ITR – Competência Federal x Capacidade Municipal

As primeiras lições dos ramos de Direito Público, seja no Direito Constitucional como no Direito Administrativo e Tributário, encaminham o analista às atribuições de poder conferidas aos entes públicos para o exercício de suas funções institucionais.

Num Estado Federal constitui matéria essencialmente constitucional a limitação destes poderes e repartição pelo texto da Constituição entre as pessoas jurídicas de direito público interno, com o “grau de autonomia das unidades porventura existentes, as funções tipicamente estatais, os órgãos que a exercem, os limites das ações do Estado e os direitos e garantias fundamentais das pessoas a ele submetidas[1].

A “Constituição-tributária” estampa esta função, reconhecendo de plano, quais pessoas jurídicas de direito público receberiam parcela do poder de tributar, já que este representa uma “faceta da soberania estatal[2]. Neste particular, a Carta de 1988 inaugura o capítulo do Sistema Tributário Nacional afirmando os entes políticos como detentores únicos deste poder de tributar·, disciplinando, a partir daí, um sistema de partilha de competências tributárias.

Nunca demais recordar que as normas constitucionais anteriores assim já o faziam, ainda que sem a melhor sistematização. Tanto é verdade que o didático Código Tributário Nacional – CTN já afirmava ser tal temática uma “atribuição constitucional de competência tributária”[3] permitindo às pessoas jurídicas de direito pública que recebessem tais designações constitucionais o poder de instituir os tributos correspondentes, no exercício de suas funções legislativas.

Como resultado da definição constitucional, a competência tributária daria a tais pessoas políticas “dentro de certos limites, o poder de criar determinados tributos e definir seu alcance, obedecidos os critérios de partilha de competência estabelecidos pela Constituição. A competência engloba, portanto, um amplo poder político no que respeita a decisões sobre a própria criação do tributo e sobre a amplitude da incidência, não obstante o legislador esteja submetido a vários balizamentos[4].

Assim, somente mostra-se possível qualquer ponderação sobre a competência tributária dos entes a partir do texto magno, sendo tal assunto norma materialmente constitucional. Neste sentido, qualquer eventual mudança, aditamento ou subtração da competência dos entes somente é admissível como forma de exercício do poder constituinte reformador com a elaboração de Emendas, tal qual ocorrido com a Emenda n° 03 que criou o IPMF[5] e suprimiu o AIR[6] e o IVVC[7].

Ademais, adverte o próprio CTN que tal competência tributária é indelegável[8], já que “admitir a delegação de competência para instituir tributo é admitir seja a Constituição alterada por norma infraconstitucional”[9]. Ainda nesta esteira, atesta o Código que a eventual transferência das atribuições administrativas de arrecadação e fiscalização para outras pessoas jurídicas de direito público não representariam, em hipótese alguma, delegação da atribuição de instituir os tributos. Em algumas hipóteses onde, por lei, todas as atuações seriam transferidas chegou-se no máximo a afirmar a fixação da CAPACIDADE TRIBUTÁRIA ATIVA pela pessoa jurídica de direito público receptora das funções.

Desta forma, com fulcro na disposição constitucional da época[10], contemplou o Código a previsão da possibilidade de transferências das funções da administração tributária, ou seja, no exercício das funções de execução, sem prejuízo da determinação constitucional original sobre a competência tributária, como sempre a jurisprudência dos tribunais[11].

A história tributária pós CTN registrou várias casos destas delegações administrativas, sendo o caso mais famoso o ocorrido com algumas contribuições sociais conferidas administrativamente para a atribuição do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Já naquele momento desenvolveu a doutrina a distinção das funções, notadamente a partir da conceituação da competência tributária, reconhecendo que “não se deve confundir este conceito com a capacidade para figurar no pólo ativo da relação obrigacional-previdenciária, que é a competência não para criar a contribuição, mas para exigir-lhe o cumprimento”[12].

Apesar do caso mais célebre das contribuições sociais, não se pode esquecer que atualmente as Autarquias Federais de fiscalização e Agências Nacionais retiram diretamente de taxas os recursos mantenedores de sua subsistência, ganhando relevo inclusive na alta corte já que a taxa de fiscalização atribuída à Comissão de Valores Mobiliários – CVM foi questionada – e validada – no Supremo Tribunal Federal através da Súmula 665[13].

Contudo, a história recente aponta para o caso do Imposto sobre a propriedade Territorial Rural – ITR e a inovação constitucional trazida pela Emenda n° 42 com a expressa previsão da possibilidade de fiscalização e cobrança pelos Municípios[14]. Naturalmente, esta novel colocação constitucional não traduz maior inovação no ordenamento jurídico-tributário, eis que a previsão ali contida já se encontrava amparada pelo contido no mencionado art. 7°[15] do CTN.

Todavia, este dispositivo não pode ter sua interpretação dissociada da outra inclusão realizada pela Emenda Constitucional n° 42 no capítulo da Repartição das Receitas Tributária sobre o referido Imposto. Modificando parcialmente o art. 158[16] da Carta de 1988, a mencionada reforma concedeu a destinação da totalidade da arrecadação do ITR aos Municípios, caso estes façam aquela opção mencionada anteriormente.

A nova sistemática trouxe para o ITR uma dupla configuração no cenário nacional. A uma, em várias localidades pode permanecer o tratamento já existente, com os contribuintes possuindo a relação tributária diretamente com os órgãos federais de arrecadação, mantendo a repartição da receita em 50% (cinqüenta por cento) ao Município e a outra metade ao erário federal. A duas, uma vez celebrada a transferência das funções administrativas de arrecadação e fiscalização para os Municípios, os proprietários, possuidores ou enfiteutas de imóveis rurais situados nestas municipalidades passarão a submeter-se ao poder local, como toda a receita vertida para este, o mesmo acontecendo no Distrito Federal.

De forma a regulamentar tais disposições constitucionais, houve a edição da Lei n° 11.250, em 2005, dispondo no seu art. 1° que “a União, por intermédio da Secretaria da Receita Federal, para fins do disposto no inciso III do § 4° do art. 153 da Constituição Federal, poderá celebrar convênios com o Distrito Federal e os Municípios que assim optarem, visando a delegar as atribuições de fiscalização, inclusive a de lançamento dos créditos tributários, e de cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural, de que trata o inciso VI do art. 153 da Constituição Federal, sem prejuízo da competência supletiva da Secretaria da Receita Federal”.

Como se extrai da clareza constitucional e sua regulamentação, os Municípios que decidirem por tal opção assumirão todas as funções relativas à arrecadação, inclusive a de realização de lançamento, com todos os ônus de apuração da produtividade das propriedades para obediência da determinação constitucional da progressividade das alíquotas sobre aquelas improdutivas.

Por outro lado, transferidas as funções administrativas aos Municípios, toda a capacidade legislativa permanecerá naturalmente com a União. Por óbvio, o exercício das atividades administrativas pela municipalidade não autorizará qualquer disciplina da matéria legal para o tributo, devendo “ser observada a legislação federal de regência do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural”, como esclarece o §1° do art. 1° da norma legal supra mencionada.

Todas estas previsões pretendem advertir que o cometimento das funções administrativas jamais pode ser confundido com qualquer atribuição da competência tributária definida constitucionalmente, que permanecerá inalterada no âmbito federal. A disciplina dos elementos tributários mantém-se in totum para exercício do legislador da União que deverá disciplinar a descrição do fato gerador e da base de cálculo, a definição da alíquota, a identificação do sujeito passivo, enfim, os elementos da obrigação tributária principal.

Neste mesmo sentido, de forma a reforçar a mantença da competência tributária federal e evitar que o ITR fosse utilizado como instrumento político pelos Municípios, determina a Lei n° 11.250, de 2005, que “a opção de que trata o caput deste artigo não poderá implicar redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal”.

Por tudo isto, a nova disposição constitucional deve ser interpretada dentro dos parâmetros já existentes no Direito Tributário, sobretudo no sentido de não ser confundida a referida permissão com qualquer delegação da competência tributária do Imposto Rural para os Municípios, mas tão somente uma previsão constitucional da já existente transferência da capacidade para exigir o cumprimento da obrigação tributária.

Tal situação, na verdade, independeria de reforma constitucional, podendo ser disciplinada na forma do art. 7° do Código Tributário. Todavia, a necessidade de colocação constitucional originou-se da associação deste cometimento de capacidade ativa tributária à destinação completa da arrecadação deste imposto, na forma da parte final do art. 158, II c/c art. 153, §4°, III, ambos da Constituição.

E nem se diga que a destinação aos Municípios da totalidade dos recursos arrecadados implicaria numa modificação da competência tributária determinada pelo texto constitucional, vez que o próprio CTN já advertia que “os tributos cuja receita seja distribuída, no todo ou em parte, a outras pessoas jurídicas de direito público pertencem à competência legislativa daquela que tenham sido atribuídos[17].

Assim sendo, na forma de todo o exposto, deve o interprete ter máxima atenção com a situação atual do Imposto Rural, vez que a modificação constitucional introduziu dispositivos que repercutirão bastante na prática do tributo e da relação tributária dos proprietários de imóveis rurais com o poder público. Em algumas localidades, contribuintes relacionar-se-ão com os agentes municipais em cumprimento a uma legislação federal. Já em outras, será mantida a estrutura tradicional perante a Secretaria da Receita Federal e seus procedimentos.

Mas o maior cuidado de todos direciona-se àqueles que ainda estudam a estrutura básica do Imposto Rural, sobremaneira diante da realidade de que a competência para o tributo mantém-se inalterada no plexus dos poderes federais, enquanto que os Municípios poderão apenas ser enquadrados como delegatários das funções administrativas de arrecadação, lançamento e fiscalização do tributo.

Notas:
[1] Chimenti, Ricardo Cunha et alli.Curso de Direito Constitucional. Ed. Saraiva, SP, 3ª. ed., 2006, p. 2
[2] Beltrão, Irapuã. Resumo de Direito Tributário. Ed. Impetus, RJ, 1ª. ed. , 2006, p. 53
[3] Art. 6° – Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966
[4] Amaro, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Ed. Saraiva, SP, 9ª. ed., 2003, p. 93
[5] Art. 2.º A União poderá instituir, nos termos de lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.
[6] Art. 3.º A eliminação do adicional ao imposto de renda, de competência dos Estados, decorrente desta Emenda Constitucional, somente produzirá efeitos a partir de 1.º de janeiro de 1996, reduzindo-se a correspondente alíquota, pelo menos, a dois e meio por cento no exercício financeiro de 1995.
[7] Art. 4.º A eliminação do imposto sobre vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos, de competência dos Municípios, decorrente desta Emenda Constitucional, somente produzirá efeitos a partir de 1.º de janeiro de 1996, reduzindo-se a correspondente alíquota, pelo menos, a um e meio por cento no exercício financeiro de 1995.
[8] Art. 7° – Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966
[9] Machado, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. Ed. Malheiros, SP, 17ª. ed., 2006, p. 285
[10] Art. 18 § 3º CRFB 1946 – Mediante acordo com a União, os Estados poderão encarregar funcionários federais da execução de leis e serviços estaduais ou de atos e decisões das suas autoridades; e, reciprocamente, a União poderá, em matéria da sua competência, cometer a funcionários estaduais encargos análogos, provendo às necessárias despesas.
[11] STJ – 1ª. Turma – REsp 332407, rel. Min. José Delgado, j. em 18/09/2001 – “O INSS tem legitimidade passiva para a demanda na qualidade de litisconsorte necessário, não obstante não figure na relação jurídico-tributária como sujeito ativo, pois apenas detém a competência delegada para arrecadar e fiscalizar a contribuição em referência, não havendo motivos para afastar o seu interesse na causa.”
[12] Ibrahim, Fábio Zambite. Curso de Direito Previdenciário, Ed. Impetus, RJ, 4ª. ed. , 2005, p. 64
[13] “É constitucional a Taxa de Fiscalização dos Mercados de Títulos e Valores Mobiliários instituída pela Lei 7.940/89.”
[14] Art. 153, §4° III – será fiscalizado e cobrado pelos Municípios que assim optarem, na forma da lei, desde que não implique redução do imposto ou qualquer outra forma de renúncia fiscal.
[15] Art. 7º A competência tributária é indelegável, salvo atribuição das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do artigo 18 da Constituição.
[16] Art. 158, II – cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, § 4º, III;
[17] Parágrafo único do Art. 6° – Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Irapuã Beltrão

 

Bacharel em Direito, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Procurador Federal. Procurador Universitário, de Cursos de extensão e de Cursos Preparatórios para Concursos. Palestrante em diversas áreas do Direito, com participações em seminários em quase todos os Estados da Federação. Especialista em Direito Econômico pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ. Master of Law pela University of Connecticut. Autor do livro Resumo de Direito Tributário, pela Editora Impetus. Ex-Subprocurador Geral e Procurador Geral Substituto da SUSEP. Ex-Gerente Geral de Normas e Análise de Mercados e Substituto da Direitora da Agência Nacional de Saúde-ANS.

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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