Resumo: Este projeto de tese tem por objetivo pesquisar o fenômeno contemporâneo da judicialização da saúde, buscando compreender a dinâmica social do fato e seus desdobramentos. Nessa peleja entre o Poder Executivo, que é quem tem a prerrogativa de planejar e executar as politicas públicas de saúde, e o Poder Judiciário, que determina àquele a prestação compulsória de medicamentos ou tratamentos, existe um vácuo. A gestão eficiente dos recursos destinados ao atendimento desse Direito Fundamental é um vetor que é deixado em segundo plano, por muitas vezes. Uma linha permanente de comunicação entre gestores da saúde e membros do judiciário, defensoria e ministério público pode dejusdicializar muitas demandas, fornecimento de medicamentos por exemplo, com a criação de um grupo de trabalho que analise estaticamente os tipos de demanda mensal por medicamentos e tratamentos e que essas informações possam subsidiar tomadas de decisões que garantam a prestação dos serviços de saúde antes mesmo de uma possível demanda judicial.
Palavras chave. Judicialização da Saúde. Direitos Fundamentais. Gestão Eficiente.
Abstract: This thesis project aims to research the contemporary phenomenon of legalization of health, seeking to understand the social dynamics of fact and its consequences. In this battle between the executive branch, that is who has the ability to plan and execute public policies, health and the judiciary, which determines that to compulsory provision of medicines or treatments, there is a vacuum. Efficient management of resources for the care of this Fundamental Law is a vector that is left in the background for many times. A permanent line of communication between health managers and members of the judiciary, defense counsel and prosecutors can dejusdicializar many demands, supply of medicines for example with the creation of a working group to statically analyze the types of monthly demand for medicines and treatments that information can support decision-making to ensure the provision of health services before a possible lawsuit.
Key words.Legalization of Health. Fundamental Rights. Efficient Management.
INTRODUÇÃO.
A judicialização do direito à saúde ganhou tamanha importância teórica e prática que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo.
Esse fato social começa a suscitar, tanto nas ciências jurídicas, quanto nas ciências médicas e de gestão pública, uma tentativa de encontrar um mecanismo de equalização do sistema. Destarte, a judicialização da saúde deve ser realizada da melhor forma possível, ou seja, de forma pontual e sempre respeitando o planejamento dos gestores da área, apenas corrigindo as omissões e falhas da Administração Pública.
Portanto, o presente projeto de pesquisa visa contribuir com o debate acerca dos problemas que envolvem o ativismo judicial no sistema de saúde. O aprimoramento de mecanismos de trocas de informações entre os Gestores Públicos, o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Poder Judiciário pode contribuir para melhoria do sistema de saúde. Uma vez que, as demandas reiteradas exercidas no judiciário, requerendo medicamentos e tratamentos, podem passar a fazer parte do planejamento do gestor público quando informadas por aqueles a este.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.
O art. 6º da Constituição da República (CRFB) afirma ser a saúde um direito social, deixando transparecer a possibilidade de o cidadão exigir alguma prestação estatal capaz de lhe garantir uma existência saudável.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a saúde não é a mera ausência de doenças ou enfermidades, mas o estado de completo de bem-estar físico, mental e social[1].
Desse modo, quando se fala em direito à saúde, se está tratando dos meios necessários à promoção da saúde, que, segundo a Carta de Ottawa, elaborada durante a Primeira Conferência Internacional de Promoção da Saúde, em 1986, significa o processo de capacitação da pessoa para a melhoria e o aumento de controle da saúde[2].
Sendo a saúde o estado de completo bem-estar, sua promoção não se esgota nas prestações de saúde, dependendo de políticas públicas relacionadas a outros campos da atuação estatal, como aquelas necessárias à conquista de paz, moradia, educação, alimentação, renda, ecossistema saudável, recursos sustentáveis, justiça social e equidade.
Porém, essa visão ampliada da promoção da saúde ultrapassa os limites do próprio direito à saúde, considerado isoladamente, pois depende de iniciativas intersetoriais. A moradia, educação e renda contribuem para a promoção da saúde, porém não integram o conceito de direito à saúde, uma vez que constituem direitos autônomos. Caso contrário, concluir-se-ia que o direito à saúde teria menos a ver com o campo regional da saúde e mais a ver com o campo global da sociedade, apesar da clara disposição constitucional de tutelá-la autonomamente.
Demonstrada a existência de um direito subjetivo público consubstanciado no acesso às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, é necessário verificar a existência de seu fundamento teórico sócio-politico-jurídico[3].
Não é objetivo deste trabalho aprofundar o debate sobre o conceito e a estrutura dos direitos fundamentais[4]. Busca-se aferir se o direito à saúde pode ser caracterizado como um direito fundamental. Todavia, algumas considerações iniciais são necessárias.
Destaca-se que os direitos fundamentais são direitos subjetivos públicos. Como leciona ALEXY[5], e, assim sendo, englobam tanto os direitos a ações negativas, quanto positivas. Este autor ensina que as normas de direito fundamental conferem aos indivíduos a posição jurídico-subjetiva de exigir seu direito a algo. Direito de exigir prestações (ações positivas) e abstenções (ações negativas) do Estado.
As ações negativas são subdivididas por Alexy em três grupos: o primeiro, de que o Estado não impeça ou obstaculize o exercício de um direito fundamental; o segundo, o direito de que o Estado não afete situações jurídicas ou propriedades dos indivíduos e o terceiro, o direito de que o Estado não elimine sua posição jurídica: uma vez conferido o direito fundamental ao cidadão, o Estado não pode derrogá-lo.
E os direitos fundamentais podem assumir a forma de direitos à prestação diante da omissão do Poder Público no exercício de controle do cumprimento dos direitos fundamentais.
Desse modo, podemos identificar o direito à saúde como um direito subjetivo a ações estatais positivas em nossa Constituição, sua estrutura se adéqua perfeitamente à de um direito fundamental.
No entanto a controvérsia quanto à caracterização dos direitos sociais como direitos fundamentais é antiga e está longe de encontrar solução única. Enquanto alguns autores sustentam a fundamentalidade de todas as prestações sociais positivadas na Constituição, independentemente de sua vinculação à dignidade da pessoa humana, outros negam a legitimidade de imposição de cumprimento destes pelo Judiciário[6].
Alguns autores, com base no direito germânico, elaboraram uma teoria denominada de mínimo existencial[7], que seria um mínimo necessário a que todo cidadão teria o direito de obter do Estado para uma existência digna.
Mas definir o que é o conteúdo do mínimo existencial é sempre tarefa difícil – mesmo diante de um caso concreto. No plano abstrato a missão torna-se ainda mais difícil, sendo divergentes as produções científicas que identificam quais seriam suas parcelas integrantes.
Barcellos chega ao mínimo existencial por meio de uma ponderação abstrata de normas, realizada antes do surgimento de um caso concreto, contribuindo de forma indelével para o debate. A ideia é antecipar os conflitos constitucionais com auxílio de situações hipotéticas, criando-se parâmetros para ajudar a orientar o aplicador da norma, ou seja, o gestor público[8].
Essa estrutura de pensamento permitiu à autora ponderar a dignidade humana e outros princípios constitucionais, tais como o princípio democrático e o da separação de poderes e direitos sociais chegando-se, como resultado, ao mínimo existencial.
A autora busca racionalmente um método capaz de equacionar essa questão, através da ponderação e conclui que o mínimo existencial é composto por quatro elementos, sendo três materiais e um instrumental. Sendo os três materiais o direito à educação fundamental, à saúde básica, à assistência aos desamparados e o acesso à justiça seria o direito instrumental capaz de concretizá-los em caso de mora do Estado.
Perlingeiro nos ensina que a reserva do possível pode ser compreendida como restrições ou limitações a um mínimo existencial (até um mínimo) de direitos fundamentais originários. Portanto, é apenas fora do âmbito de proteção desse mínimo – inegociável no debate politico – que os limites ou restrições se justificam constitucionalmente quando e enquanto não houver orçamento, ou politicas públicas que o compreenda, indicando democraticamente quais prestações sociais devem ser suportadas pela sociedade.[9]
E acrescenta o citado autor que nem sempre é fácil a compreensão do mínimo existencial, que pode ser associado a uma ponderação de fatores subjetivos e objetivos. Citando um precedente do Tribunal Constitucional alemão, Perlingeiro traz ao debato uma jurisprudência daquele país cujo entendimento é o de que os cidadãos têm direito as condições mínimas indispensáveis as suas existências físicas, mas essas condições mínimas devem corresponder ao nível de desenvolvimento da comunidade e das condições de vida existentes……[10]
No entanto, o debate sobre a judicialização da saúde se insere em um contexto maior no qual se discute a legitimidade do controle judicial dos atos da Administração Pública. Por esse motivo, para bem compreender o tema do presente trabalho, é fundamental analisar o controle judicial da atividade administrativa.
Hodiernamente cabe ao Estado/Juiz a primazia na tutela dos direitos fundamentais, uma vez constatando-se que a garantia desses depende de um efetivo acesso à justiça. É necessário permitir ao cidadão ter acesso aos tribunais para pleitear prestações inadimplidas pela Administração Pública. Isso conduz o próprio acesso à justiça ao status de direito fundamental. Sem ele, não há como se reconhecer a existência efetiva de qualquer outro direito.
No Brasil, o acesso à justiça, em seu conteúdo formal, é garantido no sistema constitucional pela inafastabilidade do controle jurisdicional, positivada no art. 5º, XXXV da Constituição da República (CRFB), segundo o qual a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário a lesão ou ameaça de lesão a direito.
Não escapam à apreciação do Poder Judiciário, nem mesmo, os conflitos travados entre o Estado (Administração Pública) e o indivíduo (administrado). Aliás, em um Estado de Direito, essas relações entre a Administração Pública e o cidadão assumem grande importância, pois ambas as partes estão submetidas a uma disciplina normativa restritiva de sua atuação. Não apenas o cidadão tem a sua liberdade limitada pelo ordenamento jurídico, como a Administração encontra limites para o seu atuar, devendo obediência à lei (princípio da legalidade), além de normas não positivadas, e, sobretudo, à Constituição e aos direitos fundamentais. A ultrapassagem de tais limites causa, em regra, lesão a direito subjetivo público do cidadão, ou a direitos transindividuais, cabendo ao Judiciário, quando provocado, solucionar esse conflito[11].
A construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I da Constituição Brasileira), a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais (art. 3º, II da Constituição Brasileira) e a promoção do bem de todos (art. 3º, IV da Constituição Brasileira) passam a ser os objetivos fundamentais do Estado que, para cumpri-los, torna-se devedor de direitos subjetivos públicos, os quais não se restringem a instrumentos de limitação da atuação estatal (liberdades públicas), mas também exigem prestações estatais positivas. Surgem, assim, direitos econômicos e sociais, dos quais os indivíduos se tornam credores do Poder Público.
O direito fundamental à saúde integra o mínimo existencial e este pode ser exigido judicialmente, não podendo ser restringido pelos outros poderes constituídos. Isso significa que em caso de ofensa a direito fundamental, a discricionariedade legislativa e administrativa é reduzida e passa a se submeter ao controle judicial[12].
O sistema judicial brasileiro costuma deferir as tutelas que versam sobre prestações de fornecimento de medicamentos e tratamentos médicos, não considerando, ou considerando pouco, o planejamento e orçamento realizado pelos gestores públicos. Isto, por si só, é um entrave ao pleno funcionamento do sistema.
Como bem observa Perlingeiro, no sistema judicial monista como o nosso em que a especialização do judiciário em direito administrativo é ocasional e atualmente nula em direito da saúde, os juízes necessitam estar atentos à intensidade da sua jurisdição sobre a margem de apreciação administrativa técnico-cientifica[……] É bom lembrar que a ausência de uma decisão de qualidade pela administração pode fragilizar o Estado de Direito porque os juízes nem sempre detêm especialização suficiente e capacidade cognitiva para exercer um controle efetivo sobre a prova técnica acerca da eficiência, da segurança, efetividade e custo-efetividade da atenção à saúde requerida.[13]
Uma breve análise da jurisprudência, no período de janeiro a julho de 2012, é reveladora. No Superior Tribunal de Justiça, de 56 acórdãos pesquisados, 49eram favoráveis à pretensão de fornecimento de remédios ou outros tratamentos. A mesma pesquisa no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (que engloba os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo), foram encontrados 87 acórdãos favoráveis aos pedidos dos pacientes e apenas nove, negaram[14]. No sitio eletrônico Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, foram encontradas mais de trezentos processos somente no ano 2012 versando sobre o tema fornecimento de medicamentos e tratamentos de saúde pelo SUS[15].
O excesso de demandas judiciais no país esta inegavelmente associado as causas de interesse público: do total de 92 milhões em tramitação em 2012, ao menos 40 % são referentes a execuções fiscais. Deste panorama, destaco o não menos expressivo quadro das demandas judiciais sobre assistência à saúde pública: perante a Justiça Federal e a Justiça Estadual, entre 2010 e 2014, o numero de ações judiciais em curso quadriplicou, de 100.000 para 400.000 demandas aproximadamente. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Rio de Janeiro, até junho de 2014, a Justiça Estadual como encarregada de processar aproximadamente 46.000 ações sobre assistência terapêutica.[16]
Em pesquisa no sitio do Supremo Tribunal Federal (STF), identificaram-se quatorze decisões monocráticas – todas favoráveis aos cidadãos – contra apenas duas que denegaram os pedidos. É recorrente, quase sempre, a mesma fundamentação jurídica para se deferir ou não a tutela[17].
Entre as decisões do STF foram localizados dois precedentes favoráveis à Administração Pública, ao suspenderem decisões judiciais que haviam determinado o fornecimento de medicamentos. Entretanto, essa tendência jurisprudencial não se confirmou em decisões posteriores. No entanto, é inquestionável o aumento do peso de um dos argumentos das defesas fazendárias: o impacto das decisões judiciais nos orçamentos públicos. Embora o STF – exceto nas duas situações já citadas – confira maior peso ao direito à saúde dos postulantes do que ao equilíbrio orçamentário, a corte passou a enfrentar o assunto com maior preocupação de fundamentação.
A preocupação com as repercussões das decisões judiciais na esfera orçamentária da Administração Pública, no que tange a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos e tratamentos não previstos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), passou a ganhar atenção do STF após a audiência pública realizada entre abril e maio de 2009, quando, durante seis dias, ouviram-se especialistas de diversas áreas a respeito da judicialização da saúde no próprio STF por iniciativa do seu presidente há época, o Ministro Gilmar Mendes.
Entretanto, apesar desse marco, as demandas versando a respeito de prestações de saúde (medicamentos e tratamentos) continuam em sua grande maioria favoráveis aos cidadãos. E isto é aceitável. Pois, não se pode olvidar que atrás da toga existe um ser humano com seus valores, visão de mundo e tudo mais, em que pese o seu dever de imparcialidade, é muito difícil exigir que um magistrado, em um caso concreto, não defira o pedido por um medicamento ou tratamento em que o parecer médico ateste caso de vida ou morte.
Entretanto, o que se questiona é, são os juízes os melhores técnicos para determinar a Administração Pública o fornecimento de medicamentos, ou tratamentos constante ou não na tabela do SUS?
O poder executivo conta com especialistas que detêm a expertise na área, conhecimento este que falta ao judiciário, em regra, e, portanto, tem que ser sopesado, a bem do funcionamento da Administração Pública, toda decisão que impor ao Estado a prestação de serviços de saúde não previstos pelo SUS.
Todavia, estando o poder público em omissão, abre-se espaço para a intervenção do judiciário quando demandado. Pois, na verdade, não se trata de intromissão do Judiciário na competência da Administração, e sim, uma correção desta omissão a um direito fundamental, perpetrada pela própria Administração Pública.
A melhor maneira de resolver esse problema é a junção de esforços entre os poderes na busca de equalizar todo o sistema de saúde, ou seja, as demandas que chegam reiteradamente ao Poder Judiciário requerendo remédios e tratamentos da Administração Pública não constante na tabela do SUS, deveriam ser informadas aos gestores desta área para que estes analisassem a viabilidade de inclusão destes insumos e procedimentos, em um período breve, na tabela RENAME e RENASES. Poupar-se-ia tempo e dinheiro público e ainda haveria contribuição para o aperfeiçoamento da gestão pública.
Perlingeiro bem observa que é tempo de iniciarmos uma reflexão a respeito de modo que Administração Pública aumente a sua credibilidade e deixe de prosseguir aguardando comodamente uma manifestação judicial para o reconhecimento de direitos.[18]
E acrescenta o referido autor que devemos considerar a viabilidade, perante ao SUS, de duas diretrizes básicas que vão ao encontro do direito administrativo contemporâneo, tanto do ponto de vista dos procedimentos administrativos ( das funções primarias da Administração, também denominadas “funções meramente executivas”), quanto do ponto de vista dos processos administrativos ( ou seja, das funções jurisdicionais da própria Administração, destinadas à solução extrajudicial de conflitos).
A primeira delas diz respeito à qualificação técnica das decisões administrativas. O procedimento administrativo e o processo administrativo precisam ser conduzidos por autoridades integradas por uma equipe com formação interdisciplinar (saúde pública, especialidade clinica e direito). A segunda, diretriz a ser considera junto ao SUS a de que as decisões proferidas em um processo administrativo devem estar próximas – o quanto possível – das garantias do due processo of law, aí incluídas a previsão da conciliação e da mediação, bem como a existência de autoridades decisórias dotadas de imparcialidade e de certa dose de independência.[19]
Vale citar, como experiência incipiente nessa direção, a CONITEC, Comissão Nacional de Incorporação de tecnologia no SUS, instituída pela Lei.12.401/11, como órgão de assessoramento do Ministério da Saúde para incorporação de novas tecnologias diante do SUS; e a câmara técnica destinada à solução de conflitos em matéria de saúde, no Rio de Janeiro, da qual participam representantes da secretarias de saúde, advogados do Estado e defensores públicos.[20]
Com a finalidade de contribuir para a tomada de decisão dos magistrados, a CONITEC elabora fichas técnicas com informações simples e claras sobre medicamentos e produtos para a saúde, que são caracterizados, entre outros atributos, quanto à disponibilidade no SUS; à avaliação pela CONITEC; ao custo de tratamento; à existência de alternativas no sistema público de saúde e à disponibilidade de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para a situação clínica relacionada. A ideia é disponibilizar periodicamente em seu portal fichas com as informações sobre tecnologias em saúde mais demandadas à CONITEC pelos operadores do Direito e atualizá-las de forma sistemática, de acordo com as alterações que possam ocorrer em cada um dos seus itens.[21]
Outros mecanismos importantes de incorporação e atualização de serviços, ações e insumos na saúde pública são a Relação Nacional de Ações e Serviços em Saúde (RENASES) e a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).
O RENAME contempla os medicamentos e insumos disponibilizados no SUS por meio do Componente Básico da Assistência Farmacêutica, Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica, Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, além de determinados medicamentos de uso hospitalar. O Brasil elabora listas oficiais de medicamentos desde 1964, antes mesmo da recomendação e da publicação da lista modelo de medicamentos feita pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1978. Inicialmente, as atualizações foram realizadas pela Central de Medicamentos (CEME), que a partir da versão elaborada em 1975 passou a receber a denominação de Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME).[22]
É importante mencionar os avanços trazidos pela Lei nº 12.401, de 28 de abril de 2011 que altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, estabelecendo a assistência terapêutica integral, que consiste na dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou, no caso destes não estarem disponíveis, com base nas relações de medicamentos instituídas pelo gestor federal do SUS. Acerca da incorporação, exclusão ou alteração pelo SUS de medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, a referida Lei estabelece que o Ministério da Saúde seja assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC).
O Ministério da Saúde publicou a Portaria MS/GM nº 841, de 2 de maio de 2012, que estabelece a Relação Nacional de Ações e Serviços de Saúde (RENASES) no âmbito do SUS. As ações e serviços descritos na RENASES contemplam, de forma agregada, toda a Tabela de Procedimentos, Órteses, Próteses e Medicamentos do (SUS). A RENASES 2012 foi elaborada a partir das definições do Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011 e estruturada de acordo com a Resolução nº 2/CIT, de 17 de janeiro de 2012.[23]
As inclusões, exclusões e alterações de ações e serviços da RENASES serão realizadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Os Estados e Municípios deverão submeter à CONITEC os pedidos de incorporação e alteração de tecnologias em saúde, para complementar a RENASES no âmbito estadual ou municipal.
De acordo com a portaria 841, de 02 de maio de 2012, a RENASES está estruturada de forma que sejam expressos a organização dos serviços e o atendimento da integralidade do cuidado. Estabelece a referida portaria que:
“Art. 4º As atualizações da (RENASES) ocorrerão por inclusão, exclusão e alteração de ações e serviços, de forma contínua e oportuna.
§ 1º As inclusões, exclusões e alterações de ações e serviços da RENASES serão realizadas de acordo com regulamento específico da subcomissão da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), que deverá prever as rotinas de solicitação, análise, decisão e publicização, conforme o Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011, que dispõe sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
§ 2º Caberá ao Ministério da Saúde conduzir o processo de atualizações de ações e serviços da RENASES, conforme estabelecido pelos art. 19-Q e 19-R da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990.
§ 3º A cada 2 (dois) anos, o Ministério da Saúde consolidará e publicará as atualizações da (RENASES).
Art. 5º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão adotar relações complementares de ações e serviços de saúde, sempre em consonância com o previsto na (RENASES), respeitadas as responsabilidades de cada ente federado pelo seu financiamento e de acordo com o pactuado nas Comissões Intergestores.
§ 1º Compreende-se por complementar a inclusão de ações e serviços que não constam da RENASES.
§ 2º O padrão a ser observado para a elaboração de relações de ações e serviços complementares será sempre a (RENASES), devendo observar os mesmos princípios, critérios e requisitos na sua elaboração.
§ 3º Os Estados e Municípios deverão submeter à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde (CONITEC) os pedidos de incorporação e alteração de tecnologias em saúde, para complementar a (RENASES) no âmbito estadual ou municipal.”
Neste cenário, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), composto por União, Estados e Municípios é marcada pela descentralização e hierarquia. Este novo formato da rede de atenção à saúde gera desafios para a Federação, pois estabelece uma inédita dinâmica de trabalho entre as três esferas.
O atual federalismo brasileiro oferece uma divisão de poder que se caracteriza pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (Constituição da República – CRFB, art. 1º), dando origem a uma administração político-administrativa composta de três esferas autônomas: federal, estadual e municipal, além da distrital, consubstanciada em uma mescla das demais (CRFB, art. 18)[24].
A constituição de 1988 parece apontar para uma nova espécie de Federação, a cooperativa[25]. Encontram-se sinais da intenção do constituinte de introduzir o federalismo cooperativo no Brasil nos do art. 23,§Ù e no art. 241 da CFRB[26].
A centralização das políticas de saúde sempre foi a maneira de gestão implementada pelo poder público desde o Império, até a República. Isto foi rompido com a Constituição da República de 1988, que incluiu entre as atribuições dos Municípios a prestação de serviços de atendimento à saúde da população, com a cooperação técnica e financeira da União e dos Estados (CRFB, art. 30, VII). Trata-se de regra inspirada no princípio da descentralização, valorizando o papel dos entes federados, especialmente daqueles mais próximos da população, os Municípios.
A acertada previsão permite uma aproximação da comunidade com as instâncias decisórias, estimulando a sua participação nos debates, em perfeita harmonia com o art. 198, III, da CRFB. Isso porque a gestão descentralizada é capaz de focar as especificidades de cada região e de desconstruir, ao menos parcialmente, a distância existente entre o cidadão e o gestor público[27].
Os Municípios foram erigidos ao posto de principais executores das ações e serviços públicos de saúde, concretizando um ideário do movimento sanitarista, que na IX Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1992, elegeu o seguinte tema central: “Saúde: municipalização é o caminho[28]”.
O município atende às exigências da descentralização insculpidas na Constituição Federal, funcionando como instância tangencial entre a sociedade e o Poder Público. Esse equilíbrio entre descentralização e municipalização é o que deve ser perseguido pelos gestores públicos[29].
Entretanto, apesar da descentralização e especialmente a municipalização, ser apontada como o caminho a ser seguido, não se pode ter a ilusão de enxergá-la como a panaceia para todos os problemas da saúde pública brasileira. As especificidades de cada município do país são um grande desafio aos gestores públicos.
Estas enormes desigualdades em diversos campos, tais como: econômico, políticos, infraestrutura, orçamentária, cultural e de conhecimentos técnicos dificultam, ainda mais, o aprimoramento do sistema de saúde como um todo. Sobrecarregando, por muitas vezes, os municípios que estão mais bem estruturados pela absorção de clientela oriunda de municípios vizinhos menos estruturados[30].
Destarte, a busca pela eficiência, efetividade e eficácia nas políticas púbicas de saúde devem ser norteadas de forma objetiva e concentrar os esforços de todos os atores envolvidos na gestão e planejamento dos serviços de saúde.
BUCCI entende política pública como um
“programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados”[31].
Em nosso país, o grande número de competências comuns entre União, Estados e Municípios indica que o constituinte perquiriu a comunhão de esforços para obtenção de resultados como o cuidado com a saúde (art. 23, II), a preservação do meio-ambiente (art.23, VI) e o combate à pobreza (art. 23, X). Sendo assim, ao invés de competirem pelo aumento ou diminuição de suas atribuições, cada um deve oferecer o melhor ao seu alcance para a conquista desses ideais[32].
O federalismo cooperativo busca substituir a competição entre as unidades federadas pela cooperação em prol de um objetivo comum. Sendo assim, todos os entes devem interagir, contribuindo um com o outro para o alcance dos objetivos estatais.
Diante das enormes diferenças entre as capacidades de unidades federadas implantarem políticas públicas, a busca pela cooperação entre os entes federados e os poderes da república torna-se ainda mais fundamental. Não é por outro motivo que a sua ausência é apontada como uma das causas da não consolidação prática do federalismo cooperativo brasileiro[33].
A saúde é uma das poucas áreas de atuação do Estado em que se observa a implantação efetiva de uma atuação federativa cooperativa, com a criação de instrumentos que permitem, a todas as unidades federadas, a participação na elaboração e no acompanhamento das políticas públicas, sob a coordenação da União.
As leis federais estabelecem normas gerais sobre o Sistema Único de Saúde e distribuem as atribuições entre as direções nacional, estaduais e municipais (Lei 8.080/90, arts. 16 a 18). A legislação federal prevê, ainda, a existência de um conselho de saúde e uma conferência de saúde em cada esfera de governo. As conferências, compostas por representantes de vários segmentos sociais, reúnem-se a cada quatro anos para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde (Lei 8.142/90, art. 1º, § 1º).
Já os conselhos, que possuem caráter permanente e deliberativo e são compostos por representantes do governo, dos prestadores de serviços, dos profissionais de saúde e dos usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde (Lei 8.142/90, art. 1º, § 2º).
No âmbito nacional, o Conselho de Saúde (CNS) é integrado também pelo Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS) e pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS) (Lei 8.142/90, art. 1º, § 3º). A dinâmica construída pelo legislador permite que Estados e Municípios participem do processo de elaboração de políticas nacionais de saúde e do controle de sua execução. Assim, Estados e Municípios contribuem na formulação das políticas de âmbito nacional, em uma relação de colaboração.
Nota-se, portanto, que a intenção do constituinte é que União, Estados e Municípios – cabendo a esse último por estar mais próximo ao cidadão a prestação de serviços de saúde a população, prioritariamente, com auxilio daqueles – cooperem entre si buscando o constante aperfeiçoamento do sistema público de saúde.
Essa cooperação deve ocorrer por cima – entre os entes federativos – e também por baixo, entre os vários órgãos, entidades e instituições que compõem o poder púbico, ou seja, Ministério da Saúde, Secretarias (municipais e estaduais) de saúde, Ministérios Públicos, Defensorias e o Judiciário.
As informações sobre ações requerendo remédios, procedimentos e internações pela via judicial devem ser compartilhadas por todos, e a busca pelo equilíbrio do sistema deve ser a meta. A concentração de esforços, trocas de informações qualitativas e quantitativas entre as instituições envolvidas pode nos ajudar a dejusdicializar, ou pelo menos mitigar, as politicas públicas de saúde.
CONCLUSÃO.
A Constituição Federal de 1988, elevou o direito à saúde a condição de um Direito Fundamental. Sendo assim, com o amadurecimento de nossa democracia esse direito subjetivo passou a ser demandado, em uma escala geométrica, pela via judicial, tanto por falhas nas prestações desses serviços, quanto por omissões da Administração Pública.
Buscar métodos eficazes que tornem o sistema de saúde eficiente com uma real cooperação entre os entes federativos, seus órgãos e entidades, o judiciário, o ministério publico e a defensoria, nos parece ser um caminho viável que pode nos levar a uma desjudicialização da saúde.
Para tanto, essa comunicação entre as instituições envolvidas têm que ser continua e perene. Os dados quantitativos, qualitativos e estatísticos sobre as demandas judiciais devem servir de subsídios para os gestores públicos na elaboração, planejamento e aplicação nas politicas públicas de saúde. A troca dessas informações podem auxiliar os gestores em saúde a se antecipar a uma possível demanda judicial por um medicamento, por exemplo. Ou mesmo, subsidiar o Poder Judiciário em certas demandas por medicamentos ou tratamentos.
Advogado. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
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