Direito Constitucional

Judicialização das Políticas Públicas: Consequencialismo e Expansão da Autoridade Judicial

Daniele Castanharo – Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Público pela Faculdade Futura. Email: danielecastanharo@gmail.com.

Resumo: O artigo trata dos riscos sistêmicos da judicialização das políticas públicas. Pretende-se construir a linha cronológica do papel do juiz na sociedade moderna ocidental. Menciona-se as causas e os conflitos gerados pela judicialização de direitos sociais e o ativismo judicial. Faz-se uma breve exposição sobre as críticas doutrinárias de cunho democrático sobre o aumento do poder judicial sobre políticas públicas. Uma vez compreendidos esses argumentos, parte-se para a construção de parâmetros objetivos e realistas para a atuação jurisdicional. Tema esse que está em evolução na cultura jurídica. Objetiva-se a máxima efetividade dos direitos sociais, por meios legítimos e racionais. Concluiu-se pela possibilidade da judicialização de questões eminentemente políticas, de forma subsidiária, com deferência ao legislador e administrador, observando esses parâmetros.

Palavras-chave: Direito Público. Políticas Públicas. Judicialização. Consequencialismo. Críticas.

 

Abstract: The article deals with the systemic risks of the judicialization of public policies. It is intended to build the chronological line of judge’s role in modern western society. The causes and conflicts generated by the judicialization of social rights and judicial activism are mentioned. A brief presentation is made of the democratic doctrinal criticism of the increase in judicial power over public policy. Once these arguments are understood, we proceed to the construction of objective and realistic parameters for jurisdictional action. This theme is evolving in the legal culture. The aim is the maximum effectiveness of social rights, by legitimate and rational means. It was concluded that the possibility of judicializing eminently political issues, in a subsidiary way, with deference to the legislator and administrator, observing these parameters.

Keywords: Public law. Public policies. Judicialization. Consequentialism. Criticism.

 

Sumário: Introdução. 1. Histórico de inversão dos poderes. 2. Judicialização e substancialismo. 3. Críticas e posições jurídicas para a judicialização das políticas públicas. 4. parâmetros pragmáticos. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Este trabalho está dividido em quatro partes principais. Na primeira, verifica-se a ascensão holística do judiciário até a inversão dos poderes que se tem hoje. Para isso, ancora-se no que já se conhece acerca das dimensões dos direitos fundamentais para então chegar-se a premissas menos convencionais.

A segunda parte é dedicada a refletir sobre o fenômeno e suas causas. Na terceira, trata-se da judicialização das políticas públicas e do ativismo judicial e os impactos negativos dessa expansão jurisdicional no orçamento público e na vida em comunidade. Porém, não sem contextualizar as suas origens nas visões tradicionais da postura procedimental do juiz, ora proativo, ora modesto e autocontido.

A última traz parâmetros objetivos colacionados pela jurisprudência e pelo legislador, com base nas teorias pragmáticas do direito, para a atuação dos órgãos judiciais. O pano de fundo deste trabalho é a constitucionalização dos direitos sociais, fazendo da Constituição o elo entre os mundos político e jurídico.

 

  1. HISTÓRICO DE INVERSÃO DOS PODERES

A concretização das políticas públicas, vinculadas ou não aos direitos sociais, passa pela necessária ancoragem no que já se conhece sobre o papel do juiz na história ocidental moderna.

Faz-se então uma breve digressão histórica, mas não de todo genérica, aportando no que convencionou chamar de dimensões de direitos fundamentais para então construir argumentativamente a nova conjuntura fática e teórica.

O Estado Moderno nasce absolutista. A concepção de soberania estatal, tendo como elementos da natureza essencial o povo, território, finalidade, governo e soberania propriamente dita, figura como fenômeno recente da história. A ideia de Estados nacionais soberanos surge no absolutismo. Neste contexto, ainda pré-revolução francesa (1789), as funções do Estado concentravam-se na figura do rei, que justificava sua força na necessidade de manter o pacto social e a existência do Estado (o Estado sou eu, teria dito o rei Luiz IV).

No século XIX surge o próximo tópico de relevo, no qual marca-se a primeira dimensão dos direitos fundamentais. Com algum consenso na doutrina (SARLET, 2018, p. 331-332) refere-se às liberdades individuais mais básicas. O Estado é polícia, garantidor da propriedade individual e da mão invisível do mercado. As funções do Estado gendarme existem, mas são mínimas e distribuídas em “poderes”, não havendo preocupação com os bens ambientais ou atuação na economia.

Nessa fase, o papel do juiz é delineado por Ilan Presser (2019):

 

“(…) O juiz é oráculo, como menciona o jurista francês Antoine Garapon, é o “boca da lei”. Ele é afastado da comunidade onde atua e não é atento aos efeitos colaterais da decisão. Olha para trás (dentro do seu gabinete) e diz quem está certo ou errado. Sua função é meramente subsuntiva, afinal a lei já tem a aspiração a tratar de todos os comportamentos.”

 

A lei a que Presser se refere é especialmente o Código Napoleônico, que aqui sem grandes aprofundamentos, pois desnecessários ao intuito desta obra, visava a completude, isto é, a regular todas as relações jurídicas.

No século XX, do ponto de vista histórico, a revolução industrial e consequentes insurreições proletárias, bem como a primeira guerra mundial, culminaram na elaboração da Constituição de Weimar de 1919 e Constituição mexicana de 1917 (MORAES, 2018, p. 38).

Do ponto de vista social, a compreensão de Estado mudou, deixava de ser o inimigo dos direitos, aquele que deveria se abster, e passou a ter um papel de proteção, para evitar a afronta de terceiros indivíduos. Mais do que isso, tendo em vista que deixar o mercado seguir suas regras intrínsecas não funcionou e causou inúmeras desigualdades, longe de qualquer equilíbrio, o Estado foi chamado a atuar na economia e a assumir uma posição proativa de efetivo fornecimento de direitos, como moradia, saúde e educação.

Está-se a falar dos direitos sociais, econômicos e culturais, característicos da segunda dimensão.

No Brasil, tem-se a Constituição de 1934.

Surge a primeira reação ao positivismo, desta vez com Hans Kelsen e sua batalha para que o direito fosse reconhecido como ciência autônoma, dotada de objeto e métodos próprios. Neste momento ainda há a pretensão de que o Código seja completo, mas admite-se a existência de lacunas, que serão preenchidas por princípios, concretizados em direitos positivos, como se viu no aspecto social.

A máquina pública se organiza para prestar serviços. O Estado volta-se para si mesmo. Há a profissionalização, a ideia de carreira, a hierarquia funcional, a impessoalidade, o formalismo. O Poder executivo é o responsável pela concretização dos textos normativos.

Sobre o papel do juiz nesse contexto, Ilan Presser (2019) dispõe: “(…) O Juiz é um trabalhador social. Recebe, e tem que ter metas quantitativas. Controle pertinente a administração pública burocrática.”

Como último marco evolutivo, menciona-se o momento pós horrores do nazismo, em que se tenta evitar a reprodução desses acontecimentos. A lei rígida não é suficiente, afinal foi permissiva desses eventos. Foi preciso que as nações estabelecessem princípios que assumissem “função central, ou seja, influenciam a criação, interpretação e aplicação do Direito, em uma escala móvel de valores” (Presser, 2019).

Barroso (2018, p. 232) ainda esclarece:

 

O Estado constitucional de direito se consolida, na Europa continental, a partir do final da II Guerra Mundial. Até então, vigorava um modelo identificado, por vezes, como Estado legislativo de direito (…). Nesse ambiente, vigorava a centralidade da lei e a supremacia do parlamento. No Estado constitucional de direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica. A partir daí, ela não apenas disciplina o modo de produção das leis e atos normativos, como estabelece determinados limites para o seu conteúdo, além de impor deveres de atuação ao Estado. Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia judicial”.

 

E não de repente, de uma função apática e de segundo plano, o Judiciário desponta como a última trincheira para garantia direitos.

A justiça é descentralizada, é momento de proximidade ou da participação da comunidade. O juiz realiza audiências públicas, inspeções judiciais. O juiz não olha mais para trás, como o juiz oráculo, mas para frente (função educativa da jurisdição, sinalizando como a comunidade deve atuar para evitar novas lides). (Presser, 2019).

Não se olvida de que o Judiciário tomou proporção avassaladora em seu leque de atuação. Afasta-se da noção divisão de poderes e aproxima-se da concentração de poderes, conforme José Afonso da Silva (2005, p. 108):

 

A divisão de poderes consiste em confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes, que tomam os nomes das respectivas funções, menos o Judiciário (órgão ou poder Legislativo, órgão ou poder Executivo e órgão ou poder Judiciário). Se as funções forem exercidas por um órgão apenas, tem-se concentração de poderes”.

 

Ora, praticamente qualquer tema pode ser judicializado, inclusive atos administrativos dotados de legitimidade e autoexecutoriedade, que implementam políticas públicas.

 

  1. JUDICIALIZAÇÃO E SUBSTANCIALISMO

Como conceitua Barroso (2018, p. 232-233), judicialização:

 

“(…) significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o Direito no mundo romano-germânico”.

 

Os mais diversos autores tentam analisar as causas do fenômeno. Segue-se aqui a linha defendida por Barroso, que dispõe ser a judicialização um fato e não uma decisão política.

Para isso, retoma-se a ideia das ondas renovatórias da justiça trazidas por Mauro Cappeletti (1988). Como medidas destinadas a corrigir distorções no acesso à justiça foram presenciadas três ondas, sendo que somente a primeira e a segunda interessam a este trabalho, pois a última visa solucionar os problemas gerados pelas primeiras, por meio da racionalização dos procedimentos.

Na primeira, houve a ampliação quantitativa de processos, e, por óbvio, de questões que chegam ao judiciário. Como? Por meio normas (sim, elaboradas pelo legislativo), que permitiram o acesso quase irrestrito ao judiciário para os hipossuficientes. Está-se a falar da assistência jurídica gratuita e isenção no pagamento de custas etc. Na segunda, diversos diplomas, como a Lei Ação Popular, em 1965, a Lei da Ação Civil Pública, e a própria Constituição de 1988 reestruturaram órgãos e criaram institutos para recepcionar a tutela de direitos difusos e coletivos. (Capelleti, 1988).

Com isso, a doutrina aponta o próprio crescimento do judiciário como instituição mais próxima da comunidade como uma causa da judicialização. Além disso, mencionam a crime de representatividade dos outros poderes. Assim, o judiciário tomou um espaço de decisão política deixado pelo legislativo e executivo, até mesmo com a anuência deles.

 

Há causas de naturezas diversas para o fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais (…). A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. Com isso, evitam o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos, como uniões homoafetivas, interrupção de gestação ou demarcação de terras indígenas. No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior, em razão da constitucionalização abrangente e analítica – constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal por via de ações diretas.” (BARROSO, 2018, p. 233)

 

Estabelecido o conceito e as possíveis causas da inversão de instâncias no debate de questões jurídico-políticas, cabe dizer que ao passo em que a judicialização é um fato em nossa cultura jurídica, o ativismo é uma conduta de determinados juízes.

Sobre ativismo judicial, leciona Maria Sylvia Zanella di Pietro (2019, p. 1668):

 

(…) significa interferência indevida nas atribuições dos demais Poderes do Estado e, em consequência, infringência ao princípio da separação de poderes. Isso sem falar na insegurança jurídica que essa atuação ilegítima acarreta. O Judiciário não tem funções de planejamento, não tem competência em matéria de destinação de recursos orçamentários; ele não pode determinar à Administração que transfira recursos de uma dotação para outra, pois, se o fizer, estará se substituindo ao legislador. O Judiciário é intérprete e aplicador da lei e não pode decidir contra ela, a menos que declare a sua inconstitucionalidade”.

 

É um agir proativo, em busca de aplicar sua própria noção de justiça a questões decididas de forma contrária em âmbito legislativo ou administrativo. E aqui reside a armadilha à separação de poderes.

A judicialização, (…), é um fato, uma circunstância do desenho institucional brasileiro. Já o ativismo é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (…) Todas essas hipóteses distanciam juízes e tribunais de sua função típica de aplicação do Direito vigente e os aproximam de uma função que mais se assemelha à de criação do próprio Direito.” (BARROSO, 2018, p. 234)

Essa parte da magistratura, na qual o Supremo se incluiu algumas vezes, parte da noção de substancialismo no processo. Isto é, creditam suas decisões a valores supralegais e fundantes de uma democracia, como justiça, liberdade e igualdade. Entendem que os atos administrativos e leis em geral podem ser controladas com base nesses princípios dotados de alta carga valorativa.

Como a base da separação dos poderes são os freios e contrapesos, isto é, os órgãos de cada poder atuam até encontrarem uma barreira à sua atuação frente as competências de outro poder. Ao mesmo tempo em que há controle recíproco entre eles. Existe sempre um limite de tensão, que tende a manter o equilíbrio que garante o bom funcionamento do Estado. É na inércia do legislador que a jurisdição constitucional proativa avança para além de suas fronteiras naturais.

 

  1. CRÍTICAS E POSIÇÕES JURÍDICAS PARA A JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Sem pretensão de diminuir o papel do judiciário para a consecução de direitos fundamentais, para a limitação dos desmandos políticos e concretização de valores expressos na Constituição, passa-se a refletir sobre as principais críticas que essa atuação proativa vêm recebendo da doutrina.

Primeiro, a função típica do poder legislativo é compactar e promover o entendimento das diversas facções sociais que constituem o povo brasileiro. Logo, é uma função majoritária, a representação das escolhas da maioria. E disso decorrem duas reflexões: por um lado, há legitimação democrática na voz da maioria, por outro, uma minoria terá seus anseios rejeitados. Daí que ao dissentir de decisões políticas majoritárias, o julgador incorre em uma função contramajoritária, nadando contra a maré, sem base democrática que o justifique.

Afinal, trata-se de uma pessoa com crenças limitantes próprias, que foi aprovado em uma prova de concurso, por mais técnico e bem intencionado que seja. Por que sua ordem tem mais força do que a deliberação de quase 600 parlamentares eleitos?

E aqui estamos cuidando de situações limítrofes de colisões de direitos, sobre zonas cinzentas em que a depender do ônus argumentativo, várias opções decisórias seriam legítimas. Como exemplo a judicialização da saúde, construção de creches e presídios até disputa sobre terras indígenas, licenciamentos ambientais e políticas econômicas. Sobre isso, leciona Daniel Sarmento (2008, p. 558).

“(…) não é democraticamente legítimo, na medida em que permite a juízes – que não respondem politicamente perante o povo – interferir nas decisões adotadas por representantes populares sobre quais demandas e necessidades humanas priorizar nos gastos públicos, e sobre como equacioná-las adequadamente, num cenário marcado pela escassez de recursos. Os adversários da sindicabilidade dos direitos sociais aludem ao caráter antidemocrático da suposição de que uma elite de supostos sábios, com assento nos tribunais, teria condições de decidir melhor estas questões do que legisladores e administradores, que foram escolhidos pela própria população. Daí, afirmam que a tutela judicial dos direitos sociais implicaria transferir para o Judiciário um poder excessivamente amplo, para cujo exercício os juízes, além de não possuírem legitimidade, não estariam tecnicamente preparados.”

Em segundo lugar, a concretização de direitos sociais (educação, saúde, trabalho, moradia, segurança, assistência social, entre outros) depende de prestação positiva do Estado. É dizer o óbvio, a Constituição atribuiu robustas funções prestacionistas ao Estado, que invariavelmente perpassam pela disponibilidade orçamentária. E os recursos são finitos, há se concretizá-los na reserva do possível.

Percebe-se, pois, que a jurisprudência passa a ser um elemento estranho no orçamento consolidado. O administrador deve cumprir a determinação judicial, entregar o medicamento, realizar a cirurgia, ampliar as vagas em uma creche, construir casas populares, desapropriar terras rurais para reforma agrária, sem que, entretanto, haja previsão orçamentária para isso. Nem tão pouco disponibilidade de caixa.

Quando se elabora o orçamento, há a definição de prioridades fáticas, de acordo com o programa de governo atual. Ao executar uma decisão judicial, sob pena de duras sanções, o Estado tem que deslocar recursos de suas prévias escolhas políticas. Veja-se:

 

“(…) em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem “escolhas trágicas” pautadas por critérios de justiça social (macrojustiça). É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.“ (MENDES, BLANCO, 2018, p. 1026).

 

E o judiciário, na maioria das vezes, não tem condições de aferir as variáveis de sua decisão. Ele só consegue realizar a microjustiça. Aqui reside o quarto ponto.

 

(…) Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis podem recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.” (BARROSO, 2018, p. 236)

 

Em boa parte dos casos, não há instrumentos hábeis, nem vontade para visualizar o todo em perspectiva.

Há de se considerar que o ativismo, em muitos casos, além de não solucionar as problemática sociais, acaba por agravar a situação. Nesse sentido, destaca Di Pietro (2019, p. 1669).

 

Não existem condições de garantir nem o mínimo do mínimo existencial. Se todas as pessoas que vivem em situação de miséria fossem pleitear, perante o Judiciário, um teto para morar, alimentos, vestimenta, saúde, educação, não haveria recursos financeiros suficientes para atender a todos. É essa a razão pela qual o cumprimento dos direitos sociais exige prévia definição de políticas públicas. A interferência indevida do Judiciário, além de não resolver o problema, agrava a situação de desigualdade social e afronta o princípio da separação de poderes”.

 

O posicionamento oposto ao ativismo, também encartado pelo Supremo, é a autocontenção judicial, a posição de deferências pelas escolhas do legislativo e do executivo. Afinal, este possui órgãos técnicos e especializados para analisar os diversos fatores, como as agências reguladoras, o Banco Central etc.

Levando-se em consideração a doutrina Chenery, segundo ao qual “há hipóteses em que as decisões administrativas apresentam tamanho grau de sofisticação e de tecnicidade que, por ausência de igual expertise, não possui o Poder Judiciário qualquer possibilidade de impor a adoção de um entendimento diverso”. (Espíndola, 2019, p. 17), conclui-se que falta ao Judiciário capacidade institucional.

Segundo Barroso:

 

Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o árbitro mais qualificado, por falta de informação ou de conhecimento específico.” (BARROSO, 2018, p. 236)

 

Por fim, esse estado de coisas cultiva uma preguiça para o debate. Como dito alhures, o ambiente propício para o debate são as casas parlamentares e as audiências com os gestores. Esse aspecto fica bastante prejudicado, pois há um distanciamento entre essas classes e a comunidade. É muito mais prático propor uma ação judicial coletiva do que iniciar um projeto de lei com os requisitos constitucionais. Ainda, não há vinculação entre o conteúdo da vontade popular e o resultado final que sairá do Congresso.

Os indivíduos se afastam ou são afastados das suas atribuições de cidadãos, de retoricamente, fazer parte das escolhas trágicas, para resolver depois com o judiciário.

Nesse sentido, Barroso, grande norte deste trabalho:

 

Surge, assim, o perigo de se produzir uma apatia nas forças sociais, que passariam a ficar à espera de juízes providenciais. Na outra face da moeda, a transferência do debate público para o Judiciário traz uma dose excessiva de politização dos tribunais, dando lugar a paixões em um ambiente que deve ser presidido pela razão.” (BARROSO, 2018, p. 236)

 

  1. PARÂMETROS PRAGMÁTICOS

A judicialização é um fato. Para que seus efeitos sejam realistas e mais benéficos, o Supremo Tribunal Federal vem elencando parâmetros objetivos para interferência judicial em políticas públicas. O juiz, diante de políticas públicas legítimas, somente poderá reagir à decisão de outro poder, mediante fundamentação idônea.

Os critérios referem-se à proibição da evolução reacionária, isto é, vedação ao retrocesso social. Os direitos sociais, uma vez alcançados, passam a ser garantia institucional e direito subjetivo. Havendo lei que os tutele ou interpretação sedimentada e ratificada pelo Estado-administrador, se exige um ônus argumentativo muito mais elevado para que sejam restringidos.

E outrossim, traz como viés solucionador que a pedra de toque é a integridade e intangibilidade do núcleo consubstanciador do mínimo existencial. Ressalta-se a impossibilidade de invocação, pelo poder público, da cláusula da reserva do possível sempre que puder resultar, de sua aplicação, comprometimento do núcleo básico que qualifica o mínimo existencial.

Os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Haveria, assim, para utilizar expressão de Canaris, não apenas a proibição do excesso (Übermassverbote) mas também a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbote).” (MENDES, BRANCO, 2018, p. 1023).

Nos demais casos, o judiciário deve manter uma posição de deferência. Quando há espaço de conformação constitucionalmente legítimo ou questões de alta complexidade técnica. Como exemplo, no caso da ADPF 347 em que o STF (2015) decidiu pelo Estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, ele não determinou medidas concretas ao legislativa. Apenas desobstruiu os canais legítimos, isto é, autorizou o uso de recursos do fundo penitenciário para mudanças neste sistema, de acordo com a discricionariedade legislativa.

Além disso, o próprio legislador, com as alterações na parte final da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), inseriu no ordenamento aquilo que a teoria pragmatista do direito já abordava. O juiz deve olhar para fora da janela de seu gabinete e analisar os efeitos colaterais de suas decisões.

Apenas para arrematar, os critérios do consequencialismo resvalam na análise econômica do direito. As seguintes análises, pelo juiz, surtiriam efeitos pragmáticos: análise sobre o impacto financeiro das medidas concretas determinadas em suas decisões (quanto custa isto que ordeno); análise operacional, existe estrutura para isso, há tempo hábil, grau de atendimento ao público (é possível implementar o que determino nas condições que determino) e, por fim, a análise sócio comportamental (quais condutas são induzidas com a decisão).

Sem mais, percebe-se que tais parâmetros pragmáticos vêm sendo um norte para a correta construção da judicialização das políticas públicas. Desse modo:

 

[…] conquanto seja possível extrair da Constituição um indeclinável dever jurídico, a cargo do Estado, de fornecer as prestações materiais indispensáveis a uma vida digna aos que não têm condições de obtê-las por meios próprios, o legislador continua com o privilégio de especificar quais prestações são estas, o seu montante e o modo como serão realizadas. Cabe a ele, como órgão que exerce responsabilidade política sobre os gastos públicos, conformar as colisões que certamente ocorrerão com outros direitos e bens constitucionais, transformando o direito prima facie em direito definitivo. Porém, em matéria de mínimo existencial, o juiz também está legitimado a desempenhar essa função, embora de forma subsidiária, na falta, total ou parcial, do legislador ou do administrador” (CORDEIRO, 2013, p. 169-170).

 

CONCLUSÃO

Este estudo teve como objetivo, primordialmente, refletir sobre os perigos da expansão judicial sobre questões sociais constitucionalizadas, visando concretizar direitos sociais à sua própria maneira. Para isso, construiu-se a linha evolutiva do papel do juiz nas sociedades modernas e elencou-se algumas possíveis causas para o fenômeno.

Por fim, edificou-se parâmetros jurisprudenciais e legais da teoria pragmática moderna para que a judicialização das políticas públicas não tome proporções nocivas ao Estado. Concluiu-se, portanto, que usando os instrumentos teóricos mencionados, é possível amortecer o potencial desequilíbrio do ativismo, para que constrinja em sua faceta objetiva de judicialização. Assim, será possível garantir a força máxima dos direitos sociais.

 

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo – 7. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018, p. 231-255.

 

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Info 798).

 

CORDEIRO, Karine da Silva. Direitos fundamentais sociais: dignidade da pessoa humana e mínimo existencial, o papel do Poder Judiciário, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 169-170.

 

ESPÍNDOLA, Renata Carvalho. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Brasília, v. 42, n. 1, p. 10–22, jan/jun, 2019.

 

FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de direito econômico. 7. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 41-82.

 

MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de direito constitucional – 7. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional – 34. ed. – São Paulo : Atlas, 2018.

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. – 1. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015. – (Série IDP), p. 225-230 e 631-694.

 

PAES, Carolina Bastos Lima. A Judicialização dos Direitos Sociais: alguns parâmetros para a atuação do poder judiciário. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 15, n. 01, p. 53-92, jan./mar. 2016.

 

PIETRO, Maria Sylvia Zanella Di. Direito Administrativo. 32. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

 

PRESSER, Ilan. Curso Ênfase, Carreiras Federais: Direito ambiental. 01-31 de maio de 2019. Notas de Aula.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo – 25 ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

 

SOUZA NETO; Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direitos Sociais: fundamentos, judicialização e direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 

VALLE, Vanice Lírio do. Judicialização das políticas públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro. Disponível em: https://www.academia.edu/3333603/judicializa%c3%87%c3%83o_das_pol%c3%8dticas_p%c3%9ablicas_no_brasil_at%c3%89_onde_nos_podem_levar_as_asas_de_%c3%8dcaro. Acesso em 10/12/2019.

 

Âmbito Jurídico

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