O STF revogou a lei de imprensa, mas disso todos já sabem, a imprensa divulgou. Obviedade sim, mas que é dita apenas para lembrar a facilidade do alcance que tem uma notícia jornalística. E isso não é bom? “Bom” é pouco, é imprescindível para qualquer democracia. Mas isso também não é evidente? Um jurista diria que é “pacífico”, com o que concordo.
O problema está no fato de ser também pacífico que nenhum direito é absoluto. Será que não?! Vou relatar um fato, verídico.
São 06 de agosto de 2008, mas já são quase 07. Como de costume, o estudante está em sua casa e é chegada a hora dos chamados “jornais da noite”, o único momento em que se acostumou a “informar-se” sobre os acontecimentos do dia, pois já era bastante. O verbo é propositadamente colocado em aspas, mas o porquê digo depois.
Primeiramente, começa por assistir ao noticiário de uma rede não tão bem sucedida financeiramente como a principal rede de televisão do país. Depara-se com uma notícia relativa ao STF e, como estudante de Direito, estende seus ouvidos para saber se é algo que lhe interessa: era.
Não havia ouvido nem visto qualquer um falar sobre o assunto ainda, pois como se disse, um único noticiário por dia já bastava. E ouve a afirmação da jornalista talvez bem intencionada: “o STF decidiu hoje que candidatos com ficha suja poderão participar normalmente das eleições”. Na afirmação da jornalista não houve qualquer tipo de entonação frasal, no sentido de se acentuar certa particularidade, de forma a dar-se ênfase a um ponto específico.
Passado o enunciado, começa a matéria relativa ao caso, mostrando-se os magistrados superiores fundamentando suas decisões e dizendo-se que o assunto havia sido decidido por uma maioria de nove votos contra dois: estava decidido que qualquer cidadão poderia se candidatar a cargos do Poder Executivo, mesmo aqueles que estivessem respondendo a processos criminais.
A matéria é encerrada e a filmagem volta-se para a jornalista que, em seu estúdio, enche o peito para fazer seu glorioso comentário: “o que a Associação Brasileira dos Magistrados queria era impedir a candidatura de gente desse tipo”. Aqui sim, se ouviu uma entonação frasal quando a jornalista disse “gente desse tipo”.
O estudante faz seus comentários – não publicáveis – e troca para o canal do noticiário mais importante. Mais importante simplesmente porque transmitido pela rede de televisão mais rica – no sentido unicamente monetário – do país. E se surpreende ao ver, de imediato, uma também apresentadora fazendo quase idêntico anúncio: “o STF decidiu hoje em favor da permissão da candidatura de pessoas com a ficha suja”. A ênfase ao termo “ficha suja” foi veementemente perceptível.
Analiso as duas situações.
Na primeira delas, a expressão que recebeu entonação foi “gente desse tipo”, que se referia ao que a jornalista descreveu – mesmo sem destaque – como “ficha suja”. Pergunto com todas as interrogações possíveis: que tipo? Pessoas que estão sendo processadas criminalmente são, portanto, de outro tipo?
Na segunda situação, da outra jornalista, houve sim exclamação ao se dizer “ficha suja”. Pergunto novamente: que ficha? Suja de que? A “ficha” seria a sentença criminal. E “suja” estaria ela se estivesse relatando uma condenação. Contudo, não existe nem uma coisa nem outra. Não existindo nem uma coisa nem outra, posso afirmar tranquilamente: “não existe ficha, muito menos suja, e aquela gente não é de outro tipo”.
Assim, e já explicando por que no primeiro parágrafo usei o verbo “informar” em aspas, defendo que, nessas situações, o que houve foi algo que não pode ser aceito como informação jornalística. Também não pode ser aceito como algo inserido no contexto da liberdade de expressão e, menos ainda, no da liberdade de opinar. Rapidamente: “informar” significa “dar conhecimento a”, ou seja, fazer algo desconhecido se tornar conhecido por alguém; “expressar”, quando relacionado ao direito de liberdade de expressão, significa “o direito em se exprimir”; “opinar” se relaciona à “formação de um juízo, de uma opinião sobre algo”.
O que parece é que as jornalistas informaram por meio da respectiva liberdade de expressão, mas só parece. O que houve aí foi expressão com base em dados falsos, ou seja, informação falsa, não cabendo dizer – pela ética e boa-fé – que se fez uma crítica com base no interesse público.
Até onde se pode dizer que uma notícia é verdadeiramente uma informação, isto é, definir pessoas que estão sendo processadas criminalmente de “fichas sujas” está inserido dentro daquele direito de informar? Não estamos nós diante de um direito absoluto de informar? Não estão nossos representantes ainda traumatizados com o período ditatorial do país e estendendo o tapete para a imprensa? Estado Democrático de Direito não significa “tudo é direito de todos”.
Dar à mídia um poder de influência tão ilimitado como vemos hoje significa permitirmos formação de opiniões como essa! Significa dar a jornalistas o poder de decidir “o que o povo deve querer”. As consequências são devastadoras e possuem – o que é pior ainda – um ar legítimo de “democráticas”. Ora, usando-se da fórmula do ex-presidente norte-americano Abraham Lincoln – “governo do povo, pelo povo e para o povo” -, poderá ela (a mídia) alegar posteriormente que o estado de inocência fora atropelado porque o povo assim quis.
Contudo, o certo é que foi ela quem reforçou, embutiu ou mesmo criou uma ideia absolutamente inconstitucional. E o pior: uma ideia mentirosa! Porque definir processados como “fichas sujas” é tecnicamente falso! É afirmar com veemência que “João” está com um câncer irreversível, quando na verdade o que tem é uma úlcera tratável ou curável. A única diferença é que com essa afirmação “João” pode ter sido prejudicado, enquanto que, com a outra, centenas de milhares de pessoas estão a pensar: “essa Justiça é mesmo uma vergonha”. Ruim para o STF, ruim para o crédito da Justiça, ruim para a confiança nas instituições públicas, ruim para a sensação de segurança coletiva, péssimo para todos.
Não é uma questão de direito de resposta, crime contra a honra cometido por meio da imprensa ou “mera” indenização pelo dano causado, como seria o caso de “João”. O problema – enfatizo e repito – está na pseudoinformação disfarçada e enfeitada com vestes democráticas, que pode trazer uma consequência não suficientemente levada a sério: a formação de opinião pública a partir de dados inverídicos ou camuflados.
A lei de imprensa que o STF acaba de revogar trazia como ilícito penal exatamente a publicação de fatos verdadeiros truncados ou deturpados, tendo como um dos requisitos o de causar prejuízo ao crédito da União, dos Estados, Distrito Federal ou Município.
Não deve a futura lei acrescentar estritamente um tipo para “informações inverídicas, deturpadas ou tendenciosas que visem à formação de opinião pública”? Ou não seria necessária uma nova lei, já que no Brasil o sistema legal se aproxima do prolixo?
O certo é que, de onde vier, seja pelo próprio regulamento das comunicações ou por lei, será muito bem-vindo um regramento próprio para a imprensa. Melhor ainda: se ele já existe (e não queira fazer uma pessoa consultar as diversas possibilidades na legislação), que seja aplicado. Caso contrário, estarão nossas jornalistas, legítima e constitucionalmente, autorizadas em se expressarem e anunciarem: “o Poder Judiciário não aplica seu próprio ordenamento jurídico!”.
Advogado criminalista e Professor de Direito Penal em São Paulo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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