Resumo: A internet promoveu verdadeira revolução no campo das comunicações, sendo terreno fértil ao exercício da liberdade de expressão. Mas qual é o limite dessa liberdade? O trabalho aborda o fenômeno da perseguição virtual e o conflito entre liberdade de expressão e direitos de personalidade, destacando a facilidade de utilização das redes sociais pelos stalkers e os transtornos sofridos pelas vítimas. Sem pretensão de esgotamento do tema analisa a dificuldade de retirada de publicações ofensivas da internet, abordando a questão do “direito ao esquecimento” sob a ótica do Tribunal de Justiça da União Europeia e dos Tribunais Superiores do Brasil e, ainda, o “direito de deletar”.
Palavras-chave: liberdade de expressão. Internet. Perseguição. Direitos de personalidade. Conflito.
Abstract: Internet has promoted revolution in the communications. It is fertile ground for the exercise of freedom of expression. But what is the limit of this freedom? The work addresses the virtual stalking phenomenon and the conflict between freedom of expression and rights relating to the personality, highlighting the ease of use of social networks by stalkers and disorders suffered by victims. Without intending to exhaust the subject examines the difficulty of removal of offensive Internet publications, analyzing the "right to be forgotten" in perspective of the Court of Justice of the European Union and the Superior Courts of Brazil and, also, the "right to delete".
Keywords: freedom of expression. Internet. Stalking. Personality rights. Collision.
Sumário: 1 – Introdução. 1.1 – Exemplo do problema e limitação do tema. 2 – Quando a liberdade de expressão na internet se transforma em ofensa. 2.1 – A utilização das redes sociais como instrumento de violações aos direitos de personalidade. 2.2 – Stalking virtual ou Cyberbullying? 3 – A tutela jurídica e as violações aos Direitos de Personalidade na internet. 3.1 – Retirada de ofensas da internet: o direito de ser esquecido. 3.2 – O direito de deletar. 4 – Constatações. 5 – Referências.
1 – INTRODUÇÃO
No campo da liberdade de expressão e das comunicações a sociedade experimenta, na última década, expansão nunca antes imaginada, potencializada pelas ferramentas de internet e, principalmente, pelas redes sociais. A internet estreitou os relacionamentos pessoais e modificou o modo como interagimos e hoje fala-se, inclusive, em internet das coisas (IoT – Internet of Things), para conexão de carros, televisores, geladeiras e outros objetos à rede mundial de computadores o que futuramente, por certo, possibilitará a interação entre máquinas e seres humanos.
Estima-se que somente a plataforma Facebook tenha 1,5 bilhão de usuários, o que é impressionante, pois corresponde a aproximadamente 20% da população mundial. Além disso, é comum o registro de usuários em mais de uma rede social. Não há, portanto, nada mais poderoso em nível de compartilhamento de informações.
Mas até que ponto isso é positivo? Sob a ótica da utilização das mídias sociais para aviltamento da honra alheia, da privacidade e da imagem, ao argumento do exercício da liberdade de expressão, certamente, não há nada mais nocivo. Principalmente quando essas ferramentas são utilizadas pelos stalkers ou perseguidores, exatamente aquelas pessoas que importunam de forma obsessiva e insistente uma outra pessoa, trazendo prejuízos morais, psicológicos e até mesmo financeiros. A junção dessa modalidade de distúrbio psicológico com o meio virtual utilizado para concretização do ato lesivo fez surgir a figura do cyberstalker ou perseguidor virtual, que lança mão do vasto reservatório de dados disponíveis na internet, inclusive das mídias sociais, para obtenção de todas as informações de que necessita a respeito do alvo a ser atingido.
O mundo virtual ou mundo online é apenas uma continuidade da realidade off-line, “não é mais do que o prolongamento das capacidades humanas para uma área onde o espaço deixa de ser um limite considerável”,[1] onde a informação é facilmente captada e divulgada sem os obstáculos territoriais.
1.1. Exemplo do problema e limitação do tema
Historicamente a internet tem origem militar. Em 1969, nos Estados Unidos, a Agência de Pesquisas em Projetos Avançados – ARPA (Advanced Research and Projects Agency) pretendia interligar as bases militares e os departamentos de pesquisa do governo americano e por tal razão a ARPANET é considerada a primeira rede operacional de computadores.
Já no início da década de 70 algumas universidades tiveram permissão para conexão ao sistema ARPANET e em meados da mesma década, verificando a inadequação do protocolo de comutação de dados em virtude do crescimento da rede, a ARPANET começou a utilizar um novo protocolo chamado TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol), sistema que ainda hoje torna possível a conexão da maioria dos computadores do planeta à rede mundial de computadores.
No início da década de 80 as redes tinham por finalidade a troca e compartilhamento de dados e informações científicas, mas com o passar dos anos começaram a surgir os sistemas de trocas de mensagens coletivas e os sistemas de mensagens de correio eletrônico. A World Wide Web (www) surge em 1990, graças ao trabalho incansável do físico britânico, cientista da computação e professor do MIT, Timothy John Berners-Lee, que em 25 de março de 1989 havia feito a primeira proposta para a sua criação.
No final da primeira metade da década de 90 a web se tornou acessível à população, expandindo-se de forma incalculável, transformando-se num universo onde diariamente seres humanos interagem socialmente e economicamente. E como todo sistema vivo, suscetível ao aperfeiçoamento e a uma série de situações das mais variadas espécies, demanda a intervenção do Direito.
Nota-se que na mesma proporção de desenvolvimento da rede mundial de computadores houve, também, modificação comportamental de seus usuários. Se no início verificávamos alterações pontuais de humor em discussões travadas em sistemas de trocas de mensagens, hoje verificamos uma enorme gama de casos concretos de lesão a direitos de personalidade. O mundo virtual se tornou ambiente propício aos excessos e o que faz a internet tão atrativa aos perseguidores virtuais é a ausência de limites geográficos, permitindo que as vítimas sejam encontradas em qualquer lugar do mundo, tudo isso aliado a um certo grau de anonimato e a falsa sensação de que o seu uso é desprovido de qualquer controle por parte do Estado.
É cediço que a honra, a imagem, a privacidade e a reputação são bens de personalidade. Por outro lado, a liberdade de expressão constitui direito de extrema importância. Mas qual é o limite do exercício da liberdade de expressão na internet, sem que haja colisão com os direitos de personalidade? É possível reproduzir, nas redes sociais, publicações que atentem contra a honra, imagem, privacidade, ao argumento do exercício da liberdade de expressão? No mesmo sentido, é possível a utilização das redes sociais para externar insatisfações pessoais em face de qualquer pessoa? E quando essas novas mídias sociais são utilizadas com a finalidade de ultrajar, de forma reiterada, qual o caminho a seguir?
É necessário que sejam conciliados, na medida do possível, a liberdade de expressão e informação, por um lado, e a integridade moral, o bom nome e reputação, a honra e a imagem por outro. Somente quando essa equação se revelar inviável ou, havendo colisão desses direitos, deve-se, em princípio, buscar solução pela prevalência do direito de personalidade.
O objetivo da pesquisa é, portanto, identificar hipóteses que transbordam ao necessário ponto de estabilidade, resultando em ofensa a direitos fundamentais e direitos de personalidade, onde a internet é utilizada como meio para a obtenção do resultado lesivo. Pretende-se, inclusive, analisar as consequências do stalking no mundo virtual e demonstrar que o Direito deve se preocupar com esse fenômeno relativamente recente que é um misto de perseguição e assédio praticados de forma reiterada, com a utilização de ferramentas de internet, ao argumento, muitas vezes, de mero exercício da liberdade de expressão.
Ainda que a discussão sobre o stalking cibernético seja relativamente recente, pode-se afirmar que se trata de um fenômeno social de grande impacto psicológico, cujas consequências são devastadoras e imprevisíveis, podendo resultar em limitação da liberdade, suicídio ou até mesmo em homicídio do perseguidor. Acresça-se aos resultados nefastos da perseguição virtual a possibilidade de perpetuação da ofensa, haja vista que as informações online dificilmente são apagadas e, ainda, podem ser replicadas a exaustão por seus milhares de utilizadores. E mesmo que por um dado momento a informação seja extirpada do mundo virtual, há a possibilidade de ter sido armazenada em dispositivos off-line, como pen drives, hard disks externos, DVD´s, CD´s etc, facilitando sua reinserção na internet.
2 – Quando a liberdade de expressão na internet se transforma em ofensa
É a liberdade uma conquista da história humana, sendo impossível imaginar o homem sem a liberdade. Como leciona Adriano de Cupis, “a liberdade não se limita, então, a caracterizar a força jurídica que reveste um determinado bem, mas assume ela mesma a dignidade de bem sobre o qual incide a força jurídica do sujeito”.[2] O estabelecimento de limites ao seu exercício, todavia, não deve ser associado à sua negação; ao contrário, os limites permitem que o homem escolha entre as diversas possibilidades existentes e suas respectivas consequências, transformando em fato o que por essência é pura abstração.
Mas qual é o limite da liberdade de expressão?
É indiscutível que a liberdade de expressão é um dos pilares da democracia. Assegurada no artigo 19, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, visa a garantir o direito de expressar, sem qualquer fronteira, opiniões e pensamentos e, ainda, o direito de receber e difundir informações e ideias. Mas tal previsão não pode ser objeto de análise isolada, sob pena de interpretação equivocada e supressão de direitos.
É na mesma Declaração Universal dos Direitos do Homem que nos deparamos com outras previsões de idêntica importância, que impedem as intromissões arbitrárias na vida privada e os ataques à honra e reputação, além de revelarem deveres inerentes a todos os indivíduos, cuja finalidade exclusiva é promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros.
O artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem nos mostra que o direito à liberdade de expressão compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. O mesmo dispositivo legal indica que o exercício destas liberdades pode ser submetido a certas restrições, com a finalidade de proteção dos direitos de outrem, especialmente a honra e a moral.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica), assinada em 22 de novembro de 1969, baseada na Declaração Universal dos Direitos Humanos que compreende o ideal do ser humano livre, contempla no artigo 13 a liberdade de pensamento e de expressão, destacando que o exercício desse direito não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser fixadas expressamente em lei específica, para assegurar o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas ou a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
A Constituição da República do Brasil, de 1988, assegura a em seu artigo 220, caput, a impossibilidade de restrição à manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação. Todavia, o seu parágrafo primeiro, ao tratar da liberdade de informação jornalística, a vincula a outras garantias fundamentais, como a vedação do anonimato, o direito de resposta proporcional ao agravo, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Esse direito é também assegurado no artigo 19, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ratificado por mais de 166 países, que prevê a possibilidade de submissão a certas restrições expressas, fixadas em lei, para salvaguarda dos direitos ou da reputação de outrem, da segurança nacional, da ordem pública, da saúde e da moralidade públicas. Inclusive esse deve ser o ponto de partida das leis que porventura tenham por escopo a sua restrição, ou seja, qualquer medida de restrição deve estar em total sintonia com cada um dos objetivos descritos no PIDCP.
Sobre a discussão relativa à possibilidade de limitação legislativa da liberdade de expressão é de bom alvitre registrar decisões divergentes produzidas pela Suprema Corte brasileira. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, o Exmo. Sr. Ministro Carlos Ayres Britto sustentou que nenhum limite legal poderia ser instituído em relação ao mencionado direito, senão aqueles já previstos no texto constitucional, competindo ao Poder Judiciário as necessárias ponderações em caso de colisões com outros direitos.[3] Em sentido diverso o Exmo. Sr. Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em sede de Recurso Extraordinário (RE 511.961/SP) proferiu decisão salientando que as restrições à liberdade de expressão em sede legal são admissíveis, desde que justificadas pela imperiosa necessidade de resguardo de outros valores constitucionais,[4] posição que se revela em sintonia com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
A liberdade de expressão, portanto, é espécie de liberdade assegurada politicamente pelos regimes democráticos pois, a partir de diferentes perspectivas, vem inscrita em instrumentos políticos por excelência desde o século XVIII (Declarações de Direitos, Pactos, Constituições, Tratados, Convenções), sendo de fundamental importância ao exercício dos direitos individuais por se tratar de garantia ao livre desenvolvimento da personalidade e à dignidade humana. Não pode ser conceituada apenas como o direito de divulgar informações e ideias, mas em sua plenitude abrange o direito de buscá-las e ter acesso a elas, o que possibilita, por consequência, a interação de cada indivíduo com o seu semelhante, tanto para externar suas próprias ideias como para ouvir aquelas expostas pelos outros.
No entanto a liberdade de expressão não constitui um direito absoluto e o seu exercício pode conflitar, em inúmeras hipóteses, com outros direitos fundamentais ou bens jurídicos igualmente tutelados. E a solução desses conflitos, além de estar vinculada às peculiaridades de cada caso concreto, deve buscar equação que revele ponderação de interesses, orientada pelo princípio da proporcionalidade.
Os textos legais até o momento analisados evidenciam um modelo de liberdade de expressão com responsabilidade, pois estabelecem que aqueles que atuarem de forma abusiva no exercício desse direito, causando danos a outros, podem ser responsabilizados. E a Constituição Brasileira de 1988 corroborando essa ideia de liberdade com responsabilidade proíbe expressamente o anonimato, exigindo a identificação do autor de cada manifestação.
2.1 – A utilização das redes sociais como instrumentos de violações aos direitos de personalidade
Estados Unidos e Brasil são, reconhecidamente, países líderes em número de usuários de redes sociais, especialmente o Facebook, Twitter e YouTube. Ocorre que o comportamento desses usuários nem sempre é pacífico e, em alguns casos, ultrapassa os limites da irresponsabilidade civil, adentrando muitas vezes em seara regida pelas sanções do Direito Penal. Mais grave ainda é a utilização desses mecanismos de interação social com a clara finalidade de violação aos direitos de personalidade. Vejamos algumas situações fáticas e suas consequências nefastas:
Em 26 de novembro de 2008 um Júri Federal de Los Angeles condenou uma mulher por ter provocado o suicídio da adolescente Megan Meier, de 13 anos, pelo envio de mensagens ofensivas por meio de um perfil falso criado na internet. Lori Drew, de 49 anos, foi acusada de fraude e conspiração após a criação de um falso perfil de um adolescente de 16 anos na rede social MySpace, para se relacionar virtualmente com a vítima, que nominou de “Josh Evans”. Segundo a acusação a jovem Megan Meier suicidou-se em 16 de outubro de 2006, após o adolescente fictício afirmar que o mundo seria um lugar melhor sem ela. O advogado da mulher condenada, H. Dean Steward, acusou o governo de exagerar ao processar sua cliente por algo que as pessoas fazem rotineiramente na internet: criar falsas identidades.[5]
No Brasil o Facebook foi condenado ao pagamento de indenização no valor de R$ 13.560,00 (treze mil, quinhentos e sessenta reais) por não promover a retirada de uma fotografia adulterada de uma usuária, comparada à dupla de palhaços “Patati Patatá”. A vítima teve uma fotografia original modificada digitalmente, realçando as cores de sua maquiagem, com a seguinte frase “maquiagem é uma coisa! Tentar roubar o emprego do Patati Patatá é outra”. Embora a vítima tenha utilizado o recurso de denúncia disponível na própria plataforma de rede social, para solicitar a remoção da imagem, não teve o seu pedido atendido. As fotografias foram excluídas após determinação judicial e quando já contabilizavam mais de 30 mil compartilhamentos. Em sua defesa o Facebook alegou que a extrapolação dos limites da liberdade de expressão deve ser julgada pelo Judiciário e não pela rede social. A decisão proferida em sede de recurso de apelação reconheceu que o Facebook atua como provedor de hospedagem e possibilita aos usuários a criação de páginas pessoais, armazenando informações e que por tal razão a sua responsabilidade é de ordem subjetiva pois, mesmo tendo a autora denunciado a fotografia adulterada por meio de ferramentas específicas para tal finalidade, não houve o controle posterior, omitindo-se o réu quanto a ilícito praticado por terceiro, sendo passível de ressarcimento o dano moral experimentado resultante na violação ao dever de respeito a direitos inerentes a personalidade de cada ser humano, especialmente a imagem e a honorabilidade.[6]
Um caso interessante advindo de Portugal diz respeito ao despedimento de um trabalhador, efetuado em 29/08/2013, em virtude de uma postagem no Facebook considerada ofensiva à honra do Presidente do Conselho de Administração de uma empresa. No julgamento do processo o Tribunal da Relação de Lisboa analisou se a publicação na página pessoal do autor estava inserida na chamada esfera pessoal ou se, por outro lado, o seu conteúdo assumiu natureza pública, mesmo estando a publicação restrita a um grupo fechado de amigos. Concluiu o Tribunal que a divulgação do conteúdo em causa deve ser considerada como pública, pois mesmo que inserida em grupo fechado não poderia levar a expectativa minimamente razoável de reserva na divulgação do conteúdo, ainda mais quando trazia ao final a expressão “partilhem amigos”. Realçou ainda o Tribunal:
“(…) no conceito de ‘amigos’ do Facebook cabem não só os amigos mais próximos, como também outros amigos, simples conhecidos ou até pessoas que não se conhecem pessoalmente, apenas se estabelecendo alguma afinidade de interesses no âmbito da comunicação na rede social que leva a aceitá-los como “amigos”. Através de um amigo a publicação de um conteúdo pode tornar-se acessível aos amigos deste, além de poder ser copiado para papel e exportado para outros sítios na internet ou para correios eletrônicos privados e de se manter online por um período indeterminado de tempo. O recorrente não poderia deixar de levar em conta todos estes fatores e, logo, não poderia, nem é credível que o tenha suposto, ter uma expectativa minimamente razoável de reserva na divulgação do conteúdo”.[7]
A decisão, em parte, guarda identidade de conteúdo com outra proferida no Brasil em data recente e noticiada pelo serviço de comunicação social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Trata-se da condenação de um ex-aluno da Escola Técnica Estadual a indenizar um professor por danos morais, por postagem em rede social de imagens manipuladas, vinculando-o ao consumo de álcool e drogas e supostas vantagens na comercialização de uniforme escolar. Alegou o ex-aluno que as postagens foram publicadas em grupo fechado (privado) na rede social Facebook, sem acesso a terceiros. As postagens, segundo testemunhas, foram impressas e colocadas nas paredes da escola, repercutindo negativamente o fato entre todos os alunos e professores.[8]
Igualmente reprovável é o caso vivenciado por AliceAnn Meyer que publicou em seu blogue, em 2014, uma foto do seu filho Jameson com o rosto coberto de chocolate e marshmallow e agora luta para banir da internet publicações que comparam o menino (portador de síndrome de Pfeiffer – uma doença que afeta o formato da cabeça e da face) a um cão da raça “pug”. Meyer relata que ficou chocada quando encontrou a imagem na internet e ficou desanimada ao ver quantas vezes foi compartilhada e, ainda, em diferentes idiomas.[9] Este caso, em especial, revela um outro problema enfrentado diariamente pelas vítimas de crimes virtuais, principalmente quando se trata de violação promovida por meio da rede social Facebook, que é a ausência de providências quando utilizadas as ferramentas da respectiva plataforma para denúncias, especificamente a mais importante delas, a necessária retirada do material ofensivo do ambiente virtual, ao argumento de que a publicação não viola os padrões comunitários, o que por certo representa absoluto desprezo a qualquer sistema de proteção a direitos fundamentais.
Casos como estes são comuns e embora as condutas sejam variadas, todas convergem para violações a direitos de personalidade. Os exemplos indicam lesões evidentes à honra e reputação, à privacidade, à imagem, à dignidade humana e a intenção de exposição das vítimas a situações vexatórias.
Embora a internet possibilite o acesso a uma infinidade de informações, o maior desafio tem sido justamente a seleção daquelas que possam ser consideradas úteis e confiáveis. Os utilizadores estão limitados a critérios parametrizados pelos motores de busca que, por sua vez, funcionam por meio de algoritmos que se baseiam na popularidade dos sites, estabelecida pela quantidade de acessos num determinado período, o que por vezes permitirá a associação indevida de informações a certas pessoas. Da forma como funcionam, os motores de busca acabam por sugestionar o utilizador à compreensão errônea do assunto ou do dado procurado, facilitando, inclusive, a propagação de falácias ou de agressões a direitos de alguém em suas variadas formas. E lamentavelmente grande parte dos utilizadores não é capaz de perceber, nesse universo ruidoso, a melodia cristalina que rompe da informação verdadeira.
Em entrevista ao jornalista João Céu e Silva, do jornal Diário de Notícias em Portugal, o escritor Umberto Eco evidenciou que “a informação banaliza os acontecimentos” e que encontra muitas mentiras sobre si na internet, como a atribuição de frases célebres de outros ou até mesmo a divulgação de falecimento de um escritor famoso, o que já não incomoda “porque acredita na fraqueza da memória das pessoas”. No entanto quando indagado sobre a necessidade de controlar a internet, respondeu:
“Isso é uma situação impossível de fazer nos tempos em que vivemos, o que se deve é ponderar o que fazer desse universo. Há quem já tenha dito, e acho que tem razão, que se nos anos 40 houvesse internet não teria havido campos de concentração como o de Auschwitz porque toda a gente teria tido conhecimento. No entanto, no momento em que todos têm direito à palavra na internet temo-la dada aos idiotas, que de outro modo nunca seriam lidos noutro sítio”.[10]
2.2 – Stalking virtual ou Cyberbullying?
Um fenômeno que nos últimos anos tem despertado a atenção de profissionais das áreas de psicologia, medicina e ciências jurídicas é o stalking. Expressão derivada do verbo to stalk (perseguir), é prática que consiste em padrão de comportamentos de assédio persistente ou de perseguição incessante a alguém (vítima), com obtenções de informações pessoais e tentativas de controle da sua vida, que podem gerar medo, ansiedade e até mesmo danos de ordem psicológica.
No final dos anos 80 o stalking começou a surgir em filmes, na televisão, em revistas, jornais e livros, mas foi o assassinato de Rebecca Schaeffer, em 1989 nos Estados Unidos, que levou à publicação da primeira lei anti-stalking na Califórnia, em 1990, tornando-se modelo para outros sítios estadunidenses, contribuindo, inclusive, para que o Congresso viesse a publicar leis federais sobre o tema. Foi estabelecido um padrão para auxiliar os Estados no desenvolvimento de legislações aplicáveis ao tema e no ano de 2004, em razão do aumento de utilizadores da internet (que facilitou a proliferação de stalkers, pedófilos e outros predadores online), vinte e seis Estados já possuíam leis contra a perseguição eletrônica.
É a perseguição virtual um fenômeno de enorme interesse social. Determinada por um conjunto de comportamentos que, cumulados, demonstram uma campanha de assédio, apresenta-se como um desafio tanto para investigadores, como para os legisladores.
Lelio Braga Calhau, citando Damásio de Jesus, aponta que
“(…) o stalking é uma forma de violência na qual o sujeito ativo invade a esfera de privacidade da vítima, repetindo incessantemente a mesma ação por maneiras e atos variados, empregando táticas e meios diversos: ligações nos telefones celular, residencial ou comercial, mensagens amorosas, telegramas, ramalhetes de flores, presentes não solicitados, assinaturas de revistas indesejáveis, recados em faixas afixadas nas proximidades da residência da vítima, permanência na saída da escola ou do trabalho, espera de sua passagem por determinado lugar, frequência no mesmo local de lazer, em supermercados etc. O stalker, às vezes, espalha boatos sobre a conduta profissional ou moral da vítima, divulga que é portadora de um mal grave, que foi demitida do emprego, que fugiu, que está vendendo sua residência, que perdeu dinheiro no jogo, que é procurada pela Polícia etc. Vai ganhando, com isso, poder psicológico sobre o sujeito passivo, como se fosse o controlador geral dos seus movimentos”.[11]
O passado recente nos mostra que entre os anos de 1995 e 2000 o acesso a internet aumentou expressivamente e o uso generalizado dessa tecnologia infelizmente despertou a atenção dos stalkers que encontraram uma poderosa ferramenta para a perseguição de crianças e adultos. Mais grave ainda é que a própria internet tem oferecido suporte aos perseguidores, seja pela facilidade de compartilhar informações, seja possibilidade de tornar acessíveis verdadeiros manuais online que ensinam o passo a passo das formas mais cruéis de perseguição e de violações de direitos. E a gama de problemas virtuais vai aumentando não só em quantidade, mas em complexidade, à medida que mais pessoas utilizam a internet em casa, no trabalho, em aparelhos de fácil portabilidade como celulares e tablets, interagindo em blogues, redes sociais e demais plataformas de comunicação online que surgiram nos últimos anos. O relatório do EUROSTAT (Escritório de Estatística da União Europeia), publicado em 08 de fevereiro de 2016, indica que 25% dos utilizadores de internet na União Europeia tiveram problemas de segurança online em 2015, tais como vírus, abuso de informação pessoal, perdas financeiras ou acesso de menores a sites inapropriados.[12] E quanto menos segurança houver na internet, mais fértil será o terreno para a ação dos perseguidores virtuais.
Há uma enorme dificuldade em definir a perseguição virtual. Basta verificar as publicações sobre o assunto para que sejam encontradas diferentes respostas. Conceitualmente existem poucos elementos necessários a identificação do stalking eletrônico, podendo ser caracterizado pelo comportamento negativo, agressivo e reiterado, com a utilização de equipamentos tecnológicos. Esta tecnologia pode ser um computador, smartphone, tablet ou qualquer outro dispositivo eletrônico, capaz de enviar informações ou dados à internet. Há necessidade, por outro lado, que a vítima seja negativamente impactada pelo incidente, seja emocionalmente, psicologicamente ou socialmente.
A perseguição eletrônica ou cibernética pode tomar diferentes formas, algumas das quais de difícil detecção. As formas mais comuns são: ameaças e intimidações, perseguição, calúnia, difamação e injúria, exclusão online (quando a vítima é apagada de comunidades virtuais), roubo de identidade, acesso não autorizado e personificação (criação de perfil falso), envio ou compartilhamento de informações ou imagens privadas. A maior particularidade da perseguição virtual, entretanto, é que um simples incidente pode resultar em múltiplos ataques. É o que se verifica, por exemplo, quando uma imagem humilhante é postada na internet e compartilhada por diferentes sites e até mesmo em redes sociais. É impossível mensurar as consequências desse ato nefasto, pois mesmo que haja a supressão de determinados links em motores de busca, o conteúdo pode reaparecer noutros locais e ser novamente detectável por qualquer interessado.
Embora os termos cyberstalking e cyberbullying guardem semelhanças pois indicam modalidades de violência e intimidação com a finalidade de abalo moral e psicológico, entendemos que no cyberbulling o sofrimento da vítima é o fim pretendido, ao passo que no cyberstalking o sofrimento é apenas o meio utilizado pelo perseguidor para alcançar desígnios não consentidos pela vítima. Necessário compreender, por conseguinte, que bullying é fim, pois o ato exaure em si mesmo e stalking é meio, é o que se pode definir como verdadeira “caçada”. Enquanto o primeiro tem por objetivo a destruição da estrutura psíquica da vítima, de forma repetida, o segundo é forma de neutralização para que a vítima faça algo contra a sua vontade, satisfazendo o interesse ou a vontade do stalker. Utilizaremos, todavia, a definição genérica de perseguição virtual ou de stalking virtual para a identificação de ambos os fenômenos, pois é o que representa de maneira adequada a ideia de perseguição na internet.
Os estudos têm mostrado que o stalking é uma espécie de terrorismo psicológico, pois as vítimas têm a sensação de que estão sob o controle do stalker, sem condições de fuga, sensação assemelhada à prisão. Além disso a perseguição gera um desgaste emocional intenso na vítima pois há sempre a incerteza do que pode vir a ser a próxima agressão, situação que aumenta o nível de ansiedade e preocupação, inclusive, em relação aos próprios familiares, o que pode levar a um declínio da saúde física e emocional. Há registros de depressão, asma, psoríase, pânico e até suicídio resultante da perseguição sem a interferência devida do poder estatal. O terror psicológico causado pelo stalking leva à diminuição da concentração e produtividade no trabalho e pode causar, ainda, medo de sair de casa para as atividades mais simplórias. Os efeitos negativos do stalking em suas vítimas, familiares e amigos são traumáticos e não devem ser subestimados.[13]
Por ser um fenômeno relativamente recente, verifica-se que em território europeu há apenas dez países que editaram leis contra a perseguição virtual. São eles: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Irlanda, Itália, Malta, Portugal e Reino Unido. Essas leis, embora distintas em conteúdo e providências, levam ao grande público a preocupação dos respectivos países em relação às sérias implicações do stalking, mas é preciso que cada nação entenda a importância de investir em mecanismos de prevenção, capazes de interromper as agressões antes que provoquem lesões irreversíveis. E talvez seja esse o maior desafio, principalmente quando analisado o fenômeno no mundo virtual, dada a enorme dificuldade de exclusão de dados uma vez insertos na internet.
No Brasil a Lei nº 13.185, de 6 de novembro de 2015, instituiu o Programa de Combate à intimidação Sistemática (Bullying), contemplando no parágrafo único do artigo 2º a hipótese de cyberbullying, destacando que “há intimidação sistemática na rede mundial de computadores, quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial”. Embora a referida lei seja a concretização de iniciativa louvável do Poder Legislativo brasileiro, está muito distante da realidade experimentada pelas vítimas e com o passar do tempo, sem ações efetivas (por parte do poder público) que tenham por objetivo o combate à essa prática nefasta, poderá ser reduzida a apenas uma carta de boas intenções.
Além disso o texto legal contém alguns equívocos que podem conduzir a interpretações errôneas. A título de exemplo o artigo 1º, §1º, conceitua bullying ou intimidação sistemática como todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas. Não parece adequada a expressão “sem motivação evidente”, haja vista que ninguém persegue outra pessoa “sem motivação”, ainda que não seja “evidente”. Em qualquer ato de perseguição sempre agirá o agressor motivado por um algum raciocínio de natureza moral ou psicológica, seja pela inveja, pela necessidade de ganhar popularidade, sentir-se poderoso ou superior em relação à pessoa agredida.
Mas sem dúvida o ponto que merece maior discussão por parte da comunidade jurídica é o contido no artigo 4º, inciso VIII, que trata dos objetivos do programa. De acordo com o referido preceito é objetivo evitar, quando possível, a punição dos agressores, privilegiando mecanismos e instrumentos alternativos que promovam a efetiva responsabilização e a mudança de comportamento hostil. Certamente não pretendeu o legislador a utilização de critério que permita desproporção abissal entre a gravidade do dano e o remédio utilizado para combatê-lo. Na realidade deu concretude à máxima de que o Estado deve intervir o menos possível na livre determinação da vida dos seus cidadãos, sem esquecer que as lesões provocadas pelos perseguidores, sejam reais ou virtuais, redundam em ofensas a direitos fundamentais e a direitos de personalidade. Em hipótese alguma a mens legis deve ser considerada como um privilégio ao ofensor; deve-se realçar que a política legislativa não pode encontrar adequação a todo e qualquer tipo de conduta, sob pena de tornar-se prolixa.
Estudos demonstram que o pedido de ajuda de uma vítima de stalking só ocorre quando a mesma já não suporta as agressões e verifica que sozinha não conseguirá resolver o problema. E há vários motivos que levam a essa atitude, como a vergonha de dar publicidade ao acontecimento ou até mesmo o medo de vingança por parte do agressor. Há também outro dado importante que merece ser analisado com muita atenção que é a identificação tardia do problema pela vítima. É comum que as primeiras investidas sejam relevadas, quer por desconhecimento do que seja o stalking, quer pela ausência de percepção das reais intenções do agente. Todavia, a intervenção precoce reputa-se necessária para que se previnam a expansão da frequência das lesões e o incremento na gravidade das agressões. Igualmente importante é o aconselhamento da vítima de que essas situações devem ser compartilhadas com aqueles que lhe são próximos, pois certamente terão pontos de vista diversos de quem vivencia as agressões e saberão avaliar e identificar situações de menor ou de maior risco, adotando providências quando necessário.
O auxílio às vítimas não deve ser limitado à identificação do agente e sua respectiva punição, pois numa ótica simplista isso apenas resolveria o problema relacionado a contenção do agressor, mas restariam abertas as chagas provocadas no corpo e na alma. O interessante é a criação de centros multidisciplinares, com médicos, psicólogos e profissionais da área jurídica, para que cada caso possa ser analisado, inclusive, à luz do sofrimento impingido à pessoa vitimada.
No mundo virtual, outras providências devem ser adotadas. Iniciado um processo de cyberstalking deve a vítima inicialmente procurar as informações disponíveis online, em blogues, redes sociais, postagens existentes e outras mídias e remover qualquer dado que possa levar à sua identificação pessoal, como endereço, data de nascimento, locais que frequenta, telefones disponíveis etc. Atenção especial deve ser dispensada aos dispositivos pessoais, como celulares, tablets, notebooks e computadores. É necessário manter um antivírus atualizado para reduzir o risco de infecção por vírus, spywares, trojans, ou qualquer outro programa malicioso. Também é importante utilizar uma senha pessoal para bloqueio desses dispositivos, evitando, destarte, o acesso por pessoas não autorizadas. As redes Wi-Fi domésticas devem estar protegidas por senhas fortes (as que combinam letras maiúsculas, minúsculas, números e caracteres especiais) e o acesso a determinados websites deve ser evitado ao utilizar uma rede Wi-Fi pública ou aberta. Igualmente importante é a utilização de senhas distintas para blogues, redes sociais, e-mails e dispositivos de conexão a internet. O nível de privacidade deve ser revisto em todas as mídias sociais de modo a permitir o compartilhamento de informações somente com pessoas realmente conhecidas. Fotografias que indiquem a localização geográfica devem ser evitadas. Da mesma forma devem ser evitadas as postagens de fotografias com crianças.
De extrema importância coletar o maior número possível de evidências sobre o assédio virtual, incluindo postagens em redes sociais, e-mails, detalhes de websites e capturas de telas (print screen ou screen capture), para posteriormente comunicar a situação à autoridade policial.
Se a agressão envolver a criação de website ou blog para atentar contra direitos de personalidade, a vítima deve anotar o URL (Uniform Resource Locator)[14], que nada mais é que o endereço “www”, disponibilizando-o da mesma forma à polícia que poderá descobrir detalhes sobre a pessoa responsável pela publicação e adotar as providências necessárias.
Embora as redes sociais permitam reportar excessos em publicações ou denunciar publicações de conteúdo ofensivo por meio de espaços criados para tal finalidade nas respectivas plataformas, dificilmente providências são adotadas. Há o entendimento generalizado e padronizado pelas empresas responsáveis por essas mídias de que determinadas ofensas “não violam os padrões da comunidade”, o que é um verdadeiro absurdo, haja vista que os padrões comunitários de qualquer ferramenta de internet jamais poderão se sobrepor a direitos que transcendem a qualquer normatização, como é o caso dos direitos de personalidade.
3 – A TUTELA JURÍDICA E AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE NA INTERNET
A primeira dificuldade quando analisamos os Direitos de Personalidade é saber qual é a sua relação com os Direitos Fundamentais e com os Direitos Humanos. Podemos afirmar, de início, que todos os Direitos de Personalidade são Direitos Fundamentais, mas nem todos os Direitos Fundamentais são Direitos de Personalidade. Segundo Anderson Schreiber
“Todas essas diferentes designações destinam-se a contemplar atributos da personalidade humana merecedores de proteção jurídica. O que muda é tão somente o plano em que a personalidade humana se manifesta. Assim, a expressão direitos humanos é mais utilizada no plano internacional, independentemente, portanto, do modo como cada Estado nacional regula a matéria. Direitos fundamentais, por sua vez, é o termo normalmente empregado pela designar “direitos positivados numa constituição de um determinado Estado”. É, por isso mesmo, a terminologia que tem sido preferida para tratar da proteção da pessoa humana no campo do direito público, em face da atuação do poder estatal. Já a expressão direitos da personalidade é empregada na alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento constitucional e proteção nos planos nacional e internacional.”[15]
Os direitos fundamentais representam criação recente na história da humanidade e ainda que constituam um modelo jurídico com pretensões de universalidade, encontram resistência de efetivação em vários países, onde sequer são reconhecidos.[16] Representam em concomitância um rol extenso de direitos subjetivos e componentes substanciais da ordem constitucional objetiva, integrando a estrutura de um Estado Democrático de Direito.
De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos “são notórias na Doutrina as divisões que têm como base diferentes concepções, objectivas ou subjectivas, da tutela jurídica da personalidade”.[17] Pode-se falar em direito objetivo de personalidade e direito subjetivo de personalidade, todavia, as características de disponibilidade do direito subjetivo não podem ser verificadas em sua plenitude no domínio da tutela da personalidade. Há bens que integram a tutela da personalidade como a vida e a dignidade que não podem ser dispensados pelo titular. E arremata: “uma construção totalmente objectiva da tutela da personalidade, que prescinda completamente do direito subjectivo, é redutora e omite a centralidade da personalidade na pessoa do seu próprio titular”. [18]
As ofensas aos direitos de personalidade são mais lesivas ao ofendido que à própria sociedade, razão pela qual a tutela da personalidade deve fundamentar-se mais em questões de ordem pessoal do que em questões de ordem social.
Entenda-se por direito objetivo de personalidade a previsão normativa relativa à defesa da personalidade, legitimada pelo direito cosmopolita, pela regra constitucional ou pela lei ordinária. Observamos que a tutela do direito geral da personalidade pode ser também encontrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, quer no artigo 3º que assevera que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, quer no artigo 12 que estabelece que “ninguém será sujeito a interferências em sua vida privada, em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”.
Importante acrescentar que o sistema processual português contempla no Livro V, Título I, do Código de Processo Civil, a tutela da personalidade (artigos 878º, 879º e 880º), que permite ao ofendido requerer providências judiciais concretamente adequadas a evitar a consumação de qualquer ameaça ilícita e direta à personalidade física e moral, ou a atenuar ou a fazer cessar os efeitos de ofensa já consumada.
Trata-se de procedimento célere que prevê a designação de audiência no prazo de 20 (vinte) dias após a apresentação do requerimento que deve estar acompanhado de provas. A contestação é apresentada na própria audiência e a produção de provas é ordenada na falta de alguma das partes ou se a tentativa de conciliação restar infrutífera. A sentença deve ser sucintamente fundamentada e, em caso de procedência, indicar o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito, bem como o prazo de cumprimento e a sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso ou por cada infração cometida. A execução da decisão é efetuada nos próprios autos e é acompanhada da imediata liquidação da sanção pecuniária compulsória.
O sistema processual brasileiro não contempla, a exemplo do sistema português, procedimento especial relativo a tutela da personalidade, o que obriga o ofendido a buscar vias procedimentais demasiadamente lentas, onde a sanção pecuniária compulsória pode ser revista pelo órgão julgador, desde que se torne insuficiente ou excessiva. Além disso as demandas muitas vezes estão limitadas a obrigações de fazer e a indenizações por danos morais. A título de ilustração é de bom alvitre registrar que em recente Recurso Especial analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, a multa cominatória pelo descumprimento de obrigação de fazer que alcançava R$ 95.324.773,90 (noventa e cinco milhões, trezentos e vinte e quatro mil, setecentos e setenta e três reais e noventa centavos), foi reduzida a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), entendendo o Exmo. Sr. Ministro Relator que “é possível, no âmbito do recurso especial, a redução do montante da multa cominatória quando se revelar exorbitante, em total descompasso com a razoabilidade e proporcionalidade”.[19]
No Código Civil brasileiro preocupou-se o legislador, por conseguinte, em apenas pontuar nos artigos 11 a 21 alguns atributos da personalidade humana de maior impacto nas relações civis, sendo importante destacar que o rol de direitos ali contemplados não é taxativo ou numerus clausus. Todavia o sistema brasileiro tem se valido do instituto do dano moral como instrumento hábil a justificar as pretensões de reparações às lesões a qualquer dos direitos de personalidade. O que se verifica é que há um importante esforço para a construção de critérios que permitam distinguir os interesses que são realmente merecedores da tutela jurisdicional, evitando-se a banalização do instituto que se tornou o principal instrumento de proteção da pessoa humana no Brasil: a indenização por dano moral.[20]
Ainda contempla o sistema brasileiro, após a edição da Lei 12.965/2014 (denominada de Marco Civil da Internet) a neutralidade da rede, consistente em tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação, permitindo, ainda, que o provedor de aplicações seja responsabilizado civilmente por danos causados por terceiros se, após ordem judicial, não adotar providências para tornar indisponível o conteúdo indicado, facultando ao lesado, nas ações sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos lançados no meio virtual atentatórios à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, o ajuizamento de demanda reparatória nos juizados especiais.
3.1 – Retirada de ofensas da internet: o direito de ser esquecido
Efetuada a ofensa ou lesão a direito de personalidade, deve a mesma permanecer ad eternum na rede mundial de computadores? Há algum mecanismo que possa minorar os danos causados pela exposição indevida consistente em compartilhamento de conteúdo ofensivo? Por quanto tempo uma informação deve ficar disponível?
Diferentemente dos jornais e revistas que são esquecidos com o passar do tempo, a internet não esquece. As informações lançadas no mundo online ali são eternizadas.
De acordo com Karl Larenz “a interpretação da norma jurídica positiva e, por maioria de razão, o desenvolvimento criador do Direito através da jurisprudência, têm, por isso, de orientar-se, em último termo, pela ideia de Direito como princípio regulador”,[21] razão pela qual a contribuição dos tribunais é de extrema importância à solução das indagações anteriormente formuladas.
Diversas decisões já foram proferidas versando sobre o tema “direito ao esquecimento”, mas a de maior impacto é a do Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Google (acórdão no processo C-131/12).
Provocado por meio de um mecanismo processual denominado de “reenvio prejudicial”, o citado Tribunal analisou a aplicação das regras da Diretiva 95/46/CE, relativa a proteção de dados pessoais. O caso remonta a 2010, quando o espanhol Mario Costeja González apresentou uma reclamação contra o jornal espanhol “La Vanguardia Ediciones SL”, Google Spain e Google Inc., na Agência Espanhola de Proteção de Dados (AEPD). Alegava o autor que quando seu nome era inserido no motor de busca do grupo Google, a lista de resultados apontava para duas páginas do jornal “La Vanguardia” de 1998, que anunciavam a venda de um imóvel em hasta pública, realizada em virtude de dívidas cobradas pela Segurança Social. Embora a dívida estivesse devidamente quitada e o caso encerrado naquela altura, o nome de Mario Costeja Gonzalez era mantido vinculado ao evento, permitindo a qualquer pessoa o acesso à publicação. A reclamação foi indeferida pela AEPD, em relação ao jornal, por considerar que o editor tinha publicado as informações em observância aos preceitos legais. Em relação ao Google, foi determinada a adoção de medidas necessárias para retirar os dados do seu índice de buscas, impossibilitando futuras pesquisas.
Em recurso interposto pela empresa Google, foi requerida a anulação da decisão da AEPD. Três questões fundamentais foram submetidas ao Tribunal de Justiça da União Europeia: 1) o âmbito de aplicação territorial das normas de proteção de dados da União Europeia; 2) o papel e a responsabilidade dos motores de busca na internet; e 3) o direito ao esquecimento ou o direito de ser esquecido, de forma que o interessado possa solicitar a remoção de resultados de pesquisa que lhe dizem respeito, dos motores de pesquisa na internet.
A respeito da aplicação territorial, sustentou a Google que não exercia qualquer atividade de indexação ou armazenamento de informação em Espanha e que a Google Spain tem por finalidade a atividade de promoção e venda de espaços publicitários. Também sustentou que a atividade de indexação é feita pela Google Inc, com sede nos Estados Unidos, razão pela qual não poderiam ser aplicadas as normas da União Europeia relativas a proteção de dados.
Entendeu o Tribunal que a legislação não faz exigência de que o tratamento deve ser efetuado pelo estabelecimento da empresa na União Europeia, mas que seja efetuado no contexto de sua atividade e como o tratamento é efetuado no contexto da atividade comercial e publicitária da Google em território espanhol, está sujeito à legislação da União Europeia.
Surge então o segundo questionamento: o motor de buscas é responsável pelo tratamento de dados e sua atividade de pesquisa e indexação está abrangida no conceito de tratamento de dados? Defendia a Google que o motor de pesquisa não cria conteúdo, indicando apenas onde podem ser encontrados conteúdos já existentes, disponibilizados por terceiros na internet e que a disponibilização de uma ferramenta de localização de informação não acarreta a obrigação de controle do conteúdo dos sítios virtuais que indica.
O Tribunal da União Europeia considerou a possibilidade de bloqueio de determinados resultados da pesquisa pelos motores de busca, a exemplo do que já faz em alguns países, promovendo o bloqueio de sites que violem direitos de propriedade intelectual. E por dispor de mecanismos técnicos para filtrar o conteúdo, o motor de busca desenvolve atividade de tratamento de dados, tornando-o responsável pela exclusão de resultados que disponibilizem páginas que revelem ingerência na privacidade de algum usuário.
Por fim entendeu o Tribunal que o motor de busca é obrigado a suprimir da lista de resultados, exibida após a realização de pesquisa a partir de um nome de uma pessoa, as ligações a páginas de internet que contenham informações sobre essa pessoa, mesmo quando essa publicação seja lícita, realçando a prevalência do direito à privacidade sobre o interesse econômico do operador de busca ou o interesse do público em aceder a informação, excetuando, apenas, casos justificados pelo interesse público resultante do exercício de atividade pública.
Mas qual é a origem do direito ao esquecimento? Sua origem é a anistia, palavra derivada do grego “amnestia”, que significa “esquecimento”, mesma origem da palavra amnésia.
Paul Ricoeur indica a anistia tem por objetivo a reconciliação entre cidadãos inimigos, a paz cívica. O modelo mais antigo, por conseguinte, recordado por Aristóteles em “A Constituição de Atenas”, é extraído do decreto promulgado em Atenas em 403 a.C., depois da vitória da democracia sobre a oligarquia dos Trinta. Tratava-se de uma dupla forma por contemplar o decreto propriamente dito e o juramento proferido individualmente pelos cidadãos. De um lado a regra “é proibido lembrar os males”, por outro o juramento “não recordarei os males”, sob pena das maldições provocadas pelo perjúrio. E Ricoeur arremata:
“As fórmulas negativas são marcantes: não recordar. Ora, a recordação negaria algo, a saber, o esquecimento. Esquecimento contra esquecimento? Esquecimento da discórdia contra esquecimento dos danos sofridos? É nessas profundezas que será preciso se embrenhar quando chegar a hora. Permanecendo na superfície das coisas, é preciso saudar a ambição confessa do decreto e do juramento atenienses. Finda a guerra, é proclamado solenemente: os combates presentes, de que a tragédia fala, tornam-se o passado a não ser recordado.”[22]
A conclusão a que chegamos, no caso que envolve a empresa Google e o espanhol Mario Costeja González, é que ao buscar a efetivação do direito de ser esquecido por publicações do passado, será lembrado eternamente pelas publicações advindas da decisão proferida pelo Tribunal da União Europeia. Um verdadeiro paradoxo!
No Brasil há duas decisões paradigmáticas proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, aplicando o “direito ao esquecimento”. Ambas registram como parte a Globo Comunicação e Participações S/A, uma das maiores empresas de comunicação daquele país (Recursos Especiais 1.334.097-RJ e 1.335.153-RJ). Nelas o Ministro Relator Luis Felipe Salomão, enfatiza que o ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas humanas” e ainda destaca:
“A cláusula constitucional da dignidade da pessoa humana garante que o homem seja tratado como sujeito cujo valor supera ao de todas as coisas criadas por ele próprio, como o mercado, a imprensa e até mesmo o Estado, edificando um núcleo intangível de proteção oponível erga omnes, circunstância que legitima, em uma ponderação de valores constitucionalmente protegidos, sempre em vista os parâmetros da proporcionalidade e razoabilidade, que algum sacrifício possa ser suportado, caso a caso, pelos titulares de outros bens e direitos.”[23]
Mesmo com essas decisões que deveriam ser padronizadas pelo sistema judiciário brasileiro, alguns percalços são verificados quando o assunto é a retirada de publicação ofensiva da internet. Por diversas vezes as vítimas notificam os provedores que nada fazem, situação verificada, inclusive, no processo nº 2012/0005748-4 (Recurso Especial nº 1.323.754-STJ. Neste processo restou decidido que o provedor, uma vez notificado pela vítima, deve retirar o texto ou imagem de conteúdo ilícito do ar no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. Em sua decisão a relatora Ministra Nancy Andrighi realça:
“A questão atinente à responsabilidade civil das redes sociais virtuais pelo conteúdo das informações veiculadas não é nova no âmbito desta Turma. Logo que me deparei com o problema, vislumbrei o interesse coletivo que envolve a controvérsia, não apenas pelo número de usuários que se utilizam desse tipo de serviço, mas sobretudo em virtude da sua enorme difusão não só no Brasil, mas em todo o planeta, e da sua crescente utilização como artifício para a consecução de atividades ilegais. Trata-se de questão global, de repercussão internacional, que tem ocupado juristas de todo o mundo. (…) Com efeito, a velocidade com que os dados circulam no meio virtual torna indispensável que medidas tendentes a coibir informações depreciativas e aviltantes sejam adotadas célere e enfaticamente.”[24]
O sistema processual brasileiro contempla previsão de multa diária, independentemente do pedido do autor, para que a determinação judicial seja devidamente cumprida. A crítica que se faz, todavia, advém da hipótese de modificação do valor ou da periodicidade da multa quando se verificar que a mesma se tornou insuficiente ou excessiva. Considerando que a multa, no Brasil, é revertida em benefício da parte, muitas empresas preferem investir na tentativa de modificação das decisões judiciais, ao invés de cumpri-las adequadamente, transformando, destarte, multas milionárias em valores absolutamente irrisórios diante do dano provocado.
3.2 – O direito de deletar
Outra discussão que tem tomado as atenções dos juristas nos últimos tempos diz respeito ao “direito de deletar”, ou ao direito de excluir ou eliminar. Não se trata de derivação do direito ao esquecimento ou tampouco guarda relação com este, mas trata-se da possibilidade de cada usuário apagar todos os dados que de alguma forma produz e armazena na internet, ou informações coletadas e armazenadas por determinadas empresas. Diz respeito ao controle do dado e não deve ser visto como caminho para reescrever ou esconder o passado, mas como um direito básico e pragmático disponível a todos.
É inegável que as pessoas devem ter mais controle sobre seus dados e devem perceber que realmente possuem esse controle, mas na prática não é isso o que acontece no mundo virtual onde determinados dados estão expostos a vulnerabilidades. E para evitar esse problema às vezes só há um caminho: a exclusão. E a conclusão é lógica pois se o dado existe ele é vulnerável, não sendo possível atribuir o mesmo sentido àquilo que deixou de existir ou foi apagado.
O movimento tomou força após declaração do Presidente Executivo do Google, Eric Schmidt, em 06 de maio de 2013. Na ocasião disse que na América, há um sentido de equidade que é culturalmente verdadeiro a todos e que a falta de um botão “delete” na internet é algo significativo, pois há um momento em que a exclusão é a coisa certa.[25]
É muito simples entender a importância desse direito quando a análise parte de situação evidente, como por exemplo, de que dados pertencem a alguém que, por conseguinte, decide a quem os disponibiliza, de que forma e por quanto tempo. A questão apresenta relevo quando contrastamos a palavra “dados” com as novas redes sociais. Necessário indagar a quem pertencem os dados inseridos numa rede social? É o provedor de conteúdo proprietário ou possuidor desses dados? No momento em que resolvo deletá-los, pode o provedor de conteúdo preservá-los por qualquer finalidade ou até mesmo compartilha-los com terceiros?
As respostas a essas indagações, embora relativamente simples, podem causar espanto e desconforto quando realizadas após a análise da situação divulgada em 2011, pelo então estudante de Direito, Max Schrems, residente em Viena. Na altura era um membro da rede social Facebook como qualquer outro, quando descobriu que os dados apagados não eram realmente excluídos. Pretendia, inicialmente, apenas ter conhecimento do que o Facebook tinha armazenado sobre ele e para tanto utilizou um formulário online para solicitar seus dados pessoais. Não satisfeito com a resposta, conseguiu um CD enviado diretamente da Califórnia com um banco de dados de tudo o que foi coletado em três anos de inscrição, equivalente a 1.200 páginas impressas. Relata que, inicialmente, ficou surpreso com a resposta, pois nem a CIA ou KGB já tiveram 1.200 páginas a respeito de um cidadão comum. Começou a ficar assustado quando descobriu que os dados coletados eram armazenados em 57 categorias. Na categoria “mensagens” encontrou algo inesperado: mensagens apagadas há muito tempo, marcadas como deleted – true, permaneciam armazenadas.
Embora o Facebook realce que a qualquer momento o usuário pode apagar suas mensagens e seus dados, as mensagens “apagadas” de Max Schrems permaneciam arquivadas, permitindo encontrar qualquer informação pela inserção de palavras-chaves na função de pesquisa, como por exemplo, opção sexual, participação em manifestações, doenças etc.
Nos Estados Unidos prevalece a ideia de que dados obtidos nunca são cedidos, mas uma empresa que armazena dados em seus servidores passa a possuir direitos sobre eles.
Em suas pesquisas Max descobriu que desde 2009 o Facebook mantém uma segunda sede em Dublin, na Irlanda e por tal razão vem promovendo diversas queixas à Autoridade Irlandesa de Proteção de Dados. Criou, inclusive, uma página na internet denominada “Europe versus Facebook” (europe-v-facebook.org), com a finalidade de suscitar o debate e exigir o cumprimento da lei. Mesmo assim o Facebook desenvolveu a ferramenta timeline (linha do tempo) que aumenta a quantidade de informações recolhidas de seus usuários, organizando-as cronologicamente numa espécie de diário virtual.
Em resposta às alegações de que os dados não são apagados, o Facebook respondeu que a respeito dos relatórios de dados apagados que às vezes aparecem nos arquivos baixados, deve-se dizer que provavelmente se trata, neste caso, de mensagens que foram removidas de um dado lugar do Facebook, mas não foram excluídas, ou houve a necessidade de manutenção da informação por um curto período para investigações.
Quando um dado é removido pelo usuário de qualquer rede social, necessariamente ele deve desaparecer e o armazenamento injustificado desses dados pelo Facebook é ilegal. Remoção deve significar exclusão, em qualquer hipótese.
O exemplo trazido contraria, inclusive, a Declaração de Direitos e Responsabilidades da mencionada rede social, que consigna que o usuário é proprietário de todas as informações e conteúdos que publica e pode controlar o modo como serão compartilhados por meio das configurações de privacidade e de aplicativos.[26]
Considerando que o Facebook reúne mais de 20% da população mundial e este número tende a crescer, considerando ainda que há a possibilidade de preservação indevida de todos os dados inseridos, mesmo aqueles que foram deletados por seus proprietários, a referida rede social pode estar exercendo a função de maior instituição privada de informação pessoal e de espionagem do planeta!
O direito de deletar envolve, ainda, as relações interpessoais e deve ser aplicado para que se preserve qualquer direito de personalidade. A decisão judicial mais recente de que se tem notícia em território europeu foi publicada em 13 de outubro de 2015, no processo VI ZR 271/14, proferida pelo Bundesgerichtshof (Tribunal de Justiça Federal), na Alemanha. Trata-se de um caso que envolve um casal de Lahn-Dill, região central daquele país. O homem, um fotógrafo, durante o período que se relacionou com a ex-namorada produziu vários vídeos eróticos e fotografias íntimas, tudo com o consentimento da mulher. Quando o relacionamento acabou a mulher solicitou que todo o material fosse apagado. Não logrando êxito em seu pleito, buscou a via processual. A Corte de Justiça entendeu que os arquivos contendo as fotografias e os vídeos devem ser deletados ou devolvidos pois os direitos de personalidade são mais importantes que os direitos de posse do fotógrafo.[27]
Como se verifica, o leque de violações é imenso e importa refletir sobre a função do direito e a necessidade de dar validade aos direitos de personalidade frente aos problemas causados pela utilização indevida da internet.
A inércia da comunidade jurídica pode, em futuro próximo, contribuir para que a privacidade, a honra, a moral e outros direitos inerentes ao homem se transformem em artigos de luxo, extremamente raros, facilitando o surgimento de uma legião privada de caçadores de direitos, a exemplo de serviços de internet já disponíveis para medição da reputação online e comercialização de soluções para melhorá-la.
A peça teatral “Vermelho”, do escritor americano John Logan, que retrata os dramas filosóficos e artísticos do pintor Mark Rothko,[28] nos mostra, na primeira cena, a recepção do artista ao assistente que o ajudaria a concluir os murais do Four Seasons. Olhando para uma tela imaginária o mestre indaga ao ajudante: “o que você vê?” A contemplação da internet e seus múltiplos fenômenos não deve prescindir da mesma indagação de Rothko. Estaríamos vivendo o modelo de sociedade totalitária extasiada pelo progresso científico, imaginada por Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”? Ao consentir que a internet seja um território sem controle estatal não estaríamos permitindo a implantação de um sistema semelhante àquele idealizado por George Orwell, na célebre obra 1984, onde o “Grande Irmão” é capaz de vigiar até mesmo as ideias e os sonhos dos cidadãos? Portanto, “o que você vê?”.
4 – CONSTATAÇÕES
– A internet é instrumento de aproximação, mas quando utilizada para causar lesões a direitos de personalidade é meio extremamente nocivo por facilitar a expansão do dano e a eternização dos efeitos do ato lesivo.
– A liberdade de expressão deve ceder espaço a direitos de personalidade, em qualquer hipótese. O exercício dessa liberdade, sem responsabilidade, e com a finalidade de macular a honra, a privacidade e a imagem de outrem é ato de arbítrio, merecendo intervenção estatal adequada.
– O stalking virtual deve ser entendido como espécie mais gravosa de cyberbullying. Ambos, todavia, denotam uma campanha de assédio a alguém com a invasão de sua privacidade e têm por objetivo humilhar, diminuir, vilipendiar, amedrontar, acarretando danos psicológicos, sociais e morais.
– Na quantificação pecuniária do dano causado pela ofensa a direitos de personalidade deve o juiz ou tribunal, quando possível, recorrer a perícias psiquiátricas para a prova da extensão da chamada “dor de alma”.
– O direito ao esquecimento é instrumento de defesa que deve ser utilizado com a finalidade de reparar lesões a direitos de personalidade, como honra, privacidade e imagem. Nenhuma ofensa pode ecoar para sempre, o que seria equivalente a “punição” eterna.
– Os provedores de serviços de internet que disponibilizam espaços para denúncia de conteúdos devem revisar suas políticas internas, adequando-as a critérios rígidos de proteção a direitos fundamentais.
– O sistema Judiciário deve estar atento a essas modalidades de violações aos direitos de personalidade, analisando não somente a intenção do agente, mas a extensão da lesão sofrida pela vítima e as respectivas consequências em seu meio social e profissional. As medidas reparatórias ordenadas pelo Judiciário devem contemplar, além da indenização pecuniária, a determinação de exclusão do conteúdo ofensivo lançado na internet.
Juiz de Direito no Espírito Santo desde maio de 1998 mestre em Direito pela PUC-SP Doutorando em Direito pela ULisboa – Universidade de Lisboa Portugal Professor de Direito da Universidade de Vila Velha-ES UVV-ES
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