Quiçá pautados nos obsoletos valores morais do início do século, este grupo de conversadores, muitas vezes ligados às alas radicais da Igreja Católica e Protestante, sonham com uma sociedade estagnada no tempo, onde o casamento e a monogamia ainda são vistos como valores supremos da sociedade.
CONCLUSÃO
Ao analisar a evolução da homossexualidade, desde a mais primitiva memória histórica que se tem, é possível dizer que houve muitas mudanças nestes percursos. Porém, é notório que os processos históricos envolvendo a homossexualidade, mormente no que se refere à violência, estão diretamente ligados ao feminino. O pensamento misógino sempre esteve acompanhado do pensamento anti-homossexualidade. Na Antiguidade, a homossexualidade era aceita e praticada normalmente em quase todas as civilizações, os judeus eram um dos poucos povos que não a aceitavam. Na Grécia Antiga, além de aceita, ela era prestigiada e reverenciada enquanto a mais excelsa forma de amor. Entre os romanos, contudo, talvez nem se possa falar em uma aceitação, pois para eles o gênero era totalmente indiferente, o importante era ser ativo. Mesmo nestes tempos em que a homossexualidade ainda era vista como normal, traços dessa sexualidade ainda eram contra os valores sociais. Assim, a passividade, sobretudo entre os adultos, sempre foi mal vista entre os antigos, uma vez que sempre esteve ligada à efeminação e à falta de virilidade, aspectos simbólicos do feminino. Todavia, em detrimento do cristianismo, cujas raízes advinham da cultura judaica, a homossexualidade se torna cada vez menos recomendada, ao ponto de ser rebaixada ao nível do feminino. Mesmo assim, as preferências sexuais pagãs pouco mudaram após a dominação da Igreja Católica, o que provou uma grande insegurança por parte do clero, durante a Baixa Idade Média. A Peste Negra, todavia, foi a grande divisora de águas na legislação relativa à sexualidade, visto que os governantes e a Igreja, que já estavam desgostosos em relação à promiscuidade do povo, tinham um motivo justo para proibir qualquer comportamento não natural. A partir de então, o que se tornaria notório é que, ao passo que o feminino se tornara cada vez mais valorizado, a homossexualidade ganhara cada vez menos prestígio. A homossexualidade foi perseguida inicialmente por ser pecado, depois, com a segregação entres os Estados e a Igreja, continuou a ser perseguida enquanto crime e, com o advento da psiquiatria, os homossexuais passaram a ser classificados como pervertidos e degenerados. Algumas décadas depois, após anos de lutas, os homossexuais aparentemente conquistaram espaço e respeito na sociedade.
Apenas com o alvorecer da Renascença que os primeiros psiquiatras iniciaram estudos coerentes sobre a subjetividade humana. A homossexualidade não representaria mais um mero comportamento, um desvio facilmente corrigível, o entendimento da época passou a caracterizá-lo como um aspecto idiossincrático. O homossexual, então considerado indivíduo, passara a fazer parte do discurso científico, filosófico, religioso e popular. Todavia, isto não significou um avanço, enquanto outrora havia a ilusão de que o exorcismo consistia na solução para a maldição, doravante, a ciência mostraria que, sendo a homossexualidade uma característica encruada na própria personalidade e infrutífera à qualquer mudança, a única saída seria a destruição do indivíduo. Os Estados, já laicos, fizeram questão de manter a repressão contra o comportamento homossexual. Assim, os homossexuais que durante a Idade Média eram queimados em praça pública, passaram a ser enforcados nos mesmos cadafalsos. No Brasil, os três Ordenamentos contemplavam a execução na fogueira diante do crime da sodomia, apenas com o Código Criminal de 1830 que se descriminalizou a prática, porém, isso não era impedimento para que os flagrantes fossem esquecidos. Na prática, os homossexuais flagrados eram enquadrados no crime de ultraje público, o que não diminuía sua humilhação e injustiça.
Por fim, com fulcro da Pós-modernidade, se por um lado as mulheres passaram a ganhar mais prestígio, os homossexuais permaneceram subjugados e oprimidos. É como que se todo o revanchismo misógino tivesse se focado nos grupos homossexuais, enquanto sobreviventes contumazes de aterradoras e impregnáveis práticas pagãs. O status de normalidade, de certa forma, foi conquistado apenas com o Movimento Gay, graças à Revolução Sexual e a descoberta da pílula contraceptiva que o sexo se desvinculou da procriação. Com a aproximação entre sexo e afeto, os homossexuais conseguiram mostrar ao mundo que sua forma de sexualidade era tão legítima quanto a heterossexual.
Em epítome, as lutas no século XX diziam respeito à busca por liberdade e sanidade; cem anos depois, os homossexuais, que não eram mais presos nem constavam como doentes na literatura médica, continuam lutando por justiça. Neste diapasão, não se pode deixar de concluir este capítulo, que analisa a genealogia da homofobia, sem antes mencionar a história do veterano de guerra e ativista gay Leonard Matlovich. Em 1975, após treze anos de serviços militares prestados durante a Guerra do Vietnã, o condecorado soldado foi sumariamente expulso das Forças Armadas dos Estados Unidos e excomungado pela Igreja Católica, após assumir sua homossexualidade publicamente. No mesmo ano, ele proferiu uma frase antológica, resumindo tantos séculos de violência e toda a força motriz da militância gay, que se tornaria imortalizada em seu epitáfio: Quando estive no exército, eles me deram uma medalha por matar dois homens e a expulsão por amar outro[19]. O soldado Matlovich morreu em 1991, porém, as palavras esculpidas em sua lápide e a bravura com que enfrentou os preconceitos sociais são lembradas até hoje como um dos maiores exemplos do Movimento Gay e da luta contra a homofobia.
Advogado graduado pela PUC-Campinas. Mestre em Educação pela PUC-Campinas
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