Resumo: O presente artigo propõe-se a analisar os pressupostos do ato de indiciamento em sede de inquérito policial militar, levado a efeito pela Autoridade de Polícia Judiciária Militar. De início, passará por uma abordagem da evolução histórica dessa investigação preparatória, conhecendo suas características, bem como os princípios constitucionais aplicados em seu bojo. Em seguida, serão estudados os pressupostos do indiciamento: prova da materialidade, indícios suficientes de autoria e ausência de causa excludente de antijuridicidade. Desse modo, esse ato de polícia judiciária militar, por refletir sobre o investigado em seu aspecto moral, psicológico, social e profissional, deve consubstanciar ato fundamentado, responsável e não automático e arbitrário, sob pena de ser corrigido por meio de habeas corpus. Por fim, será analisado o Projeto de Lei 280, em trâmite no Congresso Nacional, que tipifica conduta de quem desrespeita a observância dos pressupostos do indiciamento.
Palavras-chave: Indiciamento. Investigação preliminar. Pressupostos. Princípios Constitucionais.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O presente artigo tem por finalidade principal estudar o instituto do indiciamento penal militar levado a efeito pela Autoridade de Polícia Judiciária Militar em sede de inquérito policial militar, bem como analisar seus pressupostos e seus limites, com uma visão garantista inerente ao Estado Democrático de Direito e do respeito à dignidade da pessoa humana.
Este tema, ao nosso pensar, merece um exame mais aprofundado, uma vez que o ato de indiciamento, se realizado de forma prematura, ainda que posteriormente o feito seja arquivado, acarretará na anotação da acusação nos registros criminais do militar estadual investigado, além de outros prejuízos que adiante serão expostos.
Nesse contexto, serão apresentados os conceitos de autoridade de polícia judiciária militar, sua competência, os aspectos gerais do inquérito policial militar, sua evolução histórica, natureza jurídica, características, finalidade bem como os princípios constitucionais aplicáveis no procedimento em exame.
Quanto ao ato de indiciamento propriamente dito, serão estudados os seus pressupostos: prova da materialidade, indícios suficientes de autoria e ausência de causa excludente de ilicitude, bem como os meios judiciais de controle, quando realizado sem a devida fundamentação legal.
A rigor, em que pese o não indiciamento ocorrido em razão de excludente de antijuridicidade não vincular o Ministério Público, tampouco o Poder Judiciário – a quem compete o arquivamento do inquérito ou o recebimento da denúncia – não se deve deixar de consignar essa circunstância, caso exista.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR
A Policia Judiciária Militar exerce sua atuação de forma repressiva, pois será desempenhada após a prática do fato delituoso, sendo aplicada como auxiliar ao Poder Judiciário.
Sua execução caberá aos órgãos do Poder Executivo, se enquadrando como atividade de Administração Pública.[1]
2.2 AUTORIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA MILITAR
No âmbito das Policias Militares, não há um cargo próprio para exercer exclusivamente as atividades investigatórias.[2]
Desse modo, a Polícia Judiciária Militar será exercida pelos Comandantes, cuja função será semelhante àquela exercida pelo Delegado de Polícia (civil ou federal) no cenário civil.[3] Tal atuação ocorrerá com base na circunscrição.[4]
2.3. COMPETÊNCIA
Várias são as missões da Polícia Judiciária Militar previstas no Código de Processo Penal Militar, cujo dispositivo legal apresenta um rol explicativo.[5] Todavia, para o presente estudo, dispõe a alínea “a” do artigo 8º que “Compete à polícia judiciária militar: a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria”.
Diante dessa atribuição, resta clara a atuação da Polícia Militar na função de Autoridade Policial Militar, por meio da instauração do procedimento administrativo que servirá para apurar os crimes militares: o Inquérito Policial Militar.
2.4 DO INQUÉRITO POLICIAL MILITAR
O inquérito policial surgiu no Brasil com essa denominação em 1871, com o advento da Lei 2.033, regulamentada pelo Decreto 4.824 de 1871, que trazia em seu texto a concepção da investigação criminal com o referido título.
Nota-se que isso já ocorria anteriormente, contudo veio a se especializar com a aplicação efetiva do princípio que separava a polícia da prática judiciária.[6] Desse modo a polícia judiciária passou a ter missão específica centrada no campo da investigação, alicerçada principalmente na condução do inquérito policial.
Assim como na investigação policial comum, os militares já realizavam a busca por indícios de autoria e materialidade nos crimes cometidos no âmbito militar. Esse procedimento recebia outras nomenclaturas, como ocorria, por exemplo, no Regulamento Processual Criminal Militar de 1.895, que criou os Conselhos de Investigação, órgão temporário que atuava da mesma forma que a Polícia Judiciária Militar nos dias atuais.
O termo Inquérito Policial Militar surgiu no Decreto Lei nº 925 de 1.938 (Código da Justiça Militar) que trazia em seu artigo 113, pela primeira vez na legislação nacional, a expressão utilizada até os dias atuais no âmbito do processo penal castrense:
“Art. 113. O inquérito policial-militar consiste num processo sumário em que ouvir-se-ão o indiciado, o ofendido e testemunhas em número não menor de três, e far-se-ão, alem do auto de corpo de delito nos crimes que deixam vestígio, quaisquer exames e diligências necessárias ao esclarecimento do fato e suas circunstâncias, inclusive a determinação do valor do dano.”[7] (grifo nosso)
Adiante será estudada a evolução desse procedimento, porém desde já se deve entender que o avanço dos direitos do homem fez surgir vários institutos e princípios contemplados na investigação preliminar, enaltecendo sempre a dignidade do homem, seus direitos e primando por sua liberdade.
2.4.1 Natureza Jurídica
Cuida-se de um procedimento de natureza administrativa pré-processual.[8] Por esse motivo não trará qualquer imposição direta de sanção, isso porque não se trata de processo judicial ou processo administrativo. Possui caráter informativo e preparatório servindo como suporte para a ação penal.[9]
O inquérito policial militar será instaurado sempre mediante portaria,[10] podendo ser de ofício, por determinação ou delegação da autoridade superior, por requisição do Ministério Público, por requerimento do ofendido ou de sindicância que resulte indício da existência de crime militar, consoante art. 10 do Código de Processo Penal Militar.
Em que pese não possuir uma regra rígida para o desenvolvimento de suas atividades, ainda assim é entendido como um procedimento, já que possui uma sequência lógica, conforme as disposições do legislador.[11]
2.4.2 Características
O Inquérito Policial Militar possui algumas características que adiante serão analisadas, entendendo-se que se deve estudá-las de acordo com o conteúdo Constitucional.[12]
2.4.2.1 Procedimento escrito
O inquérito policial militar é escrito, cuja disposição expressa está presente no art. 21 do Código de Processo Penal Militar, o qual dispõe que "todas as peças do inquérito serão, por ordem cronológica, reunidas num só processado e datilografadas, em espaço dois, com as folhas numeradas e rubricadas, pelo escrivão." Não restando qualquer dúvida quanto a essa característica.
2.4.2.2 Procedimento Sigiloso
O inquérito policial militar é sigiloso, conforme disposição do Código de Processo Penal militar, que traz em seu art. 16 expressamente essa característica: "O inquérito é sigiloso, mas seu encarregado pode permitir que dele tome conhecimento o advogado do indiciado".
Evidentemente, quando se trata dessa característica, não se afastam os direitos do indiciado ou de seu procurador, mas sim a possibilidade de qualquer pessoa ter acesso ao procedimento por mera curiosidade.[13] A súmula vinculante 14 é bastante clara nesse sentido, resguardando os direitos do defensor em favor de seu cliente.[14]
2.4.3.3 Procedimento Indisponível
Essa característica ocorre em virtude do que preconiza o art. 24 do Código de Processo Penal Militar "A autoridade militar não poderá mandar arquivar autos de inquérito, embora conclusivo da inexistência de crime ou de inimputabilidade do indiciado".
Dessa maneira, o Inquérito Policial Militar somente poderá ser arquivado a pedido do Ministério Público, sendo determinado por ordem do Magistrado em concordância com o pedido.
2.4.3.4 Procedimento Inquisitivo
Importante salientar que não contempla o contraditório, pois se trata de procedimento, não de processo, não se confundindo, portanto com o inciso LV do art. 5º da Constituição Federal de 1.998 que assim dispõe:[15]
“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” (grifo nosso)
Dessa forma, inexiste acusação em sentido estrito,[16] somente identificando-se a investigação.
2.4.3.5 Procedimento Oficial
O inquérito policial militar será conduzido por órgãos oficiais, com atribuição para tal, não havendo possibilidade de ser transmitida por delegação aos particulares.[17]
2.4.3.6 Caráter Oficioso
A notícia da prática de crime militar ensejará a instauração, condução e encerramento do procedimento, independente de provocação, devendo a Autoridade Policial Militar agir de ofício.
2.5 FINALIDADE
A previsão do Código de Processo Penal Militar apresenta como finalidade do Inquérito Policial Militar a busca pelas informações relacionadas à prática de crime militar, sua autoria e materialidade, que serão levadas ao titular da ação penal – Ministério Público – para o oferecimento de denúncia.[18]
Contudo, ressalta-se que há que se adotar uma interpretação constitucional do referido diploma, de forma a ampliar esse entendimento, deslocando essa finalidade em sentido inverso, apresentando como propósito dessa investigação, afastar acusações infundadas em face da pessoa a quem se tenha imputado um fato,[19] evitando que inocentes sejam processados na esfera criminal.[20]
2.6 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS EM SEDE DE INQUÉRITO POLICIAL MILITAR
A seguir, serão apresentados alguns princípios constitucionais afetos ao inquérito policial militar, uma vez que é por meio deles que a interpretação e a aplicação das leis devem ser balizadas.[21]
2.6.1 Dignidade da Pessoa humana
Trata-se de um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto no art. 1º, III, da Carta Magna, o qual, dada sua relevância, foi inserido no primeiro artigo da Constituição Federal de 1988.
Para Guilherme Madeira “A dignidade da pessoa humana consiste em que cada indivíduo é um fim em si mesmo, com autonomia para se comportar de acordo com seu arbítrio, nunca um meio ou instrumento para consecução de resultados, não possuindo preço”.[22] (grifo nosso)
Há que se destacar dois aspectos sobre o princípio em tela: um objetivo e outro subjetivo. O primeiro constitui a garantia de um mínimo existencial ao ser humano, suprindo suas necessidades fundamentais. Quanto ao segundo, caracteriza-se pelo sentimento de respeitabilidade e autoestima inerentes ao ser humano, cuja titularidade não cabe renúncia ou desistência.[23]
O princípio em exame assume relevância, uma vez que o indiciamento caracteriza verdadeiro constrangimento ilegal quando realizado sem lastro probatório mínimo que aponte determinada pessoa como autora de crimes, não podendo, sem indícios contundentes de autoria, macular a dignidade da pessoa humana e ameaçar sua liberdade de locomoção com acusações infundadas.[24]
2.6.2 Devido processo legal
O princípio em exame encontra-se previsto no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal, o qual assevera que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".[25]
Segundo José Herval Sampaio Júnior:
“[…] esse princípio assume dentro do processo penal uma importância transcendental e que delineia todo o seu agir, limitando inclusive a atividade do legislador, porquanto "deve a lei se conformar com os direitos e garantias fundamentais do cidadão", não havendo lugar para a interferência no núcleo protetivo da liberdade do agente, sem que sejam observados os condicionamentos e limites que decorrem da cláusula due processo of Law”.[26]
Nesse aspecto, o devido processo legal deve ser analisado de duas formas: a primeira, processual, a qual assegura a tutela de bens jurídicos por intermédio do procedimento; a segunda, material, exige, na seara da aplicação e da elaboração normativa, uma atuação essencialmente adequada, correta, e razoável.[27]
A rigor, consagra-se a necessidade do procedimento tipificado, com a observância das formalidades legais, sem a supressão e/ou desvirtuamento de atos essenciais.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:
“[…] o principio do devido processo legal possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas, constitucionalmente, como essenciais à justiça.”[28] (grifo nosso)
Desse modo, em que pese o inquérito policial possuir natureza inquisitorial, não resta dúvida que nele incide o princípio do devido processo legal, uma vez que em seu bojo são adotadas diversas medidas que refletem nas liberdades individuais dos investigados.[29]
2.6.3 Direito de defesa
Divide-se em direito de defesa técnica e pessoal.[30]
A primeira decorre de presunção de hipossuficiência do investigado, caracterizada por seu desconhecimento técnico em igualdade de condições com o acusador. Trata-se de assistência técnica patrocinada por advogado, cuja constituição, em sede de inquérito policial, não é cogente.
O segundo, por sua vez, divide-se em defesa pessoal positiva e negativa (Nemo tenetur se detegere). Aquela se faz presente na possibilidade do investigado agir pessoalmente exercitando a própria defesa.
Nesse contexto, Aury Lopes Junior leciona:
“O interrogatório é o momento em que o sujeito passivo tem a oportunidade de atuar de forma efetiva – comissão –, expressando os motivos e as justificativas ou negativas de autoria ou de materialidade do fato que se lhe imputa.”[31]
Por sua vez, sobre a defesa pessoal negativa, arremata o ilustre processualista:
“Ao lado deste atuar que supõe o interrogatório, também é possível uma completa omissão, um atuar negativo, através do qual o imputado se nega a declarar. Não só pode se negar a declarar, como também pode se negar a dar a mínima contribuição para a atividade probatória realizada pelos órgãos estatais de investigação, como ocorre nas intervenções corporais, reconstituição do fato, fornecer material escrito para a realização do exame grafotécnico etc”.[32] (grifo nosso)
Desse modo, o silêncio do indiciado ou a sua não contribuição para a atividade investigatória, não pode ser interpretado em seu prejuízo, ou seja, contra ele não ocorrerá nenhuma presunção de culpabilidade.
2.6.4 Princípio da presunção de não culpabilidade
Inicialmente, convém observar que a Carta Magna estabelece expressamente, em seu art. 5º, LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.[33]
Assim, considerar determinada pessoa como autora de um crime somente se torna possível após a sentença penal condenatória transitada em julgado. A propósito, a doutrina divide o princípio em análise em três dimensões: como regras de julgamento, de processo e de tratamento.[34]
Conforme Renato Brasileiro de Lima:
“Portanto, por força da regra de tratamento oriunda do princípio constitucional da não culpabilidade, o Poder Público está impedido de agir e de se comportar em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, enquanto não houver sentença condenatória com trânsito em julgado.”[35] (grifo nosso)
Nesse aspecto, tendo em vista a natureza pré-processual do procedimento em exame, é que o tratamento dispensado ao suspeito ou ao indiciado é o de ser presumidamente inocente, de modo a respeitar sua dignidade humana e seu direito de defesa.
Desse modo, não pode o ato de indiciamento ser automático ou arbitrário por parte da autoridade de polícia judiciária militar, somente devendo ocorrer, conforme demonstrado, após a coleta de indícios contundentes de autoria e de materialidade.
2.7 INDICIAMENTO
A investigação preliminar, como o próprio termo sugere, antecede a fase judicial, sendo as mais comuns o inquérito policial, as comissões parlamentares de inquérito e as sindicâncias.[36]
Segundo Adel El Tasse “é o ato pelo qual a polícia judiciária estabelece e torna sabido que contra determinada pessoa existem indícios de que tenha sido o autor de determinada infração penal”.[37]
2.8 REQUISITOS: PROVA DA MATERIALIDADE, INDICIOS SUFICIENTES DE AUTORIA E AUSÊNCIA DE CAUSA EXCLUDENTE DE ANTIJURIDICIDADE
A instauração do inquérito policial pela autoridade competente, ao tomar conhecimento da prática de um crime, é seu dever. Contudo, não se deve confundir essa obrigação com a necessidade de se indiciar o suspeito ab initio.
Sobre o tema, Eliezer Pereira Martins e Evandro Fabrini Capano advertem que:
“[…] nada obsta a instauração de IPM para a apuração de crime de autoria ignorada, já que o IPM tem por finalidade exatamente apurar a autoria do delito militar. A este respeito grassa nos quartéis a crendice de que em todo IPM há que existir um indiciado, o que tem levado por vezes as autoridades de polícia judiciária militar a indiciarem militares por mera formalidade, quando é sabido que o indiciamento em IPM sempre prejudica o militar submetido a tal medida.”[38]
Desse modo, não se deve apresentar um indiciado como requisito necessário para a instauração do inquérito. Sendo assim, resta clara a ideia de não ser obrigatória a necessidade de indiciado para a instauração de inquérito.
Com efeito, uma vez comprovada existência de um crime – materialidade – emerge a necessidade de se investigar sua autoria, cujo resultado apontará ou não indícios que vinculem determinada pessoa ao delito apurado, culminando, no primeiro caso, no seu indiciamento.
O art. 239 do Código de Processo Penal considera “indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”.
De acordo com Sérgio Marcos de Moraes Pitombo:
“O indivíduo contra o qual se reuniu prova da autoria da infração, tem que ser indiciado. Já aquele que contra si possui frágeis indícios, ou outro meio de prova esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito”.[39]
Sabe-se que o indiciamento acarreta diversas conseqüências negativas para o investigado, refletindo não somente na seara penal e processual penal, mas também na esfera administrativa, trabalhista, social, e na própria carreira militar.[40]
Desse modo, se não há indícios que apontem determinada pessoa como provável autora do delito investigado, não se deve realizar seu indiciamento, mantendo-o como mero suspeito.
Com efeito, até a entrada em vigor da Lei 12.830, de 20 de junho de 2013,[41] não havia previsão de um indiciamento formal, ficando a análise e o estudo desse ato de polícia judiciária a cargo da doutrina e da jurisprudência.
Em que pese versar sobre a condução da investigação pelo delegado de polícia – crimes comuns – há que se trazer a necessidade de fundamentação para as investigações levadas a efeito pela autoridade de polícia judiciária militar.
Nesse contexto, Aury Lopes Junior leciona “[…] que o indiciamento só pode produzir-se quando existirem indícios razoáveis de probabilidade da autoria, e não como um ato automático e irresponsável da autoridade policial” (grifo nosso).[42]
No entendimento de Adel El Tasse:
“[…] o indiciamento se constitui em ato fundamentado, de sorte que a investigação deve estar revestida de elementos probatórios que possibilitem à autoridade policial motivar as razões do indiciamento, haja vista que o mesmo acarretará a qualificação do indiciado, que ocorrerá, por certo, na data em que o mesmo comparecer perante a Polícia para prestar depoimento”.[43]
Nesse aspecto, o indiciamento necessita ser fundamentado, com a demonstração das razões que levaram a autoridade a praticar tal ato, sob a sujeição do controle jurisdicional por intermédio do habeas corpus.[44]
Ressalta-se que o indiciamento não comporta momento determinado para ser realizado, devendo, no entanto, ocorrer quando existirem elementos de prova que apontem determinada pessoa como provável autora do delito apurado.[45]
Segundo Aury Lopes Junior:
“O indiciamento deve resultar do instante mesmo em que, no inquérito policial instaurado, verificou-se a probabilidade de ser o agente o autor da infração penal, e, como instituto jurídico, deverá emergir configurado em ato formal de polícia judiciária.”[46]
Em estudo realizado pelo Cel. PM RR Drigo, apontou-se pela inconveniência do indiciamento realizado na portaria, já que o inquérito servirá exatamente para apurar o crime e sua autoria.[47]
Ademais, quando a autoridade de polícia judiciária militar verificar que o agente cometeu o fato amparado por alguma excludente de antijuridicidade, não deverá realizar o indiciamento, fundamentando as razões de seu convencimento.
Nesse sentido, Ronaldo João Roth aduz:
“Desse modo, é de se ver que a tipicidade do fato ocorrido é ínsita ao indiciamento, mas não só, ainda depende do fato ser antijurídico. […] É por isso que não deve existir indiciamento quando o agente agiu amparado pela excludente de ilicitude, circunstância essa que deve vir explicitada pelo encarregado do IPM. Destarte, há de se distinguir suspeito, indiciado e acusado […]”.[48] (grifo nosso)
No entanto, conforme será analisado adiante, o que se observa em sede de inquérito policial militar é que o indiciamento, em regra, ocorre na portaria de instauração desse procedimento preparatório, não raras vezes, sem restar comprovada a materialidade do suposto delito cometido.[49]
Ressalta-se que o indiciamento, além de gerar diversos constrangimentos para o indiciado, marca o surgimento de direitos, dentre eles o de defesa,[50] de permanecer em silêncio, de não produzir provas contra si, gerando, outrossim, algumas garantias.
É evidente que a Autoridade de Polícia Judiciária Militar não pode deixar de instaurar o inquérito policial militar, uma vez que se trata de requisição, e não de requerimento.
O problema é que se confunde o dever de se instaurar a investigação preparatória – leia-se inquérito – com a necessidade de se indiciar os militares estaduais desde o início (idéia equivocada de que para haver inquérito há que se existir indiciado).
Conclui-se que, nesses moldes, o indiciamento caracteriza constrangimento ilegal passível de ser corrigido por habeas corpus, podendo ensejar a indevida exposição da instituição policial, bem como na responsabilidade civil do Estado, como em diversas decisões judiciais nesse sentido.[51]
2.10 DA NECESSIDADE DE UNIFORMIZAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS NO ÂMBITO DAS INSTITUIÇÕES MILITARES
O indiciamento não deve ser o primeiro ato do encarregado do Inquérito Policial Militar, mas um dos últimos, ocorrendo antes do interrogatório, devendo ser motivado, por meio do despacho indiciatório, medida esta que irá demonstrar objetividade e transparência no curso da investigação.[52]
Entende-se, portanto, que o indiciado será apontado pelo inquérito, podendo surgir durante as investigações, sendo o procedimento passivo de alterações, que poderão dirigir a suspeição a outros envolvidos.
Nessa linha, uma simples denúncia apócrifa não poderá embasar a instauração de um Inquérito, menos ainda o indiciamento de alguém. Nesse caso, faz-se necessária a realização de buscas por informações circunstanciadas. Confirmando-se as informações apresentadas, instaurar-se-á o procedimento administrativo, porém o indiciamento somente ocorrerá no curso deste, se for o caso.
Apenas após a superação das dúvidas iniciais, quando se avança do juízo da possibilidade para o juízo da probabilidade,[53] é que surgirá o indiciamento, momento em que o investigado passará da condição de mero suspeito a de indiciado, recaindo sobre si todas as investigações.[54]
Diante do exposto, dada sua notável relevância, nota-se a necessidade da criação de um regramento que discipline o ato de indiciamento nas Instituições Militares que ainda não possuem, uma vez que muitos são os reflexos decorrentes do ato de indiciamento.
2.10.1 Lesão direta ao indiciado
Vários são os prejuízos suportados por quem é indiciado em um inquérito policial militar indevidamente. Um bom exemplo é a anotação permanente da acusação nos registros criminais do militar estadual investigado, ainda que o feito seja posteriormente arquivado, consubstanciando a idéia errônea acerca de seus padrões éticos e morais, imputando-lhe a injusta mancha de criminoso.
Desse ato, no âmbito da Polícia Militar do Estado do Paraná por exemplo, poderá ocorrer a cassação ou o adiamento de férias do militar que for indiciado em inquérito policial militar, consoante o art. 390 do Regulamento de Serviços Gerais.[55]
Por sua vez, o Código de Processo Penal Militar traz em seu art. 18 a previsão de decretação de prisão para o indiciado, por ordem do encarregado do inquérito, devendo ser apenas comunicada à autoridade judicial, o qual não poderá intervir na conveniência da prisão decretada.[56]
Ressalta-se que em muitos casos vários militares são indiciados em virtude de denúncia (informação) que traria como sujeito ativo apenas uma pessoa (em princípio). Ocorre que nesses casos os militares acabam sendo indiciados como um meio de se alcançar o “verdadeiro” autor da suposta conduta criminosa.
Ora, essa prática conflita com o princípio da dignidade da pessoa humana, que nos ensinamentos de Immanuel Kant, “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim, e nunca simplesmente como um meio”.[57]
Nesse aspecto, indiciar várias pessoas para se atingir o objetivo de encontrar um autor de crime é inaceitável, não se podendo tratar alguém como objeto para que se atinja determinado objetivo.[58]
2.10.2 Prejuízo à persecução penal
Além dos prejuízos para o indiciado (quando não deveria sê-lo), mister apresentar os detrimentos ao bom resultado de uma investigação que traz em seu polo passivo um sujeito indiciado indevidamente.
O indiciado possui vários direitos, inclusive o já citado “de permanecer calado”, que em muitos casos é suscitado pelos indiciados durante seus interrogatórios por orientação de seus defensores.
Essa pessoa na qualidade de indiciado, com seu silêncio, caso exercite esse direito, em nada contribuirá com a investigação. Por outro lado, se ouvida na qualidade de testemunha, poderia trazer informações elucidativas contribuindo sobremaneira para a persecução penal.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Preliminarmente, nota-se que apesar de pouca pesquisa desenvolvida acerca do indiciamento, este ato administrativo se reveste de evidente importância, especialmente por dois aspectos.
Em primeiro lugar, se efetivado de acordo com os pressupostos estudados – prova da materialidade, indícios convergentes de autoria e ausência de causa excludente de antijuridicidade – consubstancia a opinio deliciti da autoridade de policia judiciária militar que apontará determinado militar como provável autor de um crime militar, subsidiando, efetivamente, eventual ação penal.
Em segundo, por outro lado, se levado a efeito o indiciamento sem prova de materialidade, de indícios suficientes de autoria e de ausência de causa excludente de ilicitude e sem necessária fundamentação legal, inevitavelmente, ocasionará o arquivamento do feito, manchando, todavia, os registros criminais do investigado de forma permanente.
A rigor, confunde-se o dever de instaurar o inquérito com a necessidade de se indiciar o militar na portaria de instauração da investigação preparatória.
Nesses moldes, o indiciamento caracteriza constrangimento ilegal podendo ser corrigido pelo Poder Judiciário, podendo ensejar na indevida exposição da instituição, bem como na responsabilidade civil do Estado.
A propósito, tramita no Congresso Nacional, já aprovado no Senado e encaminhado à Câmara dos Deputados, o PL 280 que dispõe sobre os crimes de abuso de Autoridade, o qual dispõe:
“Art. 27: Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício de prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa.
Pena: Detenção de 6 meses a 2 anos e multa. “[59] (grifo nosso)
Nessa linha, de acordo com o projeto de lei em análise, instaurar procedimento investigatório em face de alguém – leia-se indiciar um sujeito – sem indícios suficientes de autoria, constituirá abuso de autoridade punível com detenção de 6 meses a 2 anos e multa.
Nota-se, assim, a clara preocupação do legislador em tipificar a conduta indevida de se indiciar um suspeito sem indícios suficientes de autoria, uma vez que tal conduta reflete sobremaneira na vida pessoal, profissional e moral do agente.
Destarte, observa-se a necessidade da criação de um regramento que discipline o ato de indiciamento nas Instituições Militares, uma vez que muitos são os reflexos decorrentes do ato de indiciamento quando realizado indevidamente.
Por derradeiro, imperioso salientar que o indiciamento, como importante ato de Polícia Judiciária Militar, deve ser delineado por meio de uma interpretação atual e garantista da Carta Magna, consoante fundamentos de um Estado Democrático de Direito.
Bacharel em Direito pela Faculdade Estácio de Curitiba pós-graduado em Direito Processual Penal pela Universidade Cndido Mendes pós-graduando em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professor de Processo Penal nos Cursos de formação da Polícia Militar do Estado do Paraná
Bacharel em Direito pela PUCPR pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal Contemporneos pela PUCPR
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