Resumo: O artigo faz uma síntese da evolução histórica da legitimidade do poder na esfera do direito, partindo da análise de dois institutos que remetem ao Direito Romano, o “homo sacer” e o “iustitium”, estudados pelo filósofo italiano Giorgio Agamben, até a atualidade da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no pós-positivismo.
Reflexo ou base de sustentação da disputa entre o poder num Estado de Direito, a legitimidade é um tema magistralmente explorado na obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, dissípulo do alemão Walter Benjamin.
Agamben estuda a origem da legitimidade em dois institutos do Direito Romano, o iustitium e o homo sacer, buscando por meio do estudo do papel da exceção no direito, analisar como poder e norma se relacionam na regra jurídica.
O iustitium é um tema muito pouco explorado, mas peculiarmente significativo, tendo sua aplicação limitada aos casos de guerra ou tentativa de derrubada da República, casos em que o Senado emitia um senatus consultum ultimum aos cônsules, pretores e à população em geral com base em um decreto que declarava o tumultus (situação de emergência) e proclamava o iustitium, estado de exceção no qual cabia a qualquer homem do povo defender a ordem, a res pública, investido longa manus nos poderes de Estado, podendo para tanto matar o inimigo.
A legitimidade do Governo que se fundava na própria República, voltava aos seus antigos titulares, os cidadãos, restando claro que no estado de exceção, carecia o Estado de legitimidade.
Essa ausência de legitimidade estatal pode ser vista, ainda, na figura do homo sacer, homem condenado à morte pela Justiça, mas cuja sacralidade da vida não permitia que o Estado executasse a sentença, transcendendo a legitimidade para qualquer cidadão, que poderia matar o homo sacer em nome da República, sem que tal comportamento acarretasse em qualquer tipo de sanção estatal.
Séculos mais tarde, a mesma legitimidade foi fundadora da doutrina contratualista de autores como Hobbes, Locke e Rousseau, que viam num pacto social em que os cidadãos abriam mão de parte de sua liberdade em nome do poder estatal, as bases do Estado.
Mas enquanto Hobbes e Rousseau defendiam a total submissão do povo ao soberano, surgindo assim um conceito de soberania interna, o pensador inglês trazia traços da preocupação com a legitimidade no exercício do poder.
Segundo Locke, o poder estava fundado em três elementos: na liberdade, na igualdade e na propriedade; razão pela qual, não bastava que o povo abrisse mão da liberdade e com base na igualdade legitimasse o governo, esse poder estatal deveria respeitar e defender o direito de propriedade para que fosse legítimo.
Anos mais tarde, já no começo do século XX, Max Weber desenvolveria uma teoria sobre o poder baseada em uma fórmula da obediência que poderia estar legitimada em três aspectos: o tradicional, o carismático e o racional-legal.
Essa teoria serviria de base para a construção no normativismo de Kelsen, baseado em normas que buscariam validade em normas superiores em uma cadeia crescente cujo ápice seria a norma fundamental. O grande problema de uma teoria bem estruturada e escalonada como a de Kelsen foi exatamente construir uma pirâmide de legalidade, e não de legitimidade.
Contrariamente a Kelsen, mas rumando para uma mesma direção legalista, Carl Schmitt desenvolveu em obras como Teologia Política e O Guardião da Constituição, uma teoria sobre a soberania na esteira hobbesiana, segundo a qual, caberia ao soberano o poder de decisão no estado de exceção.
Schmitt tornou jurídica uma esfera política de atuação do poder estatal, transformando-a em uma fórmula de fácil aplicação, baseada em algumas circunstâncias fáticas.
O modelo da teoria schmittiana era um artigo da Constituição de Weimar (1919) que permitia a delegação, pelo Congresso, de poderes soberanos ao representante do reich, que poderia submeter à primeira parte da Constituição (que tratava da organização do Estado e das Instituições) a segunda (que tratava dos direitos fundamentais, notadamente os sociais), por meio de um decreto legislativo similar às medidas provisórias. Nesse contexto, a legitimidade transformava-se em legalidade de aplicação da fórmula jurídica, exatamente como na teoria pura do direito kelseniana, ainda que sob outro enfoque.
Transformado o direito em instrumento do poder no período que antecedeu a II Grande Guerra, a legitimidade perdeu-se em meio à regra da legalidade, mesmo que aplicada à exceção, como previa Schmitt.
Somente no pós-guerra, o renascimento da filosofia do direito trouxe novamente a dissociação entre legitimidade e legalidade, não aquela fundada no direito de propriedade como proposta por Locke, mas desta vez, baseada no respeito aos direitos fundamentais embasadores das constituições contemporâneas.
A legitimidade pós-positivista está fundada, assim, nos princípios do Estado Democrático de Direito, como a dignidade humana, a justiça e a segurança jurídica, valores cujo significado transcende o ordenamento jurídico para encontrar guarida em todas as relações humanas.
Nesse ponto, merece destaque o estudo formulado pelo francês Michel Foucault na década de 70, segundo o qual o poder não está necessariamente ligado à figura do Estado, mas sim em relações que chamou de genealogia do poder, defendendo que o poder não é algo unitário e global, mas sim um emaranhado de formas heterogêneas naturais, uma prática social constituída historicamente, uma articulação de poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de atuação, o qual denominou “microfísica do poder”.
Exatamente por isso, o poder legítimo não pode ser visto apenas como o poder soberano interno do Estado, mas essa legitimidade deve ser buscada em cada uma das relações privadas amparadas pelo direito, daí porque o constitucionalismo moderno defende a necessidade do respeito aos direitos fundamentais nas relações entre particulares, e não apenas na histórica relação entre Estado e povo, algo a que se chamou “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”.
Até porque no mundo neoliberal, o Estado diminuiu consideravelmente a sua influência na vida das pessoas, delegando tais poderes a particulares que por meio de uma relação microfísica do poder exercem parcela de poder estatal na vida privada, havendo aquilo que o italiano Luigi Ferrajoli chamou de paradoxo do mundo moderno, no qual os Estados não precisam ser soberanos no campo interno, tendo estruturas mínimas, mas devem buscar um tamanho cada vez maior no campo internacional, por meio da constituição dos blocos de países. Parafraseando o filósofo eslovaco Slavoj Zizek “Bem-vindo ao deserto do real!”(palavras ditas pelo líder da resistência Morpheus, ao herói Neo, que acordou de um mundo virtual perfeito para uma Chicago em ruínas, na frase que simboliza a essência do filme Matrix, 1999).
Analista Judiciário da Justiça Federal em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela Unisul/IBDP/LFG, bacharel em Direito pela PUC-SP, autor de artigos publicados nas áreas de Direito Constitucional, Direito Processual, Ciência Política e Biodireito.
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