Antonio José Cacheado Loureiro
Resumo: O presente artigo pretende analisar a questão das interceptações telefônicas como meio de prova, mais especificamente os reflexos jurídicos decorrentes da sua utilização indevida. Além disso, será analisada a questão hermenêutica, dividida em duas partes. A primeira tem a ver com o limite da divulgação do conteúdo interceptado. A outra refere-se ao limite do conteúdo a ser divulgado. Ambos os pontos são pertinentes aos magistrados, merecendo um estudo pormenorizado. Vale ainda ressaltar que o artigo apresenta casos concretos que ajudam a elucidar e a demonstrar o foco hermenêutico pretendido pelo artigo, evidenciando, de plano, o posicionamento dos Tribunais Superiores acerca do tema.
Palavras-chave: Interceptação Telefônica; Lei 9.296/1996; Operação Lava Jato; Hermenêutica
Abstract: This paper has as its object the analysis of the telephonic interceptions as proof, mostly the legal effects of its undue se. Although, this paper tries to analyse the hermeneutic question, splitted in two parts. The first one refers to the content of the interception divulgation limits. The other one refers to the content of what it was disclosed. Both are relevant to magistrates, deserving a highly focused study. It is worth mentioning that this paper brings cases that helps elucidate and show the hermeneutic focus wanted, highlighting, right away, High Courts positioning about the theme.
Keywords: Telephone Interception; Law 9.296/1996; Car Wash Operation; Hermeneutics.
Sumário: Introdução. 1. Interceptação Telefônica e Institutos Conexos. 1.1 Conceito e Interceptação Telefônica. 1.2 Requisitos para a Concessão da Interceptação Telefônica. 1.3 Do Segredo de Justiça e do Incidente de Inutilização das Gravações. 1.4 Institutos conexos à interceptação telefônica. 1.4.1 Gravação Telefônica. 1.4.2 Escuta Telefônica. 1.4.3 Quebra de Sigilo Telefônico. 2. Reflexos Jurídicos Decorrentes da Utilização Indevida do Conteúdo das Interceptações Telefônicas. 2.1 Do Limite da Divulgação do Conteúdo Interceptado. 2.2 Incidente de Inutilização das Gravações e o Limite do Conteúdo a Ser Divulgado. 3. Análise de Casos Concretos. 3.1 Caso Lula: Divulgação Das Interceptações Telefônicas Envolvendo o Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 3.2 Caso Joesley Batista. Conclusão.
Introdução
Hodiernamente, um tema tem dominado a mídia brasileira e ganhado destaque mundial, afetando, assim, o campo social, econômico e político do país. Tal tema refere-se à Operação Lava Jato, deflagrada em 2014, e que vem sendo responsável por um verdadeiro processo de moralização em todos os setores públicos brasileiros, combatendo frontalmente a corrupção sistêmica alastrada no país.
O presente artigo pretende analisar a questão das interceptações telefônicas como meio de prova, mais especificamente os reflexos jurídicos decorrentes da sua utilização indevida.
É importante analisar o conceito de interceptação telefônica, bem como os institutos conexos, visando, então, compreender a dinâmica do procedimento, previsto pela Lei 9296/1996, com base constitucional.
Além disso, será estudada a questão hermenêutica, dividida em duas partes. A primeira tem a ver com o limite da divulgação do conteúdo interceptado. A outra refere-se ao limite do conteúdo a ser divulgado. Ambos os pontos são pertinentes aos magistrados, merecendo um estudo pormenorizado.
Outro mote do trabalho é o incidente de inutilização das gravações, procedimento previsto no artigo 9° da Lei 9296/1996. O referido dispositivo legal será examinado e terá sua eficácia confrontada frente aos casos concretos apresentados.
O tema tem grande importância, uma vez que se correlaciona ao, tão mitigado, direito à intimidade, entre outros direitos da personalidade. Ademais, o estudo das interceptações telefônicas, procedimento e limitações, permite uma maior compreensão acerca de sua utilização, se correta ou não, no contexto das ações deflagradas na Operação Lava Jato.
O estudo de casos concretos também é trazido à baila para ilustrar como as interceptações estão sendo operadas no âmbito da Lava Jato. Alguns casos emblemáticos serão analisados de acordo com o proposto pelo trabalho, com foco na legalidade e nas questões hermenêuticas.
O primeiro capítulo tratará da Lei 9296/1996, qual seja, a Lei regente das interceptações telefônicas, apresentando os conceitos pertinentes ao tema, bem como analisará os dispositivos legais da referida Lei. Já o segundo capítulo versará sobre as questões hermenêuticas, sobre as limitações no que tange ao assunto em tela. Por fim, o terceiro capítulo trará os casos concretos e suas conseqüências práticas, juntamente com a respectiva análise em conformidade com o exposto no trabalho.
1 INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E INSTITUTOS CONEXOS
1.1 Conceito de Interceptação Telefônica
A interceptação telefônica, meio de prova admitido no direito brasileiro, foi positivada na Lei n° 9296/1996. Tal diploma legal trata das nuances pertinentes ao tema, tais como: objeto, abrangência, procedimentos de colheita, incidente de destruição de gravações, prevê crimes, entre outros.
Nas palavras de Gabriel Habib (2016, p. 402) “interceptar significa cortar a passagem de algo, interromper o fluxo de algo. Assim. Por interceptação telefônica entende-se o ato de interromper, realizar uma interferência no fluxo de comunicação telefônica entre duas pessoas diferentes do interceptador. O interceptador capta o fluxo da comunicação entre duas pessoas estranhas a ele”.
Logo, percebe-se que é necessário que a comunicação esteja ocorrendo em tempo real, ou seja, “ao vivo”. Dessa forma, temos que o meio de prova, em tela, é demasiadamente invasivo frente o direito à intimidade e à inviolabilidade das comunicações.
Vale ressaltar, que a Lei 9296/1996 tem caráter processual penal, uma vez que houve por bem dispor sobre a persecução criminal em todas as suas fases, inquérito policial e a fase da ação penal. O Legislador teve a clara intenção em alcançar a persecução penal por completo, já que utilizou as expressões “investigação criminal” e “instrução processual penal”.
1.2 Requisitos para a Concessão da Interceptação Telefônica
O artigo 2° da Lei 9296/1996 traz os requisitos para a admissão da interceptação das comunicações telefônicas, verbis:
Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;
II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;
III – o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada.
Sobre os requisitos, a interpretação deve ser realizada de forme inversa, ou seja, o dispositivo tem que ser lido de forma afirmativa, trocando o sentido do mesmo. O Legislador deixou claro o caráter excepcional da medida, pois a interceptação é um meio de prova subsidiaria,sendo considerado a “ultima ratio” dos meios de prova admitidos no direito processual penal brasileiro.
O primeiro inciso trata da questão da ausência de indícios razoáveis de autoria ou participação, o que significa que já deve haver algum elemento de prova que traga, no mínimo, indícios da concorrência do agente. Assim, uma investigação não pode ser iniciada a partir de uma interceptação telefônica.
Já o segundo inciso dispõe sobre a já supracitada subsidiariedade da medida, tendo em vista que a interceptação telefônica viola o direito fundamental à intimidade e ao sigilo das comunicações. Devendo, então, ser o único meio de prova existente para a investigação de certo crime. É um dos requisitos para que seja deferida a autorização judicial da medida.
Por fim, o inciso três, traz o mandamento que apenas os crimes apenados com reclusão legitimam a autorização da medida. Não há nenhuma justificativa palpável que fundamente tal inciso. Entende-se que, em razão das violações aos direitos fundamentais, o Legislador decidiu dispor dessa forma.
Alem desses requisitos previstos no artigo 2°, ainda há o requisito constitucional referente à ordem do Juízo competente (artigo 5°, XII, CF/88), já que a interceptação telefônica sempre deve ser precedida de autorização judicial deferida pelo juiz competente para processar e julgar o crime no caso concreto. De acordo com Gabriel Habib (2016, p 405) “o juízo natural é aquele que já tem competência para o processo e o julgamento do fato criminoso na data da sua pratica. Trata-se de uma garantia constitucional para que seja assegurado um julgamento imparcial e isento por parte do Poder Judiciário”.
É possível que a interceptação telefônica tenha natureza de medida cautelar, hipótese que tornara prevento o juízo para o processo que for posteriormente instaurado (artigos 75 e 83, Código de Processo Penal).
1.3 Do Segredo de Justiça e do Incidente de Inutilização das Gravações
A Lei 9296/1996 exigiu o sigilo sobre as interceptações e tal exigência é razoável pelo fato de se tratar de um ato que tem natureza investigatória e, sobretudo, para preservar o direito constitucional ao sigilo das comunicações telegráficas de dados e das comunicações telefônicas, bem como para preservar o direito à intimidade.
No entanto, o referido sigilo não recai sobre o Juiz, os membros do Ministério Público e os Defensores Públicos ou privados, o que dá azo a possíveis arbitrariedades na condução dos processos criminais e das investigações, uma vez que a autoridade judicial possui poderes para levantar o sigilo em comento, o que pode acarretar prejuízos à imagem e outros direitos da personalidade daqueles que estão sendo processados.
O artigo 9° da Lei 9296/1996 trata do incidente de inutilização das gravações, verbis:
Art. 9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.
Parágrafo único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante legal.
O referido incidente tem por objetivo eliminar partes das gravações que não interessem à instrução processual penal, evitando, assim, hipóteses que possam causar danos aos direitos da personalidade de investigados ou réus. Trata-se de uma ordem derivada da Lei, não sendo considerada uma possibilidade, e sim uma exigência legal que vincula as autoridades participantes no processo, ou seja, juízes e membro do Ministério Público, bem como autoridades policiais no momento das investigações.
Não obstante, o incidente deve ser requerido ou pela parte interessada (indiciado ou réu) ou pelo Ministério Público. De acordo com Renato Brasileiro (2017, p. 237) “a necessidade de decisão judicial permite um maior controle acerca do conteúdo considerado relevante ou não, no que tange ao objeto da inutilizarão
Vale ressaltar que o juiz não pode determinar de oficio a realização do incidente, uma vez que somente quem participou da produção probatória pode requerer que o incidente seja autorizado. Isso demonstra o respeito à imparcialidade necessária aos magistrados.
A inutilização pode ser realizada a qualquer tempo, desde que seja respeitado o marco temporal do transito em julgado. O Ministério Público é obrigado a assistir a realização do incidente, sendo isso considerado uma faculdade no que diz respeito às partes.
Infere-se que o conteúdo das interceptações telefônicas, ou seja, as gravações, devem ser estritamente ligadas aos crimes investigados e processados, sob pena de possível reparação por danos morais, tendo em vista que o conteúdo não deve exceder a seara criminal.
1.4 Institutos conexos à interceptação telefônica
1.4.1 Gravação Telefônica
De acordo com Marcio Cavalcante (2014, p. 01) “ocorre quando o diálogo telefônico travado entre duas pessoas é gravado por um dos próprios interlocutores, sem o consentimento ou a ciência do outro. Também é chamada de gravação clandestina“.
A gravação é legitima ainda que tenha sido executada à revelia de autorização judicial. Existe apenas uma exceção, trata-se do caso em que há ilicitude, que ocorre na hipótese em que a conversa era amparada por sigilo.
1.4.2 Escuta Telefônica
Para que seja configurado um caso de escuta telefônica, é necessário que duas pessoas sejam gravadas por uma terceira, sendo que um dos participantes da conversa sabe que esta sendo gravado. Para que seja realizada é indispensável a autorização judicial.
Segundo o jurista Marcio Cavalcante (2014, p. 01):
Apresenta uma situação intermediária entre os institutos, pois tem como intersecção ao primeiro a presença de um agente alheio à conversa, enquanto o mesmo se aproxima do segundo instituto em razão do fato de no mínimo um dos interlocutores ter conhecimento acerca da gravação.
No entanto, em razão da diferença entre a gravação clandestina e a escuta telefônica ser simplesmente a ausência de um terceiro, estas são consideradas como gravação clandestina “latu sensu” pois um dos comunicadores realiza a gravação, direta ou indiretamente, e o agente alheio ao diálogo atua apenas de forma auxiliar, sendo dispensável
1.4.3 Quebra de Sigilo Telefônico
A quebra de sigilo de registros e dados telefônicos equivale à colheita e obtenção dos registros já existentes na companhia telefônica relacionados às ligações já feitas, dados cadastrais do assinante, data de realização da chamada, horário, número do telefone, duração das ligações, custo da chamada, entre outros serviços..
2.1 Do Limite da Divulgação do Conteúdo Interceptado
A partir da exegese da lei 9296/96, temos que a regra, no tocante às interceptações telefônicas, é o sigilo referente ao material colhido. Tal entendimento, majoritário entre os doutrinadores, esta positivado no artigo 1° da lei em analise, verbis:
Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
O segredo de justiça é um mandamento explicito que deve ser tratado como regra, uma vez que em nenhum momento a lei excepcionou tal comendo legal. No entanto, o magistrado possui poderes para levantar o segredo, porem o órgão julgador deve agir sempre com cautela. A divulgação das gravações é um ato que efetiva o disposto pela Constituição Federal de 1988, que, por sua vez, traz a publicidade dos atos processuais como regra no Direito brasileiro.
O levantamento do segredo de justiça, operado pelo magistrado, de fato, realiza os anseios constitucionais de publicidade, mas pode acarretar grave ofensa aos direitos da personalidade do indiciado ou réu em uma persecução penal. Assim, a lei 9296/96 houve por bem trazer expressamente, a supracitada, regra das gravações ficarem encobertas pelo manto do segredo judicial (LIMA, 2017 p.152).
Assim, reitera-se o dever de cautela com o qual o magistrado deve agir ao atuar na colheita e utilização do material probatório colhido através de interceptações telefônicas. O limite da divulgação é questão de hermenêutica, já que não há uma regra que defina a extensão do que pode ser divulgado. Os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem ser trazidos á baila para que a atividade jurisdicional seja prestada de forma eficaz e coerente. Assim, evitando a excessiva exposição daquele ou daqueles que estão figurando em um processo penal (SERRA, 2015, p. 01).
Outra questão de relevo que influencia diretamente no ponto em analise é a competência.as regras de competência sempre foram um tema delicado no que diz respeito á interceptação telefônica, pois a colheita dessa prova pode ser realizada em fase de investigação policial ou durante a instrução processual.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF) o uso dos dados obtidos na interceptação deve ser autorizado por um juiz competente, sob pena de anulação da prova e possível contaminação do processo. O Supremo, entretanto, vem adotando a teoria do juízo aparente, segundo a qual reconhecida a incompetência do juiz inicial, as provas já colhidas no âmbito de uma interceptação permanecerão validas sob as mãos de um novo juiz (STF, 2 Turma, HC 110.496/RJ,Rel. Min. Gilmar Mendes, 09/04/2013).
2.2 Incidente de Inutilização das Gravações e o Limite do Conteúdo a Ser Divulgado
De acordo com o artigo 9° da lei 9296/1996, o conteúdo das interceptações que não tenha a ver com os crimes investigados deve ser destruído, inutilizado. Tal procedimento, conhecido como incidente de inutilização existe para preservar os demais campos da vida daquele que está sendo alvo da persecução criminal, uma vez que os aspectos particulares, que não dizem respeito aos crimes, que porventura tenham sido cometidos, não devem adentrar a esfera penal.
Logo, deve-se atentar para o limite do conteúdo das gravações a ser divulgado. O magistrado competente para o caso possui poderes para levantar o sigilo e divulgar o material probatório interceptado, o qual, constitui-se de conversas entre agentes (interlocutores) que estão participando de um processo penal ou são alvos de investigações (HABIB, 2017, p. 410)
Assim, ao analisar essa questão, o juiz deverá, mais uma vez, agir com cautela, bem como respeitar os demais princípios processuais. Trata-se, então, de uma hipótese em que a hermenêutica balizará o tema em tela. Dessa forma, a interpretação terá papel fundamental, pois na presença de lacunas normativas, ou seja, ausência de dispositivos legais pertinentes ao fato concreto, o intérprete precisa atuar de maneira ética, respeitando sempre os demais personagens envolvidos na persecução pena.
A partir da decisão judicial que autoriza a divulgação do conteúdo interceptado, é comum que, em casos de grande apelo midiático, como a Operação Lava-Jato, a imprensa promova exibições das gravações em larga escala, alcançando um colossal número de pessoas.
O incidente de inutilização, trazido pela lei 9296/1996, deveria ser o grande filtro daquilo que pode ou não ser divulgado. Porém, na prática, isso não costuma ocorrer, visto que, trechos de gravações inúteis ao processo, que deveriam ser destruídos, são carreados ao processo. Tais trechos não tratam dos crimes, mas de fatos que pertencem à esfera privada do investigado ou réu, fatos que não constituem ilicitudes, fatos, estes, unicamente ligados a aspectos cíveis, como, por exemplo, política, religião e amenidades em geral, sem relação com crimes (ANDRADA, 2007, p.01)
Ainda que o indivíduo esteja sendo investigado ou processado criminalmente, devem existir limites às demais esferas jurídico-sociais, já que a interceptação telefônica, por si só, é uma violação (permitida por lei) à intimidade, entre outros direitos da personalidade. Sendo assim, podemos vislumbrar, com fulcro na lei em análise, hipóteses de responsabilidade civil do Estado, pois presentes os elementos que a configuram (CAVALIERI, 2015, p.93).
Nesses casos, a indenização por danos morais revela-se como a justa medida para reparar os prejuízos causados pela exposição excessiva sofrida. Logo, o magistrado ao atuar nesses casos, necessita, por imperativo legal, ater-se ao conteúdo criminoso das interceptações realizadas, sob pena de responsabilização civil do Estado.
Por fim, reitera-se o relevo do artigo 9° da lei 9296/1996, cujo conteúdo reforça o caráter de exceção que o Legislador dispensou à divulgação das interceptações, sendo o sigilo a regra a ser seguida. Assim, o limite do conteúdo a ser divulgado cabe ao bom senso do magistrado combinado com o referido dispositivo legal.
3 ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS
3.1 Caso Lula: Divulgação Das Interceptações Telefônicas Envolvendo o Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
No dia 16 de março de 2016, o juiz federal Sergio Moro, da 13 ª Vara Federal de Curitiba/PR publicou as gravações colhidas em uma interceptação telefônica do celular utilizado pelo ex-presidente. A primeira gravação publicada foi um telefonema entre a Presidente da Republica em exercício na época, Dilma Rousseff. Tal ligação foi exaustivamente reprisada pela mídia brasileira, seu conteúdo revelava a intenção de Dilma Rousseff em tornar Lula um de seus Ministros, ato, potencialmente, frustrador das investigações em andamento (BARBOSA, 2017, p. 01)
Não obstante o relevo da primeira ligação divulgada, diversas outras gravações também tiveram o sigilo levantado pelo magistrado, ligações telefônicas que não possuem qualquer conteúdo de interesse penal, capaz de tornar as provas da acusação, em um futuro processo, mais robustas.
As ligações interceptadas foram tornadas públicas em sua integralidade, ficando todas as conversas ao alcance de quaisquer interessados, sendo, então, eternizadas para o público em geral.
A divulgação do conjunto completo das gravações trouxe à baila as opiniões do ex-Presidente acerca de política, acontecimentos pretéritos não relacionados a quaisquer indícios de crime e até mesmo opiniões esportivas sobre futebol. Tais conversas, de conteúdo informal e íntimo, acabam por “memetizar” a figura do ex-Presidente, bem como revelam à sociedade como conduzia sua vida e seus negócios particulares (GARCIA, 2016, p.01)
O juiz Sérgio Moro fundamentou sua decisão de publicizar as gravações com base no artigo 5°, LX e artigo 93, IX, ambos da constituição Federal de 1988. Os dispositivos tratam da regra constitucional que garante a publicidade dos processos. Todavia, não foram mencionados o inciso XII do artigo 5° da constituição, bem como não aduziu qualquer artigo da lei 9296/1996.
Moro declarou em sua fundamentação que levantar o sigilo das gravações seria de interesse social, não havendo motivos a justificar a manutenção do segredo de justiça. Nas palavras do magistrado “a democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes e que não há qualquer defesa de intimidade ou interesse social que justifiquem a manutenção do segredo em relação a elementos probatórios relacionados à investigação de crimes contra Administração Pública”.
Os fundamentos trazidos pelo juiz mostram-se fracos, de difícil sustentação, uma vez que não houve menção à lei que rege as interceptações telefônicas no Brasil o levantamento do sigilo não contribui para a defesa, pois os advogados possuem acesso aos atos processuais que estão em sigilo, bem como, de acordo com o já supracitado o sigilo deve ser a regra e o caso concreto em analise não mereceu o caráter de exceção conferido pelo Juízo (GARCIA, 2016, p. 01)
Vale ainda ressaltar que o interesse público suscitado pelo magistrado não deve confrontar a fortaleza dos direitos fundamentais. Tais direitos tutelam interesses individuais, justamente para impedir arbitrariedades derivadas de apelos populares, os referidos direitos devem atuar, em determinados casos, contramajoritariamente. Assim, tal fundamento exposto pelo magistrado não merecia prosperar.
Por fim, o incidente de inutilização (artigo 9°, lei 9296/1996) deveria ter sido realizado, com isso a lei regente teria sido respeitada e maiores prejuízos teriam sido evitados.
3.2 Caso Joesley Batista
Este caso é um dos mais icônicos da operação lava jato. Trata-se do acordo de delação premiada envolvendo os irmãos Batista (donos da empresa JBS) e seus principais executivos, com o objetivo de levar a tona os crimes realizados pelas figuras políticas brasileiras de maior escalão.
No dia 7 de Março de 2017, Joesley Mendonça Batista, empresário e dono da empresa de frigorífico JBS-friboi, realizou uma gravação (ambiental) de uma conversa que teve com o Presidente da Republica Michel Temer, no interior de sua residência oficial, o Palácio do Jaburu. Durante aproximadamente 40 minutos. nos quais o executivo fez insinuações acerca do pagamento efetuado a Eduardo Cunha, para que este não fizesse nenhum acordo de delação premiada, fato este que recebeu a aquiescência do presidente Temer. Nesta mesma conversa, Temer designa Rodrigo Rocha Loures como intermediário da JBS no esquema de corrupção envolvendo o Executivo
Ainda no mês de Março, os irmãos Batista, bem como os executivos e advogados da JBS entram em contato com a Procuradoria-Geral da Republica (PGR) para um acordo de delação premiada, cuja homologação teve por data o dia 10 de maio do mesmo ano. Constam do acordo, a entrega das gravações realizadas, depoimentos e auxilio em ações controladas executadas pela policia federal
As delações dos empresários, homologadas pelo STF, tiveram o sigilo retirado. Com o levantamento do sigilo, as gravações foram divulgadas pela mídia, no dia 17 de Maio. A publicação dessas gravações, sobretudo a que envolve o presidente Temer, causou grandes transtornos à economia e á política do país, uma vez que teve o condão de expor negativamente a imagem do Brasil no exterior, influenciando nas exportações de carne e causando prejuízos à bolsa de valores (CASTRO, 2017, p.01)
Não obstante, o STF ao levantar o sigilo que caia sobre a delação, acabou por publicizar a integralidade das gravações, revelando os mais diversos aspectos da vida pessoal de Joesley Batista, inclusive detalhes íntimos sobre o seu relacionamento conjugal e possíveis casos extraconjugais, o que culminou em severos danos à sua imagem além de outros prejuízos que serão a seguir expostos.
No entanto, cabe a este capitulo analisar juridicamente o ocorrido. Logo, urge elucidar que, assim como no caso anteriormente analisado, não houve a observância da lei 9296/1996, especialmente no que tange à questão do incidente de inutilização das gravações.
O STF divulgou, como supracitado, o conteúdo integral das gravações, sem cumprir o previsto no artigo 9° da Lei de Interceptações Telefônicas. Sendo assim as gravações divulgadas permitem o amplo acesso ao cotidiano de Joesley Batista, não comportando em seu conteúdo qualquer indício de crimes, requisito essencial e indispensável para validar uma interceptação como prova a ser carreada ao processo.
Além do prejuízo causado a sua imagem, o conteúdo interceptado que foi aberto ao publico brasileiro pela mídia traz conversas que dizem respeito à vida amorosa do empresário, expondo possíveis casos extraconjugais. Uma das conseqüências geradas por estas gravações foi o pedido de divorcio realizado pela mulher de Joesley, Ticiana Villas Boas, que houve por bem encerrar o matrimônio em razão da suposta infidelidade do marido (BARBOSA, 2017, p.01)
Tal evento ainda que moralmente reprovável, poderia ter sido evitado se o Supremo tivesse observado o incidente de inutilização das gravações (artigo 9°, Lei 9296/1996), uma vez que o referido procedimento serve para salvaguardar o direito à intimidade, bem como seus reflexos à imagem daqueles envolvidos na persecução penal. É possível vislumbrar uma hipótese de indenização por danos morais, com fulcro na responsabilidade civil do Estado.
Vale ressaltar que gravar conversas com o Presidente da República (gravação ambiental), ainda que seja um ato lícito, acarreta conseqüências na ordem política e econômica do país. Ademais, a divulgação de dados referentes à empresa JBS sem a devida precaução quanto a precisão da veracidade dos fatos resultou em uma serie de medidas desfavoráveis contra a exportação de carne brasileira (CHARLEAUX, 2017, p. 01)
Por fim, reitera-se a importância da utilização do incidente de inutilização, visto que teria evitado diversas complicações políticas e financeiras, desnecessárias, em meio à crise geral instalada no Brasil. Seguir os ditames legais é um dever,e não uma faculdade.
Conclusão
A Operação Lava Jato está sendo um marco histórico no combate à corrupção sistêmica arraigada no Brasil. Alcançado a classe política de todos os escalões e de todos os poderes constituídos da República brasileira Um marco também no que diz respeito à interpretação da Constituição Federal e das Leis ordinárias uma vez que semanalmente o Supremo Tribunal Federal depara-se com o surgimento de questões de cunho constitucional e, sobretudo, hermenêutico, especialmente no que tange às garantias processuais e demais direitos fundamentais.
A atuação dos agentes públicos na Operação Lava Jato deve ser balizada pelo ordenamento jurídico, ou seja, leis e princípios, para que o conjunto das investigações tenha validade e seja legitimo.
O papel executado pelo Judiciário vem sendo de extrema importância, uma vez que a justiça é uma virtude cara ao Direito e esta ciência é aquela que legitima a operação em tela. Tal virtude tem sido renegada pelos envolvidos nos atos de corrupção, políticos e empresários malversaram o dinheiro público, causando prejuízos catastróficos à economia em ordem nacional, levando alguns estados da federação à falência.
A colheita probatória, com ênfase nas interceptações telefônicas, deve respeitar durante a persecução penal a constituição federal e a Lei regente (Lei 9296/1996). Alem disso, nos pontos nebulosos, deve-se seguir a jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o tema. No entanto é função do magistrado de primeira instância colmatar as lacunas, as zonas cinzentas com as quais, possivelmente, irá se deparar ao atuar com interceptações.
As limitações analisadas merecem ser respeitadas, uma vez que é de suma importância resguardar os direitos dos investigados, indiciados e réus. Violações relacionadas aos limites propostos culminam em ofensas à dignidade, intimidade e outros direitos da personalidade. A solução para evitar tais violações está presente nos dispositivos da Lei 9296/1996, com destaque para os artigos 1° e 9°.
O artigo primeiro trata do sigilo como regra para as interceptações telefônicas. Sendo assim, não é prudente divulgar as gravações sem um motivo excepcional. Do contrario a intenção do legislador não estaria sendo observada, o que traz insegurança jurídica, visto que o sentido da lei acaba deturpado.
Já o artigo 9° dispõe sobre o incidente de inutilização das gravações, o dispositivo que, uma vez observado, pelos Tribunais evitaria uma serie de transtornos aos envolvidos nas diversas fases da persecução, já que carrearia ao processo apenas trechos de gravações que dizem respeito a crimes ou aos seus indícios. Dessa forma, a intimidade seria melhor tutelada e conversas meramente dispensáveis (vida pessoal, opiniões políticas, entre outros) não teriam o condão de causar comoção popular, preservando, assim, direitos individuais nos casos concretos.
Os casos concretos apresentados auxiliam na percepção dos prejuízos que podem ser causados quando os limites (questões hermenêuticas) não são observados. Isso demonstra a importância do uso da lei 9296/1996 pelos juízes, e não, simplesmente, decidir os casos com fundamentações genéricas e apartadas da referida Lei.
As questões hermenêuticas (limites) presentes no trabalho devem ser resolvidas com grande cautela pelos Tribunais Superiores, visto que a partir da resolução das mesmas são criadas jurisprudências que irão influenciar o julgamento de inúmeros casos similares. Logo, a defesa dos direitos individuais merece prosperar frente ao espírito paladino e reducionista tão recorrente no Judiciário brasileiro ao longo da ultima década.
Referências
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