Justiça de transição como evento global – convergências e particularidades de um fenômeno político-jurídico do século XX

Resumo: O presente artigo trata da Justiça transicional, como evento global, um fenômeno político-jurídico do século XX. As experiências em alguns países, discorrendo sobre suas diferenças, similaridades e fundamentos para a consecução da transição para um futuro democrático e pacífico, fundamentado na reconciliação nacional. Esta transição nem sempre se dá de forma linear, havendo períodos de estagnação e de progresso nas ações para reorganizar Estados em períodos pós-regimes ditatoriais/autoritários, não havendo método concreto para a transição completa nas diversas nações, sendo esta adaptada à história e cultura de um país, com seus atores favoráveis e contrários à memória, reparação, reformas estatais e a mais difícil de todas, o tratamento jurídico aos atos de violação aos direitos humanos.[1]

Palavras chave: justiça de transição, ditadura, democracia, anistia, direito à memória e à verdade.

Sumário: Introdução. 1. Justiça de transição no mundo. 2. Justiça de transição: experiências na Europa, África e Oriente Médio. 3. Justiça de transição: experiências na América. 4. Justiça de transição no Brasil. Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO

Quando iniciados os estudos sobre a justiça de transicional no mundo, depara-se com uma triste característica: a grande maioria, se não todas as nações, já passaram por regimes de exceção ou guerras fratricidas em suas próprias terras. Terminado o conflito, como seguir a diante? É possível dar justiça aos mortos, desaparecidos, torturados e familiares que sofrem de uma violência continuada, a violência do sentimento de impunidade e esquecimento? A justiça de transição tramita no estreito terreno entre a ciência política e o direito, como um bálsamo de esperança para aqueles que esperam pela verdade, a justiça e a verdade sobre os fatos históricos dos períodos de luta por democracia e igualdade.

De todas as formas, o grande legado nos países que se reorganizaram depois de períodos pós-regime de violações aos direitos humanos, é de que democracia e Estado de Direito tornam-se valores inegociáveis na construção de um futuro sem violações aos direitos humanos.

1. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO MUNDO

O termo Justiça de Transição, também chamado de Justiça Transicional, é convencionado como  área de atividade e pesquisa focada no período em que as sociedades se reorganizam pós-períodos ditatoriais/totalitários, lidando com as violações aos direitos humanos visando um futuro democrático e pacífico. Surgida no limite entre o direito e a ciência política,  conceito aplicado pelo Conselho de Segurança da ONU, que tem como prática quatro formas de lidar com o legado dos regimes ditatoriais: reforma/reconstrução das instituições democráticas, direito à memória à verdade, direito à reparação e o tratamento jurídico aos crimes cometidos no período. Conforme BICKFORD relata em sua obra:

“O conceito é comumente entendido como uma estrutura para confrontar um passadode abuso como um componente de uma importante política de transformação. Isso geralmente envolve uma combinação de estratégias complementares de justiça e ‘quase justiça’, tais como a persecução de perpetradores, estabelecimento de comissões de verdade e outras formas de investigação do passado; envidando esforços na busca de reconciliação em sociedades divididas, desenvolvendo um conjunto de reparações para aqueles que foram mais afetados pelas violações ou abusos; memorizando e relembrando as vítimas; e reformando um largo espectro de instituições arbitrárias do Estado (tais como as de segurança pública, polícia ou forças armadas) numa tentativa de prevenir futuras violações.”[2]

Esse “acerto de contas” com o passado marca a ruptura do modelo atual com o modelo anterior, que não compactuam com os mesmos princípios, dicotômicos, de modo que o novo venha a suprir as incoerências e delitos do antigo regime, e desta forma, garanta a estabilidade do novo através daqueles que ambicionam um novo regime e não compactuam mais com o antigo. CAMPOS dita:

“A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretaro presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou os seus polos de condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se supunha continuar a modelar-se pela sua imagem. O nosso sistema de referências continuou a ser o que fora calculado para um mundo de relações definidas ou constantes, mas nós nos vemos confrontados com uma realidade em que as posições não correspondem às fixadas na carta topográfica. O que chamamos de época de transição é exatamente esta época profundamente trágica, em que se torna agudo o conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração desconcertante.[3]

Gerações foram marcadas pelos períodos antidemocráticos no mundo, regimes de conflitos que cometeram as mais diversas atrocidades contra a humanidade, necessitando uma divisão entre os posicionamentos políticos, buscar responsabilizar culpados e encontrar formas de punir os responsáveis, dentro de uma sociedade em transição. Adicione ao problema o fato do novo poder Estatal ter que demonstrar à sociedade de que é diferente do último regime e que esse não é um ajuste de contas ou vingança, mas sim o custo para combater que a cultura da impunidade se estabeleça na história da nação.

A mudança de regime nos remete à uma série de problemas que não podem ser tratados meramente como uma ação de revanchismo contra os ex-detentores do poder. DIMITRI DIMIULIS exemplifica:

“São operações difíceis e controvertidas que obrigam os detentores do novo poder a explicar perante a sociedade, que inclui muitos adeptos do anterior regime por convicção e/ou interesse, porque pessoas ligadas ao poder anterior devem ser responsabilizadas. Dessa maneira, um problema eminentemente político (garantir a estabilidade do novo regime) torna-se jurídico (como sancionar de maneira juridicamente correta?) e filosófico (como justificar a responsabilização e punição de ex-detentores do poder?).[4]

As finalidades da Justiça de Transição são de satisfazer as vítimas da atuação arbitrária do Estado, através de reparações morais e materiais; pacificar a sociedade, através de medidas como anistia e indulto coletivo, eliminando conflitos, reconhecendo as ilicitudes do regime anterior, quando o Estado prefere abster as sanções baseado em compromisso; tomar medidas políticas de forma que os acontecimentos não mais se repitam, através de mudanças na estrutura do Estado e políticas de memória aos acontecimentos do passado, como forma de não deixar que os acontecimentos caiam no esquecimento e que venha à tona todos os acontecimentos do período e seus responsáveis, finalizando com pedido de desculpas formal por representantes do Estado. Assim segundo PAUL VAN ZYL[5]:

“É importante aceitar que há tensões entre paz e justiça no curto prazo e que em alguns casos difíceis é prudente e justificável adiar demandas da justiça visando obter o término das hostilidades ou a transição a uma ordem democrática. No entanto, esses reclamos da justiça não devem diferir indefinidamente, não só pelo efeito corrosivo que isso poderia ser sobre os esforços por construir uma paz sustentável, mas também porque fazê-lo significaria aumentar a grave injustiça que as vítimas já padeceram. As estratégias da justiça transicional devem fazer parte integral de qualquer esforço por construir uma paz sustentável, mas em algumas circunstâncias, é possível que a paz e que a justiça não sejam completamente compatíveis em curto prazo. No caso em que a justiça difira, devem fazer-se grandes esforços para assegurar que se mantenha a possibilidade de conseguir uma prestação de contas em médio ou longo prazo e que se implemente grande parte da agenda da justiça transicional em curto prazo.”

A reconstrução do modelo democrático em vários países foi uma reconstrução do século XX, tendo o conceito de justiça de Transição vindo do período de transição pós-Segunda Guerra Mundial, experiências autoritárias de países latinos, queda de regimes comunistas e o pós-colonialismo na Ásia e Africa, sendo desenvolvidas metodologias para tratar das lembranças de um passado de violência, na construção de nações democráticas, cada qual com seu tipo e sua especificidade, respeitando sua história e cultura. A maior vitória dessas transições em cada uma das nações foi de que hoje democracia e o Estado de Direito são valores indiscutíveis nesses países, talvez pela recente lembrança de que a ausência deses valores torna o Estado num poderoso inimigo contra campos da sociedade.

Nos diversos países que passaram pelos regimes autoritários, a justiça de transição foi implementada, cada qual em seu ritmo, tendo a flexibilidade necessária para garantir uma reconciliação nacional, objetivando um futuro democrático.

2. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: EXPERIÊNCIAS NA EUROPA, ÁFRICA E ORIENTE MÉDIO

Houve três ondas de justiça transicional e verdade na Europa: Na primeira, no período pós-Segunda Guerra, servindo como precedente das atividades de justiça transicional e verdade o Tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes cometidos pelos nazistas durante a guerra.

Na segunda onda, Grécia, Portugal e Espanha, cada qual com seu método. A Grécia julgou os militares do “regime dos coronéis”. Portugal adotou o saneamento em massa, tendo seus efeitos revistos posteriormente. Já a Espanha institucionalizou o esquecimento para a guerra civil e a ditadura de Franco como forma de reconciliação, visando a redemocratização nacional.

Na década de 90 veio a terceira onda, na Albânia, Eslováquia, Irlanda do Norte, Romênia, Polônia, Hungria, Bulgária e República Tcheca, com abertura de arquivos do Estado e julgamentos de militares e membros dos antigos regimes comunistas. Na Alemanha, iniciou a abertura dos arquivos da polícia secreta alemã (Stasi) para o público, iniciando a onda de busca pela verdade através da Comissão de Estudo Alemã e a Autoridade Gauck. As políticas de compensação, memória e verdade foram do período comunista à Segunda Guerra.

Na África, na Etiópia, Burundi, Serra Leoa,, Ruanda, Gana, República da África Central, Quênia, Chade, Costa do Marfim, Congo, Libéria, Sudão, Uganda, Zimbague, Nigéria e África do Sul foram estabelecidas comissões de inquérito, também contaram com a participação fundamental de organizações de direitos humanos e organismos internacionais na busca pela verdade, pacificação nacional e penalização de violadores de direitos humanos, sendo usado em alguns casos o artificio das anistias para pacificar seja por falta de vontade politica ou por debilidades conjunturais da política nacional.

Na África do Sul em especial, com o término do regime de segregação racial que privava os negros da cidadania plena, foi instituído pelos Poderes Executivo e Legislativo comissões reparadoras, tendo papel decisivo junto à organizações internacionais de direitos humanos na reconciliação nacional e construção de um novo Estado. Para o arcebispo anglicano Desmond Tutu, uma justiça na forma de Nuremberg não seria possível na África do Sul, pois colocaria em risco a transição pacífica e negociada[6]. Nas palavras de SIMONE MARTINS:

“A ideia da comissão de verdade começou, ironicamente, com as acusações de abusos aos direitos humanos cometidos pelo Congresso Nacional Africano em alguns campos no exílio. A resposta do Congresso foi instaurar uma comissão de inquérito. Em março de 1992, o presidente Nelson Mandela criou a Comissão de Inquérito sobre as Reclamações feitas por Antigos Prisioneiros e Detidos pelo Congresso Nacional Africano.[7]

Continuando, pode-se perceber que não há fórmula ou receita de passo a passo para estabelecer metas e fases da justiça transicional. Nas palavras de DESMOND TUTU[8]:

“Enquanto os aliados puderam fazer suas malas e voltar para casa depois de Nuremberg, nós, na África do Sul, tínhamos que viver uns com os outros.”

Diferente de Nuremberg ou dos países da América do Sul, a reconstrução da sociedade civil na Africa do Sul foi no sentido da reconciliação longo e gradual das comunidades oposicionistas, através da reparação, disponibilização e reabertura de arquivos, com os esforços voltados para tal, sendo a busca pela igualdade social a base para a construção da reconciliação social. A anistia foi concedida em troca da verdade, não havendo punição.

Já na Ásia, no Timor-Leste, Filipinas, Cambódia, Indonésia, Sri Lanka e Coreia do Sul foram estabelecidas comissões da verdade e julgamentos por violações de direitos humanos. Conforme percebemos ao longo do capítulo, a Justiça Transicional é um fenômeno global pós-guerras e regimes ditatoriais, em que onde houve acontecimentos similares rumando para futuros democráticos, os ideias de justiça, reparação e memória foram estabelecidos como forma de reconciliação do passado com o futuro.

3. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: EXPERIÊNCIAS NA AMÉRICA

Na América do Sul temos exemplos da Argentina, Chile Uruguai, países que em as ditaduras apoiavam-se mutuamente, formando um “eixo do terror” na busca e tratamento aos costumes dos opositores de seus respectivos regimes. Aderiram às anistias, sendo que em fase posterior, essas anistias foram e continuam sendo questionadas.

As políticas de memória e verdade iniciaram nas décadas de 80 e 90 após a queda dos regimes militares nos países da América do Sul. No Chile e Argentina, foram criadas comissões da verdade oficiais criadas pelos governos, com publicação de relatórios de grande impacto público, como forma de oficializar os crimes cometidos pelos agentes do Estado. No Uruguai, Bolívia e Paraguai foram criadas comissões de investigação; Organizações não-governamentais elaboraram relatórios da verdade no Uruguai, Bolívia, Peru e Brasil.

Sobre a Justiça, houve julgamentos na Argentina e Bolívia, iniciados pelos governos. Organizações de direitos humanos e indivíduos também levaram suas queixas ao juri no Equador, Argentina, Chile e Paraguai. Brasil, Argentina, Chile e Uruguai optaram por anistia gerais ou seletivas. No Uruguai, iniciou-se em 2006 os julgamentos dos agentes da ditadura, tendo a justiça comum condenado o ex-presidente Juan Maria Bordaberry e o ex-Ministro das relações Exteriores Juan Carlo Blanco por autoria intelectual no desaparecimento e homicídio  de parlamentares opositores e ex-militantes tupamaros. No Chile o ex-presidente Pinochet foi indiciado por tortura e sequestro pouco antes de falecer.

Na Argentina, que teve o período ditatorial entre 1976 e 1983, relativamente curto comparado ao Brasil, os julgamentos dos agentes da ditadura encontraram dificuldades nas Leis de Anistia, tendo sido concedido entre 1989 e 1990 o indulto aos comandantes condenados pelo então presidente Menem. De pronto, houve reação da sociedade, que apresentou a demanda no Suprema Corte Argentina[9], que em sua decisão, resumidamente proferiu:

“AMNISTÍA.

Ref. : Punto final. Obediência devida. Derechos humanos. Tratados internacionales. Convención Americana sobre Derechos Humanos. Pacto internacional de Derechos Civiles y Políticos.

Si bien el art. 75, inc. 20 de la Constitución Nacional mantiene la potestad del Poder Legislativo para dictar amnistías generales, tal facultad ha sufrido importantes limitaciones en cuanto a sus alcances. Las leyes 23.492 y 23.521 que, como toda amnistía, se orientan al "olvido" de graves violaciones a los derechos humanos, se oponen a las disposiciones de la Convención Americana sobre Derechos Humanos y el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, y resultan constitucionalmente intolerables (arg. art. 75, inc. 22, Constitución Nacional).”

Contrariamente à decisão da corte brasileira, foi anulada a legislação argentina anistiante, voltando a promover julgamento contra os agentes da ditadura, fundamentado na incoerência fundamental entre os preceitos constitucionais e dos direitos humanos. Indo além, os arquivos da ditadura argentina foram abertos, demonstrando a realização do Estado Argentino na busca pela verdade como fundamental para a reconciliação nacional.

No Mercosul a identidade é um fator de destaque, tendo a semelhança histórica dos países em sua formação, do colonialismo até as experiências autoritárias, passando pelas dificuldades sociais, tendo a cooperação dos Estados ditatoriais e a cooperação também entre os grupos de oposição, criando uma forte ligação entre os regimes e os atores envolvidos, numa sinergia regional que influencia até hoje os trabalhos dos atores envolvidos na justiça de transição na região.  Embora o destaque desta cooperação seja geralmente traduzida na Operação Condor, sem dúvida a grande cooperação na região do Mercosul foi a redemocratização da região. A origem do Mercosul remonta , com efeito, à aproximação levada a cabo pelos primeiros presidentes da transição democrática da Argentina e do Brasil, Raúl Afonsín e José Sarney, na década de 80 (CERVO; BENO, 2002).

Diferente do que sucedeu na Europa, em que o andamento do processo de integração regional catalizou movimentos de redemocratização, no Cone Sul foi a simultaneidade dos movimentos de redemocratização de detonou o processo de integração regional (LINZ; STEPAN, 1996).

A redemocratização no continente Sul-Americano e as vitórias eleitorais da esquerda trouxeram novamente iniciativas de memória e confronto com o passado, através das comissões da verdade. Na Argentina, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) investigou crimes da ditadura, ocorridos entre 1976 e 1983, iniciando as experiências de resgate à memória e busca da verdade. O desenvolvimento das instituições e sistemas regionais de proteção dos Direitos Humanos não se deu de forma progressiva, obtendo avanços e entraves, mas que a cada avanço estimulava expectativas e demandas de justiça da sociedade civil em toda a região. Da mesma forma, ações não governamentais mobilizam-se, reivindicando os direitos daqueles que vivenciaram o horror e resistiram aos atos desumanos, em defesa da dignidade, dos direitos humanos, da democracia.

Juliana Cardoso Benedetti e André Vereta Nahoum[10]. Dados válidos para 03/2009.

Conforme o quadro acima, ao final do ano de 2008, todos os países do Mercosul contavam com comissões da verdade, tendo promovido julgamentos das violações aos direitos humanos, exceto o Brasil, devido a interpretação que o Supremo Tribunal Federal confere à lei da Anistia, tendo fracassadas as últimas tentativas.

4. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL

A promulgação da Lei de Anistia em 1979 foi fruto da mobilização dos movimentos sociais, sendo conduzida e aprovada porém pelo próprio regime. Atores políticos que estavam afastados da legalidade voltaram para a vida política brasileira, sob o preço da materialização da impunidade dos agentes da ditadura, que participaram de assassinatos, torturas e desaparecimentos forçados, diferente do ocorrido na Argentina e Chile, que iniciaram os processos penais e condenação por crimes contra a humanidade em face dos agentes e governantes. Há desde essa época no Brasil polos de tensão na construção do processo de redemocratização, tornando visível uma batalha hermenêutica no campo político pela significação do passado. O silêncio inicial do Estado era confrontado por iniciativas de familiares e amigos de desaparecidos e mortos do regime. Nas palavras de Dalmo Dallari:

“A tortura de presos políticos era praticada por pessoas degeneradas, que se aproveitavam do posto que ocupavam para praticar este crime. As próprias leis da ditadura jamais colocaram a tortura de prisioneiros como objeto da ação do regime. Se em algum país perdoa-se torturadores, a interpretação é de que estaria ocorrendo autoanistia, que não teria nenhum valor jurídico. Os próprios torturadores não podem se perdoar, o que seria um absurdo.”

Vários foram os projetos e iniciativas que davam voz aos anseios dos injustiçados perante o silêncio do Estado. O projeto Brasil nunca Mais, o Dossiê de Mortos e Desaparecidos a partir de 1964, a publicação Dos filhos deste Solo, todos atribuindo ao Estado a responsabilidade pelos feitos de seus representantes, cobrando informações e a verdade por trás dos acontecimentos.

Finalizado o regime cívico-militar em 1985 e com a consequente redemocratização do Estado, a sociedade brasileira criou grandes expectativas, gerando pressão política exigindo eleições diretas, tendo em 1984 se materializado em manifestações que mobilizaram milhões de pessoas em todo o país, porém, não obtendo êxito nas eleições diretas na primeira eleição pós-regime.

Editada a lei n° 10559/02, foi regulamentado o direito à indenização aos perseguidos políticos pela ditadura cívico-militar, atribuindo a função de decisor sobre as indenizações à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Esta Comissão tem atuado no resgate à memória e a reparação, através da realização de Caravanas da Anistia e da construção do Memorial da Anistia. Nesse sentido, outra movimentação do Governo Federal foi a decisão de centralizar os documentos da ditadura civil militar no Arquivo Nacional, colocando-os à disposição da sociedade através de um banco de dados na internet, sendo batizado de “Memórias Reveladas”.

Em 2008 a Lei de Anistia foi questionada, através de ação promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal Federal, sob  o argumento de que a lei de anistia não abarcava os crimes policiais e militares cometidos durante o regime militar. Porém, em 2010 o Supremo Tribunal Federal decidiu pela improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, sob o argumento de que nem mesmo do Supremo Tribunal Federal tem poderes para reescrever leis de Anistia.

O Supremo Tribunal Federal interpretou a Lei de Anistia sem novidades, conforme já feito até então, como anistiados os agentes do Estado que efetuaram perseguições a opositores motivados politicamente.

Ainda em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos declarou a responsabilidade do Estado Brasileiro no caso Gomes Lind e outros, pelo desaparecimento de membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses nas operações do Exército Brasileiro na erradicação da Guerrilha do Araguaia. A Corte sentenciou que a Lei de Anistia brasileira inibe a investigação e punição dos agentes do Estado, assim, não sendo compatíveis com a Convenção Americana. Sendo assim, a Lei não poderia constituir-se de empecilho à investigação dos fatos, identificação e punição dos culpados. Como recomendação ao Estado brasileiro, de que fosse criada uma comissão da verdade para apurar as violações cometidas durante o regime militar.

A presidente Dilma Rousseff sancionou em 2011 a criação de uma Comissão da Verdade, com a missão de esclarecer as violações aos Direitos Humanos, identificar e tornar públicos as estruturas, locais, autoria, enviar aos órgãos públicos informações sobre a localização de corpos, identificação de restos mortais dos desaparecidos e tudo relacionado às práticas de violações de tais direitos. Reconstruir a história, dando aos cidadãos do país a verdade como meio para uma efetiva reconciliação nacional, prestando assistência às vítimas dos crimes cometidos.

Há porém, ainda possibilidade de mudança, através de iniciativas para reinterpretação da Lei de Anistia, como o projeto de lei n° 7430/2010 que tem como objetivo excluir da anistia os crimes conexos praticados por agentes públicos, militares e civis contra opositores políticos.

Até o presente momento, as tentativas aceitas pela Justiça brasileira para sancionar os agentes envolvidos no regime são de caráter administrativo e civil, tendo como exemplo o reconhecimento de Carlos Alberto Brilhante Ulstra como torturador[11] e consequente responsabilidade civil por danos morais pela Justiça de São Paulo ou a ação movida pelo Ministério Público Federal contra os comandantes Carlos Alberto Brilhante Ulstra e Audir Santos Maciel, tendo como pedidos reparar os custos das indenizações ao Tesouro Nacional às famílias das vítimas através da Lei n° 9.140/95, perderem suas funções públicas e não mais serem investidos em função pública[12].

Por fim, a busca pela memória, além da reparação dos perseguidos, torturados e suas famílias são passos concretos, ainda que vacilantes na direção da reconciliação nacional, ainda que tardia, para a inacabada transição democrática brasileira.

CONCLUSÃO

Nos países citados, em cada caso, percebe-se que a conjuntura política nacional é diretamente ligada às capacidades e limites da transição. Quando os regimes são derrotados, cabe ao vitorioso a construção dos pilares da nação pós-conflito. Causa um mal estar a sensação de que nem sempre a memória e o direito à verdade são respeitados, sendo aplicadas verdadeiras perversões para acomodar o velho regime para um futuro democrático, em nome de uma reconciliação nacional.

As políticas de resgate das memórias e mobilizações contra o esquecimento são o meio para a uma futura efetivação da justiça de transição no Brasil e em vários outros países, pelo direito à verdade aos mortos, desaparecidos políticos e seus familiares, como forma de não deixar que o legado da impunidade torne-se um dos pilares de uma democracia que se esquiva de julgar seus agentes.

 

Referências
BICKFORD, Louis. THE ENCYCLOPEDIA OF GENOCIDE AND CRIMES AGAINST HUMANITY. USA: Macmilillan Reference, 2004, vol. 3.
BOAVENTURA, de Sousa Santos. PAULO ABRÃO, Macdowell, Cecília. TORELLY, Marcelo D. REPRESSÃO E MEMÓRIA POLÍTICA NO CONTEXTO IBERO-BRASILEIRO.
CARDOSO BENEDETTI, Juliana e VERETA, André Nahoum. REVISTA ANISTIA: POLÍTICA E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO. COMISSÃO DA ANISTIA, Brasília, Ministério da Justiça, 2009.
CÔRBO, Dayo de Araujo Silva. COMISSÃO DA VERDADE: OS DOCUMENTOS E A VALIDEZ DO DISCURSO. Universidade Estadual de londrina. Londrina, 2013.
DIMITRI, Dimoulis. MARTINS, Antonio. SWENSSON, Júnior. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL. Editora Saraiva. São Paulo, 2010.
EVARISTO ARNS, Dom Paulo; SOBEL, Rabino Henry; WRIGHT, Pastor presbiteriano Jaime. BRASIL NUNCA MAIS. Arquidiocese de São Paulo, 1985.
SILVA, Virgílio Afonso da. TRANSIÇÃO E DIREITO: CULPA, PUNIÇÃO, MEMÓRIA. A memória e as ciências humanas, São Paulo: Humanitas,2011.
CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O ESTADO NACIONAL. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/chicocampos.html>. Acesso em: 04 ago.2015.
DIMOULIS, Dimitri. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL.DIREITO, RESPONSABILIZAÇÃO E VERDADE. Fundação Getúlio Vargas, Ed. Saraiva. 2010.
VAN ZYL, Paul. SECURITY GOVERNACE IN POST-CONFLICT PEACE-BUILDING (DFAF: Genebra, 2005)
PINTO, Simone Martins Rodrigues. JUSTIÇA TRANSICIONAL DA ÁFRICA DO SUL: RESTAURANDO O PASSADO, CONSTRUINDO O FUTURO. Contexto Internacional, 2007.
DESMOND TUTU. NO FUTURE WITHOUT FORGIVENESS, New York: Doubleday, 1999.
Notas:
[1] Trabalho Orientado pelo Prof. Prof. Msc. Jaime John
[2] BICKFORD, Louis. The encyclopedia of Genocide and crimes against humanity. USA: Macmilillan Reference, 2004, vol. 3, p. 1045-1047 (todas as traduções são de responsabilidade do autor). As origens desta área de investigação remontam ao final da Segunda Guerra Mundial, especialmente o Tribunal Internacional Militar de Nuremberg e os programas de “desnazificação” na Alemanha. Desde então foram sendo desenvolvidos e aperfeiçoados diversos mecanismos para se lidar com a herança da violência de regimes autoritários ou totalitários. Entretanto, as bases da justiça de transição ganharam mais coerência nos últimos cinte e cinco anos do século XX, se iniciando especialmente pelos julgamentos de membros da junta militar na Grécia (1975) e Argentina (1983).
[3] CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O estado nacional. Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/chicocampos.html>. Acesso em: 04 ago.2015.
[4] DIMOULIS, Dimitri. Justiça de Transição no Brasil.Direito, Responsabilização e Verdade. Fundação Getúlio Vargas, Ed. Saraiva. 2010, p.92.
[5] Paul Van Zyl é vice- presidente do International Center for Transitional Justice, professor da New York University School Law. Security Governace in post- Conflict Peace-building (DFAF: Genebra, 2005)
[6] PINTO, Simone Martins Rodrigues. Justiça Transicional da África do Sul: Restaurando o
passado, construindo o futuro. p.403-417
[7] PINTO, Simone Martins Rodrigues. Justiça Transicional da África do Sul: Restaurando o
passado, construindo o futuro. p.403-417.
[8] DESMOND TUTU. No Future Without Forgiveness, New York: Doubleday, 1999, p. 21. Cf. Também Simone Martins Rodrigues Pinto, "Justiça transicional na África do Sul: restaurando o passado, construindo o futuro", Contexto Internacional 29: 2 (2007): 393-421.
[9] ARGENTINA. S. 1767, XXXVIII. Disponível em: <http://www.csjn.gov.ar >. Acesso em: 28. ago. 2010. Vide também <http://www.unhcr.org/refworld/country,ARG_SC,,ARG,,4721f74c2,0.html> . Acesso em: 12. set. 2010.
[10] Revista Anistia: Política e Justiça de Transição. Comissão da Anistia, Ministério da Justiça.
[11] Sentença proferida pelo Juiz Gustavo Santini Teodoro, na 23ª Vara Cívil de São Paulo.
[12] Processo n° 2008.61.00.011414-5 da 8ª Vara Cível de São Paulo.

Informações Sobre o Autor

Rodrigo da Silva Soares

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. Pós-graduado em Direito Público


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Equipe Âmbito Jurídico

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