Alexandre C. Budib[i]
Resumo: A Constituição brasileira prevê, além dos mecanismos tradicionais da democracia representativa, algumas formas de participação direta da população na vida política do país, como o plebiscito e o referendo. Todavia, o Congresso Nacional quer ampliar esse rol de participação direta por intermédio da Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 21, de 2015, inovando o ordenamento jurídico com a possibilidade da revogação (recall) do mandato presidencial. Este artigo aborda os principais aspectos da PEC nº 21, de 2015, e, utilizando os conceitos de tolerância mútua e reserva institucional, presentes na obra “Como as democracias morrem”, dos estadunidenses Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, questiona se tal medida seria proveitosa para o aprimoramento de nossa democracia ou, ao contrário, seria mais um item a desestabilizar o já tormentoso cenário político brasileiro.
Palavras-chave: Democracia. Constituição. Recall Político.
Abstract: In addition to the traditional mechanisms of representative democracy, the Brazilian Constitution provides for some forms of direct participation by the population in the country’s political life, such as the plebiscite and the referendum. However, the National Congress wants to expand this list of direct participation through the Proposed Amendment to the Constitution – PEC nº 21, 2015, innovating the legal system with the possibility of recall of the presidential term. This article analyzes the main aspects of PEC nº 21, 2015, and, using the concepts of mutual tolerance and institutional reserve, present in the book “How democracies die”, by Steven Levitsky and Daniel Ziblatt, asks if such a measure would be useful to improve our democracy or, on the contrary, it would be another item to destabilize the already stormy brazilian political scenario.
Keywords: Democracy. Constitution. Political Recall.
Sumário: Introdução. 1. A democracia na Constituição Federal de 1988. 2. Propostas de Emenda à Constituição com algum tipo de recall político. 2.1. PEC nº 82, de 2003 e PEC nº 73, de 2005. 2.2. A PEC nº 21, de 2015, e seu histórico. 3. Conceitos úteis da obra “Como as democracias morrem”. 4. Crítica à PEC nº 21, de 2015. Conclusão. Referências.
Introdução
Corre perante o Senado Federal a Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 21, de 2015, já aprovada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, mas ainda não levada a plenário. Em sua forma atual, a proposta institui a possibilidade de revogação do mandato de Presidente da República e cria, por paralelismo, a opção para a revogação do mandato de Governadores, desde que Estados e Distrito Federal, em suas respectivas Constituições ou Lei Orgânica, por reforma, acrescentem o instituto.
A revogação de mandatos eletivos, presente em alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros, também chamado de recall nos países anglófonos, é forma de participação direta da população na vontade política do Estado e uma maneira de alargar as ferramentas democráticas clássicas à disposição do povo. Todavia, dados os contornos da PEC nº 21, de 2015, teme-se que o recall seja só mais um caminho de instabilidade institucional e de fissuras políticas em um Brasil já sacudido por crises.
Assim, este artigo tem como objetivo geral, além de trazer em detalhes a PEC nº 21, de 2015, desde a sua gênese até o seu momento presente, discutir sobre a sua utilidade ou imprestabilidade no aprimoramento da democracia brasileira. Para essa discussão, toma-se de empréstimo os conceitos de tolerância mútua e reserva institucional, presentes na obra “Como as democracias morrem”, dos estadunidenses Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Dessa forma, o que aqui é discutido guarda conexão não só com o Direito Constitucional, mas também com a Ciência Política e a Filosofia Política, uma vez que as formas de exercício democrático e suas possibilidades de evolução ou involução interessam, ainda que sob perspectivas diversas, a esses três ramos do saber.
Para efeitos didáticos, o artigo está dividido, além desta breve Introdução e da Conclusão, em mais quatro itens: 1. A democracia na Constituição Federal de 1988; 2. Propostas de Emenda à Constituição com algum tipo de recall político, contendo as subdivisões 2.1 – sobre as PEC’s nº 82, de 2003 e nº 73, de 2005 e 2.2, que versa sobre a PEC nº 21, de 2015, e seu histórico; 3. Conceitos úteis da obra “Como as democracias morrem”; e 4. Crítica à PEC nº 21, de 2015.
Embora democracia seja palavra de uso corrente, defini-la é sempre atividade complexa e que envolve algum risco de incompletude. De acordo com Norberto Bobbio (1983, p. 79), conforme citado por Barzotto (2005, p. 12), “desde que o mundo é mundo, democracia significa o governo de todos ou de muitos ou da maioria, contra o governo de um só ou de poucos ou de uma minoria”. Por sua vez, Fernandes (2011, p. 213) afirma que “democracia é uma lógica na qual o povo participa do Governo e do Estado”, acrescentando, depois, que contemporaneamente, seu conceito “inclui ainda uma proteção constitucional que afirma: a superioridade da Constituição; a existência de direitos fundamentais; da legalidade das ações estatais; um sistema de garantias jurídicas e processuais”.
A democracia, infelizmente, não foi fenômeno constante e de resilientes raízes em nossa história político-constitucional. Alguns períodos foram de evidente exceção democrática, enquanto em outros, a democracia era tão restrita – limitada por fatores de renda, cultura ou sexo, por exemplo –, que não passava de arremedo de regime participativo. Portanto, compreende-se a grande ênfase dada pelo poder constituinte de 1987/1988 à democracia. O constituinte pretendeu uma democracia estruturada, efetiva e pujante, capaz de resistir a crises políticas e de ser um farol nos períodos de incertezas. Vejamos, brevemente, como a questão democrática é posta na Constituição Federal de 1988.
A democracia já aparece, de início, no preâmbulo da Constituição, quando os constituintes dizem “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático (…)” (BRASIL, 1988). Muito embora o preâmbulo não seja considerado norma constitucional, não é de bom alvitre desprezá-lo, já que, nas palavras de Moraes (2005, p. 15), ele “não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observado como elemento de interpretação e integração dos diversos artigos que lhe seguem”.
Depois, no corpo do texto constitucional, o artigo inaugural da Carta Magna estatui que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” e seu parágrafo único estabelece que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (BRASIL, 1988). Em complemento, o art. 14 da Constituição indica que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal (ou seja, por todos os cidadãos adultos, sem quaisquer tipos de distinção) e pelo voto direto e secreto, e, nos termos da lei, mediante: a) plebiscito; b) referendo; e c) iniciativa popular.
Assim, temos que a Constituição, repetindo fórmula conhecida desde o Iluminismo, atribui ao povo a titularidade do poder. Todavia, apesar do poder estar com o povo, este – por questões operacionais, vez que não é viável uma assembleia com todos os cidadãos a deliberar continuadamente sobre os mais variados assuntos de relevância pública – elege um conjunto de pessoas para, em seu nome, dedicar-se à nobre arte de governar os destinos da sociedade.
Contudo, a parte final do já citado parágrafo único do art. 1º da Constituição, incorpora a participação direta da população nos destinos políticos do Estado. Portanto, pode-se afirmar que, ao lado da tradicional teoria da representação popular, nossa Constituição consagrou elementos de democracia direta. Embora alguns autores, como Lenza (2013, p. 1.208), prefiram chamar esses elementos de democracia semidireta ou participativa, aqui eles serão chamados de democracia direta, em prestígio à letra da Constituição e sem qualquer intenção de criar polêmica. Tais elementos, consagrados nos incisos do art. 14 da Constituição e acima citados, são o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Passa-se, portanto, a explicar – brevemente – cada um deles.
Plebiscito e referendo têm ponto comum: consulta ao cidadão para que decida acerca de matéria de relevância social, econômica ou política. Mas, embora semelhantes, por óbvio, não são exatamente a mesma coisa. Quais são suas diferenças, então? Podemos dizer que, no plebiscito, as autoridades primeiro consultam, oficialmente, o povo sobre determinado tema para, só depois, agirem na direção autorizada pelos cidadãos. No referendo, ao contrário, as autoridades decidem sobre um tema relevante e, posteriormente, consultam o povo para saber se este concorda com a decisão tomada. Ou seja, ao povo compete acatar ou reprovar a medida tomada.
Além desses instrumentos, ainda existe a chamada iniciativa popular. Nos termos do artigo 61, § 2º, da Constituição Federal e do artigo 13 da Lei nº 9.709, de 18 de novembro de 1988, a iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. Ademais, o projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto. É evidente que a proposta de lei de iniciativa popular, uma vez cumpridos os requisitos para a sua admissibilidade, tramitará nas casas do Congresso Nacional até ser, caso aprovada, sancionada pelo Presidente da República. Não há obrigatoriedade de aprovação de projetos legislativos de origem popular, embora seja inegável a sua grande legitimidade. Como exemplo de proposta de iniciativa popular que se tornou lei aplicável ao conjunto dos brasileiros, podemos citar a popularmente conhecida “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135, de 2010).
Aliás, recente polêmica envolveu esse instrumento. Aqui, abriremos breves parênteses para explicar o evento. Foi encaminhado à Câmara dos Deputados, em 2016, projeto de iniciativa popular prevendo medidas contra à corrupção. Todavia, na mencionada casa legislativa, houve duas questões relevantes: a) o projeto, que ganhou o nº 4.850, de 2016, foi reapresentado como de iniciativa parlamentar[ii]; e b) para além do texto inicialmente encaminhado, foram acrescidos pelos deputados, durante a tramitação, artigos não relacionados com a temática central do projeto, ou seja, não relacionados com as medidas anticorrupção. Com a matéria já aprovada pela Câmara dos Deputados e encaminhada ao Senado Federal, um deputado impetrou, perante o Supremo Tribunal Federal, o Mandado de Segurança nº 34.530, alegando que houve violação ao devido processo legislativo. O relator, Ministro Luiz Fux, deferiu a liminar e suspendeu os efeitos dos atos praticados no processo legislativo referente ao PL nº 4.850, de 2016, determinando: a) o retorno do projeto à Câmara; e b) que o projeto fosse autuado, na Câmara, como de iniciativa popular. Importante frisar que, na sua decisão, o Ministro pontuou que:
“O projeto subscrito pela parcela do eleitorado definida no artigo 61, parágrafo 2º, da Constituição deve ser recebido pela Câmara dos Deputados como proposição de autoria popular, vedando-se a prática comum de apropriação da autoria do projeto por um ou mais deputados. A assunção da titularidade do projeto por parlamentar, legitimado independente para dar início ao processo legislativo, amesquinha a magnitude democrática e constitucional da iniciativa popular, subjugando um exercício por excelência da soberania pelos seus titulares aos meandros legislativos nem sempre permeáveis às vozes das ruas”. (BRASIL, 2016, p. 4)
Ademais, na mesma decisão liminar, o Ministro asseverou que a pertinência temática deve ser preservada, “interditando-se emendas e substitutivos que desfigurem a proposta original para simular apoio público a um texto essencialmente distinto do subscrito por milhões de eleitores” (BRASIL, 2016, p. 5). Dessa forma, entende-se que o Ministro deu bastante realce a soberania popular na iniciativa legislativa, prestigiando mecanismo de democracia direta traçada pelo constituinte.
Por fim, e como corolário da importância da democracia em nossa Carta Política, temos que o art. 60, § 4º, inciso II, da Constituição diz que não será objeto de deliberação Proposta de Emenda à Constituição – PEC tendente a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico. Dessa forma, o voto – meio pelo qual o povo se expressa e, portanto, elemento central da vontade popular na democracia – é blindado com o que a doutrina constitucionalista chama de cláusula pétrea, ou seja, não há revisão factível na Constituição que o possa desfigurar, dado que a reforma da Carta Magna deve preservar as vigas mestras estabelecidas pelo poder constituinte originário.
Neste capítulo, faremos um resumo das principais propostas de alteração da Constituição Federal que pretenderam ou que, ainda, aspiram instituir a chamada revogação de mandatos, com ênfase, obviamente, na PEC nº 21, de 2015.
2.1. PEC nº 82, de 2003 e PEC nº 73, de 2005
Em novembro de 2003, o Senador Jefferson Peres (PDT/AM) apresentou Proposta de Emenda à Constituição (PEC 82/2003) que, como bem sintetizou o parlamentar em sua justificativa, “estabelece a convocação de plebiscitos na metade dos mandatos de Senadores e Chefes do Poder Executivo, quando dez por cento subscrever petição solicitando sua revogação. Juntamente com o plebiscito prevê-se a realização de eleições para preenchimento da eventual vaga”. Na prática: a) junto com a eleição do Presidente da República e dos Governadores poderia ocorrer a revogação do mandato dos Prefeitos eleitos nos dois anos anteriores; b) em paralelo à eleição dos Prefeitos, poderia acontecer a revogação do mandato do Presidente da República e dos Governadores eleitos nos dois anos anteriores; c) na eleição de renovação do Senado, poderia ocorrer revogação de mandato de senadores eleitos na eleição imediatamente anterior. Ademais, junto com o plebiscito revogatório, haveria nova eleição para o cargo preenchido por aquele que está recebendo uma espécie de moção de desconfiança de parcela do eleitorado. Se aquele que estiver sendo “desafiado” pelo recall obtiver mais votos do que os demais candidatos, ele permaneceria no cargo até o final do mandato originariamente obtido. Se o “desafiado”, entretanto, ficasse atrás de qualquer outro candidato, perderia o cargo para o agora mais votado, que complementaria o mandato. Depois de uma longa tramitação, a PEC nº 82, de 2003, foi arquivada antes mesmo de ser votada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal.
Em dezembro de 2005, o Senador Eduardo Suplicy (PT/SP), apresentou Proposta de Emenda à Constituição (PEC 73/2005) que objetivava instituir a revogação do mandato do Presidente da República e de Senadores, bem como a destituição de toda a Câmara Federal. Também previa, por paralelismo, a instituição de revogação de mandatos nos âmbitos estadual, distrital e municipal, desde que houvesse reforma de suas Constituições ou Leis Orgânicas.
Em abreviado resumo da proposta, poder-se-ia dizer que, após um ano de mandato de deputados federais e Presidente da República, o povo teria a faculdade de requerer ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE, mediante a assinatura de pelo menos 2% do eleitorado nacional, distribuído por, no mínimo, 7 unidades federativas, com não menos de cinco décimos por cento dos eleitores de cada uma delas, a realização de referendo para revogação do mandato presidencial ou para a dissolução da Câmara dos Deputados. O Presidente da República também poderia ter seu mandato submetido a referendo para eventual revogação caso houvesse, independentemente da petição popular, o requerimento da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional. Já em relação à revogação do mandato de senadores, esta poderia ser requerida, após um ano de mandato, para o TSE, mediante a assinatura de 2% do eleitorado de seu Estado, distribuído pelo menos por 7 (sete) municípios, com não menos de cinco décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
Na prática, haveria o recall para Presidente da República e Senadores, e a Abberufungsrecht para a Câmara dos Deputados. Segundo Moreira (2016), o recall, instituto originário do Direito estadunidense e a Abberufungsrecht, figura originária do direito suíço, diferenciam-se, pois, enquanto nesta há a revogação política coletiva de determinado parlamento, naquele há a revogação individualizada de um mandato político. Todavia, após uma tramitação lenta e acidentada, a PEC nº 73, de 2005, foi arquivada, também sem ter sido votada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara Alta.
2.2 A PEC nº 21, de 2015, e seu histórico
O Senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE), em 2003, apresentou Proposta de Emenda à Constituição (PEC nº 80/2003), prevendo o direito de revogação de mandato de membros dos Poderes Executivo e Legislativo. Segundo o mencionado senador, o que o motivou a apresentar a PEC foi a revogação de mandato (recall) do Governador do Estado norte-americano da Califórnia, Davis Gray, do Partido Democrata, ocorrida naquele ano. Passo a citar as palavras do próprio Senador, na justificativa de sua proposta, in verbis:
“Na oportunidade, todos os veículos de comunicação social veicularam os acontecimentos políticos no Estado da Califórnia – Estados Unidos, onde se deu a destituição do governador do Partido Democrata, Davis Gray, e as eleições do astro do cinema de Hollywood, Arnold Schwarzenegger, do Partido Republicano. Os jornais, telejornais, revistas, rádio, enfim, todos falaram e muito pouco se explicou sobre o instituto denominado “recall”. Contudo, o que chamou a atenção de todos, além das eleições de um astro do cinema, foi o próprio processo de destituição do representante do povo e as novas eleições, significando um aprimoramento da democracia. Muito embora diversos jornalistas e articulistas políticos tenham se prendido ao assunto, transcrevemos aqui a opinião de Tereza Cruvinel, publicada na coluna “Panorama Político” no Jornal “O Globo”, do dia 9 de outubro de 2003, em decorrência da simplicidade e profundidade como a questão foi formulada:
“Nota melancólica para a política a eleição do ator Arnold Schwarzenegger para governador da Califórnia, ao fim de uma campanha em que as ideias deram lugar a falas dos personagens por ele vivido no cinema. É o espetáculo ampliando seus domínios. O mesmo episódio traz, por outro lado, um alento ao futuro da democracia, consolidando o recall como a instituição do arrependimento eleitoral, ao permitir a revogação do mandato de governantes que frustraram seus eleitores por incompetência ou por traição. Ah, se ele chega ao Brasil um dia…”.”
Todavia, a proposta de 2003 não foi efetivamente discutida. Assim o Senador Valadares a reapresentou em 2015, e ela recebeu o número 21, com o objetivo de inserir na nossa Constituição Federal mais dois instrumentos de democracia direta: a) o direito de revogação do mandato (recall); e b) o veto popular. A PEC vinha assim redigida:
“Art. 1º O art. 14 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:
Art.14……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………….
IV – direito de revogação de mandato de membros dos poderes Executivo e Legislativo.
V – veto popular.
……………………………………………………………………………………………………………….
Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação.”
Percebe-se que a proposta é bastante genérica, criando dois institutos de democracia direta no ordenamento jurídico nacional (recall e veto popular), mas sem definir, de forma mais robusta, os seus contornos. O veto popular não tem sequer uma pálida conceituação. Assim, pelo texto originário, praticamente tudo ficaria para definição em legislação a ser, posteriormente, editada. Em sua tramitação pelo Senado Federal, a PEC nº 21, de 2015, foi submetida à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e teve a relatoria do Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG). Este, em seu voto, aceitou a constitucionalidade da proposta, mas a reformulou por completo. Transcrevemos, para situar o leitor, parte do voto do senador mineiro:
“(…) Entendemos que a forma responsável de suscitar essa discussão é a apresentação de PEC que crie o recall, baseada nas seguintes diretrizes:
Assim, o relator apresentou o substitutivo da Proposta de Emenda à Constituição, com o seguinte teor:
“Art. 1º A Constituição Federal passa a vigorar acrescida do seguinte art. 86-A, integrando a Seção IV-A do Capítulo II do Título IV: “Da Revogação do Mandato do Presidente da República”:
“Art. 86-A. O mandato do Presidente da República poderá ser revogado, mediante proposta subscrita por eleitores em número não inferior a um décimo dos que compareceram à última eleição presidencial.
Art. 2º O art. 28 da Constituição Federal passa a vigorar acrescida do seguinte § 3º:
“Art. 28…………………………………………………………………………
Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor em 1º de janeiro de 2019.”
O substitutivo do relator foi aprovado pelos membros da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e está pronta para seguir ao plenário da Casa Legislativa.
Embora seja evidente que a emenda não entrará em vigor em 1º de janeiro de 2019, como previsto em seu artigo 3º, por não ter sido aprovada até a presente data, temos desenhados, após o substitutivo, os seus termos principais: a) a revogação de mandatos que seria, inicialmente, tanto para os membros do Poder Executivo quanto para os membros do Poder Legislativo, foram direcionadas, em um primeiro momento apenas para o Presidente da República, poupando os parlamentares federais (deputados federais e senadores); b) em um segundo momento, após a aprovação da emenda, as Assembleias Legislativas dos Estados e a Câmara Legislativa do DF poderão, também por emenda, instituir a revogação de mandato dos seus respectivos Governadores; e c) as balizas já estarão indicadas pelo próprio texto constitucional, independentemente de posterior regulamentação legislativa.
Contada, em síntese, o histórico da PEC nº 21, de 2015, sua justificativa, tramitação e atual delineamento, passemos a tratar sobre as regras não escritas da democracia, na visão dos professores Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Essas chamadas regras não escritas da democracia serão necessárias para a posterior crítica da Proposta de Emenda à Constituição em comento.
O português Miguel Morgado[iii], em texto que analisa a relação entre a democracia e a filosofia política, afirma que um dos mais profícuos e clássicos debates deste campo filosófico, constituindo o seu questionamento central, é sobre o melhor, ou pelo menos o mais útil, regime político. Apesar de reconhecer que a consolidação e o prestígio da democracia têm raízes mais profundas no Ocidente que em outros paragens, o autor acrescenta que a resposta está dada: o melhor regime político é o democrático. Fiquemos com um excerto que bem demonstra o pensamento do professor da Universidade Católica Portuguesa:
“A tese do fim da história de Kojève na versão de Fukuyama foi tão debatida que até já é cansativo repeti-la. O facto é que, num aspecto crucial, a tese parece ter sido comprovada. Claro que é preciso imediatamente acrescentar: pelo menos no Ocidente. Para lá das fronteiras incertas do Ocidente ainda é preciso admitir que a democracia tem concorrência ideológica credível. Mas no continente europeu e na América do Norte o monopólio absoluto de que a democracia – enquanto regime político aceitável e desejável – goza é indiscutível. Apesar de todas as atribulações conjunturais, a essência do tema permanece intocável: a democracia é satisfatória para os cidadãos europeus porque os Estados europeus, na formulação de Hegel, garantem o reconhecimento recíproco dos indivíduos, protegidos pelos mesmos Estados enquanto sujeitos de direitos, sendo estes direitos, por sua vez, reconhecidos e garantidos politicamente.(…). Assim, qualquer discussão da democracia que a relativize aparece como uma intervenção desrazoável.”
Todavia, para os professores estadunidenses Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, há riscos de a democracia sofrer desgastes e perder sua preponderância, mesmo em países onde ela esteja razoavelmente enraizada. Aliás, as circunstâncias e os mecanismos que levam à derrocada democrática são o objeto principal das pesquisas dos mencionados docentes. Antes, porém, vamos a uma breve apresentação dos autores. Levitsky é professor da Universidade de Harvard e suas pesquisas são, sobretudo, concentradas no processo político da América Latina. Já Ziblatt, igualmente professor da Universidade de Harvard, tem como objeto de estudos a Europa contemporânea, sobretudo entre os séculos XIX e XXI. Juntaram suas experiências para a composição do livro “Como as democracias morrem”, colocando em relevo, sobretudo, o atual cenário político dos Estados Unidos da América, embora tenham conduzido uma panorâmica sobre a democracia em muitos países e épocas diferentes.
Os autores partem do princípio de que todas as constituições democráticas criam instrumentos de preservação do sistema de liberdades públicas e de limitação ao poder estatal. Então, por qual motivo esses instrumentos não conseguem impedir a deterioração da democracia e, no limite, não evitam a transformação de regimes democráticos em regimes autoritários? Será que é a má qualidade da redação dos textos constitucionais, sem a criação de freios e contrapesos adequados, que provocam a derrocada democrática? Muito embora alguns textos constitucionais sejam muito débeis, sem um bom desenho institucional, ou seja, não estabelecendo estrutura suficientemente densa para a democracia que estejam positivando, não se pode afirmar que é sempre o uso pífio de técnicas legislativo-constitucionais o causador do enfraquecimento democrático. A Constituição de Weimar, na Alemanha pós Primeira Guerra Mundial, é citada como exemplo de texto constitucional primoroso e bem articulado, concebida e ou influenciada por lumiares jurídicos do período, mas que não conseguiu impedir a ascensão do nazismo ao poder alemão, com todo o seu ciclo conhecido de horrores (2018, p. 99).
Prosseguem os autores expondo que a Constituição Americana, com mais de 200 (duzentos) anos de existência contínua, é exaltada, por muitos, como documento modelar que, dada a excelência do equilíbrio entre Poderes por ela inaugurado, sustentou a democracia nos Estados Unidos. Todavia, ponderam que textos bastante semelhantes à Constituição americana pulularam na América Latina do século XIX, mas com eficiência muito restrita ou praticamente nula na manutenção e reforço democráticos. Igualmente, na primeira metade do século XX, as Filipinas inspiraram-se, fielmente, na histórica Constituição dos EUA, mas também não logram êxito no florescimento da democracia (2018, p. 100). Por fim, afirmam que, mesmo sendo importante a existência de um bem estruturado texto constitucional, isso, por si só, não é o suficiente para os regimes democráticos, concluindo que, até “em razão das lacunas e ambiguidades inerentes a todos os sistemas legais, não podemos nos fiar apenas em constituições para salvaguardar a democracia contra autoritários potenciais” ( 2018, p. 101).
Bem, então não se pode atribuir a longa tradição democrática dos Estados Unidos apenas à genialidade e à clareza da Constituição da Filadélfia. Disso, portanto, decorre uma óbvia questão: – o que tem garantido o regime democrático estadunidense? A essa indagação, Levitsky e Ziblatt respondem de forma convicta, in verbis:
“Todas as democracias bem sucedidas confiam em regras informais que, embora não se encontrem na Constituição nem em quaisquer leis, são amplamente conhecidas e respeitadas. No caso da democracia norte-americana, isso tem sido vital.
[…]
Regras não escritas estão em toda a parte na política norte-americana, desde operações do Senado e do Colégio Eleitoral até o formato das coletivas de imprensa presidenciais. Porém, duas normas se destacam como fundamentais para o funcionamento de uma democracia: tolerância mútua e reserva institucional.” (2018, p.102/103)
No prefácio da edição brasileira do livro “Como as democracias morrem”, o cientista político Jairo Nicolau consigna que pertence a uma geração que recebeu destacada influência do institucionalismo, corrente que destaca a preponderância das normas legais e da arquitetura das instituições para elucidar a conduta política; todavia, contrariando o institucionalismo, Levitsky e Ziblatt enfatizam a função das regras informais. (2018, p. 9)
A obra é vasta e tem, obviamente, complexidade abrangente. Contudo, neste artigo, daremos ênfase, de forma relativamente resumida, ao que os autores chamam de regras informais ou regras não escritas da democracia e que, segundo eles, como já visto acima, são extraordinariamente importantes para a manutenção de um regime democrático sadio e forte: tolerância mútua e reserva institucional.
Tolerância mútua seria a capacidade dos agentes de um regime político – desde que todos os grupos que disputem o poder respeitem as regras básicas institucionalizadas pela Constituição – de enxergar em seus adversários legitimidade para também falar em nome do povo e não os encarar como alvos que devam ser abatidos e eliminados da cena política. Em suma, o agente político deve reconhecer no seu oponente um adversário, jamais um inimigo. Os grupos político-partidários, então, devem transitar, temporariamente, pelo poder e cumprir sua agenda nos marcos constitucionais, sem destruir os adversários ou deslegitimar, por completo, outras agendas (2018, p. 103/104).
Não obstante parecer trivialidade dizer que não se pode confundir mero adversário político com inimigo figadal, os autores reputam essa constatação como uma incrível invenção das democracias contemporâneas, citando, inclusive, o exemplo, nas primeiras décadas de fundação, dos Estados Unidos, onde federalistas e republicanos viam-se, mutuamente, como inimigos e traidores da pátria; só com o passar do tempo é que os políticos estadunidenses perceberam-se como competidores que circulam pelo poder estatal, dentro de regras comuns, não precisando tramar a destruição de seus opositores. (2018, p.104).
Todavia, nem sempre a tolerância mútua acompanha as democracias e isso pode significar o encurtamento do próprio regime democrático, como bem demonstra a experiência da chamada Segunda República Espanhola, durante a década de 30 do século XX, em que as forças de esquerda e as de direita não se viam como competidoras legítimas em uma ordem constitucional aberta, tolerante e polifônica, tratando-se, na prática, como forças inimigas dispostas a aniquilar o oponente. Dessa forma, a Segunda República Espanhola terminou em uma sangrenta e dolorosa guerra civil, seguida por uma longa ditadura de Francisco Franco. Os autores, depois de discorrerem sobre o exemplo espanhol, testemunham de forma pungente:
“Quando as normas de tolerância mútua são frágeis, é difícil sustentar a democracia. Se encararmos nossos rivais como uma ameaça perigosa, temos muito a temer se eles forem eleitos. Podemos decidir empregar todos os meios necessários para derrotá-los – e nisso jaz uma justificativa para medidas autoritárias.
[…]
Em quase todos os casos de colapso democrático que estudamos, autoritários potenciais – […] – justificaram a sua consolidação de poder rotulando os oponentes como uma ameaça à sua existência.” (2018, p. 105-107)
Por sua vez, reserva institucional é definida como “ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito. Quando as normas de reserva são robustas, políticos não usam suas prerrogativas até o limite, mesmo que tenham o direito legal de fazê-lo, pois tal ação pode pôr em perigo o sistema existente” (2018, p. 107). Apesar de ser um tanto difícil, em um primeiro momento, compreender os exatos contornos da reserva institucional, ela começa a ficar mais clara quando é mencionado que o seu contrário é “explorar prerrogativas institucionais de maneira incontida, o que o estudioso de direito Mark Tushnet chama de ‘jogo duro constitucional’: jogar segundo as regras, mas levando-as aos seus limites […]” (2018, p. 109).
O conceito fica ainda mais nítido, quando os autores mencionam, como modelo de não preservação da reserva institucional, os seguintes casos: a) Chefe de Executivo que tenta alterar a organização da Corte Suprema – fazendo modificação no número de membros e/ou na forma de indicação dos juízes – para ter algum controle sobre o Judiciário ou que abusam da emissão de Decretos com o fito de burlar a função legiferante do Parlamento; e b) Parlamentos que obstaculizam todas as ações do Chefe do Poder Executivo ou que movem processos para retirar o titular do Poder Executivo, mesmo diante de fatos que, na prática, são muito ambíguos para justificarem medida tão drástica. Citam, outrossim, o presidente argentino Juan Perón e o Congresso Nacional do Equador, em períodos históricos distintos, como não observadores das reservas institucionais. Aquele, ao forçar a saída de membros da Suprema Corte para nomear juízes mais dóceis ao peronismo e, este, ao destituir o então Presidente Bucaram, baseado – apenas – em frágeis alegações de incapacidade. (2018, p. 109 a 111). Em resumo, reserva institucional deve ser encarada como autocontenção dos principais atores políticos em um regime democrático, usando seus respectivos poderes de maneira equilibrada e, consequentemente, deixando de criar atritos desnecessários que possam desestabilizar o sistema.
É evidente, portanto, que tolerância mútua e reserva institucional estão intimamente relacionadas. Em uma democracia onde há tolerância mútua e os adversários políticos se enxergam como legítimos, derrotas eleitorais são aceitas como parte do jogo político, e nem os vencedores, nem os vencidos tenderão a usar o poder – no Executivo ou no Parlamento – de forma imoderada para atingir desproporcionalmente os oponentes, preservando-se a reserva institucional. Porém, em democracias onde a tolerância mútua não existe ou é bastante estreita, haverá tendência de usar o próprio poder sem o devido equilíbrio, buscando reduzir os seus contendores à insignificância e ao completo desprestígio, ou seja, abandonando as reservas institucionais. É também certo que, muito embora algum antagonismo político seja salutar à democracia, o excesso de polarização pode desestabilizá-la profundamente. Nas exatas palavras dos autores, temos que:
“No entanto, quando as sociedades se dividem tão profundamente que seus partidos se vinculam a visões de mundo incompatíveis, e sobretudo quando seus membros são tão segregados que raramente interagem, as rivalidades partidárias estáveis dão lugar a percepções de ameaça mútua. À medida que desaparece a tolerância, os políticos se veem cada vez mais tentados a abandonar a reserva institucional e tentar vencer a qualquer custo. Isso pode estimular a ascensão de grupos antissistema com rejeição total às regras democráticas. Quando isso acontece, a democracia está em apuros”. (IDEM, p. 115 e 116)
Bem, munidos desses conceitos de tolerância mútua e reserva institucional, que figurariam como verdadeiras regras não escritas de sustentação da democracia, formularemos, no próximo item, crítica à Proposta de Emenda Constitucional – PEC nº 21, de 2015.
Antes de qualquer coisa, deve-se advertir que a crítica está relacionada à proposta aprovada pelos senadores na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e que será, portanto, levada a plenário.
A primeira e mais óbvia crítica a se fazer à PEC nº 21, de 2015, é a retirada dos parlamentares da possibilidade de revogação de mandatos. É como se o instituto fosse interessante, mas desde que não atinja o Poder ao qual pertencem os senadores, naquilo que poderia ser interpretado como defesa corporativa ou um autêntico advogar em causa própria. No entanto, a crítica mais robusta dirige-se à forma como se dará a revogação do mandato presidencial. Vejamos.
Embora deva ser reconhecido que a proibição de mais de uma apreciação de revogação por mandato, a vedação à revogação durante o primeiro e o último ano dos mandatos presidenciais e o número de assinaturas para que se inicie o processo de revogação (recall) – que não é propriamente baixo, envolvendo a assinatura de eleitores em número superior a um décimo dos que compareceram à última eleição presidencial – possam funcionar como uma certa contenção a disputas políticas insanas, ainda assim a PEC nº 21, de 2015, tem potencial para tornar o quadro político-institucional brasileiro, que já não é dos mais estáveis, ainda mais obnubilado.
Antes que se prossiga com a argumentação, é mister dizer que a cena política brasileira, atualmente, é uma das mais desafiadoras dos últimos decênios. Além dos tradicionais problemas envolvendo o presidencialismo de coalização – que para mostrar-se operacional deve negociar com um excessivo número de partidos políticos, ou seja, há intensa fragmentação partidária, com baixa coerência programática, tornando as relações Executivo/Legislativo bastante difíceis – , percebe-se um acirramento de ânimos e uma polarização significativa, com forças político-partidárias fazendo um jogo cooperativo cada vez mais apequenado e aumentando a zona de atritos com campos ideológicos diferentes. Assim, nas presentes circunstâncias, a aprovação da PEC nº 21 pode significar fósforos acessos em mata seca.
Imagine-se um fato concreto. Presidente da República é eleito, em segundo turno, com 51% dos votos válidos[1]. Em seu primeiro ano de mandato, diante de certas restrições econômicas, tem que tomar duras medidas de correção. Isso, claro, torna a sua imagem desgastada. Aliás, governar é, em larga medida, desgastar-se. Logo no segundo ano de mandato, seus adversários políticos começariam forte mobilização para conseguir assinaturas de eleitores em número superior a 10% (dez por cento) dos que compareceram à última eleição. Embora, como já foi dito alhures, o número não seja baixo, também não seria muito difícil de se conseguir. Isso porque, como é natural acontecer em disputas eleitorais em democracias, é alto o percentual de eleitores que não votou no candidato vencedor.
Conseguidas as assinaturas e tramitando o processo de destituição de mandato, o Presidente da República voltar-se-ia para as duas casas do Congresso para evitar o fim precoce de seu mandato. Aprovado por maioria absoluta nas casas legislativa, o povo confirmaria ou não a destituição presidencial, ou seja, na prática haveria outra eleição com pouco mais de um 1 (um) ou 2 (dois) anos de mandato. Assim, a instituição da possibilidade do recall do mandato presidencial aumentaria a polarização política e as incertezas na gestão da esfera federal, além de diminuir drasticamente o espaço de colaboração entre grupos políticos antagônicos no âmbito parlamentar. Ademais, o Presidente da República preocupar-se-ia menos em governar e mais em se manter no poder, em um eterno círculo de curtíssimo prazo, olvidando-se por completo de projetos estratégicos de longo prazo e necessários para o desenvolvimento nacional.
Ademais, parece que a PEC nº 21, de 2015, aprovada como está, estimularia os adversários políticos a se tratarem como inimigos, em um caminho muito distante da almejada tolerância mútua, pilar de um regime democrático robusto, como visto supra. Os resultados eleitorais, quaisquer que fossem eles, tenderiam a não obter aceitação, esperando-se apenas o transcorrer do primeiro ano de mandato para a continuidade do processo eleitoral (não) findado com as eleições anteriores. O objetivo principal seria deslegitimar, a qualquer custo, o ocupante do cargo executivo para que fosse apeado do poder antes do fim regulamentar do mandato, daí a tendência à obstrução de agendas legislativas e possível crise de governabilidade. Aqui, governabilidade é entendida como “capacidade que tem a democracia de produzir, a partir da afirmação e recriação de seus procedimentos e valores, governos competentes para processarem demandas, conflitos e contradições com a perspectiva de implementarem políticas voltadas para a promoção da justiça social, do bem-estar e do desenvolvimento” (NOGUEIRA, 1995). Pense isso replicado, posteriormente, aos Estados e ao Distrito Federal. O Brasil viveria permanente clima de agitação eleitoral.
Também é oportuno perguntar se a reserva institucional seria respeitada pelos agentes políticos no caso de aprovação da PEC nº 21, de 2015. Será que os grupos políticos derrotados na eleição presidencial, mesmo tendo a prerrogativa de mobilização de suas bases para revogar o mandato presidencial de seu adversário, utilizariam esse instrumento com a cautela necessária para não criarem crises políticas artificiais, aumentarem as cisões da sociedade e alargarem a instabilidade do regime democrático brasileiro? Será que teriam a suficiente maturidade institucional para mobilizarem as bases apenas e tão somente em situações graves em que o Presidente, diante das disfuncionalidades de sua gestão, fosse um peso imenso ao país? Outrossim, poder-se-ia ter o acirramento de ódio entre os vários grupamentos políticos. Ora, o pensamento corriqueiro dos políticos poderia ser este: se o partido X tentou encurtar o mandato – ou, de fato, conseguiu tal encurtamento – de um Chefe do Executivo do meu partido ou do meu grupo, no futuro, terei como ponto de honrar fazer a mesma coisa em eventual governo daquele partido; o “aqui se faz, aqui se paga” elevaria o sectarismo político a níveis preocupantes, com ressentimentos e feridas expostas, com remota possibilidade de cicatrização.
Portanto, a nosso juízo, a PEC poderia estimular comportamentos políticos nefastos – que desconsiderariam as regras não escritas da democracia, ou seja, a tolerância mútua e a reserva institucional – e não contribuiria para a estabilidade de governos democraticamente eleitos, o que seria bastante prejudicial para as instituições brasileiras. Destaque-se, outrossim, que haveria um agravante: o Brasil tem sistema de governo presidencialista, em que o Presidente da República é o centro de gravidade política; e o recall seria instituído justamente em relação à figura presidencial, não ameaçando os parlamentares, que, diante disso, poderiam ter conduta institucional pouco recomendável, ignorando a virtude da prudência.
Conclusão
Muito embora sejam interessantes as formas diretas de participação popular na condução da vida política da nação e no aprofundamento democrático, a aprovação da PEC nº 21, de 2015, nos termos em que vai ao plenário, é um tanto perigosa.
A estabilidade das instituições, importantíssima para o adensamento de nossa jovem democracia, é bastante minimizada na proposta. Primeiro, porque o quórum exigido para se iniciar a revogação do mandato, embora não seja desprezível, também não seria de difícil obtenção. Segundo, iniciado o procedimento, o Presidente da República ficaria com agenda governamental extremamente comprometida, lutando, basicamente, para a manutenção de seu próprio mandato, com todos os riscos inerentes a semelhante quadro. Terceiro, os ânimos, em clima de incessante campanha eleitoral, ficariam permanentemente exaltados, o que manteria a sociedade em um eterno embate acerca de figuras públicas que ocupam a chefia do Poder Executivo (personalismo), e não no debate de ideias e projetos que poderiam contribuir para o avanço do país. Quarto, poderia haver grave diminuição de governabilidade, ou seja, o aparato político perderia capacidade de gerir conflitos e produzir consensos no atendimento de aspirações sociais, por intermédio de políticas públicas a favor da população. Quinto, com a aprovação da Emenda, as chamadas regras informais de manutenção da democracia – tolerância mútua e reserva institucional – seriam muito enfraquecidas, trazendo consequências de médio e longo prazo ao próprio modelo democrático de exercício do poder, desacreditando-o junto ao povo.
Assim, a nosso juízo, a aprovação da PEC nº 21, de 2015, não seria boa para nosso regime democrático, estimulando comportamentos oportunistas e podendo gerar crises políticas ainda mais dramáticas do que as que temos vivido. O necessário avanço de formas de democracia direta deve se dar em bases menos traumáticas à estabilidade das instituições responsáveis pela governança pública. Começar o recall político por mandatos presidenciais, em sistema de governo presidencialista, assemelha-se ao construtor que pretende iniciar a casa pelo telhado.
Referências
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[1] Ainda que fosse eleito com um percentual maior de votos, sempre haverá minorias significativas que nele não votaram ou a ele se opõem.
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