Resumo: Este artigo procura estabelecer de forma introdutória os fundamentos do Direito Penal, atentando para aspectos da intervenção jurídico-penal que são muitas vezes tratados de forma insuficiente até mesmo pela doutrina mais expressiva em relação ao tema. Ao longo do artigo são discutidas questões que dizem respeito ao Direito Penal enquanto meio de controle social garantista formalizado, abordando boa parte de suas características, de seu relacionamento com outras ciências criminais e com os demais ramos do ordenamento jurídico, assim como a legitimidade do jus puniendi e do próprio Direito penal, a partir de uma definição da missão que lhe cabe em um Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: direito penal, introdução, fundamentos, princípios, controle social.
Sumário. 1. Direito Penal e Dogmática Jurídico-Penal: definição e características. 1.1 Conceito e características do Direito Penal 1.2 Dogmática Jurídico-Penal 2. Relações entre Direito Penal, Criminologia e Política Criminal 3. O jus puniendi colocado em questão: para além da dicotomia Direito Penal objetivo e Direito Penal subjetivo 4. O Direito Penal e os demais ramos do ordenamento jurídico 4.1 Direito Penal, Direito Constitucional e Estado Democrático de Direito 4.2 Direito Penal, Direito Processual Penal e Instrumentalidade Processual Penal 4.3 Direito Penal e Direito Privado 4.4 Direito Penal e Direito Administrativo 5 Função e legitimidade da intervenção jurídico-penal 5.1 A função de proteção de bens jurídicos 5.2 A função ético-social do Direito Penal 6. Considerações finais.
1. Direito Penal e Dogmática Jurídico-Penal: definição e características
Estabelecer uma definição de Direito Penal e de Dogmática Jurídico-Penal implica em exercer um esforço analítico de considerável envergadura, em função da complexidade da temática envolvida e dos infinitos problemas que envolvem a incidência do poder punitivo desde uma política orientada para a máxima redução de danos em relação aos direitos fundamentais do cidadão. Trata-se de um empreendimento que envolve recurso à enorme pluralidade de fontes e que não pode ser tratado desde uma leitura jurídica que considere somente a produção científica nacional. Nesse sentido, procurou-se fazer jus ao tema através da constante referência a autores de inegável renome no que se refere aos problemas considerados, objetivando traçar um panorama rico – ainda que não suficientemente crítico – das questões envolvidas. Como se trata apenas de uma introdução, grande parte das questões são tratadas de forma superficial, deixando em aberto pontos que merecem um estudo mais minucioso em análises que atentem de forma direta a tais problemas. O que se propõe aqui é tão somente uma análise panorâmica que, ao menos, estabeleça de forma satisfatória o sentido que deve pautar a intervenção jurídico-penal em um Estado Democrático de Direito.
1.1 Conceito e características do Direito Penal
O Direito Penal é um ramo do Direito e, logo, o seu conceito deve reportar-se, de alguma forma, ao conceito de Direito em geral. O problema posto por essa questão se encontra no fato de que está longe de haver uma concepção consensual e inequívoca do conceito de Direito, diante da pluralidade de interpretações através das quais o fenômeno jurídico pode ser entendido. Neste sentido, qualquer conceito sempre implica em uma redução da complexidade inerente ao fenômeno jurídico-normativo.
Reconhecida esta insuficiência, pode ser dito que o Direito regula (ou procura regular) o convívio social e funciona como elemento de harmonização das relações sociais, oferecendo mecanismos de resolução de conflitos, por meio de sua dúplice natureza de poder que protege e, simultaneamente obriga, através de um conjunto de normas que integram o ordenamento jurídico. Trata-se de uma definição que evidentemente não esgota o fenômeno jurídico, mas que, ao menos, abrange parcela significativa de suas características.
O ordenamento jurídico pode ser definido como um conjunto ou sistema de normas jurídicas vigentes em um país, em um determinado momento histórico. É por definição um sistema que não existe como um fim mesmo, mas como meio para a realização de valores essenciais ao homem e à sociedade. Trata-se de um sistema normativo dinâmico, composto de um corpo ou grupo de elementos relacionados entre si, que fazem parte e interagem no contexto de um todo ordenado hierarquicamente. Por outro lado, a atribuição de um caráter sistêmico não impede que cada setor ou ramo do Direito tenha as suas peculiaridades.
Em âmbito jurídico-penal, o problema conceitual é simplificado em função das características do Direito Penal, uma vez que este ramo do Direito – mais do que qualquer outro e por força da legalidade – se restringe ao chamado direito positivo, ou seja, às normas, que são a única fonte primária do Direito Penal. [1] Essa característica absolutamente deixa de lado qualquer possível referência ao chamado Direito Natural, delimitando e restringindo o Direito Penal a um espaço específico dentro do ordenamento jurídico: somente a lei é norma jurídica suscetível de ter caráter penal.[2] Ou seja, só há crime e sanção penal – pena ou medida de segurança – a partir da existência de uma lei prévia que defina o que é crime e qual a sanção aplicável, expressão máxima do princípio nullun crimen, nulla poene sine lege.
O Direito Penal é formado por um conjunto de regras e princípios que integram um campo específico do ordenamento jurídico, dedicado à tutela dos bens jurídicos mais relevantes de uma sociedade. É a partir desses pressupostos que se pode chegar a uma definição propriamente dita do que consiste o Direito Penal.
O Direito Penal é um meio de controle social[3] formalizado, que representa a espécie mais aguda de intervenção estatal. É formado por um conjunto de normas jurídicas (princípios e regras) que definem as infrações de natureza penal e suas conseqüências jurídicas correspondentes – penas ou medidas de segurança. É considerado um meio de controle social formal precisamente por ter sido estabelecido com esta finalidade: o controle, que visa a tutela de bens jurídicos.[4] O princípio de exclusiva proteção de bens jurídicos enfatiza justamente o caráter instrumental da tutela jurídico-penal, vedando ao direito penal interferência no âmbito da moral, da religião, da ética, enfim, de tudo que diga respeito às convicções íntimas dos cidadãos. É um controle social voltado para a tutela de bens juridicamente tutelados e não se constitui em mecanismo para propor mudanças na ordem social ou constituir uma ética em qualquer sentido.
O controle social é exercido pelo conjunto de instituições, estratégias e sanções sociais que objetivam manter os indivíduos dentro de determinados modelos e normas de comportamento comunitário. Segundo Hassemer, a expressão controle social designa um conjunto de três elementos que podem ser sinteticamente definidos como a) viver de acordo com normas sociais; b) aplicar sanções aos desvios em relação a estas normas e c) respeitar, para tanto, determinadas normas procedimentais.[5]
Por outro lado, as mesmas normas jurídico-penais que estipulam sanções em caso de violação de seus preceitos (mandamentos e proibições) conformam um sistema que estabelece garantias ao cidadão diante do poder punitivo, pois exigem uma série de condições para o seu exercício. O que significa que o Direito Penal – enquanto instrumento de controle social normativo – também tem uma função de proteção e garantia, que lhe é inerente e necessária, uma vez que a partir da intervenção jurídico-penal é possível retirar direitos da pessoa humana que lhe são constitucionalmente assegurados, sendo por isso a sua utilização reservada somente às lesões mais graves aos bens jurídicos mais importantes, o que caracteriza a idéia de fragmentariedade da tutela jurídico penal, por exigência do princípio da intervenção mínima ou ultima ratio. Portanto, sua utilização é reservada aos bens jurídico-penais absolutamente essenciais ao convívio social e que são considerados merecedores da tutela penal. Tudo isso conduz a um meio de controle com alto grau de formalização, com regras e princípios muito bem definidos.
Neste sentido, o sistema penal é um sistema garantista de controle formalizado. Apresenta vantagens que os sistemas de controle informais não dispõem, possibilitando que através da resposta penal sejam afastadas reações incontroladas e espontâneas como a vingança privada. Garcia-Pablos considera que o Direito Penal, por suas características, é um instrumento mais racional, previsível, limitado e seguro do que outros controles sociais.[6] O próprio critério de proteção a bens jurídicos enquanto garantia será reforçado pelos critérios dos princípios da ofensividade – exigência de lesão ou perigo de lesão concreta ao bem jurídico – e insignificância – desconsideração de ataques insignificantes aos bens juridicamente tutelados.
Toda norma penal que institui um crime protege (ou deveria proteger) algum bem fundamental, que através de sua proteção é elevado à condição de bem jurídico. Trata-se de uma proteção de ordem subsidiária, pois o emprego da intervenção jurídico-penal somente é justificado quando o Direito Civil ou outros ramos do Direito Público se mostram insuficientes à tutela eficaz do bem em questão. A idéia de subsidiariedade – assim como a idéia de fragmentariedade – é extraída do princípio da intervenção mínima.
Existe certo consenso no que se refere à conceituação do Direito Penal na doutrina contemporânea.[7] Para Bitencourt, o Direito Penal “apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança”.[8] Brandão constrói uma definição normativa de Direito Penal, com base em três institutos: Crime, Pena e Medida de Segurança. Assim, o autor afirma que “o Direito Penal é um conjunto de normas que determinam que ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena – esta como conseqüência do crime –, ou a medida de segurança”.[9] De acordo com Luiz Régis Prado, “O Direito Penal é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas conseqüências jurídicas – penas ou medidas de segurança. Enquanto sistema normativo, integra-se por normas jurídicas (mandamentos e proibições) que criam o injusto penal e suas respectivas conseqüências”.[10] Para Nucci, o Direito Penal “é o corpo de normas jurídicas voltadas à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo as infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação”.[11]
Considerando-se que ao Direito Penal está reservada a mais grave sanção do ordenamento jurídico – a pena – e que esta é conseqüência jurídica do crime, fica assinalada a especificidade da intervenção jurídico-penal, que caracteriza esse ramo do Direito. Conforme Roxin, o Direito Penal é composto por todos os preceitos que regulam os pressupostos e conseqüências de uma conduta cominada com pena ou medida de segurança. Dentre os pressupostos se encontram as descrições de condutas delitivas (como o homicídio, por exemplo) e dentre suas conseqüências, todas as normas que se ocupam da configuração e determinação da pena, ou da imposição de medida de segurança. Pena e medida, são, portanto, o ponto comum de referência a todos os preceitos jurídico-penais. O que faz com que um preceito pertença ao Direito Penal não é a mera regulação normativa de uma violação a mandamento ou proibição (porque também ocorre em muitos casos no âmbito civil e administrativo), mas o fato dessa infração ser passível de sanção através de pena ou medida de segurança.[12]
A pretensão preventiva também distingue o Direito Penal dos demais ramos do ordenamento jurídico, uma vez que objetiva evitar a prática de crimes através de uma prevenção geral genérica, dirigida a todos, que em caso de falha, impõe através do devido processo legal a sanção cominada, sendo esse o seu sentido de prevenção especial, expressão máxima do caráter coercitivo do poder exercido.[13] Com efeito, daí decorre a noção de que a norma penal consiste em um imperativo, onde se atribui à pena a função de motivar contra o delito, ou seja, uma função de prevenção de delitos e de proteção de bens jurídicos.
O Direito Penal – como todo texto – é datado. Logo, é um objeto cultural que pertence a um recorte histórico e geográfico específico.[14] Isso significa que é a expressão de um tempo, de determinadas circunstâncias sociais, culturais, políticas, econômicas, enfim. O processo de elaboração legislativa em âmbito penal não escapa a esta regra. São circunstâncias de cunho histórico/valorativo que conduzem à definição abstrata por meio do Direito Penal de uma série de comportamentos que devem ser obedecidos e/ou evitados pelos cidadãos. A proibição legislativa de uma determinada conduta, através da norma penal, importa em uma valoração negativa que conduz à criminalização da mesma. Isso implica em mandamentos e proibições relacionados a determinados bens jurídicos, que definem o injusto penal e as conseqüências para as condutas desviadas, estabelecendo o desvalor de certas ações e resultados.
Portanto, o Direito Penal – ou Direito Criminal – define as infrações penais (crimes ou delitos e contravenções) e comina-lhes sanções na hipótese de descumprimento dos preceitos estabelecidos. A denominação Direito Penal é mais comum nos países ocidentais, ainda que o termo Direito Criminal (expressão mais abrangente) ainda seja utilizado pelos anglo-saxões. A questão é meramente terminológica, embora alguns autores apontem que o enfoque de um é maior no crime e do outro, na punição. Outros termos, como Direito Repressivo (Puglia), Princípios de Criminologia (Luca), Direito Sancionador, Direito Protetor dos Criminosos (Dorado Montero), Direito de Luta contra o Crime (Thomsen), Direito de Defesa Social (José Agustín Martínez), e Direito Restaurador surgiram, mas sem grande difusão. Entretanto, deve ser ressaltado que é difícil discordar da afirmativa de que o termo Direito Penal designa um objeto mais restrito do que trata este ramo do Direito, como a própria existência das medidas de segurança indica.[15]
Jiménez de Asúa considera que o Direito Penal é cultural, normativo, valorativo e finalista.[16] O Direito Penal atual é ramo do Direito Público[17], e para Asúa, é sancionador e não constitutivo, já que a antijuridicidade é uma só; a infração é a todo o ordenamento jurídico, pois a contrariedade se refere ao direito e não somente à ordem penal.[18] De acordo com esse entendimento, o Direito Penal não cria bens jurídicos, mas apenas acrescenta proteção a bens já disciplinados por outros setores do ordenamento.
No entanto, o Direito Penal tem natureza ao menos, parcialmente constitutiva, ainda que a primeira seja predominante. Como refere Zaffaroni, ele será excepcionalmente constitutivo quando proteger bens ou interesses não regulados em outras áreas do direito, como é o caso da omissão de socorro.[19] Todavia, de acordo com Bitencourt, é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do Direito Penal, pois mesmo quando protege bens já cobertos por outros ramos do ordenamento jurídico, o faz de uma forma que lhe é peculiar, com outra espécie de valoração.[20] Para Luiz Regis Prado, o Direito Penal tem natureza autônoma ou constitutiva (valorativa) mas também sancionatária.[21]
De qualquer forma, o fato do Direito Penal também ter natureza constitutiva (primária ou secundária) não deve levar ao equívoco de conceber o mesmo a partir de uma perspectiva isolada dos mandamentos constitucionais, pois uma interpretação hermenêutica exige uma aplicação conjunta do ordenamento jurídico, o que conduz, por sua vez, à exigência de uma dimensão constitucional de aplicação do Direito Penal. Inclusive não se pode esquecer que o Direito Penal é um dos ramos do ordenamento jurídico onde mais se impõe uma leitura constitucional.
Costuma-se distinguir entre Direito Penal comum (ou nuclear) e Direito Penal especial. O primeiro corresponde ao Código Penal Brasileiro (de 1940, cuja Parte Geral foi reformada em 1984), que é subdividido em Parte Geral e Parte Especial; o segundo é constituído pela legislação penal extravagante (como a Lei dos Crimes Hediondos e a Lei dos Crimes Ambientais).[22]
A divisão do Código Penal em uma Parte Geral e uma Parte Especial consiste na atribuição à primeira das questões centrais da teoria e aplicação do Direito Penal, enquanto a segunda trata da descrição de delitos concretos. Por este motivo temas como a função e missão do Direito Penal e os fins da pena são tradicionalmente discutidos nos estudos dedicados à Parte Geral.
Também merece menção uma série de referências às subdivisões do Direito Penal, como Direito Penal Econômico, Direito Penal Empresarial, Direito Penal do Consumidor, Direito Penal Ambiental e assim por diante, que caracterizam um objeto de estudo mais específico. Todavia, não são áreas autônomas, apesar de algumas especificidades.
1.2. A Dogmática Jurídico-Penal
O termo Direito Penal não se refere somente aos aspectos de ordem normativa (ou seja, a legislação penal em si e os efeitos que ela pretende obter) mas também ao saber da Ciência Penal, que conforma um sistema de conhecimento e interpretação dessa legislação, que recebe o nome de Dogmática Penal.
Não seria exagero dizer que a Dogmática Penal é um método (com todos os limites que são inerentes a qualquer método) de investigação, conhecimento, interpretação e crítica de um objeto específico, que é o Direito Penal.[23] Afinal, um conjunto normativo – como é o caso do Direito Penal – não pode ele próprio, ser um método.[24]
A Dogmática jurídico-penal parte de preceitos legais (considerados como dogmas) e procura racionalizar a interpretação e aplicação do Direito Penal, elaborando e estruturando o seu conteúdo, bem como ordenando-o em um sistema.[25] O termo dogma é aqui empregado com o sentido de uma declaração de vontade com pretensão de validade geral, visando a solução de problemas sociais.[26]
Embora a Dogmática Penal parta de um conjunto de normas positivas (regras e princípios), não deve assumir caráter dogmático (no sentido de uma verdade inquestionável e imutável), uma vez que deve reconhecer seu caráter valorativo e essencialmente crítico. Dogma, neste sentido, representa apenas um postulado que serve de ponto de partida de uma determinada atividade. A Dogmática (obra dos juristas) pode ter, inclusive, função criadora, conduzindo ao aperfeiçoamento do direito positivo (obra dos legisladores).
De forma que “Dogmática” (no sentido aqui referido) não significa “dogmatismo”, ou seja, uma atitude conservadora e acrítica. Ao contrário: se a Dogmática Jurídico-Penal não quer ser considerada reacionária, tem que ser uma Dogmática crítica do Direito Penal.[27] De acordo com Welzel, a Dogmática, como ciência sistemática, dá fundamento para uma administração justa e equânime da justiça, já que somente a compreensão da estrutura interior do direito eleva a sua aplicação para além da casualidade a arbitrariedade.[28] Para Munõz Conde, a Dogmática cumpre uma das mais importantes funções que cabem à atividade jurídica em um Estado Democrático de Direito: garantir os direitos fundamentais do indivíduo face ao poder arbitrário do Estado, pois ainda que este tenha limites, se faz necessário o controle e segurança de tais limites.[29]
De acordo com esta perspectiva, a dogmática jurídico-penal deve se concentrar na tutela de bens jurídico-penais em benefício de direitos e garantias fundamentais, sendo, portanto, constitucionalmente orientada. Conforme Silva Sanchéz, certas concepções de Dogmática (como a funcionalista de Roxin), ao propor a configuração de um sistema aberto, permeável face à incidência de princípios que devem inspirar a intervenção jurídico-penal, se mostram veículos adequados para traduzir em termos conceituais e em uma prática as intenções de restringir a incidência do poder punitivo ao minimamente necessário.[30]
A Ciência Penal, por sua vez, pode (e deve) ser integrada ao campo de análise das Ciências Criminais (ou Ciências Penais)[31], que têm interesse não só no Direito Penal, mas também no Direito Processual Penal, na Criminologia e na Política Criminal, abordando-as a partir de relações interdisciplinares e de interdependência. Como aponta Roxin, é inimaginável um Direito Penal moderno sem estreita colaboração entre todas as disciplinas parciais que compõem a “Ciência Global do Direito Penal”.[32]
2. Relações entre Direito Penal, Criminologia e Política Criminal
Em que pese uma certa convergência dessas áreas, em função de uma aproximação que se faz mais do que útil, mas até mesmo necessária diante da complexidade contemporânea, é importante mencionar no que consiste – ainda que de forma sucinta – a especificidade de cada uma delas.
A Criminologia[33] é uma ciência interdisciplinar por excelência, que tem como objeto o estudo do crime, da pessoa do infrator e seu tratamento, da vítima e do controle social do comportamento criminoso, buscando apreender a gênese e as principais variáveis da dinâmica do crime e dos mecanismos de prevenção e controle da conduta social desviada.[34] Investiga também os mecanismos de controle policial e da justiça e questiona porque determinadas condutas são definidas como crimes e outras não (processos de criminalização).
A Criminologia é uma ciência do ser (estuda o que é; empírica e baseada na análise e investigação da realidade, valendo-se do método causal-explicativo, típico das ciências sociais e adequado ao seu objeto) em oposição ao Direito Penal, que é uma ciência do dever-ser (declara o que deve ser – devido ao seu caráter normativo – o que conduz a um método lógico, abstrato e dedutivo; realiza uma análise interpretativa das fontes do direito e síntese teórica de seus dados).[35]
Portanto, enquanto a Criminologia se ocupa do delito como fenômeno antropológico, social e biopsicológico, analisando suas causas e possíveis formas de redução de dano, a Dogmática Jurídico-Penal se ocupa do delito enquanto fenômeno jurídico, regulado e previsto por normas jurídicas que devem ser interpretadas e aplicadas. A primeira se vale de métodos sociológicos, psiquiátricos e antropológicos, de acordo com o caráter individual ou social de seu enfoque, enquanto a segunda emprega o método dogmático para interpretar e sistematizar as normas jurídicas que se referem ao delito e suas conseqüências.[36] Trata-se de uma dicotomia oriunda do século XIX e que deve ser superada em prol de uma maior integração de ambas, ainda que conservando-se sua autonomia. Indiscutivelmente são aspectos complementares e indispensáveis para o conhecimento dos fenômenos delitivos.
A Criminologia pode fundamentar estratégias de ação no campo político-criminal, pois fornece indicativos e dados concretos que podem ser aproveitados para orientar as ações dos agentes e órgãos encarregados do controle social do crime, o que pode levar a inovações no campo legislativo. Além disso, a Criminologia se coloca como disciplina crítica do Direito Penal, pois enquanto este trata da definição normativa da criminalidade, aquela estuda os mecanismos e escolhas que importam na criminalização, além de estudar a realidade que o Direito Penal procura regular, enquanto meio de controle social que é.
A Política Criminal, por sua vez, é algo por definição variável. A própria expressão comporta um significado um tanto quanto vago.[37] Existe uma discussão – não muito proveitosa – sobre o estatuto científico da Política Criminal[38], uma vez que não se trata, a rigor, de uma disciplina com um método próprio, mas de qualquer forma, sua importância é inegável. A Política Criminal consiste na sistematização de estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade (penais e não penais) tendo, portanto, penetração no Direito Penal (principalmente no que se refere à elaboração das normas) mas não restringindo-se a ele.
Sem dúvida, existem diferenças significativas entre a Política Criminal de um Estado autoritário e de um Estado Democrático de Direito. Portanto, importa definir qual o espaço apropriado de atuação da Política Criminal neste último. Quando em um Estado Democrático de Direito se opta pela definição de uma conduta como criminosa, ocorre uma escolha entre várias alternativas que se abrem para a resolução de conflitos. Esta opção política (pela criminalização) será, neste caso, uma opção político criminal. Considera-se que a Política Criminal não deixa de ser o exercício de um poder, que se concretiza com a criminalização, o que faz com que não seja possível dissociar completamente Direito Penal e Política Criminal. Ambos integram o sistema penal.[39]
A Política Criminal realiza uma análise crítica do Direito, buscando orientá-lo de acordo com ideais jurídico-penais, mas também critérios políticos e de oportunidade. Sua ligação com a dogmática é inevitável (ainda que se discuta o quanto), pois invariavelmente critérios de política-criminal interferem, em alguma medida, na elaboração, aplicação e interpretação da lei penal. Munõz Conde considera que uma Dogmática Jurídico-Penal crítica, na medida em que oferece alternativas para a melhoria do Direito Penal, exerce uma função político-criminal.[40] Por outro lado, segundo Lizst, o Direito Penal se coloca como limite infranqueável da Política Criminal.[41] Essa definição parte do pressuposto de que nenhuma política criminal pode ultrapassar o limite dado pelo Direito Penal às possibilidades de incidência do poder punitivo.
Sem dúvida, há uma relação muito próxima entre Política Criminal, Direito Constitucional e Dogmática Jurídico-Penal, conformando uma fronteira que é definitivamente borrada sob vários aspectos. Em alguns casos, é inclusive defendida a sua primazia em relação à dogmática (é o caso do funcionalismo de Roxin), conformando uma abertura da dimensão normativa à critérios valorativos político-criminais. A proposta de Roxin é bem recebida por muitos, mas vozes expressivas se levantam contra o perigo que essa abertura representa para o caráter de garantia do sistema. Independentemente do posicionamento adotado, como refere Queiroz, não é nada fácil estabelecer uma distinção entre Direito Penal e Política Criminal, uma vez que o Direito Penal é um fenômeno político por excelência.[42] O próprio surgimento ou manutenção de um bem jurídico no Direito Penal é uma eleição de ordem política.[43]
Apesar das distinções que demarcam o espaço próprio de atuação de cada área, são disciplinas que convergem, cada vez mais, para um modelo integrado de análise, o que é imposto pela complexidade inerente ao fenômeno do crime.[44] Não é por acaso que Hassemer e Munõz Conde falam na idéia de uma “Ciência Totalizadora do Direito Penal” que pretende reunir de forma coesa todos os instrumentos das Ciências Criminais, desde a Criminologia e a Política Criminal, passando pelo Direito Penal e Direito Processual Penal, até o que chamam de Direito Penitenciário, sem descuidar do âmbito da Dogmática Penal.[45]
3. O jus puniendi colocado em questão: para além da dicotomia Direito Penal objetivo e Direito Penal subjetivo
A distinção entre Direito objetivo e subjetivo surgiu no século XIX, identificando-se o Direito Penal em sentido objetivo com a norma penal em si, e o subjetivo com o jus puniendi, ou seja, o Direito de punir, cuja titularidade pertence ao Estado. De acordo com essa perspectiva, o Direito Penal subjetivo expressa a faculdade que o Estado tem de elaborar e fazer cumprir suas normas, além de executar as decisões condenatórias emitidas pelo Poder Judiciário. Inclusive se sustenta que há uma relação muito estreita entre Política Criminal e jus puniendi, que é de continuidade. Com efeito, o Direito Penal subjetivo ou jus puniendi pode ser definido como uma decisão político-criminal baseada em uma norma que declara punível um fato e perseguível seu autor. [46]
Portanto, de um lado, denomina-se Direito Penal objetivo o conjunto de normas criadas ou reconhecidas por um determinado Estado soberano, a partir de um ato legislativo que importa necessariamente em uma valoração e é circunscrito a um território específico; de outro lado o Direito Penal subjetivo advém do próprio conjunto de normas que são delimitadas pelo Direito Penal objetivo, impondo-lhe uma série de limites que caracterizam a sua função de garantia do cidadão diante de possíveis arbitrariedades estatais. Tais limites se expressam através de requisitos rígidos para a elaboração e aplicação de normas penais.
Entretanto, ainda que limitado pelos pressupostos da legalidade, o jus puniendi é exercido de forma coativa por parte do Estado, que detém o monopólio do uso legítimo da força, através de seu poder de império. Este monopólio não se transfere mesmo nos casos de ação processual penal privada, pois ainda assim cabe ao Estado executar a sentença condenatória, ou seja, exercer o jus puniendi. Somente ocorre transferência do jus persequendi.
No entanto, é importante assinalar que os requisitos para incidência do poder punitivo transcendem a dimensão do Direito Penal objetivo, uma vez que são princípios de ordem constitucional. Logo, o exercício do que se denomina – questionavelmente – jus puniendi depende do cumprimento de uma série de pressupostos exigidos pelos critérios que compõem a dimensão do Direito Penal objetivo e dos princípios penais constitucionais, circunscrevendo os limites da legalidade. Problematizando a questão dos limites do poder punitivo, Ferrajoli afirma que em um modelo de estrita legalidade, é necessário que própria elaboração das normas esteja em conformidade com um núcleo principiológico que é característico de um Estado Constitucional de Direito, não sendo mais aceitável que o critério de validade da norma se restrinja única e exclusivamente ao fato de ter sido criada pelo Estado, o que conforma um modelo de mera legalidade.
Assim, de um lado colocam-se limites quanto à criação de normas penais, postos por garantias penais e de outro, limites quanto à aplicação de normas penais, que são garantias de persecução: processuais e de execução. A conjunção de garantias penais e processuais conduz a um sistema que legitima democraticamente o exercício do poder punitivo e também deslegitima seu uso abusivo. São proposições prescritivas que referem o que, de fato, deveria ocorrer em um Estado Democrático de Direito, mas que, infelizmente, nem sempre acontecem, tanto no âmbito de criação como no de aplicação da norma.
A partir dessa proposição é possível repensar a velha categorização dicotômica de Direito Penal objetivo e subjetivo a partir de outros pressupostos. Como bem assinala Brandão, os princípios constitucionais limitadores da atividade punitiva estatal são de extraordinária importância para a Dogmática Penal, mas não se situam no campo do Direito Penal subjetivo.[47] O estudo dos limites à aplicação da pena por parte do estado não é se dá no campo de um pretenso Direito Penal subjetivo, mas sim, nos Princípios de Direito Penal. Sendo assim, não faz mais sentido ater-se a uma distinção originada no século XIX e que não se justifica diante do panorama jurídico-penal contemporâneo.[48]
Brandão argumenta de forma acertada que não há propriamente um direito do Estado de punir com a retirada de direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao patrimônio, pois seria uma contradição reconhecer a existência de um direito subjetivo do Estado a violar direitos subjetivos constitucionais do sujeito.[49] A solução para o impasse é o reconhecimento de um dever estatal de punir diante de um crime, uma vez que se fazem presentes os seus requisitos (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) o que é muito diferente de um direito. Esta definição permite reconfigurar a já superada dinâmica do jus puniendi e jus persequendi de acordo com pressupostos mais adequados às feições de um Estado Constitucional de Direito. Não é por acaso que Ferrajoli argumenta que o funcionamento do sistema penal é um dos indicativos mais seguros do quanto é democrática ou autoritária uma sociedade.[50]
É somente a partir dessa perspectiva que o Direito Penal tem condições de se legitimar, na medida em que a intervenção jurídico-penal é invocada para assegurar a proteção de bens jurídicos e direitos fundamentais, mostrando-se, ao mesmo tempo, respeitosa de direitos fundamentais. Afinal, o sistema penal em um Estado Democrático de Direito deve ser um sistema de garantias, onde a resposta penal somente deve surgir a partir da aplicação de um modelo que exclua a arbitrariedade tanto no momento de elaboração da norma quanto no de sua aplicação. Esta exigência impõe que as normais penais passem por um exame mais rigoroso do que o da mera legalidade, ou seja, a promulgação de normas formalmente válidas. Devem também estar em conformidade com princípios constitucionais para que encontrem validade material (estrita legalidade) como será visto a seguir.
4. O Direito Penal e os demais ramos do ordenamento jurídico
É evidente que este item mereceria um artigo inteiro por si só, o que certamente não a proposta aqui estabelecida. Dito isso, a intenção foi enfatizar os aspectos mais relevantes da intersecção entre Direito Penal e demais ramos do ordenamento jurídico, a partir da lógica que deve pautar o funcionamento de um sistema penal afeito a um Estado Democrático de Direito. Ou seja, uma proposta de máxima eficácia na redução de danos aos direitos fundamentais do cidadão, acrescida de tutela efetiva e eficaz de bens juridicamente relevantes para a sociedade.
4.1 Direito Penal, Direito Constitucional e Estado Democrático de Direito
A relação entre Direito Penal e Direito Constitucional é profunda e inegável. A Constituição é o marco fundante do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito, o que faz com que todas as normas devam estar vinculadas e subordinadas aos mandamentos constitucionais. Isso significa dizer que o Direito Constitucional exerce influência sobre todos os ramos do direito e, particularmente, sobre o Direito Penal. Os próprios bens jurídico-penais encontram raízes materiais na Carta Magna e cabe ao Direito Penal a tarefa de tutelar os direitos fundamentais nela insculpidos.
O Direito Penal é, por excelência, um meio de controle social (dentre os vários meios que existem) do qual se vale o Estado para efetivar a função constitucional de garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à dignidade, à intimidade, etc. Neste sentido, a criminalização de uma conduta que coloca em risco o bem jurídico vida não visa outra coisa senão a proteção subsidiária da inviolabilidade deste direito fundamental, estabelecido no Art. 5º da Constituição Federal.
De outro lado, na medida em que a intervenção jurídico-penal implica em restrições a esses mesmos direitos fundamentais (vida, liberdade, patrimônio) sua aplicação sempre deve ocorrer em conformidade com princípios constitucionais penais que se colocam como limite inegociável à concretização do poder punitivo.
Os direitos fundamentais constituem-se, portanto, como duplo núcleo de legitimação e limite da intervenção jurídico-penal. Dentre os princípios que definem os limites da intervenção jurídico- penal destacam-se: a legalidade, proporcionalidade, humanidade e individualização das penas, direito de defesa e devido processo legal, juiz natural, contraditório, presunção de inocência, irretroatividade da lei penal, etc.
O limite dado por este núcleo principiológico constitucional se manifesta tanto em sede de aplicação da norma quanto da sua elaboração, sendo esta a especificidade que distingue os Estados Constitucionais de Direito dos antigos Estados de Direito do século XIX e dos Estados Absolutistas. Portanto, como lembra Hesse, é a Constituição que estabelece os pressupostos de criação, vigência e execução do ordenamento jurídico, sendo seu elemento de unidade.[51]
Conforme refere Ferrajoli, o modelo positivista clássico reduzia a validade de uma norma à sua existência jurídica (Hobbes, Bentham, Kelsen, Hart, Bobbio e tantos outros) – considerando-a apenas como mero produto de um ato normativo de acordo com as normas que regulam sua produção. Jamais entrava em questão o significado ou conteúdo normativo das normas produzidas. Sem dúvida, trata-se de uma concepção insuficiente para os modernos Estados constitucionais de direito, onde se exige também dos enunciados normativos produzidos uma valoração da correspondência do seu conteúdo com o “dever ser” jurídico estabelecido por normas superiores, de natureza constitucional.
Ou seja, a própria hierarquia normativa exige conformidade das normas inferiores com as superiores, sendo importante neste sentido a distinção entre vigência e validade. Como aponta Ferrajoli, efetivamente existem normas acerca da produção de normas, que no Estado constitucional de direito tem introduzido múltiplos princípios ético-políticos ou de justiça que impõem valorações ético-políticas das normas produzidas e atuam como parâmetros ou critérios de legitimidade e ilegitimidade não mais externos ou jusnaturalistas, senão internos ou juspositivistas. Dessa forma, as normas se tornam inválidas se violam princípios constitucionais de direitos humanos. Não se trata somente de regularidade formal, mas material também.
Portanto, uma determinada norma pode ter vigência (formal), observando-se apenas o critério de legitimidade jurídica formal, mas não ter validade (material) por estar em desconformidade com significados ou conteúdos normativos delimitados constitucionalmente. No Estado absolutista validade e vigência eram equivalentes. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se justamente por essa possível divergência. A validade das normas exige conformidade com os valores estabelecidos por outras normas superiores a elas. Uma teoria juspositivista contemporânea como a de Kelsen não faz essa distinção, pois para o autor, todo Estado é um Estado de Direito, equivalendo-se vigência e validade. A possibilidade de invalidade de uma norma vigente se abre diante da recusa dessa premissa, onde por muito tempo se afirmou que o ordenamento jurídico é um todo completo e coerente, desprovido de lacunas.
Em um Estado Absoluto, a resposta à questão “quando e como punir?” é muito simples: “quando e como queira o soberano”. Já no Estado Democrático de Direito, são normas constitucionais que oferecem as respostas aos problemas do “quando” e do “como”. Para Ferrajoli, dependendo do caráter vinculante das respostas, um sistema será mais ou menos garantista, mais ou menos de “direito”.
Dessa forma, a técnica de legitimação interna própria do direito penal consiste em vinculações ou imperativos negativos que prescrevem ao legislador e/ou ao juiz, quando e como não punir, não proibir, não julgar, etc. Em um Estado Democrático de Direito, resultam vinculantes para todas as normas de nível inferior. Portanto, não há exagero em afirmar que o Direito Constitucional se sobrepõe ao Direito Penal (assim como a todos os demais ramos do ordenamento jurídico).
Entretanto, não pode ser esquecido que não é exatamente assim que as coisas se passam no campo da prática. O próprio Ferrajoli afirma a existência de uma “endêmica possibilidade de contradição entre normas, gerada pela violação dos modelos em função das práticas e pela possível ineficácia dos primeiros e a correlativa invalidade dos segundos”.[52] O autor considera que “quanto maiores os valores de justiça professados e perseguidos por um ordenamento, mais complexas e vinculantes as garantias, maior a possível divergência com as práticas efetivas, e por conseqüência, o índice de ineficácia das primeiras e falta de validez das segundas”.[53]
Evidentemente, a realização plena do modelo é uma meta a ser perseguida, pois muitas vezes os direitos fundamentais normativamente reconhecidos são desconsiderados em maior ou menor medida no momento de sua aplicação efetiva.[54]
Pode parecer um defeito do Estado Democrático de Direito, mas é, ao contrário, o pressuposto da sua função garantista.[55] Num Estado Absoluto não existem antinomias decorrentes de divergência entre níveis normativos – validade das normas confunde-se com vigência. Portanto, como assinala Queiroz, a hierarquia entre Constituição e o Direito Penal exige que todos os atos legislativos infraconstitucionais (leis complementares e ordinárias, medidas provisórias, decretos) estejam em conformidade com os princípios e regras (que são gênero da espécie norma) constitucionais fundamentais que lhe dão vida e sustentação, sob pena de invalidação por meio do controle (direto ou indireto) de constitucionalidade.[56] Em suma, há uma hierarquia formal, funcional e axiológica, pois as disposições do Direito Penal somente valem e obrigam quando dirigidas à realização de fins constitucionais, prestigiando os valores mais caros, aferidos segundo cada contexto histórico-cultural.[57]
4.2 Direito Penal, Direito Processual Penal e Instrumentalidade Processual Penal
A relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal é tão estreita que antigamente ambos eram regulados conjuntamente no mesmo corpo legal.[58] Ainda que a distinção entre Direito Penal substantivo (ou material) e Direito Penal objetivo (formal) tenha perdido a razão de ser em função do desenvolvimento da autonomia do Direito Processual Penal, algumas palavras se fazem necessárias.
De acordo com Marques, o Direito Processual Penal é “o conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária, e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos auxiliares”.[59] Diferentemente do Direito Penal, que tem relação mais próxima com os textos legais, o Direito Processual Penal é voltado para uma prática, para a delimitação de suas etapas e dos papéis que correspondem às partes e ao juiz. É exatamente essa distinção que deve delimitar a natureza processual ou material de uma norma e não simplesmente a sua inserção em determinado corpo legal.
Prova disso é que o Código Penal contém dispositivos referentes à ação processual penal (art. 100 a 106, CP) e também tutela os bens jurídicos referentes à Administração da Justiça, estabelecendo sanções em caso de obstrução de seus interesses (arts. 338 a 359, CP).
Enquanto o Direito Penal é “constituído pelas normas que definem os princípios jurídicos que regulam os seus institutos, definem as condutas criminosas e cominam as sanções correspondentes”[60], o Processo Penal, é o instrumento através do qual pode ser imposta uma pena em função de um delito. De modo que existe uma íntima relação entre delito, pena e processo, que são complementares.[61] Portanto, o poder punitivo somente pode ser exercido através de um meio altamente formalizado de exercício do jus persequendi: a instrumentalidade processual penal. Se a criminalização primária constitui (em nível abstrato) o estabelecimento jurídico-penal do comportamento desviante, é com a criminalização secundária (aplicação da pena em concreto) que a ameaça de sanção se concretiza, o que só pode ser feito através do devido processo legal. Com efeito, é somente através do devido processo legal que a jurisdição pode ser efetivamente exercida e verificados os elementos que integram o conceito jurídico de crime (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), impor uma pena ao autor da transgressão.
Não se pode falar em subordinação da esfera formal à esfera material, uma vez que o Direito Processual Penal possui autonomia e conteúdo que lhe são peculiares, tratando da aplicação do Direito Penal, que somente encontra realização prática e concreta através da instrumentalidade processual penal. O processo penal, juntamente com sua regulamentação jurídica, é um instrumento do Direito Penal.[62] Nele se realiza o Direito Penal, que lhe subscreve os objetos que deve investigar e sobre os quais deve se pronunciar. No entanto, a forma com que o instrumento processual deve realizar essa tarefa não vem pré-definida pelo Direito Penal material. O Direito Processual penal é autônomo, ainda que subordinado, assim como Direito Penal, a princípios constitucionais.
Uma questão delicada que merece ser mencionada – embora não diretamente pertinente ao tema em questão – é a relação entre Direito Processual Penal e Direito Processual Civil, pois muitos defendem a existência de uma série de conceitos comuns a ambos.[63] Trata-se de uma posição que embora permaneça majoritária não pode mais se sustentar, pois o emprego desmedido de categorias do processo civil conduz a uma série de distorções e inadequações em âmbito processual penal.[64]
4.3. Direito Penal e Direito Privado
Como afirmado anteriormente, o Direito é uno, ou seja, todos os ramos do ordenamento jurídico encontram-se interligados, ainda que, em certa medida, tenham sua autonomia preservada de acordo com as especificidades de cada área. Em determinadas circunstâncias, podem, inclusive, relacionar-se de forma complementar.
É o caso, por exemplo, das indenizações civis ex-delicto que acompanham a condenação em âmbito penal e a tutela penal de vários institutos de âmbito civil, como a propriedade (furto, roubo, dano, etc.), a fraude nos negócios privados, a violação da fé pública e autenticidade de documentos públicos e particulares.
Além disso, em sede comercial, o Direito Penal exerce tutela do cheque, das duplicatas e da emissão de warrants, além de estabelecer sanções para a fraude mercantil e para especulações abusivas (Direito Penal Econômico). Também se mostra um meio apto – em casos de falência – a coibir os abusos sobre garantias do crédito mercantil.[65]
4.4. Direito Penal e Direito Administrativo
O Direito Administrativo é composto por um conjunto de regras e princípios que regem a organização e funcionamento da Administração Pública, bem como suas relações com particulares no exercício de atividades de interesse público. Dentre as várias funções da Administração Pública, merece referência a chamada sancionatária, de punição ou de polícia, com intuito de disciplinar e promover o interesse geral.[66] Ou seja, o Direito Administrativo também comporta sanções, mas diferentemente do Direito Penal, aplica sanções de caráter disciplinar, que são relativas aos ilícitos que se relacionam ao âmbito da Administração Pública. São sanções que não têm, portanto, caráter de pena, enquanto as sanções penais exigem, obrigatoriamente, a prática de um crime e a sua verificação em um procedimento processual penal em contraditório, com direito a ampla defesa. A maior exigência de rigor em âmbito penal – devido ao princípio da legalidade – é, inclusive, critério de distinção entre crime (conduta típica, antijurídica e culpável) e ilícito administrativo.
Assim como o Direito Penal, o Direito Administrativo também realiza a proteção de bens jurídicos, sendo que o que determina a escolha entre crime e ilícito administrativo são critérios de ordem político-criminal, pois a fronteira entre os dois ramos do direito é difícil de ser delimitada, motivo pelo qual podem perigosamente se confundir. De fato, nos últimos tempos tem ocorrido um processo de inflação legislativa que torna cada vez mais difícil definir o espaço de atuação de cada esfera. O perigo reside, de um lado, na atribuição de tutela penal a um bem onde a tutela administrativa já seria eficaz (e com isso conduzindo a uma intervenção excessiva na vida do cidadão, pois o remédio penal é sempre mais amargo); e de outro, na atribuição de tutela administrativa a um bem que exige tutela penal para ser efetivamente resguardado, o que importa em uma proteção insuficiente ao referido bem.
É uma decisão político-criminal que define o caráter administrativo ou penal de uma determinada lesão e sobre esta base a respectiva sanção. Se fato não lesiona bens ou direitos fundamentais, basta sanção pecuniária, para um ilícito administrativo de competência de autoridade administrativa.[67] Caso lesione bem jurídico ou direito fundamental, qualifica-se como crime, e logo, de competência da autoridade judiciária. Esta questão vem ganhando cada vez mais importância, devido à tendência de criminalizar matérias que tradicionalmente pertencem ao escopo do Direito Administrativo, utilizando para isto a técnica dos delitos de perigo em vez da dos delitos de lesão ou resultado.[68] O problema refere-se à função e legitimidade do Direito Penal e trata-se de questão particularmente importante no que se refere aos danos de ordem ambiental, por exemplo.
5. Função e legitimidade da intervenção jurídico-penal
Ainda que toda ordem social disponha de mecanismos que garantem a sua estabilidade, que conformam os chamados controles sociais informais, tais controles necessitam ser reforçados por um controle específico, de ordem jurídica. O controle social formal da intervenção jurídico penal é a face mais aguda desse controle. O Direito Penal cumpre uma função essencial, enquanto ramo do ordenamento jurídico encarregado de zelar por condições sociais indispensáveis para a ordem social.
Temos assim, de um lado, controle social informal (da sociedade) e controle social formal (do Estado), sendo que o último entra em cena quando os mecanismos de autoproteção da ordem social fracassam. Assim, a intervenção jurídico-penal garante, nos conflitos mais graves, a inviolabilidade de valores fundamentais da convivência humana, reagindo diante de determinados comportamentos desviados (os delitos), se servindo de uma classe particular de sanções: as penas e medidas de segurança.
Nas palavras de Garcia-Pablos, “o controle social penal se serve de um particular sistema normativo, que traça pautas de conduta ao cidadão, lhe impondo mandamentos e proibições”.[69] Enquanto uma das instâncias do controle social, o Direito Penal procura disciplinar o corpo social, perseguindo a estabilidade do status quo e procurando submeter o indivíduo à conformidade em relação às normas que tutelam bens jurídico-penais.
Todavia, a função da norma penal não se esgota no mero estabelecimento de deveres, sendo voltada para a defesa de bens ou interesses valiosos para a convivência e a paz social. O Direito Penal, como qualquer outro ramo do ordenamento jurídico, não se justifica nem tem sentido por si só, senão na medida em que é articulado à dinâmica social. Trata-se de um raciocínio que coloca em questão a legitimidade e a função da intervenção jurídico-penal. Tudo isso conduz, como refere Garcia-Pablos, a duas referências normativas e valorativas, que dão sentido, desde um ponto de vista material, ao problema colocado pela necessidade de proteção da ordem social: esta é a função que desempenham os conceitos de “bem jurídico” e “ética social”.[70]
Conforme já estabelecido, o Direito Penal é um meio de controle social formal, que tem por finalidade a proteção subsidiária de bens jurídicos, exercendo uma dupla função de proteção e garantia. Trata-se da opinião doutrinária dominante, mas que, como referido anteriormente, não é a única, sendo de especial relevância uma tese minoritária, porém, significativa: a que extrai de um magistério ético das proibições penais uma força “criadora de costumes”. Trata-se da suposta função ético-social do Direito Penal, que segundo seus defensores, como Welzel e Cerezo Mir, é mais importante e eficaz do que a própria proteção de bens jurídicos.[71]
5.1 A função de proteção de bens jurídicos
Hassemer e Munõz Conde comentam que nem sempre a questão do bem jurídico é tratada no tópico referente à “missão do Direito Penal”, uma vez que algumas obras reservam o assunto ao ponto que trata da teoria do delito. Para os autores, o reconhecimento de que a missão do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos faz com que o assunto repercuta também na teoria do delito, não havendo grande importância na opção assumida.[72] Preferimos seguir aqui a orientação de Hassemer, Munõz Conde e Garcia-Pablos, que discutem o tema a partir da função e missão do Direito Penal.
Trata-se de um tema de grande importância política e social, uma vez que é a partir da definição de bem jurídico – em torno da qual não há unanimidade – que é possível estabelecer quais são os instrumentos jurídico-penais idôneos e qual o seu espaço de atuação e intervenção. O que significa dizer que o Direito Penal tutela determinados bens jurídicos?
Em primeiro lugar, não se trata pura e simplesmente de exigir a obediência dos cidadãos aos ditames do Direito, mas sim, de colocar a natureza instrumental do Direito Penal a serviço da convivência humana, através da proteção de valores fundamentais da ordem social, ou seja, a proteção de bens jurídicos. Bens jurídicos são bens vitais, fundamentais, para o indivíduo e para a comunidade, que ao serem tutelados pelo Direito Penal adquirem a condição de bens jurídicos.[73] Segundo essa perspectiva, a função do Direito Penal – como instrumento de controle formalizado – encontra legitimidade na medida em que sua atuação visa a referida proteção, através de um conjunto normativo seguro, prévio, previsível e controlável, que sempre deve objetivar a redução de danos em relação a inocentes.
Como lembra Garcia-Pablos, o Direito Penal somente protege os bens mais valiosos para a convivência, diante dos ataques mais intoleráveis que podem sofrer (natureza fragmentária da intervenção jurídico-penal); e somente quando não há outros meios eficazes, de natureza não penal para protegê-los (natureza subsidiária do Direito Penal). O autor conclui que o Direito Penal realiza uma função indispensável, já que a vida humana somente é viável se os bens jurídicos são garantidos de forma eficaz. [74] De acordo com esta posição, o Direito Penal protege “bens vitais”, como a vida, a liberdade, a segurança e a propriedade; bens, portanto, que são indispensáveis para a convivência humana em sociedade e que por isso devem ser protegidos pelo poder de coação do Estado através da pena pública.[75]
No entanto, afirmar que a função do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos está longe de encerrar a questão, pois o próprio conceito de bem jurídico está longe de ser claro e inequívoco, uma vez que existem várias definições conflitantes na doutrina.
5.2. A função ético-social do Direito Penal
De acordo com Silva-Sanchéz, parece difícil negar que no plano de realidade (fático) o Direito Penal exerce sobre a sociedade uma função ético-social, que também pode ser chamada de força configuradora de costumes.[76] Portanto, a partir deste ponto de vista, o que interessa investigar é a legitimidade e a extensão dessa influência e não a sua existência.[77]
Silva-Sanchéz considera que essa função pode ser comprovada com transcorrer de tempo de um processo de criminalização ou descriminalização e provavelmente tem relação com a estreita vinculação entre a matéria penal e os valores éticos fundamentais. De acordo com essa perspectiva, o Direito Penal representa o “mínimo ético” da comunidade, integrado pelas convicções mais profundas e geralmente compartilhadas em seu seio.[78] Portanto, sob um ponto de vista material, o delito não lesiona ou põe em perigo somente um bem jurídico, mas também constitui uma infração da ética social.[79]
O autor de maior nome que sustenta a função ético-social do Direito Penal é Hans Welzel. Importante referir que, no entanto, Welzel não nega em momento algum a função de proteção de bens jurídicos, mas apenas lhe atribui uma característica subsidiária face à função ético-social.[80] A proteção de bens jurídicos efetivamente se dá, para ele, através e por meio da tutela de valores elementares ético-sociais da ação.[81] Welzel fundamenta sua posição através da conexão entre Direito Penal e valores elementares da ética social e inclusive, considera que a função ético-social é muito mais eficaz (no campo político criminal) do que a clássica função de proteção de bens jurídicos enquanto meio de defesa da sociedade e luta contra o delito.
Segundo o autor, com isso é assegurada a vigência dos valores ético-sociais positivos, como o respeito à vida, à saúde, à propriedade, etc. São valores que consistem em uma atitude de conformidade ao Direito e que constituem o substrato ético-social das normas de Direito Penal. Portanto, a função do Direito Penal seria assegurar a validade inviolável desses valores, mediante a ameaça e aplicação de penas para ações que afrontam de modo significativo valores fundamentais da vida humana. [82] Como percebe Garcia-Pablos, Welzel estrutura seu sistema a partir da distinção entre desvalor da ação e desvalor do resultado, atribuindo primazia ao primeiro.[83] De um lado, o Direito Penal busca a proteção de determinados bens essenciais para a convivência humana (os bens jurídicos), estabelecendo uma sanção em caso de lesão a eles (desvalor do resultado); de outro lado, obtém a proteção de tais bens jurídicos proibindo ou castigando as condutas dirigidas a lesioná-los, objetivando evitar o desvalor da ação.[84]
Portanto, a partir do momento que o Direito Penal fixa pena ao atos contrários ao Direito, ampara, ao mesmo tempo, os bens jurídicos, estabelecendo o desvalor do ato correlativo. Assim, por exemplo, ao assegurar o respeito pela personalidade humana, protege a vida.[85] Sendo assim, a função primária do Direito Penal, para Welzel, não é a proteção de bens jurídicos (como a propriedade e a vida), pois sua intervenção é tardia. Acima da proteção de bens jurídicos concretos se encontra a missão de assegurar a validade real (a observância) dos valores de atuar conforme o pensamento jurídico, que constitui o mais sólido fundamento sobre o qual se sustentam o Estado e a sociedade.[86] De acordo com Welzel, o mero amparo de bens jurídicos tem somente uma finalidade negativo-preventiva, policial-preventiva. O papel mais profundo que cabe ao Direito Penal é de natureza positiva, ético-social: ao estabelecer sanções aos afastamentos mais manifestos dos valores fundamentais do pensamento jurídico, o Estado exterioriza, da forma mais ostensiva que dispõe, a validade inviolável de tais valores, formando o juízo ético-social dos cidadãos e fortalecendo seu sentimento de permanente fidelidade ao Direito.[87]
Enfim, para Welzel, é somente através da garantia de valores elementares ético-sociais da ação que é possível obter uma proteção ampla e duradoura dos bens jurídicos.[88] A função ético-social garantiria de forma mais eficaz a proteção de bens jurídicos do que a mera idéia de amparo a esses bens. O autor inclusive aponta que o Direito deve exercer influência sobre a consciência dos cidadãos e sobre os costumes, fazendo valer a sua força sobre os instintos egoístas, sendo essa uma missões fundamentais de todo o Direito, quem dirá do Direito Penal e do Direito Público.[89]
Garcia-Pablos não está equivocado quando refere que por trás da função ético-social existe uma verdadeira intenção pedagógica, muito mais ambiciosa do que a mera proteção de bens jurídicos. Com efeito, segundo Cerezo Mir, que é o mais destacado defensor desta posição na Espanha, há uma intenção clara de estimular o respeito aos bens jurídicos, buscando obrigar os cidadãos e influenciar suas consciências, inclusive, apelando a seus interesses egoístas por meio de coação.[90] Outros autores, como Mayer, Jescheck, Marauch e Stratenwerth também tem defendido essa posição, ainda que a partir de outros pressupostos.
Ainda que possa ser discutida a sua validade enquanto fundamentação teórica, o fato é que o Direito Penal vem exercendo uma força criadora de costumes, conformando uma espécie de pedagogia social.[91] Os processos político-criminais de neocriminalização são, eles próprios, em alguma medida, formas de estabelecimento de uma moral, de uma ética em determinado sentido. Este é o caso, evidentemente, de boa parte das infrações contra o meio ambiente, como refere Silva Sánchez.[92]
Todavia, como refere Garcia-Pablos, parece claro que não cabe ao Direito Penal a realização de um processo de moralização da sociedade e muito menos o estabelecimento de uma ética (em qualquer sentido) uma vez que isto cabe a outras instâncias.[93] Sua função deve se restringir à proteção de bens jurídicos, não havendo fundamento teórico para uma função ético-social, mesmo que supostamente esta possa vir a ser mais eficaz na proteção de bens jurídicos.
Não é aceitável que em um Estado Democrático de Direito o Direito Penal tenha a pretensão de exercer influência sobre a consciência dos indivíduos, interferindo e modificando seus valores e crenças.[94] Com efeito, trata-se de algo que perigosamente se aproxima da vocação totalitária de regimes como o Nazista e o Fascista, onde se esperava lealdade do cidadão ao Estado acima de tudo. Trata-se de uma interferência que é visivelmente abusiva e ameaça borrar a distinção entre Direito e Moral, que, como visto anteriormente, é essencial para o desenvolvimento de todo sistema jurídico-penal contemporâneo. De fato, a função ético-social acaba por legitimar a expansão do âmbito de intervenção jurídico-penal para além dos estritos limites impostos pela idéia de lesão ou perigo concreto de lesão a bem jurídico. Há um deslocamento de enfoque onde evitar o resultado passa a ser menos importante do que buscar uma modificação das atitudes dos cidadãos diante dos valores exigidos pelo Direito.[95]
Como aponta Silva Sánchez, a atribuição dessa função ao Direito Penal prejudica, inclusive, o surgimento de uma ética civil. Como se isso não bastasse, os processos de descriminalização poderiam conduzir a equívocos, onde o que não tem relevância penal poderia ser considerado ética e moralmente aceitável, só porque não é punido com uma pena.
Para Garcia-Pablos, a função ético-social não é nada além do que uma manifestação da função promocional, que alguns autores atribuem, sem fundamento algum, ao Direito Penal. Sem fundamento porque o Direito Penal não é responsável pelo desenvolvimento social e nem tampouco o baluarte moral da sociedade. Ainda que uma melhora nos níveis éticos da sociedade seja necessária e que ela possa conduzir a uma redução significativa nas taxas de criminalidade, não corresponde ao Direito Penal tal missão.[96]
Considerações finais:
Sempre é tarefa difícil sintetizar de forma clara os argumentos desenvolvidos ao longo de um texto extenso, mas reconhecendo esse déficit, é possível dizer que o Direito Penal (e sistema penal, por extensão, a partir de uma concepção integrada) deve ser um mecanismo de limitação do poder punitivo, através de uma intervenção restrita e seletiva, mas exigível em certos casos, diante da intolerabilidade face aos conflitos que ameaçam a paz social e colocam em risco o bem comum, objetivando a redução de danos em relação a inocentes através da busca da máxima eficácia de um sistema de garantias mínimas.
Professor assistente de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Coordenador da Especialização em Direito Constitucional da FURG. Doutorando e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Mestre em História (UFRGS). Especialista em História do Brasil (FAPA). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Licenciado em História (FAPA). Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de Ambição de Verdade no Processo Penal (Desconstrução Hermenêutica do Mito da Verdade Real), editora jusPODIVM. 2009.
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